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A crise cambial e o ajuste fiscal

Currency crisis and fiscal adjustment

RESUMO

Acreditamos que a literatura de crise da balança de pagamentos pode oferecer a base para entender a atual turbulência econômica no Brasil. De acordo com nossos cálculos, a taxa de câmbio real requer uma desvalorização de 15% a 20%, a fim de garantir que a restrição intertemporal da balança de pagamentos não seja violada. Essa moeda apreciada (e a política cambial projetada para reduzir a valorização) impõe um fardo pesado à política monetária: a paridade de juros cobertos implica em altas taxas de juros domésticas reais para financiar a conta corrente. Eventualmente, a defesa da taxa de câmbio exige um aumento adicional nas taxas de juros, aceitas pelo governo, o peso da estabilidade na função de perda do governo parece ser muito maior do que o atribuído ao desemprego (ou crescimento). No entanto, apesar dessas preferências, a existência de um grande déficit orçamentário impõe limites objetivos ao uso das taxas de juros como forma de defender a moeda. Na ausência de um acentuado ajuste fiscal, a política monetária não será mais plausível. Nesse sentido, o ajuste fiscal é um elemento crucial para sustentar a atual política cambial.

PALAVRAS-CHAVE:
Crises cambiais; fluxos de capital; regimes cambiais; balanço de pagamentos

ABSTRACT

We believe that the balance-of-payment crisis literature can offer the basis to understand the current economic turmoil in Brazil. According to our calculations the real exchange rate requires a 15% to 20% devaluation so as to assure that the intertemporal balance-of-payments constraint is not violated. Such appreciated currency (and the FX policy designed to reduce the appreciation) imposes a heavy burden on monetary policy: covered interest parity implies high real domestic interest rates in order to finance the current account. Eventually the defense of the exchange rate requires an additional increase in interest rates, accepted by the government, the weight of stability in the government loss function seems to be much higher than the assigned to unemployment (or growth). Yet - despite such preferences - the existence of a large budget deficit imposes objective limits on the use of interest rates as a means to defend the currency. In the absence of a sharp fiscal adjustment monetary policy will no longer be credible. In this sense, the fiscal adjustment is a crucial element to sustain the current FX policy.

KEYWORDS:
Currency crisis; capital flows; exchange rate regime; balance of payments

I. INTRODUÇÃO

Os anos 90 têm sido generosos para estudiosos de crises de Balanço de Pagamentos (e nem tanto para os países que sofreram estas crises). Após a crise do Sistema Monetário Europeu em 1992, fomos brindados com o colapso mexicano em 1994, a derro cada asiática em 1997 e, finaimente, a crise russa em 1998. Enquanto escrevemos este ensaio, o Brasil enfrenta sérias dificuldades em seu front externo: após 4 anos de elevados déficits em conta corrente financiados com relativa facilidade, o contágio da crise russa já implicou a redução de cerca de US$ 30 bilhões das reservas internacionais; a perspectiva de financiamento do Balanço de Pagamentos no futuro próximo parece se limitar ao investimento direto estratégico; investidores domésticos, preocupados com os possíveis desdobramentos da crise, continuam a demandar dólares, e nunca a política cambial esteve sob tanto risco como agora.

Neste ensaio tentamos entender a gênese da crise atual com base na literatura de crises de Balanço de Pagamentos, e traçar um cenário de curto prazo para a economia brasileira. Sumarizando de maneira informal, podemos descrever a crise atual como um encontro de Paul Krugman e Maurice Obstfeld com a aritmética monetarista desagradável de Thomas Sargent. A história se passaria da seguinte maneira.

Há um desequilíbrio fundamental no que diz respeito à taxa de câmbio. Acreditamos que o atual nível da taxa real de câmbio não é consistente com a condição de solvência a longo prazo do balanço de pagamentos, mesmo a níveis reduzidos de atividade econômica.

Deste diagnóstico não se segue automaticamente que uma desvalorização discreta do câmbio seja a melhor alternativa.1 1 Pode, no entanto, ser a única alternativa, dependendo das condições de financiamento externo. Há condições que sugerem efeitos devastadores desta alternativa: um elevado nível de endividamento doméstico em moeda estrangeira tanto do setor público como do setor privado e a possibilidade de re-ignição da inflação são elementos que devem ser considerados na decisão de política econômica.

A correção gradual da taxa de câmbio parece ser uma alternativa menos custosa em termos de perda de produto e do ponto de vista fiscal. No entanto, uma implicação direta desta abordagem é a necessidade de manutenção de taxas elevadas de juros com vistas a criar um diferencial de juros (covered interest differential) que permita o financiamento da conta corrente no período de transição, bem como a defesa da moeda em períodos de dificuldades.

Isto posto, cabe reconhecer os limites da política monetária. Face à acumulação de dívida pública no período pós-94, ligada à má condução da política fiscal, e à persistência de déficits primários nas contas governamentais, a política monetária não é crível na definição de sub-game Nash equilibrium. Vale dizer, há um problema de consistência inter-temporal na formulação do mix fiscal e monetário que solapa sua própria credibilidade. Resumindo, a manutenção da política cambial exige a sustentação da política monetária que, por sua vez, requer uma enorme mudança da política fiscal com vistas a sustentar as taxas de juros (os ecos da “aritmética desagradável” na questão cambial).

Finalmente, nota-se que a sustentação do diferencial de taxa de juros só faz sentido no contexto de um ambiente internacional no qual os movimentos de capitais sejam sensíveis a estes diferenciais. Caso o credit crunch se aprofunde a ponto de tornar tais diferenciais irrelevantes2 2 Ou requeira diferenciais tão elevados que a política fiscal se veja incapacitada de garantir a credibilidade da política monetária. , a solução fiscal se torna insuficiente para garantir a continuidade da política cambial. Neste caso, não nos parece haver alternativas a uma mudança de regime cambial, seja através da desvalorização pura e simples, seja pela flutuação da taxa de câmbio.

Este ensaio está organizado da seguinte forma. A primeira seção descreve rapidamente os fundamentos da teoria de crises cambiais e sua tipologia. A segunda trata da questão cambial no Brasil, especificamente uma estimativa do grau de apreciação cambial baseado nas condições de sustentação a longo prazo do déficit em contas correntes. A terceira descreve as condições de formação das taxas domésticas de juros, enquanto a quarta examina o desenvolvimento fiscal recente e as perspectivas de um ajuste fiscal. Finalmente abordamos (de maneira mais superficial do que gostaríamos) a questão do crédito internacional na quinta seção. A última conclui as questões abordadas.

2. CRISES CAMBIAIS

A literatura de crises cambiais tem origem com Krugman3 3 “A model of balance-of-payments crises”, Journal of Money. Credit, and Banking 11, 311-325, 1979. , evoluindo para o modelo “canônico” de Flood e Garber4 4 “Collapsing exchange-rate regimes: some linear examples”, Journal of International Economics 17, 1-13, 1984. . O modelo original (também conhecido como modelo de primeira geração) resulta da tradicional abordagem monetária do Balanço de Pagamentos ampliada para o caso de expectativas racionais, na qual um Banco Central tenta estabilizar o preço da moeda estrangeira, isto é, opera um sistema com taxas de câmbio administradas. Sob a suposição de um aumento contínuo do crédito doméstico líquido (presumivelmente resultante de um desequilíbrio fiscal financiado pelo Banco Central), é possível mostrar que reservas gradualmente declinam, e tenderiam a zero caso a expansão do crédito doméstico não cesse.

O insight crucial de Krugman (atribuído pelo próprio autor à formulação de Salant and Henderson5 5 “Market anticipation of government policy and the price of gold”, Journal of Political Economy, 86, 627-648, 1978. ) é que investidores racionais (forward looking) não poderiam esperar reservas chegarem a zero e a consequente flutuação do câmbio, visto que tal flutuação provocaria ganhos/perdas de capital antecipados. Assim, investidores racionais atacariam as reservas um pouco antes destas chegarem a zero, levando à flutuação do câmbio. No entanto, isto também seria antecipado, e investidores atacariam pouco antes deste momento. Desdobrando este argumento, Krugman determina o momento do ataque, T* (com reservas positivas), como aquele em que o esgotamento das reservas e a consequente flutuação não causam uma mudança descontínua da taxa de câmbio (ver figura abaixo). Assim, no contexto de um modelo simples, sem incerteza e sem hipóteses de irracionalidade, é possível mostrar que ataques especulativos racionais, aparentemente causados por instintos de manada (herd instincts), podem ocorrer. A contrapartida da continuidade na trajetória da taxa de câmbio (impedindo perdas e ganhos de capital antecipados) é a descontinuidade da trajetória de reservas.

Neste caso, o ataque é o resultado de uma inconsistência entre a política monetária (talvez com origem fiscal) e a política cambial. A crise resulta de fundamentos que se deterioram ao longo do tempo.

