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A regionalização da grande indústria do Brasil: Recife e Salvador na década de 70

The regionalization of the large industry in Brazil: Recife and Salvador in the 70s

RESUMO

A industrialização moderna na periferia brasileira teve suas pré-condições estabelecidas na Bahia na década de 1950 (a hidrelétrica de Paulo Afonso no rio São Francisco, a extração e refino de petróleo perto da capital do estado - Salvador, e as ligações rodoviárias com o Brasil Centro-Sul). O Estado, portanto, assumiu relativamente cedo um papel ativo no plano regional. Enquanto isso, o fluxo de dinheiro resultante em Salvador acentuou a importância tradicional do comércio e da banca, reforçada desde os anos 70 por grandes obras públicas e a construção de um complexo petroquímico. Em Pernambuco, ao contrário, a “nova indústria” promovida pelos recentes incentivos governamentais encontrou uma velha experiência industrial e produziu uma atividade mais diversificada e menos intensiva em capital. Como resultado, Recife apresenta talvez uma estrutura mais pluralista, mas níveis de renda e consumo mais baixos do que Salvador. O artigo chama a atenção para a importância do setor bancário na Bahia, que está por trás do fracasso da industrialização precoce, ao mesmo tempo em que é crítico na articulação da região com os processos suprarregionais na contemporaneidade.

PALAVRAS-CHAVE:
Industrizalização; desenvolvimento regional; crescimento regional

ABSTRACT

Modern industrialization in the Brazilian periphery had its pre-conditions established in Bahia in the 1950’s (the Paulo Afonso hydro-electric plant on the São Francisco River, the extraction and refinement of oil near the state capital - Salvador, and highway connections with the Brazilian Center-South). The State, therefore, assumed relatively early an active role on the regional level. Meanwhile, the resulting flow of money in Salvador accentuated the traditional importance of commerce and banking, reinforced since the seventies by major public works and the building of a petrochemical complex. In Pernambuco, in contrast, the “new industry” promoted by recent governmental incentives has found an old industrial experience and produced a more diversified and less capital-intensive activity. As a result, Recife presents maybe a more pluralistic structure, but lower levels of income and consumption than Salvador. The article calls attention to the importance of the banking sector in Bahia, which is behind the failure of early industrialization, while contemporarily it is critical in the region’s articulation with supra-regional processes.

KEYWORDS:
Industrialization; regional development; regional growth

“A roda da nau voou três vezes
Voou três vezes a chiar (...)
De quem são as velas onde roço?
De quem as quilhas que vejo e ouço?’ (...)
Três vezes rodou imundo e grosso.”
Fernando Pessoa, “O Monstrengo”.

Os anos 70 marcam, no Brasil, o desdobramento, sob o comando do Estado, do grande capital sobre as regiões “atrasadas”. Complexos especializados - como a petroquímica, e centros industriais mistos instalam-se progressivamente nos mais variados pontos do país, sem mencionar a implantação de empreendimentos agropecuários de grande porte e outros processos em curso na área rural.

O que, a partir das condições internas às regiões que se submetem ao impacto dessa nova etapa de expansão do capital no Brasil, pode a “nova indústria” criar? O que poderá vir por trás do emaranhado da infraestrutura de produção, da parafernália das próprias usinas e da “caixa preta” dos arranjos político-institucionais? E mais que isso, o que, sem fantasias de salvação, nem a paranoia de um pesadelo de fim de mundo, pode servir de base a uma avaliação das limitadas alternativas imediatas abertas a esse Brasil que ficou para depois, onde a roda de nau voa mil vezes?

A história começa algo antes, e os variados padrões emergentes articulam-se de modo diverso em cada diferente situação. Mas permanecem como marco simbólico desse processo de redefinição da divisão territorial do trabalho as transformações sofridas pelo Nordeste. E é na região de Salvador, na última década e meia, que elas assumem sua forma mais radical, por assim dizer exemplar. A Bahia apresenta-se assim como um caso-limite desse Brasil de depois.

O que se passou? No começo dos anos 70, ao fim de vários anos de “reivindicação” dos dirigentes políticos locais, a Bahia teve por definitiva a deliberação do governo federal de instalar, nas proximidades de Salvador, o segundo complexo petroquímico brasileiro. A experiência de uma volumosa inversão de capital sob o comando do governo da União não lhe era inteiramente nova. As ambivalências a respeito dos efeitos por virem, ela já as vivera antes. É que, no começo da década de 50, o início da exploração e do refino do petróleo, a poucos quilômetros da capital, dera o golpe de misericórdia à remanescente produção açucareira da região e desencadeara vários processos que transformariam a economia do velho Recôncavo, onde se encontra Salvador, e a própria vida política do estado. Essa região tornara-se, assim, o insuspeitado laboratório de uma experiência que no momento e daqui para o futuro atingirá outras áreas do país. A menos dinâmica das grandes capitais regionais ao longo da primeira metade do século, Salvador ganhara em sua região imediata, com as atividades da Companhia Petróleo Brasileiro - PETROBRÁS, cerca de 13 mil empregos em menos de uma década e uma máquina assombrosa para sua experiência de então: a Refinaria Landulfo Alves.

Hoje, a instalação do Complexo Petroquímico de Camaçari, na mesma área, repercute e repete, vinte anos depois, o velho feito da PETROBRÁS. Porém o Maranhão, ao norte do país, com a criação do complexo siderúrgico de Itaqui e o impacto geral do projeto Carajás, também começa a transformar-se radicalmente. No Pará, instala-se o complexo eletro metalúrgico de Tucuruí, e começam os reflexos das promessas de Carajás. Depois da Bahia, o Rio Grande do Sul está “ganhando” o III Polo Petroquímico Nacional, e em Alagoas começa a produção de derivados de cloro. Ainda no Nordeste, a PETROBRÁS vem operando no litoral de Alagoas, e no Rio Grande do Norte. Desde os anos 60, a Companhia Vale do Rio Doce (ferro) opera no Espírito Santo, a meio caminho entre Salvador e o Rio de Janeiro, e expandem-se, desde a década de 70, atividades de tratamento do minério, e agora, inclusive, a produção de semiacabados. Isso, para citar apenas os casos mais notórios.

Ainda que a dispersão territorial de investimentos desse porte possa vir a ficar aquém do esperado em futuro imediato, ela terá a seu favor dois fatores de longo curso: as exigências do processo de acumulação a nível nacional e internacional e o passivo das contradições historicamente geradas por esse processo, a nível regional. Mais importante, contudo, no que diz respeito ao que venha a resultar do processo, é o segundo fator, que corresponde ao imperativo de aproveitar-se o capital, como diz Francisco de Oliveira, das diferenças regionais que a sua própria expansão redefinira e ampliara num momento anterior,1 1 “... a própria destruição da ‘região’ no processo de integração dá-se aproveitando as anteriores diferenças regionais.” OLIVEIRA, Francisco de, “Prefácio”, in Souza & FARIA (orgs.), Bahia de Todos os· Pobres, Petrópolis, Vozes/CEBRAP, 1980, p. 10. imperativo que tão frequentemente encontrou no Brasil recente sua legitimação nas chamadas “históricas reivindicações regionais”. É possível que uma forte reviravolta no processo de acumulação em uma determinada região venha a cobrar pesados custos de certos grupos até então dominantes. Entretanto a expectativa de uma maciça injeção de recursos financeiros num espaço limitado tende a precipitar fortes alianças entre outros e diligentes atividades consulares da parte da burocracia governamental da região hospedeira. O que possa aparecer como “regional” nas reivindicações por virem, nada mais é que a máscara de um processo de busca de rearticulações, de que o local - o regional - jamais deixará de estar presente.

Em todo caso, o que é preciso reter é que, depois que a limitada dispersão industrial dos anos 60 pouco alterou a estrutura básica da rede urbana brasileira, inicia-se agora uma nova fase de redefinição da divisão inter-regional do trabalho, com efeitos profundos sobre as diferenças funcionais inter metropolitanas. Uma das questões que se colocam é esta: como essa forma emergente de organização do espaço urbano nacional transformará as estruturas socioeconômicas e políticas regionais? Mas igualmente como, por estas, será condicionado esse novo espaço?

O processo decisório e os efeitos econômicos diretos da presença das novas plantas ou complexos industriais sobre as regiões onde se implantam escapam aos objetivos deste trabalho. O que se fará a seguir é usar um conjunto de indicadores muito indiretos, para sugerir os possíveis efeitos divergentes mais amplos dos dois padrões de desenvolvimento industrial recente - a industrialização com pauta diversificada e a introdução, de chofre, de conjuntos especializados, peças de grandes complexos oligopólicos em sua expansão sobre espaços novos. Para isso tomar-se-ão os casos de Salvador e Recife, metrópoles tantas vezes rivais - do Nordeste de antes e de depois.

