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Sobre a endogenia da oferta de moeda: réplica ao professor Nogueira da Costa

On the endogeneity of Money supply: replica to Professor Nogueira da Costa

RESUMO

Este artigo contém um exame crítico do conceito de dinheiro endógeno proposto por Kaldor e Moore e defendido por Nogueira da Costa, sustentando a abordagem “horizontalista” para a determinação da oferta de dinheiro. Uma abordagem alternativa é descrita, baseada nas visões de Keynes sobre dinheiro, enfatizando a natureza do dinheiro como um ativo em uma economia monetária de produção e reconhecendo alguma iniciativa em questões monetárias por parte do banco central.

PALAVRAS-CHAVE:
Oferta de moeda; pós-keynesianismo; história do pensamento econômico

ABSTRACT

This paper contains a critical examination of the concept of endogenous money proposed by Kaldor and Moore, and defended by Nogueira da Costa, sustaining the “horizontalist” approach to the determination of money supply. An alternative approach is outlined, built upon Keynes’ views on money, emphasizing the nature of money as an asset in a monetary production economy and acknowledging some initiative on monetary matters on the part of the central bank.

KEYWORDS:
Money supply; post-Keynesianism; history of economic thought

1. INTRODUÇÃO

Para vários autores que trabalham na ainda relativamente recente tradição pós-keynesiana, o argumento essencial dessa escola no que tange à teoria monetária é a proposição de que a oferta é endógena. A teoria monetária pós-keynesiana, na visão dessa corrente, contraporia aos monetaristas a proposição de que a oferta de moeda é “horizontal” no espaço juros/moeda, implicando que, fixada a taxa de juros, as autoridades monetárias se veem obrigadas a ofertar a quantidade de moeda que o público desejar. Essa visão “horizontalista” é assim contraposta ao “verticalismo” monetarista.

Kaldor e Moore, líderes dessa escola, admitem que tal visão contrasta com as ideias de Keynes, propondo ambos a necessidade de “transcendê-lo” nesse particular. Kaldor é taxativo, acusando Keynes de não conseguir se livrar inteiramente da pele quantitativista que o acompanhava desde sua juventude marshalliana. Sua teoria monetária seria nada mais que um anacronismo a ser expurgado da revolução keynesiana. Agora, com o trabalho do professor Nogueira da Costa, essa visão recebe uma adesão brasileira.

2. APRECIAÇÃO CRÍTICA DA VISÃO HORIZONTALISTA

2.1 A posição horizontalista

Segundo Basil Moore,

“Quando as unidades econômicas, individualmente e no agregado, desejarem aumentar seus saldos monetários, sempre poderão fazê-lo, a algum preço. O preço é estabelecido pelo · banco central como o fornecedor último de moeda fiat. Uma oferta de moeda-crédito perfeitamente elástica no curto prazo é uma precondição necessária para a perpetuação da liquidez do sistema. Dado que a função oferta de moeda implícita é horizontal no espaço juro-moeda, essa visão será chamada horizontalista” (Moore, 1988MOORE, B. (1988). Horizontalists and Verticalists. The Macroeconomics of Credit Money. Cambridge: Cambridge University Press., p. xi).1 1 O palavreado dessa corrente nem sempre é tão inequívoco. Algumas vezes, mesmo autores influentes como Moore parecem reduzir o alcance da própria visão. No mesmo livro do qual a citação acima foi extraída, encontramos que “o banco central, em seu papel de provedor último de liquidez, joga o papel crucial de controle da quantidade e do preço do fluxo líquido de fundos para o mercado de atacado” (Moore, 1988: 59, grifos meus), sugerindo que, muito embora a visão horizontalista dependa de uma interação peculiar entre público, bancos e banco central, é sobre este último que recai a responsabilidade pela forma específica da função oferta de moeda. A visão de Kaldor foi largamente adotada no relatório Radcliffe. V. Rowan (1973).

O ajuste automático da oferta de moeda à demanda repousa em dois supostos independentes: (i) os bancos privados provêm os empréstimos que são demandados a custos aproximadamente constantes; (ii) o banco central sempre provê as reservas necessárias para ajustar a posição de reservas dos bancos que concedem o crédito.

