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De docta ignorantia* * “De docta ignorantia” faz alusão ao livro de igual título de Nicolau de Cusa (1401-1464), que defende a tese da impossibilidade do conhecimento absoluto. Assim, rejeita-se a possibilidade de o homem possuir conhecimento total e preciso do universo que o cerca, podendo apenas almejar o saber parcial e conjectural. Cf. Koyré, A. Do Mundo Fechado ao Universo Infinito, Rio de Janeiro, Forense; São Paulo, EDUSP, 1979.

A ignorância aprendida

RESUMO

Este artigo trata da formação da metodologia econômica dominante e dos desafios a ela inerentes, principalmente em termos de tempo e incerteza.

PALAVRAS-CHAVE:
Metodologia econômica; história do pensamento econômico; tempo; incerteza

ABSTRACT

This paper deals with the formation of the mainstream economic methodology and the challenges inherent to it, particularly in terms of time and uncertainty.

KEYWORDS:
Economic methodology; history of economic thought; time; uncertainty

Adieu, farewell earths blisse, This world uncertaine is, (....) Lord, have mercy on us.

(Thomas Nashe, 1567-1601)

Não é de hoje que a metodologia da Economia ortodoxa vem sendo submetida às mais severas críticas. Tantas pedras têm sido retiradas do castelo teórico a partir da segunda metade do século que é de se admirar que o castelo ainda exista! E, paradoxalmente, além de resistir bravamente aos diversos ataques, a fortaleza neoclássica dá continuamente sinais de que permanece intacta. Em uma analogia com a História da Física, poder-se-ia dizer que os teóricos, a cada refutação, acrescentam um novo epiciclo às teorizações existentes, tornando-as cada vez mais complexas, mas ganhando muito pouco em conteúdo de explicação da “realidade”.

Tal fato nos sugere a seguinte indagação: estaríamos diante de uma Economia ptolomaica? Isto é, uma Economia que ignora o próprio centro em torno do qual o sistema se desenvolve? E, se estamos verdadeiramente diante de um caso como esse, por que será que os teóricos mais eminentes insistem em manter o mesmo padrão de explicação que há tanto tempo vem se mostrando insuficiente? Será que o economista é incapaz de aprender com a História das Ciências? E não seria esse fenômeno um efeito colateral do próprio (mau) relacionamento da Teoria Econômica com a História?

O ponto central desse texto é demonstrar que - por construção lógica - a “ciência econômica” vem eliminando o conteúdo histórico da disciplina. Dentro desse prisma, tentarei expor como, a partir de uma ideia “física” de tempo, os economistas se deixaram arrastar para um terreno onde qualquer análise histórica não faz sentido. Assim procedendo, praticamente expulsam o elemento humano da Economia Política.

Toda a discussão se processa em quatro seções. A primeira explica a exclusão lógica dos conceitos de “tempo” e “incerteza” na economia (neo) clássica. A segunda esboça os fundamentos lógicos da crítica dessa exclusão. A terceira seção reflete sobre os esforços de teorização epistemológica da metodologia da crítica aos (neo) clássicos. Finalmente, na última seção, discute-se a impossibilidade de se aceitar essas teorizações face à própria natureza da disciplina econômica.

DE NEWTON A LEIBNIZ: A FORMAÇÃO DO MÉTODO “CLÁSSICO” DE ANÁLISE

Segundo Karl Popper (1980Popper, Karl Raymund. (1980). A Miséria do Historicismo. São Paulo, Cultrix/EDUSP . , pp. 4-5), é possível classificar a metodologia das ciências conforme sua posição relativa ao saber físico. Assim, denominam-se “’naturalísticas’, ou ‘positivas’, as favoráveis à aplicação dos métodos da Física às Ciências, e ‘antinaturalísticas’, ou ‘negativas’, as que se opõem à utilização de tais métodos”. Com esta classificação em mente, podemos ser levados a indagar sobre a época em que a Economia Política deixa de ser “antinaturalística” e passa a ser “positiva”. Ou seja, o momento em que se separa da Ética, da Moral, do Direito ou mesmo da Retórica, e passa a assumir o status independente de “Ciência”.1 1 Popper deixa bem claro que a economia é a única das ditas “ciências sociais” que obteve êxito em tornar-se “positiva”. Cf. Popper, Karl. A Miséria do Historicismo, São Paulo, Cultrix/EDUSP, 1980.

