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Moeda endógena e teoria monetária da produção

Endogenous currency and monetary theory of production

RESUMO

O objetivo deste artigo é examinar a compatibilidade da teoria da produção monetária de Keynes com a abordagem “horizontalista” para a determinação das taxas de juros e da oferta de moeda. Segundo Moore, as taxas de juros de curto prazo são determinadas exogenamente pelos bancos centrais, de modo que a abordagem do portfólio para sua determinação, com base na teoria das preferências de liquidez, está incorreta. A teoria de Keynes, por outro lado, enfatiza a natureza do dinheiro como ativo, cuja taxa de juros, endogenamente determinada pela preferência de liquidez, estabelecerá o limite para a eficiência marginal de outros ativos. Este ensaio sugere que a abordagem “horizontalista” não é compatível com a visão de Keynes sobre o “dinheiro como fator real”.

PALAVRAS-CHAVE:
Emissão de moeda; determinação da taxa de juros; pós-keynesianismo; moeda endógena

ABSTRACT

The aim of this paper is to examine the compatibility of Keynes’ monetary production theory with the “horizontalist” approach to the determination of the interest rates and the money supply. According to Moore the short-term interest rates are exogenously determined by central banks, so that the portfolio approach to its determination, based on the liquidity preference theory, is incorrect. Keynes’ theory, on the other hand, emphasizes the nature of money as an asset, whose interest rate, endogenously determined by liquidity preference, will set the limit to the marginal efficiency of other assets. This essay suggests that the “horizontalist” approach is not compatible with Keynes’s view on “money as a ‘real’ factor”.

KEYWORDS:
Money supply; interest rate determination; post-keynesianism; endogenous money;

1. INTRODUÇÃO

No prefácio da Teoria Geral, ao estabelecer a relação entre seu novo livro e o Tratado sobre a Moeda, Keynes procurou sintetizar suas intenções com a nova obra, só em parte alcançadas no trabalho anterior: “encaminhar a teoria monetária no sentido de se tomar uma teoria da produção como um todo” (Keynes, 1936KEYNES, J.M. (1936) A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda. São Paulo, Nova Cultural, 1985. , p. 4). O capítulo 17 representa o núcleo desse esforço: Keynes propõe aí uma teoria geral da seleção de ativos, diferenciando-os fundamentalmente em função de sua liquidez, de seus custos de manutenção e de sua capacidade de gerar fluxos de renda. Reduz o conjunto de ativos a um denominador comum, a taxa própria de juros, que representa a “retribuição total que se espera da propriedade de um bem” qualquer (Keynes, 1936KEYNES, J.M. (1936) A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda. São Paulo, Nova Cultural, 1985. , p. 159). Aos possuidores de riqueza cabe a decisão de distribuir seus recursos entre ativos que possuem aqueles atributos em diferentes graus, de forma a igualar, na margem, as taxas próprias de juros esperadas.

É nesse contexto que Keynes procura mostrar por que a taxa de juros sobre a moeda estabelece o nível que a eficiência marginal esperada de qualquer ativo deve alcançar para que sua aquisição se justifique. As baixas elasticidades de produção e substituição da moeda justificariam a rigidez à baixa de sua taxa de juros, fixando, desse modo, o piso para a eficiência marginal do conjunto de ativos.

A polêmica recente entre autores pós-keynesianos quanto ao grau de endogenia da oferta monetária tem, por vezes, localizado nestes atributos da moeda um ponto que deve ser superado no paradigma keynesiano, já que eles seriam a fonte direta da hipótese, implícita na Teoria Geral, de uma oferta de moeda exógena.1 1 “Vamos levantar a hipótese de que o postulado das propriedades da moeda é ‘negligenciável’ na teoria monetária pos-keynesiano”, (Costa, 1993, p. 62). Considerando as importantes modificações no sistema financeiro contemporâneo, expressas na expansão contínua dos agregados monetários e na ampliação do poder privado de criação de moeda, ou ainda no processo de inovações financeiras e de criação de substitutos próximos da moeda, aquela hipótese levantada por alguns pós-keynesianos parece, à primeira vista, plenamente justificada. Tal discussão, no entanto, passa ao largo de uma avaliação mais bem fundamentada do significado que a ruptura com aqueles postulados tem para o conjunto da construção teórica de Keynes. Não se trata de “fundamentalismo pós-keynesiano”, até porque esse tipo de qualificação não esclarece muito a respeito das bases teóricas que justificam as opções dos diversos autores. O fato é que a própria forma como essa polêmica foi retomada vem, em grande parte, condicionando os caminhos que a discussão tem, desde então, percorrido. É o que se pretende analisar a seguir.