Assume-se que bancos não neguem pedidos de crédito; seu problema é a determinação da taxa de juros a cobrar, usualmente resolvido através de algum modelo de mark-up sobre a taxa cobrada pelo banco central pelas reservas necessárias.

Por outro lado, essa corrente afirma que ó banco central não pode controlar as reservas dos bancos membros e, por isso, tem de acomodar as necessidades de reservas dos bancos comerciais depois que estes tenham criado depósitos na concessão de empréstimos. Supõe-se que o banco central escolhe o nível da taxa de juros de acordo com alguma meta (por exemplo, taxa desejada de crescimento, nível de reservas internacionais etc.) e oferece quaisquer quantidades de reservas que sejam necessárias pera sustentar aquela taxa.

Embora Kaldor e Moore admitam que o banco central possa alterar a taxa de juros básica sempre que considere adequado, é necessário, para que suas proposições tenham algum significado empírico, que essas mudanças sejam, em si mesmas, independentes de flutuações da demanda por moeda. Em outras palavras, para dados objetivos definidos externamente ao mercado monetário, a posição horizontalista exige que as autoridades supram as demandas que surgirem sem alterar a própria taxa, pois do contrário teríamos uma curva de oferta positivamente inclinada, por meio da qual o banco central teria controle pelo menos indireto sobre o nível das reservas e o “horizontalismo” seria indistinguível de um verticalismo com deslocamentos da curva de oferta (Moore, 1981/2MOORE, B. (1981/2). “The endogenous money stock: a reply”. Journal of Post Keynesian Economics, inverno, 1981/2.: 307).

A questão não se resume apenas em determinar se as autoridades monetárias podem fixar a quantidade de reservas ou as taxas de juros. Se puderem decidir livremente taxas diferenciadas para cada nível de reservas oferecido, conceitualmente nada separará essa visão de qualquer outra abordagem que postule uma curva de oferta de reservas positivamente inclinada. A polêmica seria puramente instrumental: qual seria a melhor política, restringir diretamente a oferta a uma dada taxa de juros ou suprir reservas a uma taxa de juros tão elevada (arbitrariamente elevada) que racione a disponibilidade de reservas. A tese Kaldor/Moore só tem sentido, substantivamente, se postular que a taxa de juros é determinada de modo exógeno ao mercado monetário (por exemplo, para manter o balanço de pagamentos equilibrado ou o pleno emprego) e, àquelas taxas, reservas são oferecidas livremente. O que pretendem Moore e Kaldor é que haja alguma característica fundamental em uma economia moderna que coloque o controle sobre reservas além das possibilidades da autoridade monetária.2 2 Note-se que uma das citações mais “verticalistas” de Keynes, oferecida no Treatise on Money, é a de que “a primeira necessidade de um banco central, com a responsabilidade de gerir o sistema monetário como um todo, é estar seguro de que tenha um controle incontrastável sobre o volume total de moeda bancária criada pelos bancos membros” (Keynes, 1971: 201). Nesse capítulo (32), Keynes discute então os meios pelos quais esse controle é implementado. O método “ideal” (p. 206) é o open-market, que “permite ao Banco da Inglaterra manter controle absoluto sobre a criação de crédito pelos bancos membros” (pp. 206-7). O open-market, como se sabe, opera exatamente através da determinação de taxas de juros, às quais os agentes, inclusive bancos, fixem os volumes desejados de moeda e outros ativos em seus portifólios. Retornaremos adiante a esta questão. Nessa visão, o banco central não tem escolha senão a acomodação. Não é uma questão instrumental, mas substantiva.

A proposição de que o comportamento acomodatício do banco central é um aspecto essencial de uma economia moderna se apoia em dois argumentos centrais. O primeiro refere-se ao modo como, na prática, a oferta de moeda seria aumentada, em que a criação de moeda (depósitos) precede no tempo a criação de reservas. Em segundo lugar, e mais importante, afirma-se que, como emprestador de última instância, o banco central não tem escolha senão acomodar as necessidades de reservas dos bancos, sob pena de ameaçar a liquidez do sistema.