A DESCENTRALIZAÇÃO INDUSTRIAL DOS ANOS 602 2 Os dados referentes à população total e economicamente ativa e às atividades econômicas recenseados nacionalmente tem, quando não indicada outra fonte, a seguinte origem: BRASIL-IBGE, Censos Demográficos, 195O, 1960, 1970, 1980 (dados preliminares); Censos Econômicos, 1960, 1970, 1975; Pesquisa Domiciliar por Amostragem de Domicilios (PNAD), 1978. Em vários casos, essas mesmas fontes servem de base a taxas e índices retirados de trabalhos publicados, sendo por isso citados os últimos.

Numa primeira fase, dominada ainda pelo clima político dos anos 50 e presa às ambiguidades do próprio processo de desenvolvimento do capital no Brasil, as tentativas de dispersão industrial prometeram reproduzir, em diferentes regiões, um perfil histórico de industrialização de tipo clássico, desenvolvido a partir da modernização e ampliação de setores de produção de bens de consumo - tendo em vista altas taxas de emprego, aprofundando-se eventualmente com a apropriação progressiva de setores intermediários e básicos. O exemplo de Pernambuco da década de 60, principal beneficiário da política de industrialização do Nordeste com respeito à geração de novos empregos, revelou-se decepcionante. Em 1959-1969, o emprego industrial aumentou em menos de 24% em todo o estado, e a maior parte desse crescimento deu-se na Região Metropolitana de Recife. E, como de regra, enquanto o valor da transformação industrial cresceu aí a uma taxa geométrica anual de 9,2%, o emprego seguiu a um ritmo quatro vezes inferior (2,13%),3 3 JATOBA, Jorge, “Emprego e Industrialização: A Experiência da Região Metropolitana do Recife (RMR), 1950-70”, in Comunicação, 13:16-64, Recife, PIMES-UFPE, 1976. e muito aquém do crescimento demográfico.

Como se sabe, as diferenças inter-regionais de renda, nível de industrialização e taxa de ocupação da força de trabalho continuaram a aumentar entre o Nordeste e o Centro-Sul. Durante o período, enquanto o valor da transformação industrial cresceu em todo o país a uma taxa geométrica anual de 6,3%, no Nordeste essa taxa fora de 4,5%.4 4 SAMPAIO, Fernando Talma, Aspectos da Regionalização do Desenvolvimento Industrial: O Caso Baiano, Salvador, tese de concurso para professor assistente, F. C. Econômicas, UFBA, 1974. Para o crescimento do emprego, esses números foram respectivamente 3,1 e 4,5%. Na verdade, a participação do Nordeste na renda industrial nacional caiu de 9,7% em 1950, para 7,5% em 1960, e 5,7% em 1970. Mesmo o Extremo Sul, de começo mais industrializado ao entrar na década de 50, também perdeu posição no período, decrescendo sua participação na renda industrial nacional, de 13,4% em 1950, para 12,0% em 1970.5 5 BRASIL-IBGE, Indicadores Sociais. Relatório 1979, Rio de Janeiro, 1979, p. 193. É que na verdade, enquanto saltava os limites de seu polo de concentração, o grande capital industrial submetia o resto do que a integração física do mercado vinha solapando desde a década de 40 fora do Centro-Sul: isto é, a indústria regional, deixando ficar apenas aquelas empresas que já haviam alcançado ou acabaram por alcançar suficiente porte e mesmo certo grau de oligopolização.6 6 V. OLIVEIRA, Francisco de, Elegia para uma re-li-gião, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977, pp. 111-118 e nota 62, p. 132.

Em termos de localização, o principal resultado da “política de desenvolvimento regional” fora o aumento das diferenças intrarregionais e a concentração da indústria nas velhas capitais. Entre 1965 e 1970, sozinho, o Estado da Bahia absorveu 43,43% dos investimentos industriais beneficiados pelos incentivos administrados pela SUDENE - Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste. E de 1960 a 1978, Pernambuco concentrou um terço dos empregos diretos prometidos por tais empreendimentos. O grosso desses investimentos dirigiu-se às regiões metropolitanas. Salvador, por exemplo, absorveu 67,3% de todos os investimentos aprovados para a Bahia entre 1963 e 1973, o que exclui inversões na área da PETROBRÁS e na petroquímica.7 7 BRASIL-SUDENE, apud SAMPAIO, op. cit. De 1959 a 1969, a Região Metropolitana de Salvador elevou sua participação no valor da produção industrial do estado, de 49% a 67%, e no emprego industrial, de 31% a 46%. Em Pernambuco, Recife também aumentou sua concentração já bastante alta do emprego, de 59% para 60%, apesar de ganhos consideráveis em produtividade.8 8 JATOBÁ, op cit.

Apesar disso, sub-industrializadas em relação ao que chegaram a ser em termos de início do século, e em contraste mais tarde com os centros do Sudeste, as metrópoles de segundo escalão parecem ter ficado mais iguais entre si, na fase de transição das décadas de 50 e 60. Nos anos 60, de todas as classes de tamanho de cidades, são elas que mostram menor crescimento industrial.9 9 V. FARIA, Vilmar, “O Sistema Urbano Brasileiro: Um Resumo das Características e Tendências Recentes”, in Estudos CEBRAP, 18:91-115, São Paulo, Edições CEBRAP e Ed. Brasileira de Ciências, out., nov., dez., 1976. Em 1970, fora do triângulo Rio-São Paulo-Belo Horizonte, e excluídas Recife e Porto Alegre, metrópoles macrorregionais em suas respectivas áreas, a participação da população ativa no secundário - exclusive a construção civil - ia, nas cidades de segundo e terceiro escalão, de 10,0 a 13,3%.10 10 BRASIL-IBGE, Indicadores para Áreas Urbanas, Rio de Janeiro, 1977. Assim, pelo menos até a década de 60, a industrialização não alterou o padrão básico do complexo de cidades brasileiras. Cada cabeça de região, fora do Centro-Sul, continuou a desempenhar funções de cidades-porto de interiores relativamente exclusivos e a replicar entre si estruturas de produção similares.

A MULTI-REGIONALIZAÇÃO DOS OLIGOPÓLOS

A instalação de grandes empreendimentos industriais sob o grande capital, fora do Centro-Sul, vem alterar essa anterior divisão do trabalho. Antes concentrada basicamente ao nível da circulação, ela passa agora à esfera da produção em si, desde que diferentes regiões ou zonas, e em particular diferentes metrópoles, assumem papel complementar entre si na estrutura industrial do país. Isso se dera certamente antes, porém de modo limitado e por vias diversas. O Estado de Minas Gerais, hoje em grande parte integrado ao Centro-Sul, muito cedo especializou-se na produção siderúrgica, e a Bahia teve, como se viu, a presença da PETROBRÁS desde o início da década de 50. Depois, nenhuma experiência semelhante se daria nas proporções e nas condições da introdução da produção de petróleo na região de Salvador. E a industrialização dos anos 60 não impediu a persistência de antigas atividades de baixa produtividade e muito das velhas relações de classe em várias das velhas metrópoles regionais.

Os novos centros industriais ou pretensos polos de desenvolvimento têm em comum o fato de serem, da perspectiva da região hospedeira, realizações de fora, isto é, iniciativas do governo central, envolvendo maciças transferências de capital materializadas em pequenos intervalos de tempo. Ainda que o processo decisório envolvido não desconheça persistentes pressões de origem local, o fundamental dessa nova fase da industrialização fora do Sudeste é a sua absoluta autonomia em relação aos processos da acumulação e à distribuição da renda, vigentes até o momento na região recipiente, inclusive face aos próprios empreendimentos da industrialização recente. Isto é, não há qualquer relação necessária entre as atividades dos novos complexos e sequer as mais modernas indústrias recém-instaladas na mesma área. Assim, somam-se muitas vezes descontinuidades não só entre as atividades de produção dos novos conjuntos e a economia tradicional da região, como também entre essas e as atividades geradas pela “política de desenvolvimento regional”. Na Bahia, a industrialização induzida nos anos 60 pelos incentivos governamentais é quase inteiramente estranha às atividades anteriores do estado. Mas a petroquímica também tem pouco a ver com as indústrias novas.