Pois bem, a codificação da disciplina econômica - isto é, a demarcação dos cânones que a distinguem como um saber “legítimo” autônomo - processou-se em paralelo à legitimação da própria Ciência Física face à Teologia.2 2 Cf. Koyrê, A. Op. cit. A “revolução” metodológica das ciências físicas indicou, portanto, aos outros saberes, o caminho que deveriam percorrer para conquistar a glória do epíteto de “Ciência”.3 3 A implantação do método da Física na “ciência econômica” não foi, contudo, nem homogênea nem instantânea. Pretty e Hume, entre os ingleses, pareciam ter grande admiração pela definição de “ciência” nesses moldes. O próprio Adam Smith dedicou parte de seu tempo ao estudo da Astronomia. Porém, é só no século XIX que começam a se tornar mais claros os sintomas indeléveis da contaminação da Economia Política pelo método da Física. Nas palavras de Jevons (1871, p. 4), “a Teoria da Economia ( ... ) sugere uma estreita analogia com a ciência da Mecânica Estática, e verifica-se que as leis de troca se assemelham a leis do equilíbrio de uma alavanca( ... )” Este exemplo de comparação da Física com a Economia é apenas um entre vários outros encontrados tanto em Jevons quanto na maioria dos autores neoclássicos mais importantes.

Recentemente, esta imposição da metodologia da Física clássica (dos séculos XVII, XVIII e XIX) ao saber econômico vem sendo chamada, por alguns autores, de “paradigma (metodológico) newtoniano”. Weisskopf (1980, p. 870), por exemplo, explica que o paradigma newtoniano “toma como base analógica o sistema planetário ou o mecanismo de um relógio, vale dizer: um sistema fechado, autônomo e autorregulável, regido por mecanismos endógenos, altamente seletivos e mutuamente interdependentes; sistema esse que tende a se deslocar em direção a um equilíbrio.4 4 A contrapartida dessa concepção é a convicção da posição “neutra” do observador com relação aos fatos observados, desde que obedecidas as normas de conduta científica. Cf. Wisrnan, J. D. “Toward a Humanistic Reconstruction of Economic Science”, JEI, mar. 1979.

Mas o método de Newton, em si, não é suficiente para detonar a ideologia econômica que encontra na Física sua inspiração maior: o liberalismo. É necessário que a ele se agregue o princípio geométrico leibniziano do “melhor dos mundos”. A junção do método de Newton com a Teologia de Leibniz - uma confluência que se processou com a naturalidade das ideias complementares -, aplicada ao domínio das relações humanas, produziu a possante Weltanschauung segundo a qual um mercado livre, através de leis endógenas, tende sempre a um ponto de equilíbrio que maximiza o bem-estar social.5 5 Nem Weisskopf nem qualquer outro economista que eu conheça consegue perceber esta sutileza. Ao que tudo indica, todos até agora têm atribuído a Newton a “honra” de ter criado tanto o método quanto a ideologia da Economia derivada desse método (cf. Weisskopf, op. cit.). Em uma analogia, a meu ver válida, é possível estabelecer que Leibniz está para Newton assim como Spencer está para Darwin. Ou seja, foi Spencer que implementou a forma dinâmica do “evolucionismo” que hoje conhecemos e atribuímos a Darwin. O mesmo ocorre na Economia com relação à ideologia leibniziana e a metodologia newtoniana. São insights como esses que contribuíram para a popularidade de A Riqueza das Nações, fazendo com que a Economia Política alcançasse o status de “Saber Científico”.

Consequência direta de se ter distinguido como ‘’Ciência’’, a Economia Política passou a dedicar-se à descoberta de “Leis”. Ora, por definição, as leis físicas são categorias atemporais: a equação que rege o movimento da Terra em torno do Sol é a mesma hoje, ontem ou amanhã, pelo menos nos limites da vida humana. Os fenômenos ocorrem independentemente da nossa vontade. Assim sendo, a Economia Política foi-se, aos poucos, deixando arrastar para um pântano epistemológico onde o tempo - à semelhança do que ocorre na Física-, representava apenas uma variável de importância reduzida. Uma espécie de trilho sobre o qual deslizavam os vagões dos fatos e das leis. Consumava-se, quase que completamente, a expulsão da História.do domínio do conhecimento econômico “legítimo”.

