Acessibilidade / Reportar erro

Privatização de estradas no Brasil: comentário sobre a viabilidade financeira

Privatization of highways in Brazil: comment on the financial viability

RESUMO

Neste artigo, o autor discute questões financeiras consideradas questões-chave e que devem ser cuidadosamente analisadas em projetos de privatização de rodovias na realidade brasileira. Retornos esperados, tarifas comparadas, custos, demanda e estrutura de capital são o núcleo deste trabalho. O autor realiza um exercício de simulação com base em um dos casos mais lembrados como candidatos à privatização no Estado de São Paulo: o sistema que compreende as rodovias Anchieta e Imigrantes, que fazem uma conexão entre a cidade de São Paulo e a cidade. de Santos, no litoral. A conclusão do autor indica que é um empreendimento viável, desde que algumas restrições / inovações sejam incluídas em seu projeto.

PALAVRAS-CHAVE:
Privatização; estradas

ABSTRACT

In this article the author discusses financial questions deemed as key issues, and that should be carefully analyzed in highway privatization projects within the Brazilian reality. Expected returns, compared tariffs, costs, demand and capital structure are the core on this work. The author performs a simulation exercise based on one of the cases most frequently remembered as a candidate to privatization in the State of São Paulo: the system comprising the Anchieta and the Imigrantes Highways, which make a connection between the City of São Paulo and the City of Santos, on the coast. The author’s conclusion indicate that it is a feasible undertaking, provided that some restrictions/innovations are included in its design.

KEYWORDS:
Privatization; roads

1. APRESENTAÇÃO

Durante muitos anos, sob criativas formas de avaliação, foram implantados nas economias de baixa renda numerosos projetos sob coordenação estatal em áreas onde o setor privado, em geral, não mostrava capacidade ou disposição de investir. Alavancando recursos de terceiros, num ambiente de crédito acessível, o Estado teve presença marcante como investidor direto. As possibilidades abertas pela intermediação financeira, alocando recursos para investimentos, no entanto, somente perduram a longo prazo se os projetos apresentarem capacidade de reproduzir, com margem, o capital inicial investido. É esse processo que, projetado para toda à economia, permite a geração de riquezas.

À medida que se aprove um número crescente de projetos não autossustentáveis financeiramente - ainda que socialmente justificáveis -, aumentam as possibilidades do empobrecimento a longo prazo, pois a riqueza não se multiplica, apenas se transfere. É esta, e não outra, a verdadeira problemática que, do ponto de vista econômico, torna necessário o equacionamento do déficit público quando fora de controle.

No momento em que se busca uma saída para a retomada do desenvolvimento da economia brasileira, é importante discutir de forma racional propostas concretas que, aprendendo com os erros do passado, sejam consentâneas com as especificidades - atores e papéis - do novo ciclo que está por vir. É nesse sentido que o documento a seguir é apresentado.

2. ANTECEDENTES

Desde a segunda metade dos anos 70, e com maior vigor nos anos 80, o mundo experimenta nas relações econômicas uma tendência geral de redução da participação do Estado nas atividades econômicas.

Atualmente, processos de privatização estão consolidados ou em curso em praticamente todas as economias, independentemente de seu nível de renda.1 1 Para uma revisão sistemática, v. World Bank (1988: 88-90). Em alguns casos tais processos se encontram mais aprofundados que em outros, e as motivações são tanto necessidades práticas de equacionamento de déficits públicos quanto ideológicas, variando a intensidade de um ou outro componente.

A necessidade da promoção dessas iniciativas, no entanto, e seu impacto geralmente favorável na alocação de recursos, são praticamente um consenso entre os especialistas.

No que se refere à infraestrutura de transportes, propõe-se atualmente no Brasil, em nível estadual e federal, a passagem de algumas atividades do setor público para o setor privado, via contrato de concessão, no intuito de obter ganhos de produtividade, custos operacionais de eficiência, novos investimentos etc.2 2 O marco legal que disciplina a concessão e permissão de serviços públicos no Estado de São Paulo encontra-se na Lei 7.835, de 8 de maio de 1992. Um dos segmentos definidos como prioritários nessa estratégia é o das estradas. Melhoradas e conservadas pela iniciativa privada, tais estradas, à semelhança das existentes em diversos países e há mais de vinte anos no estado de São Paulo, estariam sujeitas à cobrança de pedágios, que seriam a fonte para a cobertura dos custos operacionais e financeiros e para a remuneração do capital.