Nas discussões locais, essa heterogeneidade é frequentemente extrapolada para o mercado de trabalho, e inclusive para a esfera social e mesmo cultural. Sem discutir aqui a questão da forma dessas articulações/desarticulações, homogeneização/desigualização, interessa saber que efeitos virão do novo padrão de crescimento urbano-industrial, em contraste com um modelo pretendido de crescimento equilibrado, que, é verdade, acabou por não o ser em nenhuma parte da periferia. Nesse padrão idealizado, as novas atividades deveriam ser não só completamente entre si, como demandantes de bens e serviços providos regionalmente e dirigidos a mercados imediatos. Frente a esse modelo, contrasta a industrialização de chofre, especializada, oligopólica, que, assunto do Estado e do grande capital, portanto objeto extremamente refratário à manipulação local, acaba por reforçar o poder da alta burocracia pública, reduzindo sua sensibilidade aos chamados problemas regionais. O fato é que não se pode negar a forma como se manteve, à margem dos interesses das camadas populares, a máquina governamental nos estados, ao tempo em que aumentou a cumplicidade dessa com o processo da acumulação - noutras palavras, com a exploração da força de trabalho e do meio ambiente. A análise das condições concretas de instalação do Complexo de Camaçari, com um hiato imperdoável entre a eficiente produção da infraestrutura de produção e a confusa e precaríssima produção dos equipamentos e serviços urbanos,11 11 Ver, por exemplo, RIVIERE d’Arc, Hélêne, Aux Environs du Pôle Metrochimique: La Difficile Croissance de la Ville de Camaçari. Documents de Recherche du CEDRAL. Centre de Recherche et Documentation sur l’ Amérique Latine (CREDAL) et lnstitut des Hautes Études de l’Amérique Latine, Paris, 1981, mimeo. não deixa dúvida a respeito do caráter assumido pelo Estado.

Ao contrário da ideologia do “crescimento harmônico”, sintomaticamente - embora não sem fundamento econômico12 12 V. OLIVEIRA, F., 1977, op. cit. - a prática ainda muito pouco elaborada a nível ideológico da atual dispersão geográfica dos investimentos industriais é certamente muito pouco sensível à questão dos desníveis regionais como questão política. Ela passa ao largo da retórica do desenvolvimento regional e somente num movimento secundário encontra-se com os “interesses regionais”. Basicamente, corresponde a um novo momento de regulagem da economia nacional, em parte precipitado pelos problemas do balanço de pagamentos, porém sobretudo reclamado pelo imperativo de expansão da própria base industrial. E nisso, sem dúvida, ela expressa a autonomia relativa alcançada pelo Estado. É essa autonomia, entretanto, que fecha o circuito da descentralização física, abrindo espaço a escolhas em que se impõem considerações de ordem política que assumem expressão regional. Decidida a instalação de um novo complexo de atividades, sua localização pode, às vezes, ser negociada.13 13 A síntese do processo de decisão que levou à criação do Complexo Petroquímico de Camaçari encontra-se em MARTINS, Luciano, “La ‘joint-venture’ Etat-firme Transnationale: Entrepeneurs Locaux au Brésil’’, Sociologie et Sociétés, 10 (2); MARTINS, Luciano e THERY, Hervé, La Problematique des Pôles de Développement et l’Experience de Camaçari. Documents de Recherche du Centre de Recherche et Documentation sur l’ Amérique Latine (CREDAL) et Institut des Hautes Études de l’ Amérique Latine, Paris, 1981. Document de travail 1, mimeo. Daí a coincidência entre as reivindicações regionais e os “caprichos” do capital, para repetir a expressão usada por Chico de Oliveira, na Elegia para uma re-li-gião.14 14 OLIVEIRA, F., 1977, p. 43.

A PRODUÇÃO DE PETRÓLEO NA REGIÃO DE SALVADOR

Salvador constitui o mais antigo e agora reiterado caso de crescimento industrial sob condições de aguda descontinuidade estrutural, para usar a expressão corrente (mas sem qualquer parti pris a priori). Antes de tudo por ter recebido, já na década de 50, uma atividade como a extração e o refino do petróleo, com uma densidade de capital e uma rentabilidade extremamente altas em relação não apenas à economia da região, mas também aos demais setores da produção industrial nacional, na época. Em segundo lugar, por ser então, e até o início dos anos 60, uma das mais estacionárias capitais regionais, em processo de perda de parcelas de seu interior para outras metrópoles da região e inclusive diretamente para o expansivo núcleo Centro-Sul. Salvador, apesar de porto de sai da de uma parte da produção de cacau, então segundo produto nacional de exportação no inicio da década, parecia incapaz de aproveitar-se dos termos favoráveis de intercâmbio que caracterizaram os anos pós-guerra. Esse contraste, entre a afluência dos negócios da agricultura de exportação e o imobilismo econômico da cidade, intrigou a imaginação da inteligência local, fascinada em desvendar o que se passou a chamar, pelo fim da década de 40, de “enigma baiano”.15 15 V. BRANDÃO, Maria, Desenvolvimento e Conduta Governamental, Salvador, ISP-UFBA, 1965.

É fácil avaliar o impacto das atividades da PETROBRÁS nesse contexto. Além dos novos empregos criados, na extração e refino do petróleo, nos serviços de produção e na construção civil, a empresa, de corte monopolista, introduziu salários extravagantes para os padrões locais e provocou a elevação do preço dos terrenos rurais e urbanos. Os técnicos, o pessoal administrativo, e metade do operariado - os “petroleiros” - residiam em Salvador e passaram a constituir o grande alvo dos empreendimentos imobiliários. Por sua vez, o sistema de abastecimento alimentar da cidade entrou em colapso, por várias razões que não vem ao caso analisar aqui, e Salvador abriu-se à produção alimentar, originária predominantemente de São Paulo, da mesma forma que passou a depender maciçamente de fora, nesse primeiro momento, inclusive para o suprimento de materiais de construção. O setor açucareiro e a indústria tradicional surgida a partir da segunda metade do século XIX retraíram-se totalmente com a integração do mercado nacional, agravados agora também pela elevação do preço do solo e dos salários da parcela de trabalhadores que se integrava ao pequeno mercado de trabalho. Como era de esperar, ampliaram-se as atividades bancárias, os negócios do porto e o comércio.

Novas unidades industriais, que começaram a surgir já na segunda metade da década de 40, continuaram a se multiplicar pela década de 50 e adiante, uma vez que a produção de petróleo, embora restringindo seus efeitos diretos a setores muito limitados, permitiu uma significativa reativação da praça (mercado bancário) de Salvador. Das 283 fábricas existentes em 1967, 35 foram instaladas em 1946-1950, 73 na década de 50, e 57 em 1961-1963;16 16 BAHIA-SETRABES/CIE, Mão-de-Obra: Operário Industrial na Bahia, Salvador, direção de Istivan Jancso, c. 1967. muito antes, portanto, da implantação do programa de incentivos federais visando a industrialização do Nordeste, e da criação de um distrito industrial, o Centro Industrial de Aratu (CIA), ao norte da cidade, para canalizar para a Bahia capitais beneficiados por aqueles incentivos.

As atividades da PETROBRÁS conduziriam, afinal, à ampliação da produção de materiais de construção e à emergência de alguns setores “dinâmicos”, como os setores metal-mecânico e de transporte, isto é, ligados aos imperativos de expansão da economia em escala nacional e ao transbordamento posterior do grande capital fora do Centro-Sul. Em 1949-1950, as unidades de transformação de minerais não metálicos passaram de 65 a 107, as de metalurgia, mecânica e materiais de transporte e comunicação pularam de 17 a 47. No Estado da Bahia como um todo, ao fim da década de 50, estes setores e mais a produção de petróleo absorviam 42,46% do pessoal ocupado na indústria, segundo declaração das empresas. E, enquanto o emprego industrial crescera apenas 2% ao ano, num período de crescimento industrial negativo para o resto do Nordeste, os setores de produção de bens intermediários e de capital cresceram respectivamente a taxas de 6,5% e 19,4% ao ano na Bahia,17 17 SAMPAIO, op. cit. mantendo esta a posição de produtor quase exclusivo de óleo bruto e gás natural até 1966.

A experiência da PETROBRÁS na Bahia constitui em vários sentidos o protótipo dos empreendimentos recentes visando associar economias de localização, quanto à exploração de recursos naturais, ao benefício de subsídios governamentais e à acessibilidade aos serviços presentes em centros urbanos de porte. O padrão não deixará de se repetir no futuro. Nem por isso os resultados poderão ser os mesmos, daí o interesse de análises comparativas como a presente.

Como suas congêneres mais recentes, a introdução da exploração do petróleo na Bahia nos anos 50 derivou de um ato do Estado, ao “optar” por determinado partido na condução do desenvolvimento do país. Do ponto de vista da região, a decisão foi arbitrária, ainda que bem-vinda, embora nunca se tivesse conseguido “trazer a PETROBRÁS para a Bahia” (a sede da empresa permaneceu desde o início instalada no Rio de Janeiro, então capital federal). Como nos casos atuais, a exploração do petróleo coincidiu com uma aspiração antiga “da região”, reivindicada desde os anos 30, quando se constatara, nos limites da capital (em Lobato), a presença de gás natural. Mas os custos imediatos da nova atividade, impostos sobretudo à velha elite social e política, introduziram uma constante ambivalência da parte desta a respeito de suas vantagens. Isso, naturalmente, não impediu a “mandarinização” de parte dessa elite no contexto das novas empresas de fora, sem mencionar o êxito posterior, a nível nacional, de dois velhos bancos baianos. Uma e outra devem ajudar a explicar por que jamais se fez uma avaliação sistemática dos efeitos da PETROBRÁS.