A Economia, então, passa a ostentar a pretensão de ser “exata”. E, se ainda não o era no século XIX, a culpa só poderia ser do sistema de contabilização pouco desenvolvido. Nas palavras de Jevons (1971, p. 33): “Não sei quando teremos um perfeito sistema de estatísticas, mas sua falta é o único obstáculo insuperável no caminho de transformar a Economia em uma ciência exata”. Com a ascensão do neoclassicismo, consuma-se a identidade metodológica da Economia com a Física.

Em síntese, espelhando-se na concepção “positiva” de ciência, a Economia acabou incorporando algumas características “físicas” segundo as quais:

o tempo é uma variável meramente lógica; e

o espaço histórico é homogêneo em função do tempo.

A decorrência dessas implicações metodológicas é que o futuro poderia ser previsto se todos os dados relevantes fossem conhecidos. Não existe espaço na teoria para a incerteza (no sentido keynesiano do termo).6 6 O sentido claro do termo “incerteza”, tal como o emprega Keynes, fica extremamente claro após a leitura do artigo “The General Theory of Employment”, do próprio Keynes, publicado em 1937 pelo periódico americano The Quarterly Journal of Economics, cf., por exemplo, pp. 213-5. Ao contrário, a natureza do incerto na Economia tradicional é meramente probabilística. E - por mais incrível que possa parecer - a confusão da incerteza keynesiana com a noção probabilística do futuro tem raízes tão profundas que nos remete ao Political Arithmetick de Sir William Petty (1690Petty, William. (1690). Obras Econômicas. São Paulo, Abril Cultural , 1983. , p. 111):

“( ... ) Tratei de exprimir-me em termos de número, peso e medida; de usar argumentos baseados nos sentidos e de considerar somente as causas que têm fundamento visível na natureza, deixando à consideração de outros as que dependem das mentes, das opiniões, dos apetites e das paixões mutáveis de determinados homens. Declaro-me realmente incapaz de discorrer de modo satisfatório sobre assuntos ( ... ) como predizer o resultado de um jogo de dados ou jogar bem tênis, bilhar ou boliche (sem prática prolongada), recorrendo às concepções extremamente elaboradas que têm sido escritas sobre projéteis e mísseis ou sobre ângulos de incidência e reflexão.”7 7 Ao afirmar que se considera incapaz de descrever a Economia probabilisticamente, Petty aceita implicitamente a ideia de que isto seria possível. Levando-se em conta que Petty era companheiro e amigo de Newton - ambos frequentavam a Royal Society-, é mesmo provável que a ideia de descrever a Economia como os jogos de azar tivesse sido levantada em conversas. A amizade existente entre Petty e Newton pode ser inferida de Hayek, F. A. “Conferência Nobel” (1974), Humanidade, vol. 5, n, 2, p. 50.

À luz do que foi exposto, parece claro que os ingredientes metodológicos que tornaram a Economia popular (e contribuíram para sua “glória”) já estavam pr­sentes na meta-ideologia da disciplina em um estágio tão remoto quanto o final do século XVII. O século da “revolução” marginalista viria apenas explicitar o implícito e ordenar a filosofia liberal de acordo com argumentos algébricos mais rigorosos.

A NUDEZ DO IMPERADOR

Conforme sugerido na seção anterior, a metodologia newtoniana-leibniziana, refinada pelo desenvolvimento de um poderoso instrumental matemático, conquistou o espaço das ideias econômicas. Herdeiros desta Weltanschauung, os economistas neoclássicos desfrutariam uma hegemonia quase absoluta no mainstream da história do pensamento. Uma hegemonia que se consolida a partir da década de 1870 e é sustentada sem maiores questionamentos há mais de setenta anos.8 8 O que não quer dizer que não houve dissidentes como Veblen ou mesmo “escolas” inteiras de pensamento que se posicionaram de maneira diametralmente oposta, como os historicistas alemães.

Importa aqui demonstrar que, a partir da década de 1930, teóricos formados dentro da própria escola neoclássica começaram a suspeitar que algo não estava funcionando corretamente; que algo cheirava um tanto mal. Segundo Joan Robinson (1953Robinson, Joan. (1953). “A Lecture Delivered at Oxford by a Cambridge Economist”, in Collected Papers, vol. 4, Grã-Bretanha, Basil Blackwell, 1980. , p. 258), quem primeiro percebeu (intuitivamente) as falhas da concepção neoclássica da economia foi o próprio Keynes: “ele sabia que tinha algo a ver com o tempo, mas não conseguia prender a respiração o bastante para descobrir exatamente o quê”.

