Acessibilidade / Reportar erro

Mulheres assassinas no Brasil e no Chile: As homicidas, de Alia Zerán

Female murderess in Brazil and Chile: As homicidas by Alia Zerán

Mujeres asesinas en Brasil y Chile: As homicidas de Alia Zerán

ZERÁN, Alia Trabucco. . As homicidas . Trad. de Felix, Silvia Massimini. . São Paulo: Fósforo, 2023

Por que é mais fácil imaginar mulheres assassinadas do que mulheres assassinas? É com essa questão que Alia Trabucco Zerán abre seu novo livro, As homicidas. Nele, se debruça sobre quatro casos de assassinas chilenas, para pensar quais elementos sociais unem essas mulheres, em casos tão díspares de violência. Mesmo que seu foco seja o de acontecimentos de um país vizinho, os casos que Zerán apresenta são úteis na compreensão de fenômenos semelhantes que ocorreram no Brasil, como o assassinato de Roberto Rodrigues por Sylvia Serafim.

Para contextualizar a comparação, um rápido resumo sobre o caso Roberto Rodrigues. No dia 26 de dezembro de 1929, Sylvia Serafim, jornalista e escritora, colaboradora de O Jornal, veículo de Assis Chateaubriand, entrou indignada na redação do jornal rival, Crítica. A escritora sentia-se ultrajada pela publicação de uma matéria de capa que sugeria seu suposto adultério. Solicita uma audiência com Roberto Rodrigues e vão para um gabinete privado, deixando para trás um jovem Nelson Rodrigues de 17 anos. Não se sabe o que foi dito ou feito na sala - versões divergem entre si -, mas Serafim atirou na barriga de Roberto, que faleceu três dias depois.

As dinâmicas e clichês de gênero influenciam e impactam até mesmo sobre assassinas. Como lembra Zerán (2023ZERÁN, Alia Trabucco. As homicidas. Trad. de Silvia Massimini Felix. São Paulo: Fósforo, 2023), assassinato e feminilidade são considerados antitéticos. Um homem que mata não tem a sua masculinidade colocada em xeque - ao contrário, o assassinato por vezes parece reforçá-la -, enquanto uma mulher assassina é rapidamente privada do feminino - quando não é masculinizada, por certo sexualizada. No caso de Serafim, por exemplo, durante seu julgamento Crítica (15 jul. 1930CRÍTICA. Crítica, n. 524, 15 jul. 1930. Disponível em Disponível em http://memoria.bn.br/pdf/372382/per372382_1930_00524.pdf . Acesso em 20/10/2022.
http://memoria.bn.br/pdf/372382/per37238...
) não poupou comentários a respeito de seu vestido ou de seu decote.

Zerán escolheu tratar de homicidas não apenas por revelarem traços ignorados sobre as dinâmicas de gênero, mas também porque seus crimes “são uma janela privilegiada para observar como mudou o significado histórico de ser mulher” (ZERÁN, 2023ZERÁN, Alia Trabucco. As homicidas. Trad. de Silvia Massimini Felix. São Paulo: Fósforo, 2023, p. 14). Não se trata de absolver essas mulheres da violência que perpetraram, como uma leitura apressada pode apontar, mas de evidenciar que até mesmo assassinas lidaram com as estruturas patriarcais conservadoras.

Assassinatos cometidos por mulheres são apropriados também como disputa política, e conservadores/reacionários não hesitam em atribuir a responsabilidade ao avanço de pautas femininas. Os quatro assassinatos analisados por Zerán (2023ZERÁN, Alia Trabucco. As homicidas. Trad. de Silvia Massimini Felix. São Paulo: Fósforo, 2023) ocorreram na mesma época em que o feminismo chileno passava por momentos cruciais. Na época, isso levantou uma questão que, apesar de poder ser interpretada de forma superficial, é essencial para a compreensão do fenômeno: a igualdade de gênero, pauta central do feminismo, implica que as mulheres passarão a matar na mesma proporção que os homens? Para os antifeministas, a resposta é óbvia. O feminismo aparece como perigo por supostamente conceder força para as mulheres agirem de forma igual aos homens, incluindo na violência.