Enquanto esta parece ser uma descrição acurada de crises como o colapso mexicano de 1994, o modelo canônico não parecia, contudo, capaz de explicar a ocorrência da crise do Sistema Monetário Europeu em 1992, em particular a espetacular queda da libra face ao ataque desferido por George Soros. Naquele momento, o Banco da Inglaterra praticava taxas elevadas de juros6 6 Decorrência da unificação alemã de 1990, que forçou o Bundesbank a elevar suas taxas de juros para contrabalançar os efeitos do déficit orçamentário alemão. Para manter a paridade cambial, os bancos centrais europeus foram forçados a elevar suas taxas de juros. e o déficit orçamentário estava sob controle. Nada indicava uma expansão contínua do crédito doméstico.

A reconciliação entre fatos e teoria veio através da formulação de Obstfeld7 7 “The logic of currency crises”, Cahiers Economiques et Monetaires (Bank of France), 43, 189-213, 1994. , o chamado modelo de segunda geração. A modelagem supõe um Banco Central que, em vez de aumentar mecanicamente o crédito doméstico, é colocado face a objetivos contraditórios (tipicamente estabilidade, expressa na taxa fixa de câmbio, versus desemprego). Dependendo das preferências do Banco Central, em particular o peso atribuído a cada objetivo conflitante, o compromisso com a fixação da taxa de câmbio pode não ser crível. Vale dizer, se o custo da defesa da taxa de câmbio for uma recessão que tem um valor alto na loss function do Banco Central, podemos chegar a uma situação de equilíbrios múltiplos. Se o Banco Central não for atacado, a taxa de câmbio pode perdurar indefinidamente; caso seja atacado, o custo da defesa é maior que o ganho da estabilidade (e reputação), e a taxa de câmbio flutua. Neste caso, a crise não resulta de problemas com fundamentos, mas sim de uma profecia auto-realizável. A desvalorização da libra em 1992 parece se encaixar em tal figurino.

O caso brasileiro parece contar com elementos de ambas as histórias acima. Há desequilíbrios fundamentais, no que diz respeito à taxa de câmbio e à questão fiscal. Ainda assim, temos que levar em conta uma loss function na qual um peso elevadíssimo ainda é atribuído à estabilidade relativa ao desemprego. Frente a um dilema como o enfrentado pelo Banco da Inglaterra, o Banco Central8 8 E o Presidente, é claro. revelou inequivocamente suas preferências em outubro de 1997 e agosto de 1998 (mesmo às vésperas das eleições). Desemprego, portanto, não parece ser motivo para duvidar que o Banco Central defenderia a moeda.

No entanto, a questão da credibilidade da política monetária no caso brasileiro vai além da escolha estabilidade versus desemprego e passa pelo front fiscal. As elevadas taxas de juros consistem atualmente no principal fator de expansão fiscal9 9 Embora longe de ser o único. Ademais, só em 1998 as taxas de juros se converteram no principal elemento de piora fiscal. Entre 1994 e 1997 a piora se deveu, em maior medida, à deterioração das contas primárias, corno mostraremos adiante. , e a crescente dívida pública indica que não devemos esperar uma reversão desta tendência. O que se põe no momento é a questão da solvência do setor público, e é neste sentido que Thomas Sargent e sua aritmética monetarista desagradável entram em cena com Paul Krugman e Maury Obstfeld.

Há claramente uma grande desconfiança acerca da possibilidade de repagamento da dívida pública nas atuais condições fiscais. A questão passa a ser estabilidade da taxa de câmbio versus capacidade fiscal, e as preferências governamentais são muito menos claras no que diz respeito a esta escolha. O resultado é a perda de potência da política monetária, uma vez que diferenciais de taxas de juros parecem não mais surtir efeito sobre os fluxos de capitais.10 10 Este problema não está necessariamente relacionado com a falta de credibilidade da política monetária. Pode ser simplesmente o resultado do credit crunch global. Mesmo após a elevação dos juros em agosto de 1998, saídas de capital continuaram e, não fossem as entradas relacionadas a investimentos diretos e à antecipação dos recursos da privatização da Telebrás, as reservas brasileiras estariam agora (outubro de 1998) em cerca de US$ 40 bilhões, talvez menos. Credibilidade - no sentido de consistência temporal - é então um elemento crucial para o entendimento da crise brasileira, como destaca Obstfeld. Na linha de Krugman, vale enfatizar a questão das inconsistências da política macroeconômica (fiscal versus cambial). O ataque especulativo (ou fuga de capitais, se preferirem) corrente no Brasil resulta destas duas vertentes: fundamentos desalinhados e uma política monetária sob suspeita por conta da questão fiscal (a contribuição de Sargent).

Examinemos antes a questão cambial.

3. APRECIAÇÃO CAMBIAL

Apesar dos (heróicos) esforços da equipe econômica para nos convencer do contrário, há um quase consenso acerca da sobrevalorização do Real. Na verdade, não é tão difícil chegar a esta conclusão quando examinamos a balança comercial brasileira e verificamos que - a despeito de um crescimento medíocre do produto em 1998 (cerca de 1%, de acordo com a maioria das estimativas) - o déficit comercial deve chegar a aproximadamente US$ 6 bilhões este ano. Apesar da queda recente das importações, em larga medida determinada pela redução da atividade econômica, o crescimento das exportações deve ficar em apenas 1% este ano. De qualquer ângulo que examinemos o problema, há indicações de sobrevalorização cambial.

O quão sobrevalorizada a moeda está é, porém, uma questão muito mais difícil. A abordagem convencional à questão é o uso das relações de paridade de poder de compra (PPP). Tipicamente deflacionamos o câmbio pela inflação doméstica, inflacionamos pelo PPI norte-americano e obtemos uma série de câmbio real. Convencionamos um período como base (preferivelmente um período de relativo equilíbrio na conta corrente) e adotamos o câmbio real aquele período como uma estimativa da “taxa de câmbio de equilíbrio”.

Como já deve estar claro, nossa abordagem é diferente11 11 Só se classifica um procedimento ou teoria como “convencional” para angariar a simpatia do leitor pelo procedimento/teoria do autor, “inovador” e “anti-convencional”, obviamente muito superior. , mas não escapamos do exercício obrigatório de PPP. Na verdade fizemos inclusive três exercícios diferentes, até porque a comparação entre eles também gera alguns insights que consideramos relevantes. A primeira versão deflaciona o câmbio pelo IPA industrial, procedimento adotado por muitos, mas em relação ao qual temos sérias divergências. O segundo deflaciona o câmbio pelo IPC-FIPE, um índice com uma medida maior de non-tradable goods e que acreditamos nos permitir captar de forma mais acurada o preço relativo entre bens tradable e non-tradable. Finalmente, o terceiro mantém o IPC-FIPE como o deflator do câmbio, mas substitui a taxa de câmbio real/dólar pela taxa de câmbio real contra uma cesta de moedas ponderadas pela participação destas moedas no comércio internacional brasileiro12 12 A cesta se compõe de sete moedas que representam cerca de 65% do comércio internacional brasileiro. A ponderação de cada moeda foi dividida por 0.65, de modo a assegurar que a soma dos pesos fosse 1. . Em todos os casos o câmbio foi inflacionado pelo PPI norte-americano.13 13 O ideal teria sido inflacionar a cesta de moeda por uma cesta de PPIs com a mesma ponderação. Dada a convergência da inflação dos países desenvolvidos e da Argentina para a inflação norte-americana, acreditamos que as distorções são pequenas.

Os resultados estão sumarizados na figura abaixo.


Taxa de cambio real

Nossa primeira observação diz respeito ao uso do IPA industrial como deflator do câmbio. Ao acreditarmos neste procedimento, seria forçoso concluir que a política de desvalorização gradual do câmbio seguida desde meados de 1995 recolocou a taxa real de câmbio num patamar muito próximo daquele em vigor no início do Plano Real. Isto posto, resta explicar porque àquela época o superávit comercial era da ordem de US$ 12 bilhões/ano, contra os US$ 6 bilhões de déficit em 1998. Claro, a abertura comercial cresceu no período, mas um deslocamento das importações da ordem de US$ 33.3 bilhões/ano no período (122%) contra uma expansão do PIB de 15% dificilmente pode ser explicado simplesmente pela abertura comercial. Além disto, estudos econométricos ainda não conseguiram mostrar que todo este deslocamento se deveu à abertura comercial; o câmbio real explica a maior parte deste deslocamento se usarmos um índice de preços ao consumidor como deflator da taxa de câmbio.14 14 Ver Pastore, A.C., M.C. Pinotti e B. Blum, “Paridade de poder de compra, câmbio real e saldos comerciais’’, mimeo, agosto de 1997.

Desconsiderando a versão IPA industrial, as outras duas mostram uma apreciação cambial da ordem de 25% a 30% do início do Plano até o presente momento. Note­se também a recuperação cambial a partir de julho de 1996, quando o declínio da taxa doméstica de inflação possibilitou que a desvalorização nominal do câmbio se transformasse em devalorização real. Esta foi mais intensa em relação ao dólar do que em relação à cesta de moedas, devido à apreciação da moeda norte-americana frente ao marco e ao iene, só recentemente revertida.