Pois bem, detectado o problema, abriu-se fogo contra a construção neoclássica: ao criar seus sistemas mecânicos de análise da atividade econômica, esta “escola” negligenciou a passagem real do tempo; indiferente ao fato de que, como aponta Hicks (1975Hicks, J. (1975). “Some Questions of Time in Economics”, in Evolution, Welfare and Time in Economics: Essays in honour to Georgescu-Roegen. , p. 135), “passado e futuro não são iguais”. Todavia, a crítica não se esgota nesse ponto. Apercebendo-se da importância do filão que tinha atingido, Joan Robinson desfecha uma carga fulminante:·

  • 1) não é possível analisar com gráficos espaciais algo que ocorre no tempo (1953, pp. 254 e segs.);

  • 2) na análise do processo econômico, a história não pode ser excluída (1974, pp. 48-9);

  • 3) não se pode mensurar o imensurável (1980, p. 115); e

  • 4) como consequência do que foi dito, o equilíbrio deixa de ser uma categoria importante de análise, convertendo-se mesmo em um conceito inútil.

O que fazer, então, de um sistema teórico que se apoiava na ideia de equilíbrio mecânico e em uma noção matemática de tempo? Abandoná-lo? Determinar suas limitações e aplicá-lo com restrições ao cotidiano? Tentar reconstruí-lo? Ou simplesmente ignorar as críticas? Sem sombra de dúvidas, o imperador estava nu, exatamente como na fábula chinesa! Mas, então? O que fazer?

Na realidade, os economistas caminharam nas quatro direções sugeridas acima, sem que algum consenso mais expressivo fosse atingido. Mas não pretendo discutir os motivos “ocultos” dessas discordâncias. As duas seções restantes investigarão superficialmente, por um lado, as tentativas de enquadrar as teorias econômicas mais recentes em um (outro) “paradigma” físico, diferente do newtoniano; e, por outro, procurar sugerir alguns motivos pelos quais (creio) serem essas tentativas infundadas.

O PARADIGMA HEISENBERGIANO: A METODOLOGIA DA FÍSICA REVISITADA

Efetivamente, a resposta ao questionamento dos conceitos de “tempo” e “equilíbrio” em Economia Política forçou uma reestruturação da disciplina, seja na frente teórica, seja na frente metodológica. No campo da teoria, impôs-se (para certas “correntes”) a necessidade de uma interpretação dos fenômenos econômicos que se desenrolasse na história. Esses esforços, não obstante, não vêm obtendo grande sucesso junto aos meios acadêmicos mais ortodoxos, por não caracterizarem um corpo teórico “fechado”, coeso e coerente, que funcione com a elegância mecânica dos sistemas neoclássicos. Faça-se justiça, esse objetivo não tem nem mesmo sido perseguido. Joan Robinson (1980Robinson, Joan (1980) “Thinking about Thinking”, in Collected Papers, Grã-Bretanha, Basil Blackwell , 1980. , p. 119), por exemplo - consciência ideológica de boa parte dos economistas heterodoxos - pensa que “qualquer outra ‘teoria completa’ nada mais seria senão outra caixa de truques”.

Porém, mesmo sem caracterizar uma teoria “completa”, ao criticar o hard core metodológico da teoria neoclássica, alguns economistas heterodoxos firmaram as bases de um novo programa de pesquisas. A epistemologia newtoniana-leibniziana, ao que tudo indicava, teria seus dias contados.

Expondo de outra maneira, para um certo grupo de economistas, tornou-se imperativa a formulação de uma teoria econômica que:

  • 1) se localizasse no tempo;

  • 2) privilegiasse as relações humanas;

  • 3) fugisse ao mecanicismo obcecado; e

  • 4) acima de tudo se dedicasse à resolução de problemas reais enfrentados no dia-a-dia, e não a discussões de maximização e minimização em um mundo hedonístico perto do qual nosso mundo não é mais do que uma pálida sombra platônica.

