Acessibilidade / Reportar erro

Os rostos brasileiros de Joana D’Arc: filantropas e feministas redescobertas

The Brazilian faces of Joan of Arc: philanthropists and feminists rediscovered

Los rostros brasileños de Juana de Arco: filántropos y feministas redescubiertos

MARTINS, Ana Paula Vosne. . Faces femininas do conservadorismo: filantropas e feministas brasileiras no começo do século XX . Teresina: Cancioneiro, 2023

Com Faces femininas do conservadorismo: filantropas e feministas brasileiras no começo do século XX, a historiadora Ana Paula Vosne Martins traz às leitoras e aos leitores o resultado de uma investigação feita ao longo de quase uma década. A lista de agradecimentos não deixa dúvida do quanto a escritora calcorreou em diferentes estados brasileiros, por entre instituições de pesquisa, arquivos públicos e privados, bem como junto às casas de familiares das mulheres cujas trajetórias foram reconstituídas na obra. A historiadora reúne instituições decerto, mas nomeia as pessoas, revela relações entretecidas pela investigação que se espraiam na leitura das vidas das protagonistas que, por sua vez, se estendem até ela, até nós. Nos agradecimentos - e geralmente os escrevemos após a conclusão de um projeto -, Ana Paula mantém sua fidelidade à dinâmica que seguiu em toda a obra, ou seja, o levantamento dos espaços estruturados onde mulheres no começo do século XX formaram redes filantrópicas (mas não só) e os indivíduos, no caso, essas mulheres tão diversas dela e que, todavia, desafiaram as suas certezas.

Mas afinal o que a leitora e o leitor recebem em Faces femininas do conservadorismo: filantropas e feministas brasileiras no começo do século XX? O público leitor recebe parte importante do pagamento de uma imensa dívida historiográfica com a agência feminina e o desenvolvimento preciso de uma “lição” aprendida pela autora, a de que “as diferenças ideológicas e políticas, quando não são irreconciliáveis por questões éticas, não devem nos impedir de compreender outras formas e maneiras de agir e de existir” (Ana Paula Vosne MARTINS, 2023MARTINS, Ana Paula Vosne. Faces femininas do conservadorismo: filantropas e feministas brasileiras no começo do século XX. Teresina: Cancioneiro, 2023., p. 11). No Brasil em que vivemos, de tantas diferenças - algumas, sim, irreconciliáveis, a pesquisadora não ignora -, de equívocos interpretativos e manipulação/confusão de conceitos, saúdo a obra da historiadora.

“Somos muito diferentes” (MARTINS, 2023MARTINS, Ana Paula Vosne. Faces femininas do conservadorismo: filantropas e feministas brasileiras no começo do século XX. Teresina: Cancioneiro, 2023., p. 11), ela reconhece... Ana Paula Vosne Martins é professora titular do Departamento de História da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e uma das fundadoras do Núcleo de Estudos de Gênero (NEG) da UFPR, criado em 1994 na instituição. Ana Paula coordenou o NEG até 2015. Atualmente (2024), é coordenadora do Programa de Pós-Graduação em História (PPGHIS) da UFPR e é membro da Red Iberoamericana de Investigación en História, Mujeres y Archivos (RIIHMA). Trata-se de uma pesquisadora feminista, que consagra sua carreira aos estudos de gênero, à História das Mulheres, à História do Brasil, ao estudo das relações entre gênero e saúde, e atua na Pós-Graduação, junto ao Fórum de Coordenadores, como representante de seu Programa, mas também como proponente de novas políticas para a área. Quem são as protagonistas de sua obra? São elas: Mary Sayão Pessoa, Stella de Faro, Eugenia Dutra Hamann, Jeronyma Mesquita e Alice Tibiriça. Todas foram mulheres da elite, atuantes na primeira metade do século XX e partícipes de um movimento de feminização da filantropia. Tiveram algumas vezes seus nomes incluídos nos mesmos projetos, nas mesmas lutas, mas foram muito diversas entre si.

