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Psicologia e teorias queers

Queering. Problematizações e insurgências na psicologia contemporânea

TEIXEIRA FILHO, Fernando Silva; PERES, William Siqueira; RONDINI, Carina Alexandra; SOUZA, Leonardo Lemos de (orgs.).

Cuiabá: EDUFMT, 2013.

O termo Queering traz para a discussão a teoria queer em uma perspectiva ampliada, não restrita à discussão das sexualidades e identidades de gênero, mas como aporte teórico - epistemológico para pesquisadores/as de diversas áreas, conscientes de suas corporeidades e incidências discursivas presentes no campo de pesquisa. Trata-se de movimentar - queerizar - a prática da Psicologia para o campo das multiplicidades dos sujeitos, das transformações e das experiências dos corpos dos/as pesquisadores/as nos espaços de pesquisa.

O texto é dividido em duas (2) seções, com 10 artigos em cada uma e, conforme consta na apresentação de Anna Paula Uziel, o trabalho é resultado das conferências e mesas redondas presentes no III Seminário Internacional "Pensando Gêneros: a psicologia para além do espelho", contando com a colaboração de outros/as parceiros/as de pesquisa dos/as organizadores/as do evento.

Em toda a coletânea está presente a problematização das práticas 'psi' e uma denúncia contundente da defasagem das ações clínicas e pesquisas que ainda se mostram em alguns momentos alinhadas com os conceitos regulatórios da modernidade.

Os primeiros textos estão centrados, sobretudo, na discussão teórica, emergindo traços importantes das pesquisas de campo realizadas pelos/as autores/as. Na segunda seção, as experiências corpóreas dos/as pesquisadores/as tomam o centro da escrita, para mostrar os dilemas de uma prática de 'pesquisa queer' na Psicologia, na Antropologia e na Educação.

É frequente a identificação do termo queer com as ideias de transgressão, rasgo, fissura, transformação. A leitura do livro em si torna-se uma vivência queer na medida em que as reflexões são apresentadas de um modo a subverter a escrita científica e a desafiar o/a leitor a uma compreensão também transgressora das normas de escrita e interpretação canonizadas na academia.

Existem linhas de argumentação que aparecem no texto em diferentes momentos, conferindo uma sintonia entre os/as autores no que se refere à proposta de enfrentar a pergunta lançada pelos/as organizadores/as: como é possível aproximar Psicologia e teoria queer?

Para isso, Michel Foucault( 1 1 Foucault, 1979, 1988. ) aparece no texto, repetidas vezes (uma delas no texto de Cristiane Gonçalves da Silva sobre a saúde pública), novamente pela ideia de biopolítica, a qual desvelou os traços do agenciamento político dos corpos na modernidade e, mais do que nunca, como o autor que captou as origens dos discursos, indicando que sua obra ainda é um bom caminho para pensar as práticas discursivas que recaem sobre o corpo e engessam as possibilidades das sexualidades, das identidades de gênero e das experiências de vida em todos os campos. Em todos os momentos, os discursos oficiais e as margens deles consequentes estão sendo expostos, no entanto, os sujeitos não estão sendo discutidos pelo olhar da vitimização, que era comum nos textos críticos, mas, sim, pelo olhar da empatia com a pluralidade, pelo resgate das várias possibilidades de viver como pensamento que precisa estar na base das epistemologias contemporâneas.

O biopoder também é utilizado por Juliana Helena Faria como marco teórico para falar das assimetrias de poder nos abusos sexuais intrafamiliares.

Os textos na área da Educação, com Fernando Silva Teixeira Filho, Nayara Lima Longo, Juliane Campos de Souza, Carina Alexandra Rondini e Lívia Gonsalves Toledo estão voltados também às análises de discursos e trazem de volta à colação a discussão dos papéis fixos de gênero nas falas de educadores e profissionais da escola, assim como Cíntia Helena dos Santos, em suas considerações sobre o ambiente das prisões.

A experiência da escrita e leitura transgressora se inicia com o texto de Rosa Borges Bravo; Raquel (Lucas) Platero, mostrando a discussão que se seguiu entre elas por email, por várias semanas, sobre as adoções de casais lésbicos e gays na Cataluña: "Y ahí es cuando imagine que este artículo debíatener no sólo uma propuestaqueer sino um formato también um tanto queer".( 2 2 Borges Bravo; Platero, 2013, p. 15-16. ) Nesse sentido, Paola Zordan apresenta um texto de escrita artística e reflexão estética sobre o inconsciente e as produções de subjetividade, reforçando a tônica transgressora do conjunto dos escritos. Zordan( 3 3 Zordan, 2013, p. 199. ) volta à figura do monstro nas pinturas clássicas como uma imagem de transgressão das 'formas naturais'; e ao desejo, em Deleuze e Guatarri, como vida (e não morte) "que não cessa nunca de proliferar e de desorganizar os organismos e as organizações". Indica o início do problema quando o desejo é encerrado dentro de um "eu idiota" e o corpo deixa de ser uma paisagem pintada pelas multiplicidades de vida e adere a uma paisagem clichê. Sem mencionar a teoria queer, Zordan apresenta uma análise profunda sobre as multiplicidades e trânsitos das subjetividades.