Com relação à criação de moeda, argumenta-se que ela se dá quando firmas ou, com menor importância, consumidores solicitam crédito aos bancos para realizar suas compras de mercadorias (inclusive força de trabalho). Os bancos concedem os empréstimos solicitados, abrindo para isso depósitos em nome dos tomadores. Nesse ponto, moeda está sendo criada. Em algum momento, necessariamente posterior, o volume de depósitos é apurado para o cálculo das reservas correspondentes. Se surgirem deficiências, não há alternativa ao banco senão pedir (e ao banco central senão conceder) os recursos necessários para que as reservas exigidas sejam alcançadas (Moore, 1988MOORE, B. (1988). Horizontalists and Verticalists. The Macroeconomics of Credit Money. Cambridge: Cambridge University Press.: 152-3).

O segundo argumento é mais importante. Propõe-se que o banco central se define por sua função de emprestador de última instância, isto é, garantidor da liquidez das instituições financeiras, particularmente os bancos, e das obrigações emitidas por elas. A acumulação de capital depende, como Keynes e Kaldor afirmaram, da disposição de algum agente ou instituição de se tornar ilíquido, isto é, de aceitar ativos de menor liquidez em troca da moeda que oferecerem ao investidor em ativos reais como financiamento. As instituições financeiras, inclusive bancos, se especializam exatamente nessa troca ou intermediação de meios líquidos por ilíquidos. Os bancos, assim, tendem a ter em seu balanço ativos no geral menos líquidos que seu passivo. Ao banco central cabe a função de assegurar a sobrevivência dessas instituições quando pressionadas por seus próprios credores, garantindo que seus ativos ilíquidos possam se transformar em líquidos em caso de necessidade. Assim, se um banco se encontrar em uma conjuntura de iliquidez (por exemplo, com reservas deficientes), cabe ao banco central fornecer a liquidez necessária para aliviá-lo da necessidade de liquidação de seus ativos ilíquidos (v. Kaldor, 1982KALDOR, N. (1982). The Scourge of Monetarism. Oxford: Oxford University Press.; Moore, 1979MOORE, B. (1979). “Monetary Factors”. In: A. Eichner, org. A Guide to Post Keynesian Economics. White Plans: Sharpe., 1981/2MOORE, B. (1981/2). “The endogenous money stock: a reply”. Journal of Post Keynesian Economics, inverno, 1981/2., 1983MOORE, B. (1983). “Unpacking the post keynesian black box: bank lending and the money supply”. Journal of Post Keynesian Economics , verão, 1983.).

2.2 Críticas à visão horizontalista

O primeiro argumento é obviamente frágil. A criação de depósitos em um banco é contínua. Em qualquer instante novos empréstimos estão sendo feitos e depósitos estão sendo criados. Mesmo que o banco central não possa se recusar a suprir reservas, pode fazê-lo em condições punitivas tais que seja melhor ao banco simplesmente reduzir a escala em que concede novos empréstimos ou renova velhos compromissos. Se empréstimos são pagos, depósitos são destruídos e as reservas requeridas diminuídas. A validade do argumento fica assim confinada ao curtíssimo prazo (Moore, 1988MOORE, B. (1988). Horizontalists and Verticalists. The Macroeconomics of Credit Money. Cambridge: Cambridge University Press.; Goodhart, 1989GOODHART, C. (1989). Money, Information and Uncertainty. Londres: MacMillan .).