O fato de a moeda ter se apreciado 30% desde o início do Plano Real, porém, não implica que a moeda esteja 30% apreciada em relação ao seu valor de equilíbrio. Primeiro porque não sabemos se a taxa de câmbio que vigorava em 31 de junho de 1994 era efetivamente uma taxa de equilíbrio. Segundo porque, mesmo se fosse, isto é em larga medida irrelevante para uma economia que sofreu transformações como a do Brasil. Não queremos entrar aqui no infindável debate sobre as transformações estruturais da economia brasileira. Queremos, sim, chamar a atenção para a conta corrente e a capacidade de sustentação do déficit em conta corrente a longo prazo.

Talvez o sinal mais eloquente de que o câmbio se achava subvalorizado no início do Plano Real seja o fato de o país naquele momento gerar um pequeno superávit em conta corrente, cerca de US$ 2.5 bilhões nos 12 meses anteriores, como aparece na figura abaixo.


Transações Correntes

Embora a inflação ainda não estivesse sob controle, e as oportunidades de investimento naquele momento não fossem sombra do que viriam a ser15 15 O investimento direto foi, em média, US$ 1.3 bilhões/ano entre 1992 e 1994 comparado com US$ 10.1 bilhões/ano no período 1995-97. , o fato é que o Brasil já apresentava superávits na conta de capitais desde 1992. Isto é, não falávamos mais de uma economia que, constrangida pela ausência de créditos, era forçada a gerar superávits em conta corrente. As taxas de crescimento do PIB em 1993 e 1994 já haviam se recuperado substancialmente comparadas à recessão de 1992, e a economia caminhava vigorosamente para registrar em 1994 um crescimento da ordem de 5.7% (4.4% até o terceiro trimestre de 1994).


Taxas de Crescimento Anuais

De qualquer forma que se olhe para estes fatos, os superávits em conta corrente para um país com oportunidades de investimento e com acesso ao mercado de capitais são uma indicação forte de um câmbio subvalorizado. Neste sentido, parcela da apreciação cambial ocorrida no período imediatamente posterior ao Plano Real é possivelmente um fenômeno de equilíbrio.

Isto posto, como estimar a sobrevalorização corrente da taxa de câmbio real? Nós propomos estimar a sobrevalorização a partir de uma abordagem que dê destaque à questão da sustentação do déficit em conta corrente. Comecemos pela identidade de balanço de pagamentos, que define o déficit em conta corrente como o aumento do passivo externo líquido.16 16 O passivo externo líquido compreende a dívida externa líquida (de reservas), mais o estoque de investimentos estrangeiros líquidos (de investimentos brasileiros no exterior). Este montante representa uma obrigação sobre o produto interno, seja sob a forma de juros, seja sob a forma de lucros e dividendos. Neste sentido, não há distinção entre dívida e investimento: ambos são fontes de financiamento da conta corrente. Denotemos o passivo externo líquido (doravante chamado de “dívida”) por D, o retorno sobre a dívida pela taxar (suposta constante), enquanto M representa a importação de bens e serviços não-fatores e X a exportação de bens e serviços não-fatores (de modo que X-M é o superávit primário em conta corrente).

D t - D t - 1 = r D t - 1 + M t - X t

Dividindo os dois lados da identidade pelo produto corrente Yt, definindo a taxa de crescimento do produto de longo prazo (g = Yt/ Yt-1-1), e denotando por letras minúsculas a razão entre uma variável e o produto contemporâneo (zt= Zt/Yt), chegamos à seguinte versão da identidade:

d t = ( 1 + r ) ( 1 + g ) d t - 1 + m t - x t

Integrando para frente esta equação a diferenças finitas, transformamos uma identidade contábil numa restrição econômica, especificamente:

d t j = 0 ( ( 1 + r ) ( 1 + g ) ) - j ( x t + j - m t + j )

A restrição acima impõe a condição de sustentação do déficits em conta corrente: o valor presente dos superávits primários futuros deve ser pelo menos igual ao valor da dívida. Embora esta restrição imponha um sentido econômico (escassez) à identidade contábil do balanço de pagamentos, ela não nos serve de guia comportamental: há infinitas trajetórias de superávits primários em conta corrente que atendem à restrição acima. Idealmente deveríamos calcular a trajetória ótima de ajuste {(x*t-m*t); t O} e, a partir dela, estimar a desvalorização necessária, mas ainda não temos resultados neste front.17 17 A ideia é calcular um programa ótimo sem default da dívida, e um programa ótimo com default da dívida (e sanções correspondentes) e achar a dívida que torna um país indiferente entre pagamento e default. Esta é a dívida sustentável e a trajetória que conduz a este nível de dívida é a trajetória ótima. Um atalho analítico é achar qual o nível constante de superávit primário em relação ao produto que atenda a restrição acima.18 18 Dadas as óbvias semelhanças com renda e consumo permanentes de Friedman, podemos denominá-los superávits primários permanentes. Resolvendo a restrição acima para este caso chegamos a:

x t - m t = ( r - g ) ( 1 + r ) d t

Estamos agora em posição de dar algum conteúdo empírico a toda discussão acima. Considerando que o défícit em conta corrente em 1998 deva alcançar US$ 33 bilhões, a dívida brasileira chegará a US$ 275 bilhões ao final do ano, ou cerca de 35% do PIB. Nos últimos 4 anos a relação pagamento de fatores (juros e dividendos) num ano sobre a dívida do ano anterior se manteve em média a 6.5% (com pouquíssima variação) e então adotamos r = 0.065.19 19 Neste momento não há como evitar algum desconforto. Um retorno de 6.5% a.a. parece muito baixo para investimentos no Brasil e certamente o é. No entanto, se usarmos os spreads soberanos para estimar o retorno do capital no Brasil, chegaremos a estimativas muito elevadas dos serviços da dívida que não encontram respaldo nos números observados. É verdade que a maior parte da dívida havia sido renegociada já em 1994, o que reduz muito a pressão dos juros (com os cupons fixos, o yield-to-maturity da dívida velha é irrelevante para o desembolso brasileiro). À medida que nova dívida é emitida, talvez haja um aumento desta relação por conta dos novos spreads. De qualquer forma, nas simulações mais à frente encontraremos diferentes taxas de retorno, de modo que teremos alguma sensibilidade sobre mudanças nesta hipótese. Finalmente, supomos g=0.03. Com estes números chegamos a um superávit primário permanente requerido da ordem de 1.2% do PIB, ou cerca de US$ 9.1 bilhões. Em 1998 o Brasil deverá registrar um déficit primário em conta corrente de cerca de US$ 15 bilhões (1.9% do PIB).

Consideremos, além disto, que os serviços líquidos de fretes não são diretamente afetados por uma desvalorização cambial.20 20 Na verdade, tais serviços são determinados em larga medida pelo volume total de comércio, e o impacto de uma desvalorização na corrente de comércio é ambíguo e provavelmente pequeno. Assim, o fardo do ajuste deve cair nas contas primárias que podem ser afetadas por um ajuste cambial, vale dizer, as contascomerciais e de turismo. Supondo que as elasticidades de longo prazo estimadas por Pastore et al.21 21 Pastore et al. (1997). para as exportações e importações de bens valham também para o fluxo de turismo, a mudança de um déficit primário de US$ 15 bilhões para um superávit primário de US$ 9.1 bilhões requer uma desvalorização real da ordem de 17%. Temos aí, portanto, uma estimativa da apreciação cambial.

Claro que tal estimativa está baseada no conjunto de valores que supusemos para os parâmetros acima. No entanto, não é dificil estimar a desvalorização requerida para diferentes valores de g e r, e a tabela abaixo sumariza as várias simulações.


Desvalorização Requerida

Note-se a regularidade dos resultados. Um aumento de 1 ponto percentual na taxa de crescimento de longo prazo reduz a desvalorização requerida em cerca de 1.8%, enquanto um aumento similar da taxa de retorno implica um aumento de 1.77% na desvalorização requerida. De fato, regredindo a desvalorização requerida nos pares g e r, podemos chegar a uma forma reduzida para o modelo acima expressa por:

ε = 10.6 % 1.80 g + l .77 r

onde ε: é a desvalorização requerida.

Os casos mais plausíveis da tabela acima implicam uma faixa para a desvalorização requerida da ordem de 15% a 20%, ou seja, uma apreciação cambial entre 13% e 17%, consistente com a observação anterior de que a taxa de câmbio do lançamento do real estava possivelmente subvalorizada.