Nas linhas adiante se comentam especificidades de aspectos financeiros-chaves, que deveriam ser considerados pelos diversos agentes interessados na privatização de estradas pedagiadas no Brasil. A seleção dos tópicos e a forma de tratamento sugerido se baseiam na experiência de trabalho do autor na mais importante empresa brasileira operadora de estradas pedagiadas.3 3 Trata-se do Dersa- Desenvolvimento Rodoviário SI A-, empresa estatal sediada no estado de São Paulo, responsável pela operação de 705,5 quilômetros de estradas pedagiadas. A empresa também opera hidrovias e o porto de São Sebastião, além de atuar na área de terminais intermodais de carga no interior de São Paulo.

3. RETORNOS ESPERADOS

A motivação principal-ainda que não única-de participação do setor privado em qualquer atividade econômica é a maximização dos lucros.

Tecnicamente, quando o agente promotor do investimento é privado, não há razão para assumir, na avaliação do projeto, um custo de oportunidade do capital de até 12%, conforme tradicionalmente se tem assumido em investimentos, ser responsabilidade do Estado. Cada projeto, em cada lugar, na medida em que envolve riscos específicos, deve assumir retornos esperados também específicos. Sob esse ponto ele vista, pois, não há por que descontar, por exemplo, a uma mesma taxa, um projeto gerador de divisas e outro que não as gere, ainda que ambos se localizem no mesmo país. Nesse contexto, dados os longos prazos de recuperação do capital em projetos de estradas e a presença de forte risco não diversificável, é procedente considerar como insuficientes as taxas convencionais de desconto, para estimular a participação voluntária do setor privado.

É necessário, assim, a utilização de estímulos adicionais que serão sumariados mais adiante.

Os melhores retornos obtidos nas estradas pedagiadas em economias de alta renda situam-se por volta dos n pontos percentuais acima ela inflação.4 4 Morancay (1986). Na Espanha, onde as primeiras concessões de estradas pedagiadas foram outorgadas em 1972, somente a partir de 1987 começaram a proporcionar resultados líquidos positivos.

Em 1990, em São Paulo, dentre as rodovias estaduais de maior volume de tráfego pedagiado para as quais existem estatísticas econômico-financeiras confiáveis, o melhor resultado operacional foi apurado na rodovia SP-348 (Rodovia dos Bandeirantes), que conecta a capital do estado à cidade de Campinas. O retorno operacional nessa rodovia (tráfego pedagiado de 33.507 veículos/dia - 79% veículos de passeio, 21% veículos comerciais) foi de 0,03% sobre o total de ativos; ou de 0,08% sobre o patrimônio líquido. A melhoria de resultados desse tipo é o que, imagina-se, entre outros, a privatização poderá vir a estimular.5 5 Em dezembro de 1990 o total dos ativos da Dersa montava a USS 1.771.172.069, com um patrimônio líquido de USS 735.058.209. No mesmo exercício o resultado operacional da Rodovia dos Bandeirantes foi positivo cm US$ 563 mil. V. últimas demonstrações financeiras da empresa publicadas no Diário Oficial do Estado de São Paulo, 16/04/92. Encontram-se no prelo, sob o patrocínio da Dersa, duas publicações pioneiras no setor de transportes: “Custos Operacionais” e “Demanda Pedagiada cm Sistemas de Transporte”, ambas referidas à realidade do estado de São Paulo.

4. TARIFAS, CUSTOS, DEMANDA

Pontos críticos cruciais em qualquer empreendimento e que merecem ser comentados, à luz da experiência de São Paulo, referem-se ao valor e à periodicidade da revisão do pedágio, aos custos incorridos e à demanda prevista em projeto. Mais adiante se confere atenção específica à estrutura de capital.

Quanto ao pedágio cobrado no estado ele São Paulo, a tendência de longo prazo tem sido de queda do valor real. A tarifa por veículo/km cobrada em 1990 representava 27,3% da que era cobrada em 1972.

Explica-se o fenômeno, por um lado, pela atuação do governo federal que, no contexto de políticas de estabilização, administra os preços, visando o controle inflacionário. De outro, por diversos grupos de pressão ela sociedade civil, geralmente relutantes em assumir o custo cio pedágio. Esse comportamento é compreensível na medida em que, pela ótica do usuário, o pagamento de impostos deveria garantir - além de outros serviços típicos de governo- a manutenção de estradas de alto padrão com tráfego livre de pedágios.

Atualmente, tanto no Brasil quanto no exterior, a opinião dominante considera que:

  • pedágio não é imposto;

  • o pedágio é, do ponto de vista da distribuição de renda, mais equitativo se comparado com impostos e taxas: somente paga quem se utiliza dos serviços;

  • o pedágio garante uma estrutura permanente de manutenção preventiva de estradas, preservando a longo prazo os investimentos realizados;

  • estradas não pedagiadas estão mais expostas, pela dependência orçamentária do Estado, à deterioração crescente, aumentando os custos dos transportadores e o preço dos produtos transportados.