Em suma, a “nova” teoria econômica deveria respeitar o fato de que são seres humanos que habitam o mundo, e não “neoclássicos”.9 9 Não discutirei aqui as principais etapas teóricas que conduziram a esta “nova” Teoria Econômica (como, por exemplo, as teorizações sobre a concorrência imperfeita). Dedicar-me-ei apenas a fazer uma leitura da visão epistemológica de Weisskopf e Wisman. Cabe observar que, na maior parte das vezes, o projeto de se colocar a Teoria Econômica na História foi abortado. As exigências “técnicas” da linguagem dos economistas apenas conseguiram transformar tendências de equilíbrio estável em equilíbrio indeterminado. No que restaria indagar se as deficiências com que a Economia vem se defrontando são apenas o conjunto de deficiências dos economistas ou se são algo muito mais profundo derivado da própria inadequação de nossos “símbolos” em traduzir uma “realidade”. Mas esse último é muito mais um problema da Filosofia da Linguagem (no curto prazo) de que da própria Economia. No front teórico, foram essas as exigências.

No front metodológico, homens como Weisskopf e Wisman (1979Wisman, Jon D. 1979. “Toward a Humanist Reconstruction of Economic Science”, Journal of Economic Issues , vol. XIII, n. 1, mar. ) se empenharam em explicar a “revolução metodológica” inconscientemente praticada por aqueles que romperam com a ortodoxia walrasiana ou marshalliana. Entretanto, para a infelicidade dos que sonha(va)m com uma epistemologia forjada a partir da própria ciência econômica, essa “explicação” foi formulada, mais uma vez, com base nas ciências físicas: fomos obrigados a assistir ainda outra invasão da epistemologia da Física no domínio do método econômico.

As ideias de Weisskopf e Wisman amparam-se em dois princípios da microfisica experimental de Werner Heisenberg, a citar:

  • 1) o princípio da correspondência (PC); e

  • 2) o princípio da incerteza (PI).

De acordo com Weisskopf (1979Weisskopf, Walter. (1979). “The Method is the Ideology: From a Newtonian to a Heisenbergian Paradigm in Economics”, Journal of Economic Issues , vol. XIII, n. 4, dez. , p. 871), o princípio heisenbergiano da incerteza indica que “não podemos observar o curso da natureza sem alterá-lo”. Já o PC demonstra que, por exemplo, ‘’um objeto aparece como uma onda ou como uma partícula dependendo do método de investigação” (Brennan, 1980Brennan, Timothy J. (1980). “Toward a Humanist Reconstruction of Economic Science: Comment”, Journal of Economic Issues, vol. XIV, n. 4, dez. , p. 1020). Ou seja, se transpuséssemos esse princípio para as ciências sociais, teríamos como resultado analógico o postulado de que a ideologia impõe os resultados da pesquisa.

Weisskopf usa como exemplo para diferenciar as abordagens metodológicas newtoniana e heisenbergiana a atitude microeconômica frente ao funcionamento dos mercados. Enquanto os modelos de concorrência perfeita demonstram sintomas da patologia newtoniana, os de concorrência imperfeita mais se aproximam do universo heisenbergiano, por se preocuparem com organizações que têm poder de influenciar o comportamento mercadológico (e.g., através das quantidades produzidas etc.).

As falhas dos PI e PC enquanto racionalização epistemológica das atividades teóricas da economia são bastante evidentes. Em comentário ao artigo de Wisman, Timothy Brennan (1980Brennan, Timothy J. (1980). “Toward a Humanist Reconstruction of Economic Science: Comment”, Journal of Economic Issues, vol. XIV, n. 4, dez. ) aponta três grandes deficiências da aplicação do receituário heisenbergiano ao pensamento econômico. São elas:

  • 1) o princípio da incerteza é sempre válido para qualquer observador, desde que ele se posicione de maneira idêntica em relação ao experimento: qualquer observador, em dada posição, obteria os mesmos resultados;10 10 E claro que, no mundo subjetivo da Economia, esta ideia não tem nem fundamento nem pode ser aplicada senão em condições especiais de engenharia econômica, quer dizer, em modelos de engenharia econômica.

  • 2) não está claro para a própria Física o princípio de que a observação afeta o fato observado; e

  • 3) o PC - na formulação original de Heisenberg - nada diz a respeito da dependência dos resultados nas crenças do pesquisador.

  • Seria possível acrescentar mais um item à lista de Brennan, vale dizer:

  • 4) o princípio heisenbergiano da incerteza nos informa muito pouco acerca do caráter da incerteza em Economia Política.

Isto porque, ao trazer incorporado o idem similiter se habens non est natum facere nisi idem11 11 “A mesma causa nas mesmas condições só pode produzir o mesmo efeito.”. da lógica aristotélica, a concepção humanística de um tempo histórico é mais uma vez sacrificada no altar de uma teoria mecânica do futuro. Em síntese, Weisskopf, Wisman e até Brennan viraram rápido demais uma página importante da história do pensamento econômico, página essa que é ingrediente fundamental para a compreensão do significado do tempo e da incerteza em Teoria Econômica. Uma página que foi escrita, entre outros, por G. L. S. Shackle há mais de três décadas.