A ‘’NOVA INDÚSTRIA”: O CENTRO DE ARATU E O COMPLEXO PETROQUÍMICO DE CAMAÇARI

Em 1964, outra iniciativa do Estado, agora instrumentada pelo governo estadual, traria de novo um considerável impacto sobre a região, menos em termos do volume de renda gerada a curto prazo, maior talvez em efeitos sobre a estrutura do uso do solo na área metropolitana e sobre a estrutura do produto industrial do estado. Em meados da década de 50, consolidara-se um discurso sobre o imobilismo econômico da Bahia que atribuía à falta de oportunidades para investimentos produtivos a evasão de excedentes para o setor imobiliário e para fora do estado. Tratava-se de transformar a agricultura a fim de expandir o mercado interno, e subsidiar a indústria para compensar as “desvantagens” de localização do estado em relação ao Centro-Sul.

O diagnóstico falhava em ver que a alegada falta de oportunidades para investimentos produtivos era em parte o reverso da medalha do próprio processo de acumulação dominante na região.18 18 V. Oliveira 1977, pp. 42-43. O Nordeste “algodoeiro-pecuário” a que se refere o autor, quanto às bases da acumulação na região, corresponde a um dos extremos de um espaço em que “a Bahia do cacau” certamente ocupa o posto. Em todo caso, a ênfase no fato de que essa acumulação independia de um processo significativo de reinversão na região e passava em grande parte ao largo da mais-valia propriamente dita, pode ser basicamente estendida à Bahia. Como esse processo independia de qualquer volume significativo de investimento produtivo, as medidas ensaiadas em referência à produção agrícola ou caíram no vazio ou encontraram a resistência dos setores mais tradicionais. Com isso, e por força das exigências da acumulação a nível nacional, a discussão e as medidas referentes à industrialização tornaram-se dominantes. De outro lado, frente ao pequeno efeito do programa de incentivos fiscais no início dos anos 60, tornou-se imperativa a preparação de uma área especial, totalmente equipada para as novas atividades, e a escolha dessa área recaiu sobre um ponto a meio caminho entre Salvador-cidade e seu antigo distrito de Candeias, transformado desde a década de 50 pelas atividades da PETROBRÁS.

A altura de 1966, o Centro Industrial de Aratu (CIA) começava a receber as novas unidades industriais beneficiadas por incentivos federais e estaduais e pela acessibilidade a lotes infra estruturados, vendidos a preços subsidiados. Em 1966-1967, o valor dos investimentos previstos em projetos aprovados para o Estado da Bahia pela SUDENE alcançava mais de 61% do total de todo o Nordeste. A seguir, essa participação desce a 30%, porém em 1970 ela novamente ultrapassa a metade (52%) e representa 29% dos empregos diretos prometidos nos projetos aprovados nesse ano.19 19 BRASIL-SUDENE, apud SAMPAIO, op. cit.

A criação do CIA transforma rapidamente o perfil industrial da Bahia. Enquanto o emprego industrial total crescera, no estado, nos anos 60, apenas 19%, nos setores de minerais não-metálicos, química, metalurgia, mecânica, material elétrico, comunicações e transporte, quase todos concentrados na região de Salvador, ele aumentou em 80,35%. Excluindo o setor químico, majoritariamente ligado ao petróleo, e ainda sem a petroquímica, que viria depois, essa diferença sobe a 98,98%. Na verdade, de 1963 a 1973, 75% dos empregos e 91% do valor dos investimentos previstos em projetos aprovados pela SUDENE para a Bahia ligavam-se a setores quase inteiramente novos à região.20 20 Idem, ibidem. Porém o CIA recebeu também investimentos em setores formalmente mais convencionais. Em 1976, dos 17 mil ou mais empregos estimados no Centro de Aratu, quase 5 mil estavam em áreas como têxteis, bebidas, madeira e mobiliário,21 21 BAHIA·Centro Industrial de Aratu (CIA), Aratu, n. 59, 1976. onde se incluem as poucas empresas industriais locais que conseguiram “crescer e aparecer”.

Quase dez anos depois da criação do CIA, embora pouco depois do início do seu funcionamento pleno, instala-se em Camaçari, município vizinho ao norte de Salvador, hoje integrado à sua região metropolitana, o Complexo Petroquímico de Camaçari (COPEC), criado em 1972, mas oficialmente inaugurado em 1978. Mais uma vez, a decisão federal coincide com uma “aspiração local”, presente desde o início dos anos 60, tanto que, pelo meado da década, definira-se sua localização praticamente onde mais tarde viria a se instalar.

Como nos demais casos, o primeiro efeito da criação do “polo” petroquímico foi a abertura de uma nova onda de construções, responsável pela ocupação, já elevada desde a construção do CIA, de mais de 13% da população ativa da região. Em termos absolutos, essa população, que inclui também pessoal ocupado na construção habitacional de todos os tipos, elevou-se de 46.546 para 72.440, de 1970 a 1978. Em 1974, mais de 40 grandes empresas de construção ocupavam na Bahia mais de 30 mil pessoas, acima de um terço da mão-de-obra ocupada pelas 200 maiores empresas industriais presentes no estado. A maioria atuava na região de Salvador.22 22 FEDERAÇÃO DAS INDÚSTRIAS DO ESTADO DA BAHIA, As 200 Maiores Indústrias da Bahia, Salvador, 1974. Só em Camaçari, em 1978, incluindo-se as de pequeno porte, operavam 121 firmas de construção23 23 Dados de arquivo da companhia de economia mista Desenvolvimento de Camaçari S. A. (DECASA), ligada à Prefeitura Municipal de Camaçari.

É certo que dados como estes subentendem outras que não apenas a realidade da indústria e em particular do setor petroquímico. Em todo caso, será difícil superestimar seus efeitos. Em fins de 1980, 30 empresas estavam em operação com mais 19 mil empregos diretos e um investimento estimado em 3,8 bilhões de dólares.24 24 MARTINS & THERY, op. cit., p. 24 (nota 1), passim. A área do complexo petroquímico abriga também um conjunto de metalurgia do cobre.

As principais mudanças recentes na estrutura do emprego revelam, em primeiro lugar, uma elevação de 45% a 49% na taxa de ocupação da população de dez anos e mais; em segundo, um aumento considerável das atividades sociais, uma elevação da produtividade dos serviços de transporte, comunicação e armazenagem e do comércio por atacado, e uma concentração de capital no comércio varejista. Ainda assim, tanto o secundário como o terciário continuaram a manter e criar um amplo setor de atividades organizadas ao largo do capital propriamente dito. Cerca de 20% da população economicamente ativa, em 1978, era constituída de trabalhadores por conta própria, e apenas 76% entre os assalariados tinham contratos formais, mediante a assinatura das carteiras de trabalho.25 25 PNAD 1978. Semana da coleta: 22 a 28.10.1978. V. nota 2 deste artigo. E possível, por isso, tomar parte do crescimento da taxa de ocupação da força de trabalho como resultado também de uma expansão do subemprego. Mas ainda assim, as mudanças ocorridas em direção à ampliação do mercado de trabalho não deixaram de ser expressivas.26 26 As mudanças ocorridas na década de 70 na estrutura ocupacional da cidade do Salvador são analisadas in BRANDÃO, Maria de A. & CARVALHO, Inaiá, “Ocupação e Emprego em Salvador: Efeitos Recentes da Industrialização”, in BRITTO & FLAVO (orgs.), População, Educação e Emprego, Salvador, UFBA-CRH, 1980, pp. 131-171.

O emprego industrial - excluída a construção civil, cresceu de 27,1 a 41,5 mil, 53,14% portanto, em 1970-1975. Enquanto isso, em 1970-1978, a população ativa na indústria, artesanato e serviços industriais de utilidade pública elevou-se de 46,1 a 79,2 mil, ou seja, 71%. Em 1980, ela atinge cerca de 100 mil (excluindo a construção civil), constituindo próximo de 18% da PEA total. Não se dispõe de dados sobre o emprego industrial propriamente dito além de 1975, porém é possível estimá-lo em cerca de pelo menos 52 mil pelo fim do decênio, considerando que só na petroquímica previa-se um aumento de mais de 10 mil empregos nos anos 1976-1978. Assim, o emprego no setor deve ter crescido em cerca de 92% em oito anos (1970-1978), reduzindo de 41%, em 1970, para cerca de 27%, em 1978, a participação da produção artesanal e em micro manufaturas na ocupação da população ativa na indústria de transformação e nos serviços industriais de utilidade pública (a construção civil excluída).