A Tabela 1 apresenta algumas tarifas de pedágio no Brasil e no exterior.

Tabela 1
Valor de pedágios vigentes no Brasil e em outros países -1990 (cents de USS de 1990 por veículo/km)*

Diversas fórmulas podem ser utilizadas na definição elas tarifas de pedágio. Na Espanha, por exemplo, se utiliza uma fórmula paramétrica. Para a obtenção do coeficiente k, que, aplicado à tarifa inicialmente aprovada no contrato de concessão (to), nos proporcionará a tarifa revisada para o momento t:

K t = 0 , 30 H t H 0 + 0 , 12 E t E 0 + 0 , 08 S t S 0 + 0 , 50

onde H, E e S são índices de custo entre os momentos 0 e t da mão-de-obra, da energia e de materiais siderúrgicos. Entre um reajuste e outro deve mediar pelo menos um ano e desde que a revisão represente aumento de no mínimo 5% sobre a tarifa vigente.6 6 Mopu (1987).

No caso brasileiro, a tradição inflacionária e as políticas de estabilização frequentemente praticadas não recomendam a adoção de critérios rígidos de reajuste tarifário sob pena de uma alteração de preços relativos colocar em risco o equilíbrio econômico-financeiro da operação. Nessas circunstâncias, os critérios para a revisão tarifária devem ser de caráter geral, permitindo ao concessionário o encaminhamento das propostas ao poder concedente (que deverá se manifestar num prazo máximo) sempre que a realidade dos custos assim o justificar.

Uma das fórmulas utilizadas em São Paulo na elaboração de propostas de revisão de pedágio é a seguinte:

T V P = I t I 0 P 0 + C 0 + S P 0 + T 0 + M C 0 + D 0 N E P V + 2 N E V C

  • TVP=Tarifa-eixo para veículos de passeio.

  • P0=Gastos com pessoal no mês-base.

  • C0=Gastos com consumo no ano-base.

  • SP0=Gastos com serviços profissionais no mês-base.

  • T0=Gastos com transporte no mês-base.

  • MC0=Gastos com manutenção e conservação no mês-base.

  • D0=Gastos diversos no mês-base.

  • It=Valor previsto do índice de custo no mês de referência.

  • I0=Valor real do índice de custo no mês-base.

  • NEPV=Número de eixos de veículos de passeio previsto para o período de referência.

  • NEVC=Número de eixos de veículos comerciais previsto para o período de referência.

  • 2=Relação tarifária veículos comerciais -veículos de passeio.

Quanto aos custos, embora se possa discutir qual o melhor critério a adotar do ponto de vista da sociedade, é bastante claro que, do ponto de vista privado, se deva processar a cobertura total dos custos a incorrer no período, inclusive os financeiros. Se essa cobertura se dará via pedágio ou algum outro mecanismo compensatório, esta é uma questão a ser negociada entre o concessionário e o poder concedente.

Na hipótese de um concessionário vir a explorar mais de uma rodovia ou mais de um trecho dentro de uma mesma rodovia, cabe discutir o critério de apropriação de custos, entre trechos ou rodovias, para fins tarifários.7 7 Para fins de controle interno, evidentemente, tratar-se-á de centros de resultado diferenciados.

Nas circunstâncias brasileiras, parece estrategicamente recomendável, para o operador de mais de uma estrada ou de mais de um trecho dentro de uma estrada, a adoção de cálculos de custos médios totais e, portanto, sistemas tarifários médios, tanto quanto possível, independentes da distância percorrida.

Ao ser os sistemas rodoviários operados por particulares, e dados os níveis tarifários, será de interesse do concessionário a apuração dos menores custos operacionais possíveis. A fim de que essa redução reflita ganhos de produtividade e não queda na qualidade dos serviços - que envolvem riscos à vida humana-, deve o poder concedente proceder à implantação de mecanismos de aferição dos níveis de manutenção das estradas pedagiadas. Convém lembrar que o concessionário provavelmente operará em regime de monopólio.

A Tabela 2 mostra os custos operacionais médios incorridos por quilômetro real e por quilômetro equivalente, este último entendido como quilômetro de pista única com duas faixas de rolamento de 3,5m de largura. Os dados, de 1990, são a média dos custos incorridos em 705,5 quilômetros das principais estradas pedagiadas de São Paulo.