A NUDEZ REVISITADA E SUAS CONCLUSÕES

Para Shackle, é essencial que se compreenda que a Economia Política é um estudo sobre expectativa de acontecimento em um período de tempo histórico. Assim, o tempo é considerado como um fluxo que se move na direção ditada pela percepção individual do momento; fluxo esse composto de diversos pontos ou partículas lógica ou filosoficamente inseparáveis: não há fronteiras entre um momento e outro. O que é importante compreender na concepção de Shackle é que o tempo não é apenas uma variável cronológica, mas uma função da percepção humana da realidade.

Ora, a percepção se transforma em fato na medida em que nela se acredita. Assim sendo, o universo das decisões econômicas se constrói sobre crenças do que FOI, do que PARECE ESTAR SENDO e do que PROVAVELMENTE SERÁ. Contudo, esses três estados não constituem realidades objetivas, mas avaliações coloidais baseadas em esperanças, ideias, cálculos (corretos ou não), etc. É esse caráter coloidal da avaliação do fato econômico que torna o futuro incerto e o presente indefinível: a Economia Política passa então a ser o estudo das crenças sobre o estado real do “econômico”; o estudo das crenças sobre as crenças, e assim por diante.

Deste modo, o estado de percepção individual sobre o qual se articulam as decisões econômicas pode ser representado simbolicamente da seguinte forma:12 12 O conceito de “realidade”, e claro, e individual. Para fins de nosso exemplo, nao e incompativel se imaginar como “realidade” a representacao de um “mercado perfeito” à la Arrow-Debreu.

Depreende-se do que está sendo exposto que as decisões econômicas são tomadas com base em fatos conhecidos, desconhecidos, corretos, verossímeis ou falsos. Cada decisão se justifica pelo fato de ter sido tomada.

Dentro desse contexto de expectativas cambiantes, o resultado não é apenas a incerteza; é a própria impossibilidade de se prever rigorosamente o futuro. Ratificando, incerteza não é a probabilidade de um evento ocorrer no futuro. É a própria ignorância do futuro; ou, pelo menos, da maior parte deste futuro: aquela que não depende de nossas decisões.

Se forem aceitas essas premissas, a conclusão a que chegaremos é apenas uma: não existe, entre os métodos físicos conhecidos, nenhum que corresponda às características epistêmicas da Economia Política. Ou, expondo de um modo mais radical, uma abordagem dialética (mais imprecisa)13 13 A terminologia é rigorosamente a mesma que a empregada por Georgescu-Roegen em “The methods in economic science”, JEI, jun. 1979. Assim sendo, o método dialético é mais impreciso porque admite uma penumbra em volta de seus conceitos, fato que é excluído pela lógica simbólica aritmomórfica. dos eventos econômicos é tão válida quanto um tratamento aritmomórfico mais rigoroso, sendo ambos os métodos forçados a renunciar qualquer pretensão de conhecer a “Verdade”.

Ora, se não conhecemos a “Verdade”, e nossos instrumentos são por demais precários para fazer previsões seguras, para que serve a Teoria Econômica? E mais: para que serve uma Teoria Econômica “rigorosa” (como a neoclássica), se os resultados “na prática” são sempre diferentes? E ainda - desdobrando as indagações acima - por que faz tanto sucesso um sistema de pensamento mecânico que, ao excluir o tempo e a incerteza de suas preocupações, exclui, como consequência, a realidade percebida pelos indivíduos?

Ora, ao excluir o tempo e a incerteza da análise, os economistas acabam expulsando a própria História da Teoria Econômica. O conceito da História transforma-se, assim como suas próprias funções. Ao invés de concebermos a História como uma disciplina dotada de uma racionalidade própria, passamos a confundi-la com “evidência empírica”; amontoados de dados que, em si, nada significam, mas que desempenham um papel fundamental na comprovação ou refutação de uma dada teoria. Na melhor das hipóteses, “História” vira “série de dados”.