O segundo argumento, sobre a função de emprestador de última instância, também parece largamente exagerado no modelo horizontalista. Não é razoável supor que qualquer aperto de liquidez possa ser visto como ameaça à estabilidade do sistema. Mesmo que não haja meios de avaliar a priori quais situações podem evoluir para um colapso das instituições bancárias, a experiência histórica mostra haver uma sensível elasticidade do sistema bancário que permite a bancos e intermediários financeiros se acomodar a graus diferentes de pressão de liquidez da parte do banco central. Note-se que, se este não pode intervir sobre as reservas disponíveis, também não pode fazê-lo sobre as taxas de juros. Como se sabe, as variações das taxas de juros são ameaças muito mais importantes para as instituições bancárias e financeiras que a simples escassez de recursos líquidos.3 3 Sobre os efeitos das mudanças das taxas de juros sobre instituições financeiras que são, por definição, especulativas no sentido de Minsky, v. Minsky (1986). Análise mais técnica, descompromissada teoricamente, sobre os efeitos de variação de taxas de juros sobre a solvência e a liquidez de bancos encontra-se em Kaufmann (1985). A aceitação da tese de que ao banco central é vedada qualquer pressão sobre o “equilíbrio” daquelas instituições implica necessariamente considerar também que se abra mão de mudanças nas taxas de juros. Na verdade, o próprio argumento que sustenta a ideia de reservas livremente disponíveis é a necessidade de evitar flutuações da taxa de juros. Em suma, no modelo horizontalista desaparece a política monetária, e não apenas a política dita monetarista. Kaldor, nesse sentido, é certamente mais coerente que Moore, pois, ao contrário do último, sempre propôs a fundamental irrelevância de fatores monetários para a dinâmica de economias modernas.

Não é clara a origem da ideia, muito repetida nos trabalhos de Kaldor, Moore e seus seguidores, inclusive Costa, de que a endogeneidade ou exogenidade da oferta de moeda, por si, representem um critério de ortodoxia ou heterodoxia em matéria monetária ou macroeconômica em geral. A teoria quantitativa é uma abordagem da demanda por moeda, construída a partir de uma determinada concepção dos papéis exercidos por ela em uma economia de mercado. À teoria quantitativa, Keynes e pós-keynesianos opõem a teoria da preferência pela liquidez que, ao reconhecer outros papéis para a moeda, concebem demandas por ela adicionais à mera necessidade de realização de transações com bens e serviços. (Carvalho, 1992CARVALHO, F. C. (1992). Mr. Keynes and the Post-keynesians. Cheltenham: Edward Elgar.; 1992bCARVALHO, F. C. (1992b). “Post Keynesian developments of liquidity preference theory. In: P. Wells, org. Post Keynesian Theory. Boston: Kluwer Academic Publishers.). A criação de moeda é uma questão largamente institucional, no sentido de que deve ser discutida na suposição de instituições (públicas e privadas) específicas, não tendo a crucialidade teórica que Kaldor e Moore lhe atribuem.

Autores como Wicksell e Schumpeter, estritamente ortodoxos em questões monetárias, construíram modelos de moeda endógena, radicalmente horizontalistas, sem nunca ter ultrapassado os limites mais estreitos da teoria quantitativa. Quantitativistas modernos como Goodhart não têm qualquer dificuldade de aceitar um alto grau de endogeneidade da moeda no curtíssimo prazo, nos termos de Moore (Goodhart, 1989GOODHART, C. (1989). Money, Information and Uncertainty. Londres: MacMillan .). Keynesianos neoclássicos, como Benjamin Friedman, são endogenistas. O próprio Milton Friedman, alvo preferencial de Kaldor, não se compromete inteiramente com o exogenismo (Friedman, 1970FRIEDMAN, M. (1970). “A theoretical framework for monetary analysis”. Journal of Political Economy, 1970.). Por outro lado, se Kaldor se mantém coerente ao desprezar pura e simplesmente o papel da moeda em seus modelos, Moore, que tenta se manter próximo a outros pós-keynesianos, como Davidson e Minsky, acaba por confinar as inovações que propõe ao “curto prazo”, adotando para o longo prazo as proposições mais ortodoxas da teoria neoclássica.4 4 V., por exemplo, Moore (1988: 376): “No curto prazo o investimento determina a poupança, mais que o contrário. No longo prazo, a recompensa real ex-ante sobre ativos financeiros deve ser suficientemente alta para induzir os detentores de riqueza a acumular tais direitos voluntariamente. Este é o sentido cm que, no longo prazo, a poupança governa o investimento”. É também o “sentido” em que a taxa de juros determina a poupança! É certamente difícil avaliar o alcance revolucionário de uma abordagem que conduz a tais conclusões. Sobre outra abordagem, em linha semelhante, e que também desemboca na mais tradicional ortodoxia da preferência pela liquidez, não é mais que uma versão da teoria dos fundos de empréstimo cm que imperfeições não definidas impedem o pleno ajuste das taxas de juros.