Os sinais de mudança não escondem as contradições do processo.27 27 V. BRANDÃO & CARVALHO, op. cit., sobre alguns dos efeitos contraditórios da nova forma de inserção da região na economia nacional. Na cidade de Salvador, entre 1970 e 1977, aumentou a participação de trabalhadores por conta própria no secundário, nos serviços de transporte e mesmo nas atividades sociais. Em 1977, da população urbana da região, mais de um terço dos assalariados não tinham cobertura da legislação trabalhista. Estes e os trabalhadores por conta própria, biscateiros e outros em condições similares, correspondiam a cerca da metade da população que se declarava trabalhando.28 28 BNH/STRABES-BA, Diagnóstico Habitacional da Região Metropolitana de Salvador, Salvador, 1978, coord. e texto de M. A. BRANDÃO. Em 1980, no conjunto da RMS, abaixo do rendimento médio de até 2 salários-mínimos estavam 33,8% das famílias.

É óbvio que o caso de Salvador tem certamente muito pouco de uma “estória de sucesso” a nível social e político. Contudo e, pour cause, alguns indicadores apontam um quadro mais avançado na Bahia do que em outras áreas do Nordeste. O contraste com Recife, de algum modo semelhante quanto à formação histórica mais remota, porém sujeita a um processo mais convencional de industrialização, permite estabelecer as bases para algumas hipóteses relativas aos efeitos da instalação de grandes conjuntos industriais nas regiões periféricas do país.

COMPARANDO RECIFE E SALVADOR29 29 O sumário que se segue, a propósito de Recife, baseia-se em SINGER, Paul I., “Recife”, in Desenvolvimento Econômico e Evolução Urbana, São Paulo, Cia. Editora Nacional/Univ. de São Paulo, 1968, cap. 6, pp. 271-357.

Vale de início fazer algumas ressalvas quanto aos limites e potencialidades de uma comparação entre Recife e Salvador.30 30 Em 1980, as regiões metropolitanas de Recife e Salvador tinham, respectivamente, l,77 e 2,35 milhões de habitantes. Na verdade, as duas foram menos semelhantes no passado e são menos diferentes no presente, do que seria desejável numa análise de tipo positivista. Em primeiro lugar, Recife tem uma história a contar de industrialização ao longo da primeira metade deste século, enquanto Salvador, sem qualquer êxito nesse campo, tem uma experiência antiga de bancos e firmas de exportação que sempre fizeram a ponte entre a economia regional e o mercado financeiro nacional. A economia da Bahia foi sempre muito mais uma economia de exportação, desenvolvendo por isso muito mais cedo um capital financeiro que se realizava fora do estado, embora dentro do país. Além disso, algo como o Nordeste “algodoeiro-pecuário”, que projetou sua sombra sobre Recife, foi sempre na Bahia não só menos monoliticamente articulado a partir da propriedade fundiária em si e dos processos de apropriação da renda, como crescentemente obscurecido pelos “negócios” do cacau - cujo caráter inicial das relações de produção e a história da concentração da propriedade foram diferentes. Por outro lado, não é possível desconhecer a presença da PETROBRÁS, com efeitos reforçadores sobre as funções da cidade-porto e sobre a concentração da renda.

Finalmente, é preciso ter em conta que, se a “nova indústria” não se restringe, em Salvador, apenas a petróleo e petroquímica, Recife também recebeu investimentos em áreas de produção de base e de bens intermediários. Suas diferenças situam-se exatamente no que o Estado como produtor em si e articulador explicito dessa industrialização está mais presente em Salvador do que em Recife, e no que o passivo da história não resolvida de industrialização inicial de Pernambuco pesa mais sobre o Recife de hoje. Apesar e em razão das ambiguidades e contradições dos processos reais, e à base de um detalhamento que este trabalho infelizmente não poderá alcançar, as duas situações prestam-se a um dos paralelos mais férteis quanto às transformações recentes da sociedade brasileira.

Que Recife encontrou a “nova indústria”? Porto de uma região açucareira, como Salvador, Recife foi, nas primeiras décadas deste século, a grande promessa de crescimento urbano-industrial ao norte do Rio de Janeiro. Em contraste com a Bahia, Pernambuco conseguiu preservar com alguma vitalidade sua produção açucareira, apesar de ter revelado a mesma incapacidade em transformar a estrutura social dessa produção. Como assinala Paul Singer, foram precisos 23 anos para que a exigência do salário-mínimo fosse levada a efeito no interior do estado, o que só ocorreria em 1963, sob o efeito da luta de classes que se explicita agudamente na região nos anos anteriores ao golpe militar de 1964.

Enquanto, no último quartel do século XIX, Salvador abortava um primeiro surto de industrialização, Recife firmava no início deste século seu crescimento industrial, contando com um considerável potencial de mercado em sua área imediata e um menor potencial de produção de exportação. Desde o início do século, uma rede ferroviária, com um raio de até 193 km, ligava a cidade a um interior que compreendia, em última análise, quase 3,5 milhões de pessoas, de Alagoas ao Ceará. De 1907 a 1920, Pernambuco elevou sua participação no produto industrial do país de 4,0 a 6,8%, favorecido em parte pela alta do preço do açúcar, enquanto a Bahia o reduzia de 3,2% para 2,8%, apesar dessa mesma alta.

A partir daí, o Nordeste perde totalmente passo com o processo de industrialização visto em escala nacional. Entretanto, em comparação com a Bahia, Pernambuco prossegue com alguma vantagem. Em 1938, sua participação no produto industrial é de 4,2%, quando a da Bahia é de 1,7%. Esse crescimento sempre mais atrás do crescimento nacional, é verdade, intensifica-se nos anos 30. Das 1.854 unidades industriais existentes no estado em 1940, 68% datam desse período.31 31 V. PERRUCI, Gadiel, “A Cidade do Recife (1889-1930): O Crescimento Urbano, o Comércio e a Indústria”, in Anais, VIII Simpósio Nacional dos Professores Universitários de História, São Paulo, 1974: 577-590, 594. Em 1940, enquanto o pessoal ocupado na indústria em Recife correspondia a 6,3% da população da cidade, Salvador contava com apenas 3,7%. Em 1950, essa diferença permanece, embora a um patamar mais baixo: 6,0% e 3,3%, respectivamente. A área da atual Região Metropolitana de Salvador contava então com menos de 15 mil empregos industriais, enquanto Recife reunia mais de 47 mil.

Na produção do açúcar, como se sabe, apesar do mesmo fracasso na introdução dos engenhos centrais em meados do século XIX, Pernambuco obteve, mais tarde, ganhos relativos em relação à Bahia. De 1885 a 1900, ali instalaram-se quase 50 usinas. Em 1910, enquanto a Bahia contava com sete, Pernambuco tinha 46 delas, produzindo mais de 30% do açúcar importado pelo porto do Rio de Janeiro. Nesse período, a indústria diversifica-se, incluindo fábricas de pianos, realejos, órgãos, cerveja, ‘’carros de passeio’’. A recuperação da produção do açúcar favoreceu a expansão da indústria têxtil, de sua parte também beneficiada pela produção algodoeira, importante no Nordeste desde meados do século passado. Em 1920, as Casas Paulistas (indústria e comércio de têxteis) contavam com 200 lojas em todo o Nordeste, transpondo mais tarde as próprias fronteiras da região, sob o nome ainda corrente de “Casas Pernambucanas”.

A rigidez da estrutura econômico-social do Nordeste e a ruptura das fronteiras regionais pelo sistema viário nacional liquidariam, entretanto, o modesto feito do empresariado de Pernambuco. Além disso, pelas décadas de 40 e 50, a desorganização da economia agrícola do Agreste, também ferida pela concorrência da produção do Centro-Sul, resultaria em crescentes fluxos migratórios para o Recife. Na década de 30, esta já ultrapassava em população a Salvador, e as duas chegam a 1950 com maior distância ainda a favor de Recife. Consideradas as áreas imediatas compondo as futuras regiões metropolitanas de ambas, o crescimento demográfico de Recife foi ainda maior. Sua população alcança 1.792.688 em 1970, com Recife e Olinda absorvendo apenas 70% do total, enquanto a área de Salvador continha 1.148.828 habitantes e a cidade abrigava de modo quase monopolístico 90% dessa população.

Apesar do maior crescimento demográfico, o emprego continuaria depois a níveis mais altos na Grande Recife que em Salvador. Em 1970, não só a taxa de ocupação da população total era maior ali, como também a participação das atividades industriais na PEA; o emprego industrial propriamente dito absorvia em Recife 68,12% da população ativa no secundário; em Salvador, apenas 58,77. Mesmo em relação à PEA total, a diferença permanece: 8,10% e 9,15%, apesar do crescimento negativo do emprego industrial na década de 50 (-1,15% a.a.) e do seu moderado aumento nos anos 60 (2,13% a.a.), em Recife.32 32 Cf. JATOBÁ, op. cit.