Outro aspecto intrigante que se repete em assassinatos cometidos por mulheres é a permanência de uma condenação social que antecede a condenação jurídica. No Brasil, Sylvia Serafim terminou absolvida do assassinato de Roberto por legítima defesa da honra, mas o ponto de inflexão de seu julgamento foi o ex-marido ter testemunhado que não houve adultério. Tendo sido caluniada, o assassinato tornava-se compreensível. Tivesse sido comprovado o adultério, provavelmente Serafim não teria sido inocentada. É essencial ressaltar que, ao abordar essa questão, não se busca, de modo algum, absolver o criminoso ou minimizar a violência perpetrada. O foco recai sobre os sistemas que, mesmo antes de qualquer julgamento legal, já o condenam de maneira social.

Assim como no Brasil, no Chile situação semelhante ocorreu. Foi o caso de Corina Rojas, cujo crime de adultério antecedeu o assassinato, o que tornou a sua condenação da acusada inevitável. Elementos banais, que pouco ou nada acrescentam ao processo - entre os quais o fato de Rojas e seu amante terem tido relações, a existência de amantes no passado, entre outros - foram utilizados contra a assassina durante seu julgamento. Mais do que o assassinato, contou contra si o crime de adultério. O primeiro é visto quase como consequência do segundo, desmembramento já esperado. A sentença confirma: “antes de intervir no crime pelo qual está sendo julgada, Corina Rojas teria cometido outro: o de adultério” (ZERÁN, 2023ZERÁN, Alia Trabucco. As homicidas. Trad. de Silvia Massimini Felix. São Paulo: Fósforo, 2023, p. 29). Zerán lança luz sobre um aspecto fundamental: “A viúva só aparece como suspeita no assassinato quando sua reputação como mulher e esposa é questionada. A relação adúltera determinou sua conduta homicida” (ZERÁN, 2023, p. 29, grifos do original).

A recorrência histórica de padrões de desumanização feminina se manifesta tanto no caso brasileiro de Serafim quanto no chileno de Corina. Ambas as mulheres foram submetidas a imagens clássicas de desumanização feminina. Zerán (2023ZERÁN, Alia Trabucco. As homicidas. Trad. de Silvia Massimini Felix. São Paulo: Fósforo, 2023), sobre o caso chileno, ressalta a utilização da figura da histérica, cuja etimologia remonta a útero. Serafim e Corina tiveram suas vidas sexuais e amorosas minuciosamente exploradas como método para condená-las, perpetuando a ideia de que uma mulher considerada libertina era propensa a cometer assassinato. No entanto, há uma diferença crucial entre os desfechos de ambos os casos. Serafim foi absolvida, muito por conta de seu ex-marido ter ido ao tribunal e negado qualquer adultério - é fascinante como ela só é absolvida do assassinato por supostamente ter sido injustamente imputada como adúltera, o que permitiu, aos olhos do júri, que lavasse sua honra com sangue.

Corina não teve a mesma sorte. Seu amante lançou mão da imagem da histeria tão logo teve oportunidade, tentando torná-la a única culpada. Para isso, reforça que ela teria tido não somente ele, mas diversos amantes. Condená-la socialmente é estratégia eficaz, grande passo para a condenação jurídica. Encarnando o clássico dilema do prisioneiro, seu plano permite deslocar a culpa exclusiva nela e ainda colocar-se como vítima de uma femme fatale, uma sereia que o utilizou como método para vingança (ZERÁN, 2023ZERÁN, Alia Trabucco. As homicidas. Trad. de Silvia Massimini Felix. São Paulo: Fósforo, 2023).

