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Enfrentando a multiplicação de fronteiras

Facing the multiplication of borders

No final do século passado, a queda do muro de Berlim e a instituição da “cidadania europeia” colocaram na pauta de governos e organizações não governamentais a questão da relação entre a cidadania e o princípio de nacionalidade. Como sublinha Sandro Mezzadra, acreditava-se que esse novo cenário fosse propício para a realização concreta de ideais cosmopolitas e o reconhecimento dos direitos dos migrantes, independentemente de sua nacionalidade. No entanto, contrariando essa expectativa, com o passar do tempo foram implementadas políticas migratórias cada vez mais restritivas. Nas palavras de Michel Foucher, surgiu uma verdadeira “obsessão por fronteiras”. É suficiente lembrar a construção de muros, cercas, valas ou outros tipos de barreiras em Israel, EUA, Bulgária, Grécia, Espanha, Marrocos, Índia, entre outros.

Ao tema da multiplicação das fronteiras e de suas implicações para o fenômeno migratório é dedicado o Dossiê da Revista REMHU n. 44. As fronteiras são espaços geográficos, mas também construções sociais, políticas e simbólicas (cf. Paolo Cuttitta) que manifestam um renovado desejo por proteção e identidade. Proteção do espetro do terrorismo internacional, que alimenta o assim chamado “capital de medo”, que, por sua vez, legitima a militarização das fronteiras, gerando um verdadeiro círculo vicioso entre fobias e políticas de securitização (cf. Antônio Tadeu Ribeiro de Oliveira; Martina Tazzioli).

Por outro lado, num contexto sócio-cultural marcado pela globalização e pela hibridização, surge um renovado desejo por identidade. A fronteira, antes que espaço geográfico em comum com o outro, se torna barreira que separa e distingue do outro. As fronteiras, enquanto construções sociais, são criadas e erguidas para gerar identidades. Aumentar o grau de “confinidade” (confinità) das próprias fronteiras – para usar uma expressão de Paolo Cuttitta – mediante determinadas políticas imigratórias, significa enviar um claro recado tanto para os imigrantes, quanto para os autóctones. Entrelaçam-se, assim, questões políticas, econômicas, culturais, antropológicas, psicológicas e, inclusive, religiosas e sanitárias.

Além da multiplicação, há também uma diversificação dos espaços de fronteira. Quando as divisas geográficas entre países não respondem mais às crescentes exigências de “confinidade”, outras fronteiras são construídas ou inventadas, como no caso da assim chamada “fronteira horizontal” do México (cf. Aída Silva Hernández) ou no caso ainda mais complexo da “externalização das fronteiras” da União Europeia (cf. Maribel Casas-Cortes, Sebastian Cobarrubias e John Pickles), uma externalização que, na realidade, norteia as políticas de muitos países, como no caso dos EUA em relação ao México e à América Central (cf. Daniel Villafuerte Solís e María del Carmen García Aguilar).

Neste contexto de multiplicação e diversificação das fronteiras, a questão da governabilidade se torna central. Como gerenciar aqueles “espaços de fronteira” ou “sociedades de fronteira”, frequentemente construídos social, cultural e economicamente pelas interações históricas entre povos? Como lidar com as assim chamadas “lutas de fronteira” (cf. Sandro Mezzadra), travadas por aqueles que questionam as políticas de restrição dos fluxos transfronteiriços? Como articular as políticas de fortalecimento das fronteiras, com o necessário respeito dos direitos humanos dos migrantes (cf. Martina Tazzioli; Sidney Antônio Silva; João Carlos Jarochinski Silva e Márcia Maria de Oliveira).

A obsessão por fronteiras ou pela “fronteirização” das divisas porosas entre países merece uma reflexão também de um ponto de vista antropológico e psicológico. O espraiado “desejo por distância”, do qual fala o psicanalista Luigi Zoja, pode representar uma atitude reativa a uma situação de anomia criada por uma globalização descontrolada. A fortificação da fronteira, neste sentido, se torna a solução – real ou ilusória – para evitar o caos, a hibridização espúria. Mas diante desse “desejo por distância”, dessa “obsessão por fronteiras”, o que sobra da proximidade solidária? Se o “outro ser humano” se torna um potencial perigo a ser afastado, “confinado”, o que resta de nossa humanidade? Cabe lembrar, como assevera Zoja, que os muros fronteiriços – dos diferentes tipos de fronteira – além de excluir os “indesejados”, acabam aprisionando os privilegiados em seus pequenos mundos, em seus cárceres do medo.

Na seção Artigos da revista REMHU 44, sob uma ótica interdisciplinar, são abordados diferentes temas. Diego Acosta Arcarazo e Luisa Feline Freier analisam o assim chamado discursive gap entre os discursos oficiais dos governos e as políticas migratórias em Europa e na América do Sul, interrogando-se se os países do continente americano estão realmente mudando em sentido liberal o paradigma restritivo das políticas migratórias internacionais. Numa abordagem geográfica e demográfica, Weber Soares, Carlos Lobo e Ralfo Matos analisam os fluxos internacionais de imigrantes no Brasil nas décadas de 1991-2010, aprofundando inclusive o fenômeno da mobilidade interna mediante a utilização dos dados dos últimos Censos (1991, 2000 e 2010).

Ao tema do associativismo haitiano em Equador é dedicado o artigo de Mauricio Burbano Alarcón que, além de focar as principais características desse fluxo migratório, aprofunda o importante papel desenvolvido pelas associações, sobretudo no âmbito da comunicação, evidenciado suas riquezas, potencialidades e limitações. Débora Mazza, por sua vez, elabora um estudo comparado de dois instrumentos jurídicos: a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 e a Diretiva de Retorno da União Europeia de 2008, evidenciando a mudança de paradigma que ocorreu no que diz respeito aos direitos dos migrantes. Finalmente, Mariana Almeida Silveira Corrêa, Raísa Barcellos Nepomuceno, Weslley H. C. Mattos e Carla Miranda abordam o tema das políticas imigratórias no Brasil, realçando a necessidade de acolhida e proteção dos assim chamados “migrantes por sobrevivência”.

Na seção Relatos e Reflexões Irmã Marlene Wildner, mscs, apresenta o trabalho sócio-pastoral das irmãs scalabrinianas na fronteira entre República Democrática do Congo e Angola, um trabalho focado na prevenção de conflitos, no cuidado às pessoas mais vulneráveis e na proteção dos direitos humanos; finalmente, Omar Luis Velasco desenvolve uma rica reflexão sobre as relações fronteiriças na América do Sul, principalmente no Cone Sul, a partir de conceitos como “región compartida”, “sociedad fronteriza” e “residente fronterizo”.

A seção Resenhas, Teses e Dissertações encerra o número da Revista com uma resenha de Patrícia Nabuco Martuscelli.

Desejamos a todos e a todas uma boa leitura.

Roberto Marinucci (Editor chefe da REMHU)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2015
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