2. QUANTIDADE DE MOEDA VERSUS TAXA DE JUROS

Foi Kaldor (1982KALDOR, N. (1982) The Scourge of Monetarism. Oxford, Oxford University Press, 1986. ) o autor que estabeleceu os contornos iniciais do debate. No livro The Scourge of Monetarism suas opiniões podem ser sintetizadas na proposição de inverter a causalidade geralmente admitida pela teoria quantitativa da moeda (TQM): não é a quantidade de moeda que determina preços; ela, na verdade, é criada endogenamente na quantidade necessária para fazer frente às decisões de gasto ao nível de preços corrente. Assim, ao rigoroso controle que a autoridade monetária (AM) poderia exercer sobre a quantidade da moeda, segundo o monetarismo, contrapõe-se a completa endogenia de sua oferta; ao verticalismo monetarista, o horizontalismo da curva de oferta de moeda perfeitamente elástica (Moore, 1988MOORE, B. (1988) Horizontalists and Verticalists: the Macroeconomics of Credit money. Cambridge, Cambridge University Press. ). O foco da polêmica se concentra na quantidade de moeda, uma ênfase que de fato é compartilhada pelas duas concepções. Com isso a discussão perde muito em conteúdo e capacidade de refletir a complexa interação entre moeda e economia “real”. Ela parece, na verdade, a reedição da tradicional polêmica entre defensores da Banking School e da Currency School, um debate com certo sabor pré-keynesiano.

Embora não muito lembrado pelos protagonistas dessa discussão, os modelos com moeda endógena desenvolvidos por Hicks guardam um considerável parentesco com as ideias de Kaldor e Moore. Sua comparação entre economias com moeda-mercadoria e com moeda de crédito permitiu-lhe delimitar com mais exatidão o ponto que diversos horizontalistas parecem considerar relevante: em uma economia com moeda de crédito é a “taxa de juros que se torna o mecanismo regulador efetivo, e não a quantidade de moeda em qualquer sentido” (Hicks, 1977HICKS, J. (1977) “Experiência monetária e a teoria da moeda”.In: Hicks J. Perspectivas Econômicas: Ensaios sobre Moeda e Crescimento. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1978. , p. 80). Do mesmo modo que Kaldor e Moore, Hicks contrapõe à moeda-mercadoria a moeda de crédito, ao mundo da teoria quantitativa da moeda, uma economia na qual aquela teoria não mais conservaria sua validade; só que essa contraposição é agora enfocada de outra forma, através da dicotomia quantidade de moeda/taxa de juros.

No entanto, no interior da estrutura teórica sugerida por Keynes, tal dicotomia não faz muito sentido: a taxa de juros sobre a moeda é o “mecanismo regulador” em qualquer economia monetária, esteja ela baseada em uma moeda-mercadoria ou na moeda de crédito, já que representa a taxa de retorno dos ativos “mais resistente à baixa”. Não resolve a questão estender a endogenia monetária à moeda-mercadoria.2 2 “Inclusive na vigência do padrão ouro ... a moeda deve ser vista como endógena” (Costa, 1993, p. 65). 7 O fato de as decisões de gasto em bens e serviços, a uma dada velocidade-renda, determinarem a quantidade de moeda necessária à circulação das mercadorias não elimina o fato de que a moeda não participa exclusivamente da circulação industrial; ela também toma parte na circulação dos ativos - na circulação financeira, para empregar a terminologia de Keynes no Tratado sobre a Moeda -, na qual ela mesma é um ativo.