Pois bem, essa visão extremada é, na realidade, otimista. Isto porque, em virtude da atual descrença em relação aos métodos estatísticos e econométricos (descrença essa cujos fundamentos não me cabe avaliar), aquilo que deveria funcionar como contrapartida empírica para a análise teórica perde até essa função! Temos então a construção de teorias em que o mundo observável não passa de uma pálida inspiração platônica. A História, já então transmutada em “evidência empírica” fica completamente excluída do mundo das teorizações “puras”.

Em poucas palavras, vimos que, de um modo geral, a hipertrofia do tecido lógico acabou provocando a atrofia das teorizações de caráter histórico. É óbvio que tal processo não se desenrolou intencionalmente: simplesmente foi acontecendo ... Os economistas foram, pouco a pouco, se transformando em físicos na ânsia de emprestar maior rigor a seus resultados e na esperança de produzir “leis” que viessem coroar o esforço de tantas gerações. Isto, como já disse, foi natural; uma decorrência das “exigências científicas” de nossa época, poder-se-ia dizer...

Entretanto, o rigor desse grau de “exigências” tem aumentado tanto que é quase impossível encontrar um artigo em publicação recente que não se sinta obrigado a discutir uma equação, por mais elementar que esta seja. Afirmar isto é quase a mesma coisa que dizer que as palavras, em si, não são “técnicas” o suficiente para traduzir o trabalho de um “verdadeiro” economista. Ora, é preciso que nos livremos definitivamente desta secular propensão ao preconceito: um saber equacionado é tão legítimo quanto um saber historizante!

E isto porque nenhum dos métodos conhecidos é perfeito: se a História só ‘’descreve a norma’’,14 14 Afirmar que a História só “descreve a norma” é possivelmente a pior maneira de defini-la, o que equivale a uma definição extremamente empobrecedora. Pode-se igualmente dizer que qualquer interpretação histórica traz embutida em si um “modelo”, que, em um paralelo com a língua, é a mesma coisa que dizer que qualquer frase inteligível obedece a uma norma gramatical. Nesse caso: tudo e teoria pura. Não obstante, tudo é modelável ex-post, a Teoria Pura não capta o tempo e a incerteza, sobretudo se considerarmos objetivo da Economia ‘’compreender’’ a complexidade dos fatos que rotulamos “econômicos”. Se nosso objetivo é a previsão, então nossas chances de acertar ou de errar são muito semelhantes, independentemente de usarmos tal ou qual método (consistente).

E se todos os métodos (consistentes) são iguais perante as previsões, poderiamos nos indagar sobre as possíveis causas da teimosa persistência da maior parte dos economistas em considerar o método neoclássico como o único “cientificamente legítimo”. E, na falta de melhor resposta, poderíamos acolher a sugestão de Jorge Luiz Borges segundo a qual:

“Sólo perduran en el tiempo las cosas que no fueron del tiempo”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • Wisman, Jon D. 1979. “Toward a Humanist Reconstruction of Economic Science”, Journal of Economic Issues , vol. XIII, n. 1, mar.
  • 1
    Popper deixa bem claro que a economia é a única das ditas “ciências sociais” que obteve êxito em tornar-se “positiva”. Cf. Popper, Karl. A Miséria do Historicismo, São Paulo, Cultrix/EDUSP, 1980.
  • 2
    Cf. Koyrê, A. Op. cit.
  • 3
    A implantação do método da Física na “ciência econômica” não foi, contudo, nem homogênea nem instantânea. Pretty e Hume, entre os ingleses, pareciam ter grande admiração pela definição de “ciência” nesses moldes. O próprio Adam Smith dedicou parte de seu tempo ao estudo da Astronomia. Porém, é só no século XIX que começam a se tornar mais claros os sintomas indeléveis da contaminação da Economia Política pelo método da Física. Nas palavras de Jevons (1871Jevons, Stanley. (1871). A Teoria da Economia Política. São Paulo, Abril Cultural, 1983. , p. 4), “a Teoria da Economia ( ... ) sugere uma estreita analogia com a ciência da Mecânica Estática, e verifica-se que as leis de troca se assemelham a leis do equilíbrio de uma alavanca( ... )” Este exemplo de comparação da Física com a Economia é apenas um entre vários outros encontrados tanto em Jevons quanto na maioria dos autores neoclássicos mais importantes.
  • 4
    A contrapartida dessa concepção é a convicção da posição “neutra” do observador com relação aos fatos observados, desde que obedecidas as normas de conduta científica. Cf. Wisrnan, J. D. “Toward a Humanistic Reconstruction of Economic Science”, JEI, mar. 1979.
  • 5
    Nem Weisskopf nem qualquer outro economista que eu conheça consegue perceber esta sutileza. Ao que tudo indica, todos até agora têm atribuído a Newton a “honra” de ter criado tanto o método quanto a ideologia da Economia derivada desse método (cf. Weisskopf, op. cit.). Em uma analogia, a meu ver válida, é possível estabelecer que Leibniz está para Newton assim como Spencer está para Darwin. Ou seja, foi Spencer que implementou a forma dinâmica do “evolucionismo” que hoje conhecemos e atribuímos a Darwin. O mesmo ocorre na Economia com relação à ideologia leibniziana e a metodologia newtoniana.
  • 6
    O sentido claro do termo “incerteza”, tal como o emprega Keynes, fica extremamente claro após a leitura do artigo “The General Theory of Employment”, do próprio Keynes, publicado em 1937 pelo periódico americano The Quarterly Journal of Economics, cf., por exemplo, pp. 213-5.
  • 7
    Ao afirmar que se considera incapaz de descrever a Economia probabilisticamente, Petty aceita implicitamente a ideia de que isto seria possível. Levando-se em conta que Petty era companheiro e amigo de Newton - ambos frequentavam a Royal Society-, é mesmo provável que a ideia de descrever a Economia como os jogos de azar tivesse sido levantada em conversas. A amizade existente entre Petty e Newton pode ser inferida de Hayek, F. A. “Conferência Nobel” (1974), Humanidade, vol. 5, n, 2, p. 50.
  • 8
    O que não quer dizer que não houve dissidentes como Veblen ou mesmo “escolas” inteiras de pensamento que se posicionaram de maneira diametralmente oposta, como os historicistas alemães.
  • 9
    Não discutirei aqui as principais etapas teóricas que conduziram a esta “nova” Teoria Econômica (como, por exemplo, as teorizações sobre a concorrência imperfeita). Dedicar-me-ei apenas a fazer uma leitura da visão epistemológica de Weisskopf e Wisman. Cabe observar que, na maior parte das vezes, o projeto de se colocar a Teoria Econômica na História foi abortado. As exigências “técnicas” da linguagem dos economistas apenas conseguiram transformar tendências de equilíbrio estável em equilíbrio indeterminado. No que restaria indagar se as deficiências com que a Economia vem se defrontando são apenas o conjunto de deficiências dos economistas ou se são algo muito mais profundo derivado da própria inadequação de nossos “símbolos” em traduzir uma “realidade”. Mas esse último é muito mais um problema da Filosofia da Linguagem (no curto prazo) de que da própria Economia.
  • 10
    E claro que, no mundo subjetivo da Economia, esta ideia não tem nem fundamento nem pode ser aplicada senão em condições especiais de engenharia econômica, quer dizer, em modelos de engenharia econômica.
  • 11
    “A mesma causa nas mesmas condições só pode produzir o mesmo efeito.”.
  • 12
    O conceito de “realidade”, e claro, e individual. Para fins de nosso exemplo, nao e incompativel se imaginar como “realidade” a representacao de um “mercado perfeito” à la Arrow-Debreu.
  • 13
    A terminologia é rigorosamente a mesma que a empregada por Georgescu-Roegen em “The methods in economic science”, JEI, jun. 1979. Assim sendo, o método dialético é mais impreciso porque admite uma penumbra em volta de seus conceitos, fato que é excluído pela lógica simbólica aritmomórfica.
  • 14
    Afirmar que a História só “descreve a norma” é possivelmente a pior maneira de defini-la, o que equivale a uma definição extremamente empobrecedora. Pode-se igualmente dizer que qualquer interpretação histórica traz embutida em si um “modelo”, que, em um paralelo com a língua, é a mesma coisa que dizer que qualquer frase inteligível obedece a uma norma gramatical. Nesse caso: tudo e teoria pura. Não obstante, tudo é modelável ex-post,
  • *
    “De docta ignorantia” faz alusão ao livro de igual título de Nicolau de Cusa (1401-1464), que defende a tese da impossibilidade do conhecimento absoluto. Assim, rejeita-se a possibilidade de o homem possuir conhecimento total e preciso do universo que o cerca, podendo apenas almejar o saber parcial e conjectural. Cf. Koyré, A. Do Mundo Fechado ao Universo Infinito, Rio de Janeiro, Forense; São Paulo, EDUSP, 1979.
  • 16
    JEL Classification: B41; B10.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 1987
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