Ana Paula Vosne Martins destaca essas diferenças e reconhece, entretanto, um importante elemento comum às mulheres que pesquisou: o conservadorismo. Então, a investigação da trajetória das protagonistas demonstrou à pesquisadora que o conservadorismo foi uma referência moral para essas filantropas tão diferentes, mas não foi um quadro monolítico, foi muito mais um “quadro flexível” (MARTINS, 2023MARTINS, Ana Paula Vosne. Faces femininas do conservadorismo: filantropas e feministas brasileiras no começo do século XX. Teresina: Cancioneiro, 2023., p. 27), de onde partiram, onde se moveram, retirando valores e buscando frentes de ação. Como a investigadora define o conservadorismo? Ana Paula Vosne Martins reúne pensadores, mas reconhece na obra de Roger Scruton e Russell Kirk princípios mais compatíveis com o universo que pesquisou, assim:

a definição do conservadorismo abarca o princípio da autoridade, da liberdade limitada pela lei, a crença na ordem transcendente, a reverência à herança dos antepassados, a recusa às abstrações e ao racionalismo filosófico e político, bem como aos conceitos de igualdade e autonomia do indivíduo (MARTINS, 2023MARTINS, Ana Paula Vosne. Faces femininas do conservadorismo: filantropas e feministas brasileiras no começo do século XX. Teresina: Cancioneiro, 2023., p. 30).

Ela adverte que “a institucionalidade e o império da lei constituem os fundamentos da ordem social e política” dos conservadores, cujos “princípios [estão] bastante distantes do reacionarismo político e moral que vemos com mais frequência na enunciação de discursos políticos, religiosos e sociais ditos conservadores” (MARTINS, 2023MARTINS, Ana Paula Vosne. Faces femininas do conservadorismo: filantropas e feministas brasileiras no começo do século XX. Teresina: Cancioneiro, 2023., p. 29). Trata-se de uma advertência importante, pois não há nada mais diverso da atuação de uma mulher como Alice Tibiriça que a ação de certas mulheres que se reuniram muito recentemente ao abrigo do Palácio do Planalto em Brasília, na capital do Brasil.

O desenvolvimento de Faces femininas do conservadorismo: filantropas e feministas brasileiras no começo do século XX está organizado em quatro capítulos. No primeiro, a autora enfrenta o esquecimento dessas mulheres, não é à toa que vai buscar as contribuições de Paul Ricoeur. A historiadora reivindica o conceito de margem, como Natalie Zemon Davis o compreende para perceber os espaços de atuação de suas protagonistas. Mas ante a “suspeita” de “margens consentidas” (MARTINS, 2023MARTINS, Ana Paula Vosne. Faces femininas do conservadorismo: filantropas e feministas brasileiras no começo do século XX. Teresina: Cancioneiro, 2023., p. 46), a investigação levou-a a repensar essa possibilidade e a propor uma agência feminina em outros centros de poder (MARTINS, 2023, p. 46). As mulheres sobre as quais escreveu criaram novos centros de atuação, via assistência social e ativismo religioso (nesse segundo caso, nem todas elas). Por que foram esquecidas? A historiografia pode tê-las desprezado porque eram conservadoras, mas há um segundo problema: algumas delas também não quiseram “aparecer”. O nome dos homens filantropos batizou hospitais, como afirmou a investigadora: “a memória da filantropia no Brasil é preponderantemente masculina” (MARTINS, 2023, p. 71), mas o nome das mulheres desapareceu mesmo dentro das redes em que elas consagraram a sua vida. Como Ana Paula escolheu refutar o esquecimento delas? Pela biografia.

O segundo capítulo do desenvolvimento é consagrado à contextualização do processo de feminização da filantropia. Para isso, o texto “sai do Brasil” e vai buscar a inspiração das brasileiras na Europa e nos Estados Unidos. O que animava as filantropas? As pioneiras do século XIX “foram guiadas pelo humanitarismo religioso e pelos valores liberais” (MARTINS, 2023MARTINS, Ana Paula Vosne. Faces femininas do conservadorismo: filantropas e feministas brasileiras no começo do século XX. Teresina: Cancioneiro, 2023., p. 100), mas não só. É preciso acrescentar “um forte sentido de realidade [que] as impulsionou para uma atitude mais pragmática e assertiva em relação aos problemas sociais” (MARTINS, 2023, p. 100). As filantropas brasileiras que Ana Paula Vosne Martins estudou eram mulheres da elite, tiveram formação e puderam viajar, ou para completar essa formação, ou para conhecer e ampliar a rede de assistência em que se inseriram no país. Não raro, representaram o Brasil e seus projetos nessas redes, sua voz se fez ouvir.

Nos dois capítulos seguintes, conhecemos de forma mais circunstancializada as protagonistas da investigação. Na verdade, seus nomes e sua atuação já aparecem para o/a leitor/a em capítulos anteriores, mas nesses a autora reconstrói as biografias, com os elementos que “escavou”. Ana Paula Vosne Martins concebe dois grupos de mulheres. O primeiro, formado por Mary Sayão Pessoa e Stella de Faro, é caracterizado pela benemerência explicitamente como um dever cristão. O segundo, formado por Eugenia Dutra Hamann, Jeronyma Mesquita e Alice Tibiriça, sem desprezar o cristianismo, relacionou filantropia e feminismo; segundo a historiadora, nesse segundo grupo, “a filantropia forneceu as experiências para as mulheres que passaram a atuar nas organizações feministas” (MARTINS, 2023MARTINS, Ana Paula Vosne. Faces femininas do conservadorismo: filantropas e feministas brasileiras no começo do século XX. Teresina: Cancioneiro, 2023., p. 187). É preciso destacar, todavia, que essas mulheres - despertadas por motivações diferentes - conviveram e foram partícipes das mesmas lides por vezes.