3. UMA ALTERNATIVA PÓS-KEYNESIANA

Para os pós-keynesianos que seguem a Keynes, a noção central de seu paradigma é o conceito de economia monetária de produção como núcleo definidor da abordagem (Carvalho, 1992CARVALHO, F. C. (1992). Mr. Keynes and the Post-keynesians. Cheltenham: Edward Elgar., cap. 3).

Nesse tipo de economia, em paralelo à coordenação ex-post de atividades exercida pelo mercado, ressalta-se a importância da coordenação ex-ante obtida através da criação de um sistema de contratos futuros grafados em moeda. Nessa visão pós-keynesiana, a função moeda-de-conta para contratos é a função primária da moeda e dela depende a operação regular de uma economia monetária. Ameaças ao exercício desse papel, representadas, por exemplo, por uma inflação persistente, são incompatíveis com o funcionamento eficaz dessas economias (Carvalho, 1990CARVALHO, F. C. (1990). “Alta inflação e hiperinflação: uma visão pós-keynesiana”. Revista de Economia Política 10 (4), outubro, 1990.). A moeda é um ativo, uma forma de riqueza, porque os agentes confiam na manutenção de seu poder de compra através do tempo. Essas expectativas se apoiam na existência de um sistema de contratos futuros que preestabelecem o valor da moeda para o período coberto pela contratação. Se há essa confiança, os agentes reterão moeda em seus portifólios por períodos indefinidos5 5 É essa indefinição de planos de gasto que separa a noção keynesiana de moeda como um ativo da visão quantitativista da moeda como uma conveniência, um meio mais “barato” de atravessar o período que separa um recebimento de um gasto planejado. , e é isso que quebrará a proporcionalidade entre moeda disponível e renda nominal postulada pela teoria quantitativa. Se as expectativas com relação ao valor futuro da moeda se tornarem elásticas, esta perderá seu atributo de liquidez e se tornará mero meio de pagamento. Por isso, na visão keynesiana, a moeda será mais que um meio de pagamento se e enquanto os agentes confiarem que sua quantidade não será excessiva a ponto de ameaçar seu poder de compra (Chick, 1992CHICK, V. (1992) “Monetary increases and their consequences: streams, backwaters and floods”. In: Victoria Chick. On Money, Method and Keynes. Londres: MacMillan.). Se esses limites forem ultrapassados, haverá uma “fuga à moeda”, em que versões flexíveis da teoria quantitativa recuperam seu espaço de validade.

Em uma economia monetária de produção, há dois circuitos de circulação de moeda: a circulação industrial e a circulação financeira. Na primeira, a moeda é utilizada para girar a renda real criada em um determinado período. Na circulação financeira, a moeda serve não apenas para girar o estoque de ativos existentes como, na verdade, serve, ela mesma, como forma de riqueza. Em correspondência com esses circuitos, na visão keynesiana, em contraste com a abordagem horizontalista, há dois canais de introdução de moeda na economia. Na terminologia de Davidson (1978DAVIDSON, P. (1978). Money and the Real World. Londres: MacMillan .), há o método “gerador de renda”, no qual o dinheiro é criado na circulação industrial, por meio do suporte dado pelos bancos às demandas por capital instrumental (working capital) por parte dos agentes, especialmente firmas. Este é o método reconhecido por Kaldor e Moore, em que a oferta de moeda varia endogenamente, no sentido de que tem como pré-requisito um plano de gasto a ser financiado por parte do tomador. No entanto, a moeda na circulação financeira pode ser alterada pelo método da “mudança de portifólio”, pelo qual o banco central, através do open-market, substitui, no portfólio dos agentes privados (inclusive bancos), moeda por títulos, ou o contrário. Nesse canal, a demanda por moeda pode ser influenciada pela autoridade monetária, visto que esta, ao mudar a taxa de juros, muda a relação desejada entre títulos e moeda que o público deseja manter.