Enquanto estamos convencidos de que o procedimento acima é uma boa primeira aproximação à questão, há alguns pontos que queremos chamar a atenção antes de prosseguirmos:

  1. Conceito de superávit primário permanente é, como dissemos anteriormente, um atalho analítico e nada além disto. Os resultados para uma trajetória ótima de conta corrente possivelmente serão diferentes dos encontrados acima. Nossa impressão é de que implicariam taxas algo maiores. Por um lado, o gradualismo da trajetória de conta corrente reduziria a necessidade de desvalorização, enquanto o crescimento da dívida no período a aumentaria (ver abaixo);

  2. Estes cálculos, mesmo que fossem absolutamente corretos até a 5ª casa decimal, têm prazo de validade muito curto, na verdade instantâneo. A condição de sustentação da conta corrente depende do tamanho inicial da dívida (uma variável de estado, na linguagem de programação dinâmica). Note-se que o tamanho do superávit primário permanente depende da dívida existente naquele momento (e portanto o superávit também é indexado a t). Esta consideração também se aplica a uma trajetória ótima. Vale dizer, podemos mapear, para cada nível de dívida, uma desvalorização requerida associada, como se fosse uma policy function;

  3. Todos os cálculos foram desenvolvidos para uma desvalorização real do câmbio. Este enfoque não permite resolver a questão da desvalorização nominal requerida para produzir uma determinada desvalorização real. Assim, não se depreende deste ensaio uma recomendação de desvalorização nominal do câmbio de 15% a 20%;

  4. As elasticidades acima referidas são de longo prazo, vale dizer, são necessários entre 5 e 6 trimestres para uma desvalorização produzir 90% de seus efeitos. Como vimos acima, neste momento a desvalorização requerida já mudou;

  5. Toda análise foi conduzida coeteris paribus. Mudanças em, por exemplo, preços de commodities, ou crescimento do comércio internacional, ou preço do petróleo devem mudar quantitativamente os resultados.

Com as qualificações acima expostas, acreditamos que efetivamente o grau de apreciação cambial não deve estar muito longe dos 15% a 20%, talvez um pouco acima. Isto constitui um desequilíbrio suficiente para atiçar o apetite de qualquer hedge fund, especialmente se acreditamos na história de Obstfeld, segundo a qual mesmo moedas que poderiam sobreviver indefinidamente na ausência de ataques cedem face ao ataque.

A bem da verdade, há uma política de correção cambial em andamento. Pelos cálculos de PPP expressos acima, vemos que a desvalorização real da moeda chegou a 7% nos últimos 12 meses e - face à perspectiva inflacionária para os próximos 12 meses e à desvalorização nominal projetada - é muito provável que no futuro tenhamos uma correção ainda mais intensa.

Ainda assim, se nossos cálculos estiverem corretos, seriam necessários pelo menos dois anos de manutenção da atual política para eliminar a presente apreciação cambial. Isto significa, como explicaremos à frente, mais dois anos de taxas reais de juros elevadas, com efeitos perniciosos sobre as contas públicas (seja pelo lado da dívida, seja pelo lado da atividade econômica). Ademais, esta estratégia depende crucialmente da capacidade de financiamento do país no período de transição, uma questão longe de trivial. Como procuraremos argumentar à frente, não há, a priori, motivos para se imaginar que tal estratégia resulte necessariamente num fiasco. Apenas há razões para se imaginar que as probabilidades de sucesso desta estratégia não representem exatamente um jogo viciado em favor do Brasil.

4. CÂMBIO E JUROS

O regime cambial brasileiro e a apreciação cambial têm impactos decisivos sobre a política monetária e a formação das taxas de juros domésticas. Considerando o déficit em contas correntes (resultante da apreciação cambial), tornou-se imperativo a criação de um diferencial positivo de juros, face à necessidade de financiamento externo. Conquanto o investimento estrangeiro direto tenha representado em 1998 cerca de 70% do déficit em conta corrente, esta não é a proporção típica observada no período 1995/97 (40%), nem deve ser a observada nos próximos anos. Vale dizer, embora o diferencial de juros possa ter se tomado menos relevante para o financiamento da conta corrente em 1998, isto não muda a história passada (e suas heranças) nem o fato de que no futuro a atração de capitais será ainda necessária.

Desde o início do Plano Real, o Banco Central - rescaldado pela política monetária frouxa aplicada no contexto de outros programas de estabilização - adotou altas taxas de juros como política básica, aprofundada no período imediatamente posterior à crise mexicana de 1994.

De modo a reduzir o nível de atividade econômica (controlando o déficit em conta corrente) e atrair capitais, o Banco Central determinou taxas que implicavam elevados retornos em dólar. Note-se que não nos referimos aqui aos retornos ex-post, a diferença entre a taxa interna de juros e a desvalorização cambial observada. Referimo­nos sim ao cupom cambial ex-ante: o retorno em moeda estrangeira devidamente coberto contra a desvalorização cambial via mercado de derivativos ou a pura NTN cambial. O diferencial coberto (covered interest differential) sempre foi o mais relevante do ponto de vista da arbitragem de taxas de juros. Denominando por i* uma determinada taxa internacional de juros (mais sobre isto à frente), por f o forward de câmbio no período relevante, por e a taxa nominal corrente de câmbio e por t a alíquota de imposto, temos que o retorno doméstico líquido deve ser igual à taxa internacional acrescida da desvalorização cambial coberta (f/e).

( 1 + ( i d ( 1 - t ) ) = ( 1 + i * ) f e

Consideremos agora a taxa internacional de juros relevante. Tipicamente, o investidor tem a escolha entre os instrumentos off-shore de dívida pública (Bradies e outros bonds) e os instrumentos locais que carregam risco de crédito e duração semelhantes.22 22 Portanto, a taxa de juros determinada por este exercício deve estar associada a esta duração. Isto é especialmente válido na arbitragem entre os instrumentos indexados ao dólar (NTN-D e NBC-E) e o IDU (Interest Due and Unpaid). Neste sentido podemos tomar o yield-to-maturity do IDU como uma proxy da taxa internacional de juros relevante.

Tais instrumentos, por sua vez, devem ser arbitrados contra seus correspondentes, seja em mercados emergentes, seja em mercados maduros. A diferença de retorno entre bonds de duração semelhante e risco de crédito diferente (tipicamente um bond qualquer e o Treasury americano correspondente, o chamado spread over Treasury, SOI) é uma medida do risco soberano de um país. Assim sendo, podemos decompor a taxa doméstica de juros nos seguintes componentes:

( 1 + i d ( 1 - t ) ) = ( + i U S ) ( 1 + S O T ) f / e

onde i US é a taxa de referência do Treasury relevante.

Vale dizer, a formação da taxa interna de juros está sujeita a três influências fora do controle do Banco Central:

  1. A taxa americana de juros, i US ;

  2. A percepção de risco soberano, medida pelo SOT, e;

  3. forward de câmbio f formado no mercado futuro.

Isto não significa que a política econômica não possa ter qualquer impacto sobre a percepção de risco soberano e os futuros cambiais. Significa apenas que nenhuma destas variáveis é fixada pelo policy-maker como são t ou e. Especificamente, o déficit público, apontado repetidas vezes pelo Banco Central (em particular) como o elemento formador das taxas de juros, tem influência apenas indireta no processo, via avaliação do risco soberano23 23 A desvalorização efetiva da taxa de câmbio é definida pelo Banco Central e é um elemento importante na formação dos preços dos futuros cambiais. Há, no entanto, um prêmio de risco na formação do futuro cambial que não é fixado pelo Banco Central, e sobre o qual a ingerência governamental só pode se dar via intervenção, seja ela kosher (aumento da oferta de hedge cambial via colocação de títulos cambiais) ou não (atuação do Banco do Brasil no mercado cambial). (SOT). Isto não deveria ser surpresa, visto que, numa primeira aproximação, a economia brasileira pode ser suposta uma pequena economia aberta, para a qual a taxa de juros é dada, independente do excesso de dispêndio doméstico sobre a produção.

Dada esta estrutura de formação de taxa de juros, a necessidade de correção cambial implica a necessidade de manutenção de taxas reais de juros muito elevadas24 24 Para exemplificar, tomemos iUS= 3.9% a.a., SOT como 1248 pontos base, (f/e) =1.1389 e t = 0%. Isto gera uma taxa de juros doméstica próxima a 32% a.a. (na “ponta longa“ da yield curve brasileira, a relevante para o crédito de longo prazo e atividade econômica). Do ponto de vista dos papéis indexados a dólar requer-se uma taxa de dólar mais 16% a 17% a.a. , o que pode ser ainda agravado pelo credit crunch mundial (que tende a elevar o SOT) e pelos diferentes “contágios” (que impactam as expectativas de desvalorização e, portanto, os prêmios de risco dos futuros cambiais).

A abordagem gradualista, portanto, implica custos não desprezíveis, seja do ponto de vista de perda de produto, seja do ponto de vista fiscal.25 25 Mais à frente comparamos a abordagem gradualista a uma desvalorização discreta. Com taxas “longas” na faixa de 30% a.a., torna-se dificil para o Banco Central reduzir as taxas de juros do overnight (que determinam o custo da maior parte da dívida brasileira) além de certo limite. Mesmo sob condições de muito maior estabilidade dos fluxos de capitais e com reservas muito maiores, o Banco Central parece ter encontrado um limite para as taxas de overnight em torno de 19% a.a.