Mary Sayão Pessoa foi primeira-dama, esposa do presidente Epitácio Pessoa, e poderia ter se conformado ao conjunto de gestos e ações esperados para esse lugar de distinção social: entre jantares e representações, na posição de quem acompanha, ou seja, como coadjuvante. Entretanto, Mary Sayão envolveu-se em iniciativas onde experimentou um protagonismo, na assistência social (MARTINS, 2023MARTINS, Ana Paula Vosne. Faces femininas do conservadorismo: filantropas e feministas brasileiras no começo do século XX. Teresina: Cancioneiro, 2023.). Note-se ainda que essa mulher se alinhou a outras (algumas claramente feministas) na defesa de causas diferentes, como o sufrágio feminino.

Stella de Faro foi uma das mulheres mais atuantes do movimento católico leigo no início do século XX, membro da Ação Católica Brasileira e de outras redes, inclusive internacionais. Stella pode ser considerada a encarnação brasileira da promoção da imagem da donzela guerreira que veio a colar-se à individualidade empírica e histórica de Joana D’Arc. Ana Paula faz menção ao aproveitamento da trajetória da Donzela de Orleans nos meios católicos, mas poderíamos acrescentar que Joana D’Arc foi sequestrada também pela esquerda, que valorizou a sua origem popular, filha do povo, mártir da independência francesa (Christian AMALVI, 2006AMALVI, Christian. “Idade Média”. In: LE GOFF, Jacques, SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário temático do Ocidente Medieval. Vol. I. Bauru (SP): EDUSC, 2006. p. 537-551.). Stella se envolveu até com leitura e esteve ao lado de Eugenia Hamann no Conselho Nacional de Serviço Social. Como Ana Paula Vosne Martins (2023MARTINS, Ana Paula Vosne. Faces femininas do conservadorismo: filantropas e feministas brasileiras no começo do século XX. Teresina: Cancioneiro, 2023.) observa, a atuação dessas mulheres, junto a outras foi essencial para a fiscalização do emprego de recursos públicos em obras de assistência. É com certa tristeza que a leitora e o leitor leem o esquecimento da trajetória dessa mulher, que a investigadora também perscruta.

Para o segundo grupo de mulheres a quem a autora se dedica de forma mais particular, a filantropia lhes abriu portas para atuações várias, desde as extraordinárias “cartas sem endereço” de Eugenia Dutra Hamann até a prisão de Alice Tibiriça, as mulheres desse grupo tornaram certamente mais desafiadora a compreensão do conservadorismo para a investigadora e para o público leitor. Estudar sua atuação é adentrar a compreensão da edificação de instituições importantes ainda hoje, como a Pro Matre no Rio de Janeiro. As mulheres de ambos os grupos, com destaque para as do segundo, voltaram-se de forma consistente à proteção das mães pobres e que criavam sozinhas seus filhos, voltaram-se à formação de moças afastadas de suas famílias e engajaram-se na proteção e no cuidado de doentes vítimas de preconceitos. Jeronyma Mesquita ousou desquitar-se de marido abusivo e tornar-se enfermeira, atuou junto à Cruz Vermelha. Alice Tibiriça teve assento em mesa de congresso formada por médicos para discutir a hanseníase e sua expressão foi valorizada por eles.

O esquecimento a que essas mulheres foram relegadas (até pelo imperativo da humildade cristã) incomoda o leitor e a leitora, que é impactado pela análise de documentos vários reunidos ao longo de quase uma década. Documentos das associações, núcleos, imprensa, até cartas particulares, como a de um marido que admirava a inteligência e a atuação de sua esposa (caso de Christiano Hamann). Mas eu queria destacar um tipo de fontes que é incorporado ao livro e que promove a leitura: as fotografias. Ana Paula foi às casas dos descendentes das suas protagonistas, olhou álbuns e porta-retratos, escavou às vezes a memória única em imagem de uma mulher e nos brinda com o talhe dessa mulher: seu olhar. Minhas fotos favoritas são: a do casal Eugenia e Christiano, sentados em um banco, ela rindo e ela admirado dela/nela (MARTINS, 2023MARTINS, Ana Paula Vosne. Faces femininas do conservadorismo: filantropas e feministas brasileiras no começo do século XX. Teresina: Cancioneiro, 2023., p. 200) e a de Jeronyma Mesquita de bandeirante (MARTINS, 2023, p. 255), entrevi mais uma faceta de Joana D’Arc.