Nessa visão, as autoridades não detêm absoluto controle sobre a disponibilidade de moeda, como supõem os verticalistas, não apenas porque a função demanda por moeda pode ser volátil, como também porque o banco central deve operar através dos bancos comerciais. A concretização dos objetivos buscados pelas autoridades depende da reação dos bancos e sua política. Os bancos comerciais, porém, são instituições que têm o lucro como objetivo e operam sob restrições semelhantes às de qualquer outro agente, em particular, sob incertezas do futuro iguais ou maiores que as que atingem o resto dos agentes. Por essa razão, os bancos têm preferências pela liquidez como qualquer outro agente cuja atividade econômica seja especulativa e demande, assim, algum grau de precaução e cuidado.

Já no Tratado sobre a Moeda, de 1930, Keynes sugeria que os bancos tentam conciliar lucratividade com liquidez em suas aplicações, das quais dependem a criação de depósitos e, assim, a expansão da oferta de meios de pagamento (Keynes, 1971KEYNES, J. M. (1971). A Treatise on Money, vol. 2, The Collected Writings of John Maynard Keynes, vol.VI. Londres: MacMillan ., cap. 25). A administração de ativos, que depende da preferência pela liquidez (e da incerteza percebida) dos bancos, levará a escolhas que exercerão impactos de forma diferenciada sobre a circulação industrial e a financeira. Essa é a endogenia considerada por Keynes: a política das autoridades pode ser confirmada, atenuada ou contraposta por uma estratégia adversa da parte dos bancos. O banco central pode criar reservas, através do open-market, mas os bancos podem utilizá-las de forma contracionista em termos da circulação industrial (e, portanto, em termos da renda monetária da economia). Esse esquema foi aplicado por Keynes pela primeira vez na eclosão da Primeira Guerra Mundial (Keynes, 1983KEYNES, J. M. (1983). Economic Articles and Correspondence: Academic, The Collected Writings of John Maynard Keynes, vol.11. Londres: MacMillan .: 238-271).

Essa abordagem, que concentrava as atenções nas estratégias ativas dos bancos, se desdobra nos desenvolvimentos modernos da chamada “administração de passivos” (liability management). Por esta, os bancos não devem apenas fazer escolhas com relação a suas aplicações, mas também com relação a suas fontes de recursos. Longe de contar com curvas de oferta horizontais de recursos, buscam ativamente novas fontes, estendendo as escolhas estratégicas para os dois lados do balanço. A consideração da administração de passivos, incompreensível em uma perspectiva horizontalista, onde os recursos são disponíveis em quantidades ilimitadas a preços fixos, é uma extensão natural da administração de ativos postulada por Keynes. O ponto central reside em considerar que os bancos, como outros agentes, devem desenvolver estratégias de operação de modo a conciliar a busca de lucratividade com sua escala de preferência pela liquidez.

Nesse modelo, o estudo de inovações financeiras, igualmente problemáticas para os horizontalistas - com reservas livremente disponíveis, por que alguém apelaria para inovações cercadas de incertezas? -, também constitui uma extensão natural da abordagem adotada. Taxas de juros elevadas, refletindo o sucesso ao diminuir a liquidez disponível para as instituições bancárias, são o indutor das inovações (Minsky, 1982MINSKY, H. Can ‘it’ happen again? Armonk: M. E. Sharpe., cap. 7).

4. CONCLUSÕES

Dada a natureza essencialmente especulativa da produção capitalista, um sistema bancário perfeitamente acomodatício representaria um fator de instabilidade mais que o contrário. As perdas causadas por maus empréstimos - como sabê-lo de antemão? - seriam cobertas por novas injeções de recursos. A contínua erosão do valor da moeda, causada pela acomodação de pressões inflacionárias e pela expectativa de que essa política tenha vigência indefinida, destruirá as bases do sistema monetário. A manutenção de mercados financeiros “ordeiros” não é a mesma coisa que validar quaisquer operações que as instituições financeiras decidam realizar. A confiança do público depende também da percepção de que o mercado, no geral, é suficientemente disciplinado para evitar tendências autodestrutivas.

As funções essenciais da moeda são incompatíveis com a premissa de que a oferta de moeda possa variar de modo arbitrário e indefinido.