Tabela 2
Custos operacionais por quilômetro em rodovias pedagiadas de São Paulo - 1990 (Em USS de 1990)

Quanto à magnitude da demanda em nível de projeto, esta deveria ser um fator de risco a ser assumido pelo concessionário. A análise de mercado elaborada deveria lhe permitir a obtenção dos retornos esperados, com base em compromisso tarifário assumido pelo Estado no contrato de concessão.

Na análise da demanda a efetuar nos projetos de viabilidade, deve-se prestar particular atenção ao modelo de projeção utilizado, a fim de evitar a tendência geral à superestimação. Numa reavaliação preliminar de projetos de estradas específicas em São Paulo foram detectadas demandas reais de tráfego pedagiado substancialmente menores às previstas em projeto.8 8 Sánchcz Ruiz (1991). Nenhuma sofisticação nas modelagens de projeção de demanda deve substituir - e sim complementar - a visão do investidor e as informações da realidade.

5. ESTRUTURA DE CAPITAL

Projetos de estradas e grandes obras de infraestrutura em geral são, em condições normais, mais sensíveis ao montante do capital inicial investido que a preços e quantidades. Por essa razão, entre outras, dificilmente um investidor particular poderá obter nesses projetos, sem algum tipo de estímulo adicional, rentabilidades compatíveis com o mercado. Dadas essa característica e as particularidades já relatadas no caso de São Paulo quanto a tarifas e custos, especial atenção se deve prestar à estrutura de capital a ser montada, visando atingir retornos próximos dos esperados pelos investidores privados. Algumas ações (estímulos) podem contribuir para tanto.

Em primeiro lugar, a responsabilidade pelo investimento total compartilhado entre o setor público e o privado. O avaliador deve buscar a obtenção de um mix ótimo entre capitais público e privado, necessário para atingir o retorno esperado. De outra forma, isto é, o investimento integralmente assumido pelo setor privado, os resultados serão pouco compensadores. É possível, porém, que através dessa sistemática se obtenham investimentos iniciais de responsabilidade do setor público de tal ordem que tornem pouco atraente a transferência do empreendimento para o setor privado. Nessas circunstâncias, outras alternativas criativas de redução do investimento inicial, de corte de gastos e de geração de receitas devem ser analisadas.

Nos Estados Unidos, entre 1917 e 1987, a legislação proibia a aplicação de recursos federais em estradas pedagiadas. A partir do Surface Transportation and Uniform Relocation Assistance Act, foi permitida a utilização desses fundos para aqueles propósitos. O mix utilizado atualmente num empreendimento na Califórnia é de 35% de fundos federais e os 65% restantes vindos dos incorporadores e de outras fontes.9 9 American City & County (1990).

Em segundo lugar, e em complemento ao item anterior, a utilização de quaisquer mecanismos que possibilitem a redução do investimento inicial a ser efetivamente desembolsado, quer pelo Estado, quer por particulares. Um desses mecanismos, atualmente existente, é o da conversão de dívida em capital, aproveitando o baixo preço a que são cotados os títulos da dívida externa brasileira no mercado internacional. Sua internalização, em moeda local, próximos ao valor de face, permitiria a redução, em divisas, do investimento total a desembolsar efetivamente. É claro que, nesse ponto, se apresenta a indagação se, obtido o ganho na conversão, não seria mais segura e lucrativa a reaplicação dos recursos em divisa. Ocorre que, imaginamos, a possibilidade legal de internalização de deságios estaria aberta apenas para os casos de investimentos no setor real, não configurando tais operações uma alternativa de livre aplicação financeira por razões óbvias.

Em terceiro lugar, pelo lado da receita, é preciso explorar com maior agressividade as áreas localizadas às margens das rodovias (atividades terciárias). No caso de São Paulo, tais atividades não têm sido fonte relevante de receita. Até o momento, esses valores não representaram mais de 2% do arrecadado com o pedágio. Essa participação não é muito diferente da que se verifica em algumas estradas pedagiadas dos Estados Unidos, onde esse percentual se eleva a 3%.

Sugere-se, pois, que as atividades terciárias, à diferença do que tem acontecido até o momento em São Paulo, devam ser consideradas parte importante - não marginal - do fluxo de receitas operacionais a auferir pelos concessionários. Atividades de lazer em grande escala são candidatos quase naturais, em função de a demanda de transporte estar fortemente associada à demanda de lazer, particularmente em finais de semana e períodos de férias.