Mais de uma década e meia depois de iniciada a produção de petróleo, Salvador permanecia, em termos de indústria, ainda aquém da modesta posição de Recife. Em 1970, a PEA em atividades industriais (excluída a construção civil) era de 13%; em Recife, 16%. Retirando a produção química (derivados de petróleo), o emprego e o produto industriais reduzem-se a menos da metade do atingido por Recife. Entretanto, as condições sociais eram de modo geral melhores quanto à renda pessoal, acesso à educação e certos aspectos da situação habitacional.

É verdade que Salvador, sob uma nova onda de expansão da periferia, apresentava em 1970 maior proporção de domicílios sem iluminação elétrica e sem instalações de esgotamento sanitário. Em 1978, o déficit habitacional da área metropolitana é maior que em Recife, revelado pela alta incidência de congestionamento e de domicílios improvisados. Ao contrário da região de Recife, que apresentou um saldo migratório próximo de zero entre 1970 e 1980, a área de Salvador teve, no mesmo período, o seu maior crescimento neste século. Mas, além do aumento do acesso às redes gerais de água e iluminação, no que as condições habitacionais dependiam mais da renda pessoal do que da expansão da infraestrutura, Salvador também avançou mais do que Recife. Em 1978, eram bem mais altas não só as proporções de habitações com acesso às redes de luz e água, como os domicílios com canalização interna de água, vasos sanitários e fossas sépticas.

A massa de salários industriais, a receita tributária gerada pela “nova indústria”, a remuneração de serviços a ela vinculados e o próprio volume de salários referentes à máquina governamental não poderiam deixar de filtrar, ainda que em pequena escala, uma parcela de renda para a sustentação do terciário primitivo e do artesanato, expandindo o mercado dos bens e serviços de consumo. Embora, como se sabe, esse artesanato e esse terciário devam sua existência ao baixo nível dos salários na economia formal.

ESTRUTURA INDUSTRIAL E SALÁRIOS: RECIFE E SALVADOR

É certo que Salvador e Recife são em parte “incomparáveis” quanto às condições de suas populações, uma vez que diferem em substância, sobretudo nos últimos decênios, não só os seus interiores, como em parte suas funções intrarregionais. Um dos efeitos dessas diferenças está na evolução, no ritmo e no volume relativo diversos das migrações dirigidas às duas metrópoles. Além disso não é possível comparar estritamente os territórios das duas áreas metropolitanas, conforme definidos nas estatísticas oficiais. Contudo, isso não impede de considerar-se as diferenças no tempo, dentro de cada área. E é sob essa perspectiva que aqui se procura ensaiar esta comparação.33 33 São praticamente inexistentes comparações entre Recife e Salvador, ou Pernambuco e Bahia. Ver, por exemplo, os trabalhos de Pedro GEIGER, Paul S1NGER e Vilmar FARIA, para citar os que ensaiaram estudos comparativos Inter metropolitanos, mas que omitem tal comparação.

Em 1970, a estrutura industrial de Salvador era imensamente menos diversificada que a de Recife. Excluída a produção de petróleo e derivados, o tamanho do setor era significativamente menor. Entretanto, Salvador já apresentava aspectos que se afirmariam mais tarde: maior intensidade de capital, maiores salários médios, inclusive entre o pessoal diretamente ocupado na produção, além de maior produtividade média. Essas relações confirmam-se mesmo quando abstraído o setor petroleiro (a petroquímica ainda não existia). Na verdade, a presença da PETROBRÁS em Salvador elevava enormemente a rentabilidade média por empresa em relação ao volume da mão-de-obra ocupada, a média dos salários - sobretudo o diferencial entre salários de produção e salários do pessoal fora da produção direta, bem como o peso relativo do quadro administrativo frente ao total da mão-de-obra. Ainda assim, excluída a PETROBRÁS, as demais atividades, mais comparáveis às de Recife na época, mostravam no conjunto um nível mais alto de desenvolvimento. Em Recife, o peso das indústrias ligadas a têxteis, fiação e tecelagem, e alimentação e vestuário, de composição orgânica bem mais baixa, e em grande parte herdeiras da velha indústria, além de diretamente comprometidas com o rebaixamento do valor da força de trabalho, puxava para baixo as médias gerais. Nos setores “dinâmicos”, comuns às duas áreas - transformação de minerais não-metálicos, metalurgia e química não ligada ao petróleo, as duas situações se equivaliam. A única exceção no conjunto era o setor de bebidas, onde, apesar de uma baixa composição orgânica, os salários médios ultrapassavam em Recife os de Salvador. Mas este é o caso de uma produção fortemente oligopolizada dentro do setor de bens de consumo final, no Brasil.

Em 1975, a situação de Salvador, excluídos o petróleo e a petroquímica, para tornar mais convincente a comparação, é sem dúvida superior. Os salários médios crescem mais, porém mais ainda os salários de produção, apesar de ter-se elevado menos do que em Recife a produtividade. E estreitou-se mais a distância entre salários na produção direta e fora dela, tendo-se sustentado a relação entre os efetivos de pessoal nos dois estratos. Reintroduzindo o petróleo e a petroquímica, a diferença entre os salários dos dois grupos de empregados é ainda menor e muito maior ainda sua aproximação entre 1970 e 1975. Não parece, portanto, que as indústrias mais recentemente instaladas tenham ampliado a concentração da renda por via da distribuição dos salários dentro do setor industrial.

De 1960 a 1978, nos projetos beneficiados pelos incentivos fiscais e fundos federais subsidiados, na maioria dirigidos às duas regiões metropolitanas, a relação investimento/emprego foi superior na Bahia: Cr$ 610.229,35, para Cr$ 523.776,45 em Pernambuco.34 34 BRASIL-SUDENE, Posição dos Projetos Aprovados; Situação em 1978, Recife, jan. 1979. Nos projetos à espera de aprovação em 1978, essa tendência se amplia e muito mais ainda para os projetos agropecuários. Em todos os casos, os projetos da Bahia são maiores em termos de empregos diretos e mais capital-intensivos. Na década de 60, as médias para a Bahia chegaram a estar mais de 80% acima das do Nordeste como um todo, em 1964, 1966 e 1967, chegando em 1973 a 226,8% acima.35 35 BRASIL-SUDENE, apud SAMPAIO, op. cit. Apesar disso, Recife “perde” ainda na comparação com Salvador, quanto à participação do trabalho na renda gerada, sempre que excluída a renda - certamente mais renda que lucro propriamente dito - da extração do petróleo.

Da política de “industrialização com emprego”, maior integração intersetorial e com a economia regional e, teoricamente, mais próxima do capital regional, sem dúvida favoreceu-se mais Recife que Salvador, ou em quase nada esta. No início da vida da SUDENE, Pernambuco absorveu, mais que qualquer outro estado do Nordeste, os investimentos beneficiados pela política de desenvolvimento regional. É em 1965 que a Bahia começa a ganhar a posição dominante que manteria depois. Ainda assim, Pernambuco nunca perdeu a posição de primeiro beneficiário dos novos empregos diretos criados, absorvendo quase um terço de todos os empregos previstos em projetos aprovados pela SUDENE no período 1960-1978. Em Salvador, pelo contrário, apesar dos grandes investimentos gerados pelo programa da SUDENE, favorecidos pela criação do Centro de Aratu e trazidos com a instalação do COPEC, a região continuou, até o fim da década de 70, a ter um menor peso do emprego industrial na ocupação de sua força de trabalho.

É óbvio que neste ponto é preciso levar em conta os patamares de onde partiram as duas regiões. Entretanto, nada disso impediu que outros processos afetassem aparentemente mais a fundo Salvador. Como seria de esperar, o terciário vem diferindo consideravelmente entre as duas áreas. Em comparação com Recife, Salvador teve uma maior redução da participação do terciário na ocupação da PEA. Dentro do terciário, entretanto, esta redução foi menor do que em Recife nas atividades sociais e na administração pública, sobretudo. Apesar da expansão do turismo, a prestação de serviços também cresceu menos em Salvador do que em Recife e menos do que a maioria dos demais ramos terciários dentro da própria região. Ou seja, o terciário de Salvador, além de crescer relativamente menos em participação total, desenvolveu-se mais em alguns setores modernos.36 36 V. BRANDÃO & CARVALHO, op. cit. Já em 1970, são sempre mais altos, em Salvador, a taxa de ocupação por estabelecimento e o valor das vendas e receitas por pessoal ocupado nos serviços, no comércio de mercadorias e, sobretudo, no comércio por atacado.