As autoridades monetárias, porém, não têm e não podem ter o controle absoluto sobre a quantidade de moeda disponível por causa da intermediação bancária que se interpõe entre as autoridades e o público. Tanto verticalistas quanto horizontalistas compartilham visões caricaturais do processo monetário e, em particular, da atuação de bancos. Uma visão pós-keynesiana cujas raízes estejam implantadas na concepção de moeda de Keynes não poderia se apoiar em base tão frágil.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • 1
    O palavreado dessa corrente nem sempre é tão inequívoco. Algumas vezes, mesmo autores influentes como Moore parecem reduzir o alcance da própria visão. No mesmo livro do qual a citação acima foi extraída, encontramos que “o banco central, em seu papel de provedor último de liquidez, joga o papel crucial de controle da quantidade e do preço do fluxo líquido de fundos para o mercado de atacado” (Moore, 1988MOORE, B. (1988). Horizontalists and Verticalists. The Macroeconomics of Credit Money. Cambridge: Cambridge University Press.: 59, grifos meus), sugerindo que, muito embora a visão horizontalista dependa de uma interação peculiar entre público, bancos e banco central, é sobre este último que recai a responsabilidade pela forma específica da função oferta de moeda. A visão de Kaldor foi largamente adotada no relatório Radcliffe. V. Rowan (1973).
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    Note-se que uma das citações mais “verticalistas” de Keynes, oferecida no Treatise on Money, é a de que “a primeira necessidade de um banco central, com a responsabilidade de gerir o sistema monetário como um todo, é estar seguro de que tenha um controle incontrastável sobre o volume total de moeda bancária criada pelos bancos membros” (Keynes, 1971KEYNES, J. M. (1971). A Treatise on Money, vol. 2, The Collected Writings of John Maynard Keynes, vol.VI. Londres: MacMillan .: 201). Nesse capítulo (32), Keynes discute então os meios pelos quais esse controle é implementado. O método “ideal” (p. 206) é o open-market, que “permite ao Banco da Inglaterra manter controle absoluto sobre a criação de crédito pelos bancos membros” (pp. 206-7). O open-market, como se sabe, opera exatamente através da determinação de taxas de juros, às quais os agentes, inclusive bancos, fixem os volumes desejados de moeda e outros ativos em seus portifólios. Retornaremos adiante a esta questão.
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    Sobre os efeitos das mudanças das taxas de juros sobre instituições financeiras que são, por definição, especulativas no sentido de Minsky, v. Minsky (1986MINSKY, H. (1986). Stabilizing anel unstable economy. New Haven: Yale University Press.). Análise mais técnica, descompromissada teoricamente, sobre os efeitos de variação de taxas de juros sobre a solvência e a liquidez de bancos encontra-se em Kaufmann (1985KAUFMAN, G. (1985). “Measuring and managing interest rate risk: a primer”. In: T. Havrilesky et alli, orgs. In Dynamics of Banking. Arlington Heights: Harlan Davidson.).
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    V., por exemplo, Moore (1988MOORE, B. (1988). Horizontalists and Verticalists. The Macroeconomics of Credit Money. Cambridge: Cambridge University Press.: 376): “No curto prazo o investimento determina a poupança, mais que o contrário. No longo prazo, a recompensa real ex-ante sobre ativos financeiros deve ser suficientemente alta para induzir os detentores de riqueza a acumular tais direitos voluntariamente. Este é o sentido cm que, no longo prazo, a poupança governa o investimento”. É também o “sentido” em que a taxa de juros determina a poupança! É certamente difícil avaliar o alcance revolucionário de uma abordagem que conduz a tais conclusões. Sobre outra abordagem, em linha semelhante, e que também desemboca na mais tradicional ortodoxia da preferência pela liquidez, não é mais que uma versão da teoria dos fundos de empréstimo cm que imperfeições não definidas impedem o pleno ajuste das taxas de juros.
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    É essa indefinição de planos de gasto que separa a noção keynesiana de moeda como um ativo da visão quantitativista da moeda como uma conveniência, um meio mais “barato” de atravessar o período que separa um recebimento de um gasto planejado.
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    JEL Classification: E51; E12; B22.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 1993
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