A experimentação da mistura do humano com a natureza por meio da arte vem antes, no capítulo de Dolores Galindo, ao mostrar a dança com a soja: "Propusemo-nos a dançar com não humanos",( 4 4 Galindo; Millioli, 2011. ) lembrando a noção de 'espécies companheiras' em Donna Haraway.( 5 5 Haraway, 2008. )

Os textos que discutem a teoria queer e a psicanálise exigiram dos/as autores/as uma revisão teórica que vai de Freud a Lacan e as críticas que sofrem dentro do feminismo e da própria psicanálise. Patrícia Porchat traz um esquadrinhamento da discussão em torno de quatro (4) eixos: estatuto do corpo e da pulsão; o estatuto do inconsciente e da realidade; o estatuto do Édipo, do parentesco e da universalidade; a ética e os direitos humanos. Apresenta, assim, um aprofundamento reflexivo, que se destaca no livro, em relação às recentes críticas às categorias clássicas da psicanálise, e uma articulação de sua análise com as teorias de Butler,( 6 6 Butler, 2002. ) expondo a necessidade dessa área de conhecimento de pensar o sujeito e seu 'desejo de vida', ao mesmo tempo em que não pode negligenciar a dimensão de sua aceitação social como 'ser desejante' e, nesse aspecto, a teoria queer tem muito a contribuir, devido às suas preocupações com as margens.

Existe uma grande recorrência ao conceito de transcontemporaneidade, de Rosi Braidotti, aparecendo em vários momentos do livro, principalmente com Márcio Alessandro Neman do Nascimento, em seu texto centrado no tema da Body modification, chamando a atenção para várias teorias na área das humanas que mostram as descontinuidades e modos de existir que se diferem do modo positivista.

Braidotti( 7 7 Braidotti, 2006. ) também é referenciada para demonstrar uma tentativa de superação da ideia de sujeito universal e uma aceitação pela psicologia do caráter transitório das subjetividades, como demonstra William Siqueira Peres ao criticar os binarismos e lembrar a ideia de "sujeitos nômades".( 8 8 Braidotti, 2000. )

O tema da superação do 'Uno' também é abordado por Ana Maria Fernandez, ao esclarecer o conceito de multiculturalismo. O fio condutor dos sujeitos múltiplos e nômades está presente nas reflexões acerca da subjetividade, dos sujeitos e dos direitos no campo da homossexualidade, como nos textos de Marina Castañeda, analisando a face dupla da discussão pela aceitação do governo e não aceitação religiosa desses sujeitos; em Gloria Careaga Pérez, propondo o uso da teoria queer pela psicologia para que se seja possível a historicização desses sujeitos na seara das sexualidades e sobre a criação de centros de estudos latino-americanos sobre diversidade sexual e Tânia Pinafi, destacando os avanços e dificuldades da luta LGBT. Nesses escritos o sujeito aparece diversificado, militante, pesquisador/a, objeto de conhecimento, múltiplo em suas vivências corporais.

As experiências do corpo - pesquisador - participante, etnógrafo, psicólogo, emergem ao longo do livro em uma sucessão de novas vivências em campo. É necessário reduzir as distâncias, como diz Sandra Azerêdo.

A aproximação com o objeto no campo produz vivências corporais importantes para a compreensão do/a pesquisador/a de sua circunscrição no mundo e localmente. Para a academia, este é um exercício muitas vezes de deslocamento, mas a proposta queer, aproximada às epistemologias de fato, propõe um afastamento dos papéis rígidos desempenhados pelo eu. Os desafios são recorrentes, como relata Elcio Nogueira dos Santos, no penúltimo capítulo do livro, ao descrever sua estratégia de ter que se apresentar no campo de pesquisa coberto por toalhas de banho, já que se tratava de analisar a atividade dos michês em saunas de banho em São Paulo.

Fernando Pocahya apresenta a linguagem como forte instrumento de transgressão das representações: "aquendar como expressão de uma linguagem plástica para um embate duro".( 9 9 Pocahy, 2013, p. 157. ) Aquendar, no sentido erótico de tomar, experimentar. O sujeito - pesquisador como alguém que se (re)conhece no campo, que admite a sexualidade como uma forma de conhecer o mundo, "fissurando seu corpo (também teórico) como abertura epistemológica".( 10 10 Pocahy, 2013, p. 158. )

  • BRAIDOTTI, Rosi. Sujetos nómades. Buenos Aires: Paidós, 2000.
  • ______. Transposiciones: sobre la ética nómada. Barcelona: Gedisa, 2006.
  • BUTLER, Judith. Cuerpos que importan: sobre los limites materiales y discursivos del "sexo". Buenos Aires: Paidós, 2002.
  • FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. A vontade de Saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
  • ______. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
  • HARAWAY, Donna. Testigo_Modesto@Segundo_Milenio.HombreHembra(c)_Conoce_Oncoratón(r): feminismo y tecnociencia. Barcelona: EdUOC, 2004.
  • TEIXEIRA FILHO, Fernando Silva; PERES, William Siqueira; RONDINI, Carina Alexandra; SOUZA, Leonardo Lemos de (orgs.). Queering. Problematizações e insurgências na Psicologia contemporânea. Cuiabá: EDUFMT, 2013
  • 1
    Foucault, 1979, 1988.
  • 2
    Borges Bravo; Platero, 2013, p. 15-16.
  • 3
    Zordan, 2013, p. 199.
  • 4
    Galindo; Millioli, 2011.
  • 5
    Haraway, 2008.
  • 6
    Butler, 2002.
  • 7
    Braidotti, 2006.
  • 8
    Braidotti, 2000.
  • 9
    Pocahy, 2013, p. 157.
  • 10
    Pocahy, 2013, p. 158.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2015
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