Levando-se em conta a formação, a atuação e a trajetória acadêmica de Ana Paula Vosne Martins, é lícito questionar o interesse investigativo da autora pelas mulheres que pesquisou de forma mais detida... Esse questionamento merece uma resposta em duas frentes: uma frente pessoal, que se volta à pesquisa da historiadora Ana Paula Vosne Martins, e uma frente que se volta à Historiografia. No primeiro caso, como ela esclarece, desde 2012, o seu interesse pelas políticas assistenciais materno-infantis dos anos 30 e 40 do século XX no Brasil levou-a a encontrar mulheres da elite em estados diferentes da federação que atuaram junto a médicos, enfermeiras e enfermeiros, assistentes sociais, criando associações que prestaram serviços importantes junto a mulheres pobres e crianças. Destaco: serviços que o Estado patinava em oferecer. A pesquisadora descobriu que essas mulheres da elite fizeram parte de um movimento amplo de assistência (que transcendia o Brasil) que ultrapassava e desafiava a sua primeira compreensão: de controle social das pessoas pobres (MARTINS, 2023MARTINS, Ana Paula Vosne. Faces femininas do conservadorismo: filantropas e feministas brasileiras no começo do século XX. Teresina: Cancioneiro, 2023.). A segunda frente de resposta, da qual obviamente participa Ana Paula Vosne Martins como historiadora, tem uma vocação coletiva: estudar essas mulheres não pareceu relevante para as historiadoras e os historiadores até pelo menos os anos 1990. Primeiro porque eles e elas não as viram..., segundo porque eles e elas estavam mais voltados e voltadas à expressão e à atuação de mulheres rebeldes e contestadoras da ordem social.

As protagonistas de Faces femininas do conservadorismo: filantropas e feministas brasileiras no começo do século XX não afrontaram a ordem, elas alargaram seus limites (MARTINS, 2023MARTINS, Ana Paula Vosne. Faces femininas do conservadorismo: filantropas e feministas brasileiras no começo do século XX. Teresina: Cancioneiro, 2023.), embora eu possa discordar um pouco disso, quando leio as páginas que a pesquisadora consagrou a Alice Tiribiça... Conservadora? A autora entreviu no quadro flexível do conservadorismo dessas mulheres elementos nitidamente feministas. Considero a declaração da investigadora, de que encerra a obra modificada pelas vidas que conheceu (MARTINS, 2023), um manifesto luminoso de como a pesquisa levada a efeito segundo sérios e sólidos postulados acadêmicos e científicos promove mudanças em quem realiza a investigação e em quem lê os resultados. No caso da leitura, não faço justiça (só) a mim, mas antes à belíssima apresentação da obra escrita pelo professor Euclides Marchi, que acompanhou o desenvolvimento do trabalho de Ana Paula Vosne Martins ao longo da década em que ela se dedicou a dar visibilidade e a analisar a atuação de uma agência feminina até bem pouco tempo invisível à historiografia.

Referências

  • AMALVI, Christian. “Idade Média”. In: LE GOFF, Jacques, SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário temático do Ocidente Medieval Vol. I. Bauru (SP): EDUSC, 2006. p. 537-551.
  • MARTINS, Ana Paula Vosne. Faces femininas do conservadorismo: filantropas e feministas brasileiras no começo do século XX Teresina: Cancioneiro, 2023.
  • Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista:

    GUIMARÃES, Marcella Lopes. “Os rostos brasileiros de Joana D’Arc: filantropas e feministas redescobertas”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 32, n. 3, e99919, 2024.
  • Financiamento:

    Bolsa de Produtividade em Pesquisa 2 do CNPq
  • Consentimento de uso de imagem:

    Não se aplica.
  • Aprovação de comitê de ética em pesquisa:

    Não se aplica.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    29 Abr 2024
  • Revisado
    15 Jul 2024
  • Aceito
    20 Jul 2024
Centro de Filosofia e Ciências Humanas e Centro de Comunicação e Expressão da Universidade Federal de Santa Catarina Campus Universitário - Trindade, 88040-970 Florianópolis SC - Brasil, Tel. (55 48) 3331-8211, Fax: (55 48) 3331-9751 - Florianópolis - SC - Brazil
E-mail: ref@cfh.ufsc.br