Apesar disso, Recife revela-se ainda mais uma vez atrás quanto ao chamado “setor informal”. Em Salvador, em 1970, o artesanato e a pequena manufatura eram relativamente maiores quanto à ocupação de pessoal, do que em Recife, em contraste com a ocupação na produção industrial propriamente dita, de composição orgânica mais baixa em Pernambuco. Mas esse setor “informal” do secundário (não incluída a construção civil) cresceu menos do que em Recife nos últimos anos. Na mesma linha, em 1978, no total da PEA, Salvador contava com apenas 78% de assalariados e, desses, 24% não tinham suas carteiras de trabalho assinadas. O subemprego aparecia ainda em taxas como 12% das pessoas ocupadas trabalhando menos de 40 horas por semana e 24% não contribuindo para o sistema de previdência social. Mas, em Recife, contavam-se apenas 76% de assalariados, dos quais 34% sem carteiras assinadas; 13% da PEA trabalhavam menos de 40 horas por semana e 39% não contribuíam para a previdência.

REPERCUSSÕES AO NÍVEL DA ESTRUTURA SOCIAL

A introdução de atividades tecnologicamente mais avançadas e a intensa redefinição do uso do solo em Salvador, que a industrialização exigiu, tornou proibitiva a manutenção de indústrias tradicionais de rentabilidade inferior, incapazes de arcar com a elevação dos salários e do preço do solo urbano. Certas dessas atividades renasceram em outras mãos, no amplo setor dos serviços e do artesanato, competindo por pequenas áreas de terreno nos bairros populares e escapando ao peso da tributação. Mas os velhos empregadores, que em parte sobreviveram em Recife, se foram em Salvador.

Resta, entretanto, saber em que medida se liquidaram ou não as velhas formas de interlocução vertical e as categorias intermédias de sustentação da estrutura tradicional. Em vários sentidos, a estrutura de poder em nível regional e as linhas básicas da velha ideologia baiana parecem permanecer com uma resistência surpreendente, de que é expressão o caráter da política partidária no Estado. Recife, apesar de transformações econômicas menos dramáticas, parece muito mais em dia com a mecânica da vida política nacional.

À medida que as diferenças entre Recife e Salvador derivam dos dois padrões de industrialização que as afastaram durante as décadas recentes é difícil de estimar rigorosamente. Por outro lado, não se pretende sugerir que, em termos relativos, com referência ao volume de investimentos ocorridos em Salvador, esta região tenha-se beneficiado relativamente mais. Pelo contrário, em termos relativos, a exploração foi certamente muito mais aguda aí. Como vimos, em 1980, cerca de 40% das famílias da Região Metropolitana de Salvador tinham até 2 salários-mínimos de rendimento médio mensal. Por outro lado, também não se trata de ignorar o caráter subalterno dessa industrialização que não se “regionaliza”, na verdade, mas antes nacionaliza, se não mundializa, a região que escolhe, e no caso, mais rapidamente Salvador que Recife.

Sem dúvida, a origem desse processo de descentralização seletiva das atividades industriais ultrapassa os limites das economias nacionais e, muito mais ainda, os estreitos graus de liberdade das formações regionais. Mas seria simplista admitir que seu desenrolar efetivo restrinja-se apenas a isso, seja na determinação de sua dinâmica econômica, seja no viés de seus efeitos mais amplos. E certo, também, que nada garante a direção desses resultados, cujo formato terá tanto a ver com os dados econômicos quanto com o quadro político-institucional. “Polos” ou não, “enclaves”, “crescimento harmônico” ou “descontinuidades estruturais”, promessas a longo prazo de redução ou aprofundamento da exploração do trabalho e de degradação ambiental, nada disso pode ser dado de saída. O jogo será tanto mais político quanto mais cruamente econômico.

No caso de Recife e Salvador, é evidente - a curto prazo, pelo menos - que a renda e o consumo coletivo têm-se estabelecido a níveis mais altos na última região. Além disso, é fácil antever, quanto à estrutura ocupacional de Salvador, a formação de um proletariado menos desigual em termos de níveis de qualificação; mais compacto graças ao vínculo a atividades menos dispersas, setorial e fisicamente; e mais homogêneo em termos de tempo de formação e de contato com formas mais avançadas de produção. Isso poderá ter como consequência uma estratificação talvez rígida da classe operária, com o risco de desembocar numa situação de “elite” da classe, frente ao operariado da pequena indústria, do artesanato e da construção civil, e à mão-de-obra de amplos setores do terciário. Porém, aqui, o clima político terá muito a ver com desenvolvimentos numa ou noutra direção. E, em princípio, as novas categorias têm a seu favor um potencial de organização que não poderá ser subestimado com respeito a esse processo em si. Porém, até onde lhes será possível romper com uma estrutura de poder e desafiar uma estrutura ideológica que mantêm, com uma resistência intrigante, a exclusão da maioria da população do produto do trabalho e do acesso à cidadania?

Aqui é importante ter em vista a Bahia que essa nova indústria encontrou. Pelo fim do século XIX, esta perdera no processo de renovação da economia açucareira e proibiu-se o crescimento da indústria, certamente por contar com uma base muito mais diversificada de acumulação, baseada na agricultura. Pernambuco, enquanto isso, fez uma pequena revolução burguesa, limitada pelas bases estruturais de sua formação, e cujos ganhos foram pouco a pouco reduzidos pela concorrência da produção do Centro-Sul. Contudo, isso não liquidou de todo o parque manufatureiro local. O grande mercado imediato permitiu por muito tempo a sobrevivência da velha indústria e atraiu, antes da nova industrialização, muito mais que para Salvador, capitais extra locais. A política de industrialização dos anos 60 revitalizou parte dessa antiga produção e igualmente continuou a destruir seus segmentos marginais. Os ganhos em produtividade prosseguiram por toda a década, compensados pela expansão do emprego em novos setores. Esse processo, entretanto, foi lento demais para forçar uma calibração da economia urbana em nível significativamente mais alto, como ocorrera em Salvador com a PETROBRÁS.

Recife, pelo contrário, pagou o preço de sua relativa superioridade industrial, ao iniciar-se a nova industrialização. Apesar do crescimento negativo de emprego industrial na década de 50, a região chega aos anos 60 com uma taxa mais alta de ocupação da PEA em atividades industriais do que Salvador, e com um nível de luta sindical na indústria tradicional bem superior. Ao implantarem-se as novas indústrias, estas não só contam com essa mão-de-obra cujas oportunidades de trabalho decrescem com o fechamento de velhas unidades ou a modernização da produção em outras, como beneficiam-se da repressão à luta sindical que o regime militar estabelecera de forma extremamente dura em Recife. Em Salvador, o processo chega mais tarde, e em face da insignificância da mão-de-obra industrial fora da produção petrolífera, as novas unidades, como o fizera em parte a PETROBRÁS, tiveram que importar certo pessoal qualificado de fora e competir no escasso mercado local de mão-de-obra, senão especializada, ao menos apta ao novo processo industrial, pagando talvez por isso também salários mais altos, independente da posição das empresas na estrutura econômica nacional.


Regiões Metropolitanas de Salvador1 e Recife2 indicadores de renda e consumo, 1970-1978 (%)

Regiões Metropolitanas de Salvador1 E Recife2 Força de trabalho e emprego, 197011978 (%)

REGIÕES METROPOLITANAS DE SALVADOR1 E RECIFE2 - INDICADORES DA ESTRUTURA INDUSTRIAL. 1970-19753

As diferenças entre as duas situações devem ir mais adiante, contudo. Basicamente a industrialização em Salvador vem-se fazendo num patamar tecnológico e econômico mais alto, ao lado de um capital regional omisso no setor industrial e mais maduro em nível financeiro. Tipicamente, esse capital reservou-se, quando aplicado regionalmente, às atividades da circulação (bancos, comércio, imobiliária), à construção civil, ao financiamento da agricultura de exportação e à especulação com a terra. A nova indústria, independente da acumulação em nível regional, desde a PETROBRÁS contribuiu de modo decisivo para isso, com o aumento do movimento financeiro da praça de Salvador, o crescimento da renda governamental e a expansão da importação em uma região com demanda crescente e diferenciada.

Os bancos ligaram às duas realidades - a nova indústria e os velhos negócios da cidade-porto, metrópole agromercantil de antes, transferindo recursos ao comércio, ao setor imobiliário e à construção civil. Eles, por assim dizer, devem ter “domesticado” parte do valor produzido e da renda gerada sob o controle dos capitais de fora, e parcialmente devolvidos à região pelo Estado. De outro lado, com maior receita, este pode expandir, em termos relativos, mais que em Recife, os serviços e equipamentos de consumo coletivo, com isso também alimentando a construção civil nas entressafras das obras de infraestrutura produtiva. Numa posição privilegiada frente ao novo processo de acumulação, o Estado alcançou uma autonomia inédita na experiência regional. E a Bahia “cresceu e (re)apareceu” ao nível da política nacional. Em paralelo com sua desregionalização, o governo estadual adquiriu um enorme poder de barganha perante o governo federal, e o poder político tornou-se extremamente concentrado.