Considerando-se as perspectivas de inflação no caso de manutenção da política cambial, trata-se de uma taxa real de juros no overnight de 19% a.a., possivelmente mais. Do ponto de vista fiscal, a existência de uma dívida pública de cerca de R$ 340 bilhões, dos quais R$ 304 bilhões de dívida interna federal (da qual 67% contratada a taxas flutuantes) implica uma despesa com juros da ordem de R$ 60 bilhões /ano (na melhor das hipóteses) ou 6.5% do PIB. Face a isto, o ajuste fiscal se torna condição absolutamente necessária à preservação da política monetária e, portanto, da política cambial. Este é o foco da próxima seção.

5. A QUESTÃO FISCAL

Não é novidade que a performance fiscal brasileira tem sido o ponto mais fraco da política econômica. O déficit público ficou, em média, em 4.3% do PIB no período 1995-97 comparado com um superávit médio de 0.4% do PIB no período 1990- 94, uma expansão equivalente a 4.7% do PIB.


Necessidade de Financiamento do Setor Público (% PIB)

Dois mitos comuns a respeito da performance fiscal no período 1995-97 dizem respeito ao déficit dos governos locais e às taxas de juros. Como o déficit dos governos locais é mais alto que o do governo federal (2.1% do PIB contra 1.7% do PIB) e o gasto com juros é superior ao déficit primário (4.1% do PIB contra 0.2% do PIB) muitos concluem que o problema fiscal no Brasil resulta dos estados e municípios e das elevadas taxas de juros. Este raciocínio, porém, confunde as análises média e marginal, e leva a interpretações errôneas do processo de deterioração fiscal no Brasil. Comparando o período 1995-97 com o anterior, vemos que a maior parte da piora fiscal resultou de uma deterioração do superávit primário do setor público. Com efeito, no período pré-Real o superávit primário foi, em média, 3.6% do PIB26 26 Verdade que, em 1990, o superávít primário resultou das medidas brutais do Plano Collor. Ainda assim, se tomarmos 1994 como base, as conclusões se mantêm. , tornando-se um déficit primário no período 1995-97 de 0.2% do PIB (cerca de R$ 2 bilhões por ano a preços constantes). A piora do superávit primário chega então a 3.8% do PIB, representando 81% da piora total das contas públicas no período em questão. Ao contrário do mito, não foram as taxas de juros as responsáveis pelo aumento do déficit: tivesse o superávit primário sido mantido, o déficit médio no período 1995- 97 teria atingido apenas 0.5% do PIB, comparado aos 4.3% do PIB observados.

Na mesma linha de argumentação, podemos ver que a maior parte da piora do déficit resultou da deterioração das condições financeiras do governo federal: o déficit operacional aumentou em 2.4% do PIB, versus 2.1% do PIB para estados e municípios. No que diz respeito à performance primária, o quadro é o mesmo: o déficit primário do governo federal aumentou em 1.7% do PIB, comparado a 1.2% do PIB no caso de estados e municípios. Caso o governo federal mantivesse seu superávit primário, o setor público consolidado teria registrado um superávit primário de 1.5% do PIB, contra um déficit primário observado de 0.2% do PIB.

Uma vez esclarecidos estes mitos cabe entender as fontes da deterioração fiscal no período. Nós acreditamos que estas decorrem principalmente de três fontes: o aumento do funcionalismo público em geral (e do federal em particular), o aumento dos benefícios previdenciários e, finalmente, a expansão dos gastos de custeio e investimento do governo federal.

A folha de pagamentos do funcionalismo federal cresceu cerca de R$ 8.4 bilhões no período 1994-98, uma expansão de 22%. Em termos de fluxo anual isto representa algo como 1% do PIB. Dentro da folha de pagamentos estão inclusos os beneficios da aposentadoria do serviço público federal, que estimamos responder por cerca de 45% da folha. Considerando as contribuições previdenciárias do funcionalismo, estimamos um aumento do déficit previdenciário do setor público federal da ordem de R$ 4.1 bilhões no período 1994-9827 27 Isto não deve ser incluído nas contas à frente por já fazer parte da folha de pagamentos.


Funcionalismo Federal

Em paralelo, o sistema previdenciário do setor privado (INSS) também apresentou uma deterioração expressiva, por conta da expansão dos gastos com benefícios previdenciários. O fluxo de pagamentos aumentou de R$ 40.2 bilhões em 1995 para R$ 52.1 bilhões em 1998 (12 meses terminados em agosto), devido ao aumento do salário mínimo de maio de 1995 e à antecipação de aposentadorias em função da discussão da reforma da Previdência. O impacto disto representa R$ 12 bilhões, ou 1.3 % do PIB. Neste mesmo período a arrecadação, devido ao crescimento econômico e queda da inflação, aumentou R$ 6 bilhões, de forma que o déficit do sistema previdenciário (INSS) aumentou em R$ 6 bilhões.

Finalmente, as outras despesas de capital e custeio (OCC) também representaram uma fonte importante de pressão fiscal. Enquanto em 1995 e 1996 o OCC se manteve sob relativo controle comparado a 1994, em 1997 e 1998 estas despesas cresceram significativamente, devido à expansão com os gastos de saúde pública em 1997 e 1998, e o Brasil em Ação em 1998. Comparado com 1994, estas despesas representaram um fluxo adicional de R$ 12.3 bilhões (uma expansão de 60%).


Benefícios Previdenciários

Tesouro Nacional (Outras Despesas)

O resultado desta expansão fiscal foi um crescimento significativo da dívida pública consolidada. Ao final de 1994 a dívida era equivalente a 28.1% do PIB (R$ 209 bilhões a preços de julho de 1998), alcançando 38.6% do PIB (R$ 349 bilhões) em julho de 1998.

Tal expansão, acoplada às elevadas taxas de juros praticadas após a crise asiática em outubro de 1997, mudaram significativamente a dinâmica do déficit público a partir de 1998. Neste ano as despesas com os juros da dívida pública passaram a ser o fator de maior pressão marginal sobre as necessidades de financiamento do setor público.

Em 1998 as despesas com juros29 29 Nominais, já que o Banco Central não mais divulga o conceito operacional. cresceram o equivalente a 1.3% do PIB, cerca de 76% do aumento do déficit nominal no período, refletindo em larga medida o período de aumento das taxas de juros, entre outubro de 1997 e julho de 1998. Tais números ainda não refletem o aumento mais recente das taxas de juros do overnight, ocorridas em agosto, setembro e outubro. Mesmo com o recuo das taxas de juros nos primeiros meses de 1998 - que em junho e julho já haviam atingido níveis semelhantes aos observados antes da crise asiática-, as despesas com juros aumentaram de uma média de R$ 3.9 bilhões (4.8% do PIB) mensais no trimestre que antecedeu a crise asiática para R$ 5.4 bilhões mensais (6.9% do PIB) no período maio-julho de 1998. Isto reflete o efeito da acumulação de dívida nova no período.


Taxas de Juros do Overnight


Divida Líquida do Setor Público (% do PIB)

O aumento recente das taxas de juros deve ter um efeito ainda mais deletério sobre o déficit público. Enquanto em outubro de 1997 a maior parte da dívida (pelo menos a dívida mobiliária do governo federal) era composta por títulos prefixados, em agosto de 1998 cerca de 62% da dívida mobilária federal consistia em títulos indexados à taxa SELIC (e outros 5% à TR). Vale dizer, enquanto no final de 1997 foram necessários cerca de três meses para que o custo médio da dívida pública finalmente convergisse para a taxa SELIC, em 1998 o impacto é imediato, representado um aumento de R$ 4 bilhões mensais sobre o déficit público.

Claramente o nível atual de taxas de juros é insustentável do ponto de vista fiscal, especialmente quando consideramos que o desempenho primário continua medíocre. Apesar de um aumento substancial da receita federal30 30 Nos 9 primeiros meses de 1998, a Receita Federal registrou receitas de R$ 102.8 bilhões (a preços de setembro de 1998) contra R$ 85.1 bilhões no mesmo período de 1997. Nos últimos 12 meses, a receita do Tesouro Nacional atingiu a marca de R$ 134.4 bilhões (incluída aí a receita da privatização da concessão da Telebrás), contra R$ 11 6.7 bilhões em dezembro de 1997. , o governo central registrou uma melhora de apenas R$ 1.9 bilhões em suas contas primárias, enquanto os demais constituintes do setor público (não beneficiados pelo aumento de receita) apresentaram um aumento de R$ 5.l bilhões do déficit primário.

Consideremos o objetivo governamental de estabilizar a relação dívida/PIB (exceto base monetária) em 40% no ano 2000. É possível mostrar que tal meta implica taxas de juros substancialmente mais baixas do que as observadas hoje e, muito provavelmente, das observadas no futuro.

Comecemos pela restrição orçamentária do setor público expressa abaixo. A dívida (exceto a base monetária) é representada por D, a base monetária é M, taxas nominais de juros por r, G são os gastos governamentais e T a receita.