Considerando que os prazos de recuperação do capital investido em estradas são longos (quinze anos no exterior, pelo menos vinte no Brasil), é preciso utilizar todos os mecanismos disponíveis para reduzir ao máximo a probabilidade de quebra do equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão por eventos imprevisíveis durante o período de operação dos projetos. Deve-se dar particular importância às flutuações cambiais e de taxa de juros a ser enfrentadas pelo empreendimento.

Diferentemente do que tem ocorrido nos Estados Unidos, onde a parcela financiada por terceiros se baseia na emissão de bônus, com remuneração fixa, no Brasil se tem utilizado de empréstimos e financiamentos.

Dessa forma, enquanto os empreendimentos na modalidade brasileira estão sujeitos ao risco da elevação dos juros e das mudanças na política cambial (receitas em moeda local e despesas financeiras em divisa), nos Estados Unidos a remuneração fixa sobre os bônus tem reduzido a incerteza quanto ao montante das despesas financeiras. Na eventualidade, pois, de utilizar recursos de terceiros nos projetos, deve-se procurar a emissão de obrigações de renda fixa.

No caso de utilizar empréstimos e financiamentos nos projetos, a estrutura de capital deveria incluir, da mesma fora, se possível, algum tipo de hedge contra flutuações cambiais em excesso da evolução tarifária.

Na Espanha, considerado o interesse público na implantação de autoestradas, o Estado tem garantido seguro de câmbio. Este representa um benefício através do qual o Estado se compromete a proporcionar às concessionárias as divisas necessárias para atender juros e principal a vencer à mesma taxa cambial originalmente contratada junto aos credores. Até 31 de dezembro de 1988, a diferença entre o total cio câmbio praticado no mercado e o câmbio assinado nas operações de crédito no geral atingia 28,5%. No caso brasileiro, caberia auscultar o eventual interesse que grupos empresariais do setor de seguros teriam em operações desse tipo, dada a situação de escassez de recursos do Tesouro. Uma análise das possibilidades e limitações dos mercados futuros, na busca ele hedge cambial e de juros, também mereceria ser elaborada.

6. UMA SIMULAÇÃO

Se, à luz da experiência de São Paulo, alguns pontos relevantes (tarifas, custos, demanda, estrutura de capital) foram salientados e seu tratamento sugerido em possíveis programas de privatização (dado como suposto o aval dos poderes executivo e legislativo), quais seriam os resultados quantitativos esperados num caso concreto?

A Tabela 3 resume as Taxas Internas de Retorno (TIR)*, o Valor Atual Líquido (VAL)* e o Pay-Back Descontado (PBD), esperados numa hipotética privatização de um dos sistemas rodoviários do Estado de São Paulo que tem sido frequentemente lembrado como passível de privatização. Trata-se do Sistema Anchieta-Imigrantes (SAI), composto pelas rodovias Anchieta (SP-150), Imigrantes (SP-160), Caiçara (SP-55) e Padre Manoel da Nóbrega (SP-55), interligações e acessos, numa extensão total de 208,6 quilômetros. (V. mapa no Anexo I.)

Tabela 3
Sistema Anchieta-Imigrantes TIR*, VAL* e PBD* para diversos mixde capital público-privado

O sistema conecta a cidade de São Paulo à região litorânea do estado onde se localiza o porto de Santos, o mais importante do país, bem como as praias mais procuradas em finais de semana e feriados.

Em termos de novas obras, o sistema demanda 21,5 quilômetros de estrada (pista descendente).

A construção ficaria a cargo da iniciativa privada que operaria o sistema como um todo, remunerando-se através da cobrança do pedágio. O investimento total estimado no trecho a ser construído é de US$ 400 milhões. Praticamente não existem insumos importados.10 10 A exceção provável é a possível utilização em algumas cabines de pedágio do sistema A VI - Automatic Vehiclc ldcntification-para contagem e cobrança de veículos cm movimento. O valor total do investimento em obras, cm não havendo discussão sob opções tecnológicas, poderá aumentar à medida que se for detalhando o projeto executivo. É imprescindível aprofundar tal discussão.

Se o investidor privado arcasse integralmente com o investimento total previsto, os resultados da avaliação financeira seriam pouco compensadores: TIR* de 4,5%, substancialmente abaixo de qualquer remuneração de mercado nas condições brasileiras. Ajustes, pois, devem ser feitos para melhorar os resultados esperados.

Assim, com base nas condições levantadas ao longo do trabalho quanto a tarifas, custos, demanda e estrutura de capital, os seguintes dados foram adicionados para a simulação:

  • Utilização do mecanismo de conversão de dívida em capital. Aquisição de títulos no mercado secundário a 50% e internalizados no Brasil por75% do valor de face.11 11 O percentual admitido no Programa Nacional de Dcsestatização, administrado pelo governo federal, é 75%. O investimento a desembolsar efetivamente no projeto seria dado pela fórmula:

I e = I I + V F I - V M V M

onde

  • Ie=Investimento efetivo em divisa.