CONCLUSÃO

A nova indústria em Salvador tem muito pouco a ver com a velha economia local, stricto sensu. Nem por isso ela deixou de ser afetada pelas condições antecedentes dessa economia, nem a deixou intocada. Não há enclave, pelo menos ao nível econômico. Em várias direções, a economia baiana reciclou-se a um nível bem acima do de Pernambuco, graças a pelo menos um duplo pecado “regional”: o fracasso precoce de uma tímida “revolução” urbano-industrial, talvez por começar no fim do século passado, e o seu reverso e origem, o êxito do capital comercial local, favorecido pela diversidade da base agrícola do estado, que sempre lhe permitiu ampla margem de manobra. Se essa hipótese for correta, a questão será compreender os mecanismos pelos quais e a direção em que os bancos - para não se querer apressadamente rotular o que se possa chamar de classe dominante na Bahia - vêm estruturando a nova economia da região e suas relações transregionais.

Também não parece temerário falar-se na persistência de formas políticas e ideológicas surpreendentemente arcaicas e paradoxalmente eficazes na sustentação das diferenças de classes e de sua dissimulação. O que preocupa é saber se este é apenas um entre outros· componentes de um mundo exótico e singular, ou se a experiência da Bahia poderá constituir um tipo, dentre outras categorias de casos, que o processo de desconcentração física da produção industrial começa a desencadear no Brasil de depois. Afinal, é como perguntar “de quem são (mesmo) as velas onde roço? de quem as quilhas que vejo e ouço?”.

  • 1
    “... a própria destruição da ‘região’ no processo de integração dá-se aproveitando as anteriores diferenças regionais.” OLIVEIRA, Francisco de, “Prefácio”, in Souza & FARIA (orgs.), Bahia de Todos os· Pobres, Petrópolis, Vozes/CEBRAP, 1980, p. 10.
  • 2
    Os dados referentes à população total e economicamente ativa e às atividades econômicas recenseados nacionalmente tem, quando não indicada outra fonte, a seguinte origem: BRASIL-IBGE, Censos Demográficos, 195O, 1960, 1970, 1980 (dados preliminares); Censos Econômicos, 1960, 1970, 1975; Pesquisa Domiciliar por Amostragem de Domicilios (PNAD), 1978. Em vários casos, essas mesmas fontes servem de base a taxas e índices retirados de trabalhos publicados, sendo por isso citados os últimos.
  • 3
    JATOBA, Jorge, “Emprego e Industrialização: A Experiência da Região Metropolitana do Recife (RMR), 1950-70”, in Comunicação, 13:16-64, Recife, PIMES-UFPE, 1976.
  • 4
    SAMPAIO, Fernando Talma, Aspectos da Regionalização do Desenvolvimento Industrial: O Caso Baiano, Salvador, tese de concurso para professor assistente, F. C. Econômicas, UFBA, 1974.
  • 5
    BRASIL-IBGE, Indicadores Sociais. Relatório 1979, Rio de Janeiro, 1979, p. 193.
  • 6
    V. OLIVEIRA, Francisco de, Elegia para uma re-li-gião, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977, pp. 111-118 e nota 62, p. 132.
  • 7
    BRASIL-SUDENE, apud SAMPAIO, op. cit.
  • 8
    JATOBÁ, op cit.
  • 9
    V. FARIA, Vilmar, “O Sistema Urbano Brasileiro: Um Resumo das Características e Tendências Recentes”, in Estudos CEBRAP, 18:91-115, São Paulo, Edições CEBRAP e Ed. Brasileira de Ciências, out., nov., dez., 1976.
  • 10
    BRASIL-IBGE, Indicadores para Áreas Urbanas, Rio de Janeiro, 1977.
  • 11
    Ver, por exemplo, RIVIERE d’Arc, Hélêne, Aux Environs du Pôle Metrochimique: La Difficile Croissance de la Ville de Camaçari. Documents de Recherche du CEDRAL. Centre de Recherche et Documentation sur l’ Amérique Latine (CREDAL) et lnstitut des Hautes Études de l’Amérique Latine, Paris, 1981, mimeo.
  • 12
    V. OLIVEIRA, F., 1977, op. cit.
  • 13
    A síntese do processo de decisão que levou à criação do Complexo Petroquímico de Camaçari encontra-se em MARTINS, Luciano, “La ‘joint-venture’ Etat-firme Transnationale: Entrepeneurs Locaux au Brésil’’, Sociologie et Sociétés, 10 (2); MARTINS, Luciano e THERY, Hervé, La Problematique des Pôles de Développement et l’Experience de Camaçari. Documents de Recherche du Centre de Recherche et Documentation sur l’ Amérique Latine (CREDAL) et Institut des Hautes Études de l’ Amérique Latine, Paris, 1981. Document de travail 1, mimeo.
  • 14
    OLIVEIRA, F., 1977, p. 43.
  • 15
    V. BRANDÃO, Maria, Desenvolvimento e Conduta Governamental, Salvador, ISP-UFBA, 1965.
  • 16
    BAHIA-SETRABES/CIE, Mão-de-Obra: Operário Industrial na Bahia, Salvador, direção de Istivan Jancso, c. 1967.
  • 17
    SAMPAIO, op. cit.
  • 18
    V. Oliveira 1977, pp. 42-43. O Nordeste “algodoeiro-pecuário” a que se refere o autor, quanto às bases da acumulação na região, corresponde a um dos extremos de um espaço em que “a Bahia do cacau” certamente ocupa o posto. Em todo caso, a ênfase no fato de que essa acumulação independia de um processo significativo de reinversão na região e passava em grande parte ao largo da mais-valia propriamente dita, pode ser basicamente estendida à Bahia.
  • 19
    BRASIL-SUDENE, apud SAMPAIO, op. cit.
  • 20
    Idem, ibidem.
  • 21
    BAHIA·Centro Industrial de Aratu (CIA), Aratu, n. 59, 1976.
  • 22
    FEDERAÇÃO DAS INDÚSTRIAS DO ESTADO DA BAHIA, As 200 Maiores Indústrias da Bahia, Salvador, 1974.
  • 23
    Dados de arquivo da companhia de economia mista Desenvolvimento de Camaçari S. A. (DECASA), ligada à Prefeitura Municipal de Camaçari.
  • 24
    MARTINS & THERY, op. cit., p. 24 (nota 1), passim.
  • 25
    PNAD 1978. Semana da coleta: 22 a 28.10.1978. V. nota 2 deste artigo.
  • 26
    As mudanças ocorridas na década de 70 na estrutura ocupacional da cidade do Salvador são analisadas in BRANDÃO, Maria de A. & CARVALHO, Inaiá, “Ocupação e Emprego em Salvador: Efeitos Recentes da Industrialização”, in BRITTO & FLAVO (orgs.), População, Educação e Emprego, Salvador, UFBA-CRH, 1980, pp. 131-171.
  • 27
    V. BRANDÃO & CARVALHO, op. cit., sobre alguns dos efeitos contraditórios da nova forma de inserção da região na economia nacional.
  • 28
    BNH/STRABES-BA, Diagnóstico Habitacional da Região Metropolitana de Salvador, Salvador, 1978, coord. e texto de M. A. BRANDÃO.
  • 29
    O sumário que se segue, a propósito de Recife, baseia-se em SINGER, Paul I., “Recife”, in Desenvolvimento Econômico e Evolução Urbana, São Paulo, Cia. Editora Nacional/Univ. de São Paulo, 1968, cap. 6, pp. 271-357.
  • 30
    Em 1980, as regiões metropolitanas de Recife e Salvador tinham, respectivamente, l,77 e 2,35 milhões de habitantes.
  • 31
    V. PERRUCI, Gadiel, “A Cidade do Recife (1889-1930): O Crescimento Urbano, o Comércio e a Indústria”, in Anais, VIII Simpósio Nacional dos Professores Universitários de História, São Paulo, 1974: 577-590, 594.
  • 32
    Cf. JATOBÁ, op. cit.
  • 33
    São praticamente inexistentes comparações entre Recife e Salvador, ou Pernambuco e Bahia. Ver, por exemplo, os trabalhos de Pedro GEIGER, Paul S1NGER e Vilmar FARIA, para citar os que ensaiaram estudos comparativos Inter metropolitanos, mas que omitem tal comparação.
  • 34
    BRASIL-SUDENE, Posição dos Projetos Aprovados; Situação em 1978, Recife, jan. 1979. Nos projetos à espera de aprovação em 1978, essa tendência se amplia e muito mais ainda para os projetos agropecuários. Em todos os casos, os projetos da Bahia são maiores em termos de empregos diretos e mais capital-intensivos.
  • 35
    BRASIL-SUDENE, apud SAMPAIO, op. cit.
  • 36
    V. BRANDÃO & CARVALHO, op. cit.
  • JEL Classification: R11; R12.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 1985
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