Isso se repete também em outro caso tratado por Zerán: Rosa Faúndez. Uma jornaleira, Faúndez teria assassinado seu marido por acidente, durante uma briga conjugal. O que se seguiu, porém, não teria sido um acidente: ela esquartejou o corpo e o distribuiu em diversas partes de Santiago. Quando descoberta, a imprensa se recusou a crer que tivesse perpetrado o crime sozinha, insistindo na tese da existência de um cúmplice. Argumentam que uma mulher não teria a força suficiente ou a calma necessária para sumir com o corpo de tal forma, ou mesmo a frieza para mentir quando foi tomada como suspeita. Quando, enfim, se convenceram de sua culpa, Faúndez sofreu uma transformação no imaginário coletivo: metamorfoseou-se em homem, ou, ao menos, em uma mulher masculinizada. Começaram a apontar seu papel como trabalhadora e a acusá-la de ter cometido o crime por contaminação pelo avanço das pautas feministas: “Trabalhar, ganhar um salário e andar pelas ruas sem um homem para protegê-la foram apresentados por ele como prelúdio para a mais grave infração da acusada: o homicídio. Mais uma vez, as transgressões à lei de gênero antecipam a transgressão penal” (ZERÁN, 2023ZERÁN, Alia Trabucco. As homicidas. Trad. de Silvia Massimini Felix. São Paulo: Fósforo, 2023, p. 77).

Muito ainda se poderia explorar sobre as pautas levantadas em As homicidas, ou mesmo o paralelo entre as assassinas chilenas tratadas por Zerán e o caso de Sylvia Serafim no Brasil, por exemplo. O espaço limitado de uma resenha não permite ir além de alguns comentários sobre traços em comum que desumanizam mulheres assassinas, independente da nacionalidade. A análise de Zerán destaca como os estereótipos de gênero permeiam até mesmo os casos de mulheres que cometem crimes violentos. Enquanto homens que matam frequentemente têm sua masculinidade reforçada, as mulheres assassinas são rapidamente privadas de sua feminilidade ou, quando não, sexualizadas. Essa tendência é evidenciada no tratamento midiático de casos como o de Sylvia Serafim, de maneira que sua aparência e vida pessoal foram exploradas pelo sensacionalismo.

As homicidas se firma como obra fundamental para compreender dinâmicas de gênero, em escopo ampliado, mas também para os interessados em true crime. Mesmo tratando de casos específicos do Chile, seus exemplos iluminam acontecimentos semelhantes ao redor do planeta, como o caso de Sylvia Serafim não deixa negar. Indo além, as reflexões de Zerán, mesmo com um tema inusitado, são fundamentais para pensar dinâmicas de poder e estruturas de gênero que se mantêm ainda hoje. Rojas e Serafim viveram no início do século XX, mas seus crimes permanecem repercutindo no imaginário popular. Refletir sobre as razões disso é exatamente o ponto de As homicidas.

Referências

  • CRÍTICA. Crítica, n. 524, 15 jul. 1930. Disponível em Disponível em http://memoria.bn.br/pdf/372382/per372382_1930_00524.pdf Acesso em 20/10/2022.
    » http://memoria.bn.br/pdf/372382/per372382_1930_00524.pdf
  • ZERÁN, Alia Trabucco. As homicidas Trad. de Silvia Massimini Felix. São Paulo: Fósforo, 2023
  • Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista:

    SCHARGEL, Sergio. “Mulheres assassinas no Brasil e no Chile: As homicidas, de Alia Zerán”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 32, n. 3, e99844, 2024.
  • Financiamento:

    Não se aplica.
  • Consentimento de uso de imagem:

    Não se aplica.
  • Aprovação de comitê de ética em pesquisa:

    Não se aplica.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    25 Abr 2024
  • Revisado
    04 Ago 2024
  • Aceito
    05 Ago 2024
Centro de Filosofia e Ciências Humanas e Centro de Comunicação e Expressão da Universidade Federal de Santa Catarina Campus Universitário - Trindade, 88040-970 Florianópolis SC - Brasil, Tel. (55 48) 3331-8211, Fax: (55 48) 3331-9751 - Florianópolis - SC - Brazil
E-mail: ref@cfh.ufsc.br