D t - D t - 1 = r D t - 1 + G t - T t - ( M t - M t - 1 )

Dividindo ambos os lados pelo produto nominal contemporâneo, Pt Yt , definindo a taxa de crescimento do produto real a longo prazo γ(=Yt,Nt-l l ), a taxa de inflação π (=Pt/ Pt l l ) e denotando por letras minúsculas a razão entre uma variável e o produto nominal, é possível chegar à seguinte expressão:

d t - d t - 1 + m t - m t - 1 = r - π - γ - π γ ( 1 + π ) ( 1 + γ ) d t - 1 + g t - τ t - γ + π + π γ ( 1 + π ) ( 1 + γ ) m t - 1

O crescimento do endividamento lato senso do setor público (dívida mais base monetária) como proporção do PIB, expresso do lado esquerdo da equação, é determinado pela evolução do déficit primário (g π) acrescido do juro real em excesso ao crescimento do PIB e deduzido da senhoriagem. Para estabilizar a dívida pública impomos dt= dt-l= d*, supondo também que m, = mt-l= m*. Neste caso o superávit primário (como proporção do PIB) é dado por:

τ - g = r - π - γ - π γ ( 1 + π ) ( 1 + γ ) d * - π + γ + π γ ( 1 + π ) ( 1 + γ ) m *

A interpretação desta equação é direta: para estabilizar a relação dívida /PIB, o superávit primário deve ser elevado o suficiente para compensar o excesso de juro real (r π) sobre o crescimento real do produto, y, deduzida a senhoriagem. Agora estamos em posição de atribuir valores às diferentes variáveis. Dado o objetivo do governo, fixamos d*=0.40. Pelos dados históricos, m* = 0.037. Supomos também π = 0.02. Na tabela abaixo mostramos o superávit primário requerido para diferentes hipóteses de crescimento a longo prazo e taxas nominais de juros.


Superávit primário requerido ( % do PIB)

Para taxas nominais de juros entre 15 % e 20 % a.a., e crescimento de longo prazo entre 3% a 4% a.a., o superávit primário requerido vai de 3% a 5.4% do PIB, comparados ao atual déficit de 1.3% do PIB, ou seja, um deslocamento entre 4.3% e 5.7% do PIB. Consideremos também a meta governamental (expressa no acordo com o FMI) de um superávit primário de 3% do PIB em 2000. Dada esta meta fiscal, as taxas de juros devem ficar entre 13.6% e 15% a.a. de modo a garantir também a meta de estabilização da dívida em 40% do PIB.


Taxa Máxima de Juros Consistente com Superávit Primário de 3% do PIB

Voltemos, porém, à questão de formação de taxas de juros no Brasil. Apenas a correção cambial de 7,4% a.a. (sem prêmio de risco de câmbio) adicionada à taxa de retorno dos IDUs já ultrapassaria em muito as taxas requeridas resultantes do exercício acima. Mesmo considerando (num cenário excessivamente otimista) que o retorno dos IDUs possa voltar às taxas de cerca de 9% a.a, apenas a correção cambial (sem prêmio, sem impostos) levaria as taxas de juros para a faixa de 16% a.a., superiores às máximas suportáveis.

Assim, para compatibilizar as taxas de juros com o custo requerido da dívida, sobram basicamente duas alternativas dentro do atual regime cambial. A primeira, mais óbvia, consiste em reduzir o ritmo da desvalorização cambial, de forma a reduzir o elemento (f/e) na formação da taxa de juros. A contrapartida, também óbvia, é a persistência da sobrevalorização cambial que analisamos acima. Num ambiente de redução da liquidez global, em que o déficit em conta corrente também necessita ser reduzido, esta não parece ser a melhor alternativa.

A segunda alternativa consiste em elevar o superávit primário provavelmente para a faixa de 5% a 5,5% do PIB em steady state. Vale dizer, o esforço fiscal prometido pelo governo no período de transição teria que ser aumentado ainda mais nos anos seguintes de modo a sustentar a meta de dívida. A priori não há, do ponto de vista de consistência lógica, nada contra um aumento do superávit primário. Resta saber se esta meta é exequível dadas as restrições políticas.

Uma terceira alternativa é o abandono do regime cambial, ou seja, uma desvalorização ou flutuação cambial que reduza a necessidade de manter elevadas taxas nominais de juros. No entanto, acreditamos que os custos fiscais desta opção ultrapassam em muito o custo da defesa da moeda.

Consideremos o seguinte exercício. As taxas de juros do overnight foram aumentadas em cerca de 21% a.a. comparadas à taxa de 19% a.a. vigente quando do início da crise. Considerando que cerca de 67% da dívida pública está contratada a taxas flutuantes (SELIC e TR), cada ponto percentual de aumento da taxa de juros do overnight custa (hoje) aproximadamente R$ 183 milhões por mês. Supondo que a nova dívida resultante da despesa com juros seja financiada integralmente com dívida indexada à taxa SELIC, este custo aumenta a cada novo período de manutenção de taxas de juros acima da taxa inicial.

É possível então calcular o custo marginal do aumento das taxas de juros em função da duração do período de taxas superiores à inicial. Na figura abaixo, a linha crescente mapeia o custo da política monetária para cada valor da duração do aumento de taxas de juros supondo que as taxas caiam linearmente ao longo do período em questão.31 31 Por exemplo, se as taxas demorarem 3 meses para retornar ao nível inicial, supomos que cada degrau de redução de juros seja de 7% (21%÷3). Assim, caso o aumento durasse apenas um mês, o custo seria de R$ 4 bilhões, aumentando para cerca de R$ 8 bilhões caso fossem necessários 3 meses para retornar à condição original e próximo a R$ 26.5 bilhões se a política demorasse por um ano inteiro.

Qual seria o custo de uma desvalorização cambial? A dívida interna indexada à taxa de câmbio atingiu, ao fim de setembro, R$ 64 bilhões, compreendendo as NTN­Ds, as NBC-Es, NBC-Fs e os cupons destes títulos. Adicionamos a isto a dívida pública externa líquida (de reservas) que, face à queda recente da reservas internacionais, deve estar próxima a R$ 56 bilhões, perfazendo um total de quase R$ 120 bilhões de dívida pública diretamente afetada por uma desvalorização cambial.


Custo Marginal da Política Monetária versus Custo de Desvalorização

Suponhamos agora que a correção necessária possa ser atingida por uma desvalorização nominal discreta.32 32 Esta hipótese claramente beneficia a alternativa “desvalorização”. Num caso mais realista deveríamos imaginar uma desvalorização nominal superior à desvalorização real requerida, visto que parte da mudança nominal se dissipa em forma de inflação. Dadas nossas estimativas anteriores, simulamos o impacto de uma desvalorização discreta de 15%, 20% e 25%, chegando a estimativas de, respectivamente, R$ 18 bilhões, R$ 24 bilhões e R$ 30 bilhões. Mesmo no caso mais favorável a uma desvalorização (15%), a alternativa de defesa da moeda via taxas de juros mais elevadas é dominante, desde que se espere que esta política demore menos de 8 meses. Adicionalmente, a experiência dos países que desvalorizaram suas moedas parece indicar que o efeito sobre o produto é ainda maior que o da manutenção de elevadas taxas de juros. Com efeito, embora tanto a Argentina como Hong Kong tenham sofrido quedas substanciais de produto face à sua política de defesa da moeda, os países que desvalorizaram sofreram quedas ainda maiores. Mesmo desconsiderando a Indonésia, México e Coréia passaram por uma redução do produto real de mais de 6%. Apenas a Malásia e a República Checa parecem ter sofrido relativamente pouco.


Variação do PIB de Países Selecionados

Cabe reconhecer que esta evidência não é a palavra final sobre o assunto. Mais pesquisa empírica é necessária para que possamos determinar exatamente qual o impacto marginal da escolha desvalorização versus defesa sobre o produto. Ainda assim, ao menos preliminarmente, parece que a estratégia de defesa implica quedas menores do produto real.33 33 Consideremos ainda que o setor privado brasileiro apresenta passivos cambiais da ordem de US$ 141 bilhões (R$ 167 bilhões), e um hedge de apenas R$ 64 bilhões (a dívida pública denominada em dólar). Assim, a perda de capital devida a uma desvalorização entre 15% e 25% atinge entre R$ 15 e R$ 25 bilhões (1.6% a 2.6% do PIB).

Em outras palavras, a política de defesa da taxa de câmbio é menos custosa que uma desvalorização cambial para uma faixa grande dos parâmetros do modelo. Isto parece estar em contradição com todo nosso argumento anterior acerca da dificuldade de manutenção das taxas de juros atuais, mas tal contradição é apenas aparente.