  • I=investimento total do projeto em divisa.

  • VFI=Valor de face de US$ 1,00 internalizado.

  • VM=Valor de mercado de US$ 1,00.

No nosso caso teríamos:

I e = 400 × 10 6 I + 0 , 75 - 0 , 50 0 , 50

Ie=US$ 266,7 milhões o investimento a ser efetivamente desembolsado, em divisa, no projeto e que permitirá a aquisição de US$ 533,4 milhões no mercado secundário, internalizados a 75% do valor de face. Sua conversão em moeda local atingirá os US$ 400 milhões necessários para a execução da obra em dois anos.

  • Custos operacionais previstos com base nos custos reais incorridos em 1990 no Sistema Anchieta-Imigrantes, eliminando os custos indiretos de administração: US$ 40 milhões para as rodovias existentes e US$ 4 milhões para os 21,5 km da nova pista, totalizando um custo operacional anual de US$ 44 milhões. A eliminação dos custos indiretos de administração equivale a um ajuste, para baixo, de 20,4% dos custos operacionais totais, incorridos em 1990 no Sistema Anchieta-Imigrantes.

  • Tarifas utilizadas no cálculo de receita: US$ 2,00 por eixo no percurso entre São Paulo e o litoral para veículos de passeio e US$ 4,00 por eixo para veículos comerciais.

  • Volume de tráfego: o real do Sistema Anchieta-Imigrantes em 1990, 10 milhões de veículos no primeiro ano de operação. Taxa anual de crescimento de 3,5% aplicada nos primeiros sete anos do projeto. No ano 8, o tráfego estabiliza-se em torno dos 36 mil veículos/dia. Supõe-se que, em função da pressão de demanda sobre a infraestrutura urbana da região litorânea, o crescimento do tráfego deva, portanto, ser controlado. Veículos comerciais variando de dois a seis eixos.

  • Receitas Terciárias conforme desempenho histórico: 2% sobre a receita de pedágios.

  • Não estão incluídos desembolsos para restauração/conservação das rodovias. A magnitude e periodicidade desses desembolsos dependem em boa medida do nível de manutenção preventiva aplicada à estrada. Em 1990, o Dersa investiu, a esse título, em torno de U$25 milhões nas rodovias Anchieta e Imigrantes. Uma das diversas formas em que pode ser equacionado esse compromisso é através de um sobrepreço que permita a formação de um fundo. Assumindo que esse investimento adicional tivesse que ser efetuado a cada 5 anos pelo concessionário, o sobre-preço a ser cobrado seria, grosso modo, de U$ 0,50/veículo por passagem na praça de pedágio. Evidentemente, investimentos em conservação especial em períodos mais longos reduziriam esse sobrepreço.

A Tabela 3 mostra os resultados da avaliação. O Anexo II detalha fluxo de caixa na hipótese de o investimento ser integralmente assumido pelo setor privado.

A interpretação dos resultados obtidos na avaliação é a convencional. Para o cálculo do VAL* e do PBD* foram utilizadas as taxas de 6,12 e 16%, já que, como se sabe, o desconto é função do perfil do investidor, das especificidades do projeto e do local onde as atividades deverão se desenvolver. A taxa de 16% representa a remuneração-ano real apontada pelos CDBs - Certificados de Depósito Bancário - negociados na praça de São Paulo para investidores institucionais e grandes conglomerados no mês de setembro/9. A TIR* refere-se à parcela efetivamente investida pelo setor privado.

Na hipótese de se pretender atingir os retornos de 16% com investimentos integralmente assumidos pelo setor privado, é preciso, além de otimizar os custos, estimular a expansão de atividades terciárias ao longo das faixas de domínio das rodovias. Nessa hipótese, deve-se rever a própria concepção do que até agora tem sido a exploração de atividades terciárias. No projeto de privatização analisado, as atividades terciárias deveriam contribuir com uma renda líquida equivalente a 40% da receita prevista com o pedágio para atingir a taxa de retorno de 16%, com o investidor assumindo integralmente o investimento de US$ 266,7 milhões.

Como se depreende da própria tabela, essa rentabilidade máxima também é factível de ser obtida com o mix público e privado de 50-45%.