O exercício acima apenas diz que a política de defesa da taxa de câmbio, do ponto de vista fiscal34 34 E possivelmente do ponto de vista de perda de produto. , domina a alternativa de desvalorização da moeda, ou seja, as preferências governamentais indicariam a defesa da moeda (como, aliás, se observa). No entanto, a teoria econômica sempre insistiu na interação de preferências e restrições na determinação do comportamento econômico. Anteriormente mostramos que há uma restrição fiscal à manutenção das taxas de juros a níveis elevados, e tal restrição pode se sobrepor às preferências governamentais, caso as metas que calculamos acima para o superávit primário não sejam exequíveis.

Além da questão fiscal, há também a possibilidade de a política de defesa da moeda via taxa de juros não ser sustentável face à redução abrupta da sensibilidade de fluxos de capitais ao diferencial coberto de juros. Este é o assunto da próxima seção.

MOVIMENTOS DE CAPITAL E O DIFERENCIAL DE TAXA DE JUROS

Uma hipótese subjacente à política de defesa da moeda via taxas de juros é que os fluxos de capitais respondem positivamente à criação de um diferencial de juros. No período posterior a outubro de 1997, tal suposição se revelou bastante verdadeira e o Banco Central, no presente momento, parece agir com base nesta evidência.

No entanto, isto não tem evitado um fluxo contínuo de saída de recursos do país, seja via câmbio flutuante, seja via câmbio comercial. Os mecanismos têm sido os mais diversos, de mera remessa aproveitando-se da janela do câmbio flutuante e a relativa mobilidade de capital neste mercado, até o exercício dos calls dos eurobonds, passando por outras formas de pré-pagamento de dívida externa e pela remessa de lucros e dividendos (quase US$ 1,9 bilhões em setembro). Isto num momento em que as taxas domésticas de juros em dólar se encontram na faixa de 17% a.a.. Os principais arbitradores de juros já deixaram o mercado (os números de Anexo VI são um resquício do que foram) e os que ainda permanecem devem sua presença à relativa iliquidez de seus ativos.

Por que isto? A resposta mais óbvia seria um aumento da aversão a risco nos países desenvolvidos, mas esta é uma explicação que nada explica.35 35 O que não quer dizer que não seja verdadeira, mas apenas que explicações que se baseiam em mudança dos “primitivos” da teoria econômica (tipicamente preferências) na verdade apenas deslocam o campo de investigação para fora da Economia. Do ponto de vista de análise econômica são meros truísmos. No que se segue, vamos tentar uma explicação alternativa, ainda que preliminar.

Os anos 90 foram marcados por um rápida expansão dos fluxos de capitais. Acreditamos que tal expansão esteja relacionada à mudança na regulamentação dos mecanismos de seguridade social nos EUA, que levaram a uma expansão quase sem precedentes da alocação de ativos nos mercados de risco. Eventualmente, o desejo de reduzir a medida de risco do portfólio levou agentes (ou seus fund managers) a diversificar na margem, baseados na crença de correlações negativas entre as performances dos diferentes mercados. Eventualmente a diversificação começa pelos países europeus, para depois se espalhar em direção aos países ditos emergentes, seja na Ásia, América Latina ou Europa Oriental.

Tal movimento coincidiu com a abertura tanto comercial como financeira de vários destes países emergentes, em particular aqueles que se recuperavam da crise da dívida nos anos 80 (México, Argentina e Brasil), passando por processos de estabilização, e aqueles que se viam livres do jugo soviético, após a queda do Muro de Berlim. O retorno dos fluxos internacionais de capitais após a interrupção dos anos 80 permitiu a vários destes países (Brasil incluso) a adoção de processos de estabilização que passassem por alguma forma de âncora cambial. Assim, estes países puderam inverter a ordem da estabilização, atingindo a estabilidade de preços à frente das reformas fiscais e/ou monetárias que deveriam embasar a queda da inflação.

Num outro extremo, países já estáveis puderam aproveitar o fluxo de capitais para adotar uma política gradualista no que diz respeito à sua necessidade de reforma estrutural. Assim, os países do Sudeste Asiático puderam manter sua (deteriorada) organização institucional à custa de um endividamento crescente. No caso da Europa Oriental, tanto a estabilização como a necessária reforma institucional só se viabilizaram a partir do aporte do capital ocidental.

A política comum a todos os casos foi a opção pelo “gradualismo” na reforma, “gradualismo” que chegava, em alguns casos, às raias da paralisia. Assim, tensões se acumularam, seja no caso fiscal/externo (Brasil), seja no caso institucional (Coréia, Indonésia), seja no caso fiscal/institucional (Rússia). Este tipo de fenômeno (fundamental) implicou uma mudança gradual nas correlações: vários destes mercados passaram a se mover em conjunto, eliminando gradualmente o motivo “diversificação”, pelo menos entre os países emergentes.

Em tais circunstâncias, bastava um acidente de percurso para revelar a nudez do imperador, e tal acidente aconteceu na Tailândia. Em que pesem os protestos (muitas vezes justos) acerca das diferenças de cada economia, todas elas possuíam em comum um fator central: políticas econômicas distorcidas pela abundância de capitais internacionais possibilitando o adiamento das reformas necessárias, e, portanto, dependência de fluxos de capitais.

Agravando a questão, a própria existência da abundância de capitais no mercado internacional passou a ser determinada pelo sucesso do mercado acionário norte-americano. Daí o fenômeno das bolsas mundiais seguirem o índice Dow Jones. Isto, no entanto, reduziu dramaticamente o apelo à diversificação. Some-se a isto o aumento da volatilidade em função do “contágio” entre economias emergentes e temos um caso em que a alocação de recursos para os países emergentes vai se reduzir, mesmo para um grau de aversão a risco constante.

Vale dizer, balanços se encolhem e os preços a que se equilibram os mercados de ativos são necessariamente muito mais baixos do que os observados até recentemente. É possível imaginar preços aos quais as taxas de juros associadas não representam um equilíbrio crível (como talvez no caso brasileiro). Daí que diferenciais de taxas de juros não mais consigam desempenhar o papel de atrair fluxos de capitais: simplesmente os diferenciais requeridos se tornam tão elevados que, na ausência de um forte ajuste fiscal, não é crível que um governo possa arcar com este custo.

Se realmente estamos numa situação como esta, a política monetária perde muito de seu poder. É verdade que ainda pode evitar que a fuga de capitais evolua para um ataque às reservas, ao encarecer o custo de captação doméstico, mas dificilmente poderia evitar uma perda contínua de reservas. Neste caso, preferências governamentais à parte, não há como evitar a desvalorização.

A bem da verdade, não sabemos se já estamos definitivamente numa situação de completa insensibilidade do movimento de capitais ao diferencial coberto de juros. Também não sabemos se, caso estejamos, não há medidas que possam reverter tal estado. A aposta mundial passa pela preservação da solvência dos países emergentes através de recursos oficiais (FMI, BIRD, BID, G-7), na esperança de que isto possa deflagrar o retorno do fluxo privado voluntário. Neste exato momento qualquer prognóstico sobre a probabilidade de sucesso desta iniciativa é temerária. Esta é a famosa pergunta de US$ 1 milhão (bilhão?) e, tivéssemos nós a resposta, estaríamos ocupados demais (montando posições vendidas ou compradas) para escrever este ensaio.

CONCLUSÃO

Tendo em vista o exposto anteriormente, o que esperar? Começando pela preferência governamental, podemos esperar medidas no sentido de preservar a política cambial e a estabilidade. Juros altos e, para sustentá-los, um ajuste fiscal que gere um superávit primário da ordem de 3% do PIB, acompanhado por uma aceleração do processo de privatização, na tentativa de impedir que a alta de juros se traduza numa aceleração da taxa de crescimento da dívida pública. As implicações desta política para o nível de atividade são óbvias e não há um analista sério que não preveja uma forte recessão em 1999, entre l% e 3% de queda do produto.

Tal recessão, acoplada à queda da inflação e consequente desvalorização real do câmbio, deverá reduzir o déficit em conta corrente para a casa dos US$ 26 bilhões em 1999. Somadas as amortizações (de curto e longo prazo), a necessidade de financiamento externo deve chegar à casa dos US$ 52 bilhões (US$ 40 bilhões considerando somente a amortização da dívida de médio e longo prazo).

A eficácia de tal política requer, todavia, que a crise de liquidez internacional (credit crunch ) diminua de intensidade, de modo a restabelecer a sensibilidade do fluxo de capitais ao diferencial de taxas de juros. Note-se que mesmo o desembolso coordenado pelo FMI (US$ 30 bilhões) ainda não é o suficiente para compensar o déficit em conta corrente e a amortização da dívida de longo prazo.

Sumarizando, a manutenção da política cambial requer: (1) a normalização do mercado internacional de capitais; (2) um ajuste fiscal da ordem de 3,6% do PIB (sair de um déficit primário de l% do PIB para um superávit de 2,6% do PIB) num período de recessão; (3) medidas governamentais de antecipação de receitas de privatização. Com estas condições atendidas, as preferências governamentais prevalecem, e o primeiro ano do novo governo será (em larga medida) não muito diferente do que tem sido até aqui em matéria cambial.

Se (1) ou (2) não forem observadas, a manutenção da política cambial se torna inviável. As taxas de juros não mais sustentarão a taxa de câmbio e a fuga de capitais (conjuntamente ao déficit em conta corrente) tornará em larga medida inútil o aporte de recursos externos. Neste caso, a melhor saída nos parece ser a flutuação cambial: restabelece-se a possibilidade de condução de política monetária e pelo menos o componente financeiro do déficit público poderia ser reduzido mais à frente. Adicionalmente, a inexistência de indexação cambial deve ajudar a impedir a reaplicação do mecanismo monetário-cambial que se encontrava por trás das elevadas taxas inflacionárias no período pré-Real.

Claro que tal opção deve ser tomada ainda com reservas relativamente elevadas, de modo a minimizar as chances de um overshooting cambial. Neste sentido, talvez a melhor recomendação ao governo é investir num sistema de early warning acerca das condições internacionais de liquidez. O timing de uma decisão pode significar a diferença entre uma crise temporária e a completa reversão da estabilidade.

  • 1
    Pode, no entanto, ser a única alternativa, dependendo das condições de financiamento externo.
  • 2
    Ou requeira diferenciais tão elevados que a política fiscal se veja incapacitada de garantir a credibilidade da política monetária.
  • 3
    “A model of balance-of-payments crises”, Journal of Money. Credit, and Banking 11, 311-325, 1979.
  • 4
    “Collapsing exchange-rate regimes: some linear examples”, Journal of International Economics 17, 1-13, 1984.
  • 5
    “Market anticipation of government policy and the price of gold”, Journal of Political Economy, 86, 627-648, 1978.
  • 6
    Decorrência da unificação alemã de 1990, que forçou o Bundesbank a elevar suas taxas de juros para contrabalançar os efeitos do déficit orçamentário alemão. Para manter a paridade cambial, os bancos centrais europeus foram forçados a elevar suas taxas de juros.
  • 7
    “The logic of currency crises”, Cahiers Economiques et Monetaires (Bank of France), 43, 189-213, 1994.
  • 8
    E o Presidente, é claro.
  • 9
    Embora longe de ser o único. Ademais, só em 1998 as taxas de juros se converteram no principal elemento de piora fiscal. Entre 1994 e 1997 a piora se deveu, em maior medida, à deterioração das contas primárias, corno mostraremos adiante.
  • 10
    Este problema não está necessariamente relacionado com a falta de credibilidade da política monetária. Pode ser simplesmente o resultado do credit crunch global.
  • 11
    Só se classifica um procedimento ou teoria como “convencional” para angariar a simpatia do leitor pelo procedimento/teoria do autor, “inovador” e “anti-convencional”, obviamente muito superior.
  • 12
    A cesta se compõe de sete moedas que representam cerca de 65% do comércio internacional brasileiro. A ponderação de cada moeda foi dividida por 0.65, de modo a assegurar que a soma dos pesos fosse 1.
  • 13
    O ideal teria sido inflacionar a cesta de moeda por uma cesta de PPIs com a mesma ponderação. Dada a convergência da inflação dos países desenvolvidos e da Argentina para a inflação norte-americana, acreditamos que as distorções são pequenas.
  • 14
    Ver Pastore, A.C., M.C. Pinotti e B. Blum, “Paridade de poder de compra, câmbio real e saldos comerciais’’, mimeo, agosto de 1997.
  • 15
    O investimento direto foi, em média, US$ 1.3 bilhões/ano entre 1992 e 1994 comparado com US$ 10.1 bilhões/ano no período 1995-97.
  • 16
    O passivo externo líquido compreende a dívida externa líquida (de reservas), mais o estoque de investimentos estrangeiros líquidos (de investimentos brasileiros no exterior). Este montante representa uma obrigação sobre o produto interno, seja sob a forma de juros, seja sob a forma de lucros e dividendos. Neste sentido, não há distinção entre dívida e investimento: ambos são fontes de financiamento da conta corrente.
  • 17
    A ideia é calcular um programa ótimo sem default da dívida, e um programa ótimo com default da dívida (e sanções correspondentes) e achar a dívida que torna um país indiferente entre pagamento e default. Esta é a dívida sustentável e a trajetória que conduz a este nível de dívida é a trajetória ótima.
  • 18
    Dadas as óbvias semelhanças com renda e consumo permanentes de Friedman, podemos denominá-los superávits primários permanentes.
  • 19
    Neste momento não há como evitar algum desconforto. Um retorno de 6.5% a.a. parece muito baixo para investimentos no Brasil e certamente o é. No entanto, se usarmos os spreads soberanos para estimar o retorno do capital no Brasil, chegaremos a estimativas muito elevadas dos serviços da dívida que não encontram respaldo nos números observados. É verdade que a maior parte da dívida havia sido renegociada já em 1994, o que reduz muito a pressão dos juros (com os cupons fixos, o yield-to-maturity da dívida velha é irrelevante para o desembolso brasileiro). À medida que nova dívida é emitida, talvez haja um aumento desta relação por conta dos novos spreads. De qualquer forma, nas simulações mais à frente encontraremos diferentes taxas de retorno, de modo que teremos alguma sensibilidade sobre mudanças nesta hipótese.
  • 20
    Na verdade, tais serviços são determinados em larga medida pelo volume total de comércio, e o impacto de uma desvalorização na corrente de comércio é ambíguo e provavelmente pequeno.
  • 21
    Pastore et al. (1997).
  • 22
    Portanto, a taxa de juros determinada por este exercício deve estar associada a esta duração.
  • 23
    A desvalorização efetiva da taxa de câmbio é definida pelo Banco Central e é um elemento importante na formação dos preços dos futuros cambiais. Há, no entanto, um prêmio de risco na formação do futuro cambial que não é fixado pelo Banco Central, e sobre o qual a ingerência governamental só pode se dar via intervenção, seja ela kosher (aumento da oferta de hedge cambial via colocação de títulos cambiais) ou não (atuação do Banco do Brasil no mercado cambial).
  • 24
    Para exemplificar, tomemos iUS= 3.9% a.a., SOT como 1248 pontos base, (f/e) =1.1389 e t = 0%. Isto gera uma taxa de juros doméstica próxima a 32% a.a. (na “ponta longa“ da yield curve brasileira, a relevante para o crédito de longo prazo e atividade econômica). Do ponto de vista dos papéis indexados a dólar requer-se uma taxa de dólar mais 16% a 17% a.a.
  • 25
    Mais à frente comparamos a abordagem gradualista a uma desvalorização discreta.
  • 26
    Verdade que, em 1990, o superávít primário resultou das medidas brutais do Plano Collor. Ainda assim, se tomarmos 1994 como base, as conclusões se mantêm.
  • 27
    Isto não deve ser incluído nas contas à frente por já fazer parte da folha de pagamentos.
  • 28
    Note que estas são as despesas “caixa” do Tesouro, não necessariamente iguais às apresentadas no conceito “necessidades de financiamento”. Como não há dados neste conceito anteriores a 1995, optamos por usar o conceito “caixa”. De qualquer forma, em 1996, pelo conceito de necessidades de financiamento, o OCC era R$ 20 bilhões, aumentando para R$ 40 bilhões ao final de 1997 e R$ 45 bilhões nos 12 meses terminados em setembro de 1998.
  • 29
    Nominais, já que o Banco Central não mais divulga o conceito operacional.
  • 30
    Nos 9 primeiros meses de 1998, a Receita Federal registrou receitas de R$ 102.8 bilhões (a preços de setembro de 1998) contra R$ 85.1 bilhões no mesmo período de 1997. Nos últimos 12 meses, a receita do Tesouro Nacional atingiu a marca de R$ 134.4 bilhões (incluída aí a receita da privatização da concessão da Telebrás), contra R$ 11 6.7 bilhões em dezembro de 1997.
  • 31
    Por exemplo, se as taxas demorarem 3 meses para retornar ao nível inicial, supomos que cada degrau de redução de juros seja de 7% (21%÷3).
  • 32
    Esta hipótese claramente beneficia a alternativa “desvalorização”. Num caso mais realista deveríamos imaginar uma desvalorização nominal superior à desvalorização real requerida, visto que parte da mudança nominal se dissipa em forma de inflação.
  • 33
    Consideremos ainda que o setor privado brasileiro apresenta passivos cambiais da ordem de US$ 141 bilhões (R$ 167 bilhões), e um hedge de apenas R$ 64 bilhões (a dívida pública denominada em dólar). Assim, a perda de capital devida a uma desvalorização entre 15% e 25% atinge entre R$ 15 e R$ 25 bilhões (1.6% a 2.6% do PIB).
  • 34
    E possivelmente do ponto de vista de perda de produto.
  • 35
    O que não quer dizer que não seja verdadeira, mas apenas que explicações que se baseiam em mudança dos “primitivos” da teoria econômica (tipicamente preferências) na verdade apenas deslocam o campo de investigação para fora da Economia. Do ponto de vista de análise econômica são meros truísmos.
  • 37
    JEL Classification: F31; F41; F32.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 1999
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