Atualmente, as atividades terciárias instaladas às margens das rodovias em São Paulo funcionam como simples contratos de arrendamento com valores reajustados conforme legislação em vigor. Esse modelo de exploração comercial, desvinculado da concepção original do projeto da rodovia precisa ser modificado, a fim de que essas atividades se tornem componente importante do fluxo de rendas líquidas do empreendimento.

Um dos modelos de exploração comercial no qual o Brasil tem tradição e capacidade empresarial comprovada, recomendável para um estudo mais aprofundado de atividades terciárias, é o dos condomínios comerciais, muito utilizado na implantação e exploração de shopping centers existentes nas grandes cidades brasileiras. Com base nesse modelo, o empreendimento pedagiado passaria a ser encarado como um mega condomínio de atividades comerciais, de lazer e serviços em geral com grande liquidez, onde cada negócio ali instalado aportaria financeiramente com a viabilidade do projeto principal, a fim de garantir ao concessionário a cobertura dos custos operacionais e financeiros. Nessa perspectiva, a rodovia, ou hidrovia, ferrovia etc. deixa de ser um investimento de baixo retorno para se transformar num polo de atração e geração de negócios. Estes, em lugar de se desenvolver de forma espontânea, com vazamentos financeiros não integrados ao projeto principal, passam a ser objeto de um planejamento empresarial com importante conteúdo social.

Nessa abordagem, o empreendimento pedagiado, além de proporcionar retornos desde uma perspectiva privada, pode proporcionar algumas externalidades desejáveis, como a redução da pressão sobre polos turísticos tradicionais, diminuindo com isso as necessidades de investimento em infraestrutura urbana gerada por essa pressão de demanda.

7. CONCLUSÕES

A partir das informações anteriormente levantadas, algumas conclusões relevantes, a considerar em eventuais projetos de privatização de estradas pedagiadas em São Paulo, podem ser sintetizadas:

  • Estradas, à semelhança dos demais investimentos de infraestrutura, demandam longos períodos de maturação do capital investido. Em função disso, uma estrutura de capital inicial, com o empresário privado assumindo integralmente os investimentos, sem estímulos adicionais, proporciona retornos substancialmente menores às mais baixas remunerações oferecidas por aplicações de menor risco no Brasil. Para o caso do Sistema Anchieta-Imigrantes, a rentabilidade esperada, na inexistência de estímulos adicionais, é de 4,5%.

  • Tecnicamente, é válida e recomendável a utilização de mecanismos redutores do investimento inicial total tais como o de conversão de dívida (interna ou externa) em investimentos, absorvendo para o projeto parte dos descontos existentes no mercado. De outra forma, a rentabilidade sobre o capital investido, em projetos de estradas pedagiadas, fica prejudicada. É oportuno lembrar que a utilização de títulos depreciados em investimentos nada mais faz que reintegrar, parcialmente, a um título a receber pelo credor, o valor que lhe foi subtraído pela inadimplência do devedor.

  • Após uma redução (via conversão de dívida) de 33,3% no montante inicial a investir na segunda pista da Rodovia dos Imigrantes, é possível obter, a taxas de desconto de 6, 12 e 16%, valores atuais líquidos positivos com mix de capital público-privado de 0-100, 30-60 e 50-45, respectivamente.

  • Convém reiterar, em função da praxe, que a 12% de desconto, o ótimo entre capitais público-privado é de 30-65%, respectivamente, o mesmo sendo atualmente utilizado nos EUA em alguns projetos de estradas pedagiadas,

  • A não-adoção de mecanismos redutores do investimento inicial a ser efetuado pelo setor privado - via conversão de dívida ou outro - praticamente inviabiliza o empreendimento a taxas de retorno de mercado.

  • A privatização da operação de estradas, na medida em que envolve riscos à vida humana, demanda a implantação de mecanismos de aferição dos níveis mínimos de manutenção a serem preservados.

  • A relevância das atividades terciárias para a viabilidade das rodovias pedagiadas demanda uma mudança do atual modelo de exploração comercial baseado no arrendamento convencional de áreas, independente de um planejamento empresarial e do resultado do negócio. Volumes de renda líquida proveniente de atividades terciárias equivalentes a 40% das receitas de pedágio podem proporcionar ganhos compatíveis com o mercado, na hipótese de o setor privado assumir integralmente o investimento total, desde que utilize mecanismo de conversão de dívida ou um outro qualquer, redutor do investimento inicial.

  • A experiência e a tradição brasileira em negócios em condomínios comerciais apresentam-se como opção válida de ser analisada para eventual implantação em estradas pedagiadas, visando a exploração de atividades terciárias.

  • Se os benefícios e custos já mostrados são suficientes para levar avante um processo de privatização, esta é uma resposta que cabe à sociedade, através de seus representantes, aos quais se deve encaminhar as propostas do Executivo, a fim de garantir a necessária transparência que processos desse tipo demandam.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • American City & County (1990). 100 (1): 34-40, janeiro, 1990.
  • DERSA - Desenvolvimento Rodoviário S/A (1990). Custos Operacionais dos Sistemas de Transporte sob Jurisdição do DERSA-Desenvolvimento Rodoviário S/A Sistema Rodoviário - 1990, inédito.
  • DERSA- Desenvolvimento Rodoviário S/A. Demanda Pedagiada dos Sistemas de Transporte sob Jurisdição do DERSA - Desenvolvimento Rodoviário S/A Sistema Rodoviário -1990, inédito.
  • Lei Estadual nº 7.835, de 8 de maio de 1992.
  • MOPU (1987). Ministério de Obras Públicas e Urbanismo da Espanha. Dirección General de Carreteras - Servicio de Concesiones. El tráfico en las autopistas de peaje, 1987.
  • MONRANCAY, G. (1986). Prospects for Future Financing of Toll Facilities. In: International Bridge, Tunnel and Turnpike Association, 54th Annual Meeting. Proceedings Chicago, 1986.
  • SÁNCHEZ RUIZ, J. E. Projeção da Demanda de Transportes em Estradas Pedagiadas no Brasil Projeto de Pesquisa, maio, 1991.
  • WORLD BANK. Techniques of Privatization of State-Owned Enterprises 3 volumes - Technical papers 88-90, 1988.
  • 1
    Para uma revisão sistemática, v. World Bank (1988WORLD BANK. Techniques of Privatization of State-Owned Enterprises. 3 volumes - Technical papers 88-90, 1988.: 88-90).
  • 2
    O marco legal que disciplina a concessão e permissão de serviços públicos no Estado de São Paulo encontra-se na Lei 7.835, de 8 de maio de 1992Lei Estadual nº 7.835, de 8 de maio de 1992..
  • 3
    Trata-se do Dersa- Desenvolvimento Rodoviário SI A-, empresa estatal sediada no estado de São Paulo, responsável pela operação de 705,5 quilômetros de estradas pedagiadas. A empresa também opera hidrovias e o porto de São Sebastião, além de atuar na área de terminais intermodais de carga no interior de São Paulo.
  • 4
    Morancay (1986MONRANCAY, G. (1986). Prospects for Future Financing of Toll Facilities. In: International Bridge, Tunnel and Turnpike Association, 54th Annual Meeting. Proceedings. Chicago, 1986.).
  • 5
    Em dezembro de 1990 o total dos ativos da Dersa montava a USS 1.771.172.069, com um patrimônio líquido de USS 735.058.209. No mesmo exercício o resultado operacional da Rodovia dos Bandeirantes foi positivo cm US$ 563 mil. V. últimas demonstrações financeiras da empresa publicadas no Diário Oficial do Estado de São Paulo, 16/04/92. Encontram-se no prelo, sob o patrocínio da Dersa, duas publicações pioneiras no setor de transportes: “Custos Operacionais” e “Demanda Pedagiada cm Sistemas de Transporte”, ambas referidas à realidade do estado de São Paulo.
  • 6
    Mopu (1987MOPU (1987). Ministério de Obras Públicas e Urbanismo da Espanha. Dirección General de Carreteras - Servicio de Concesiones. El tráfico en las autopistas de peaje, 1987.).
  • 7
    Para fins de controle interno, evidentemente, tratar-se-á de centros de resultado diferenciados.
  • 8
    Sánchcz Ruiz (1991SÁNCHEZ RUIZ, J. E. Projeção da Demanda de Transportes em Estradas Pedagiadas no Brasil. Projeto de Pesquisa, maio, 1991.).
  • 9
    American City & County (1990American City & County (1990). 100 (1): 34-40, janeiro, 1990.).
  • 10
    A exceção provável é a possível utilização em algumas cabines de pedágio do sistema A VI - Automatic Vehiclc ldcntification-para contagem e cobrança de veículos cm movimento. O valor total do investimento em obras, cm não havendo discussão sob opções tecnológicas, poderá aumentar à medida que se for detalhando o projeto executivo. É imprescindível aprofundar tal discussão.
  • 11
    O percentual admitido no Programa Nacional de Dcsestatização, administrado pelo governo federal, é 75%.
  • 13
    JEL Classification: L33; L92.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 1993
Centro de Economia Política Rua Araripina, 106, CEP 05603-030 São Paulo - SP, Tel. (55 11) 3816-6053 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: cecilia.heise@bjpe.org.br