É assim que Keynes, procurando fazer uma ponte com o conceito clássico de entesouramento, sugere a sua substituição pela ideia de “propensão a entesourar” e o considera “uma primeira aproximação do conceito de preferência pela liquidez” (1936, p. 126). Acrescenta ainda: a “única coisa que a propensão do público a entesourar pode conseguir é fixar a taxa de juros que iguala o desejo global de entesourar ao encaixe disponível”. Note-se que no caso da moeda-mercadoria o encaixe total, representando o conjunto de encaixes ativos - transacionais - e os ociosos entesourados, está exogenamente fixado. Deste modo, o ponto a ser enfatizado é o de que a compatibilização entre as variações na relação encaixes ociosos / encaixes transacionais e o total disponível de encaixes é realizada pela taxa de juros, que indica, para um dado estoque de moeda, a propensão a entesourar do público.3 3 Keynes faz ainda a sugestiva observação de que o “hábito de não se dar a devida atenção à relação da taxa de juros com o entesouramento pode explicar, em parte, a razão pela qual o juro tem sido usualmente considerado como uma recompensa por não gastar, quando, na realidade, ele é a recompensa por não entesourar”.

No entanto, à medida que os depósitos bancários se tornaram amplamente aceitáveis como meio de pagamento, não é mais possível ignorar que o estoque de moeda passe também a depender do comportamento do sistema bancário no que se refere à extensão de crédito e, desse modo, deixe de ser uma variável passível de controle estritamente exógeno. Ainda assim, parece mais adequado, para entender o real alcance da posição horizontalista, deslocar a discussão, de sua ênfase original na quantidade de moeda para a questão realmente mais relevante: a formação da taxa de juros.

3 OS HORIZONTALISTAS, A TAXA DE JUROS E A TEORIA MONETÁRIA DA PRODUÇÃO

3.1 A taxa de juros de curto prazo

O papel atribuído por Hicks à taxa de juros é uma consequência de sua constatação de que, em uma economia com moeda de crédito, a oferta de moeda “[n]ão é uma variável exógena, uma vez que [ela] é fornecida pelos bancos na medida das necessidades do mercado”. Nesse caso, a verdadeira “variável exógena seria ... a política bancária”, “representada, aproximadamente, pelas taxas de empréstimo” (Hicks, 1977HICKS, J. (1977) “Experiência monetária e a teoria da moeda”.In: Hicks J. Perspectivas Econômicas: Ensaios sobre Moeda e Crescimento. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1978. , pp. 77-8). Para os horizontalistas esse papel atribuído à taxa de juros sofre uma importante modificação: o determinante na sua formação se desloca dos bancos em geral (“da política bancária”) para a autoridade monetária.4 4 “O estoque da moeda será determinado pela demanda, e a taxa de juros ... pelo Banco Central” (Kaldor, 1982, p. 24).

A discussão sobre a formação da taxa de juros ganha maior detalhamento nos trabalhos de Moore. No que se refere às “taxas de curto prazo” ele sugere que elas “são mais corretamente vistas como um mark-up relativamente estável sobre a taxa dos fundos federais, que é exogenamente administrada pelas autoridades monetárias” (Moore, 1988MOORE, B. (1988) Horizontalists and Verticalists: the Macroeconomics of Credit money. Cambridge, Cambridge University Press. , p. 283). Mas, uma vez que o Banco Central controla o “preço de oferta marginal de fundos bancários” - no caso dos “Estados Unidos ... , a taxa dos fundos federais” - e que a formação de preços no oligopólio bancário se dá via “mark-up relativamente estável”, parece claro que a AM tem sob seu controle a própria taxa de juros de curto prazo.

Sem dúvida tal posição não implica necessariamente uma política monetária passiva. Ela simplesmente indica que o instrumento de intervenção da AM é exclusivamente o preço das reservas, nunca sua quantidade, e que sua política monetária é realizada via taxa de juros rígida no curto prazo. É por isso que a curva de oferta de moeda seria infinitamente elástica (horizontal) à taxa de juros assim fixada. Logo, “[v]ariações nos níveis fixados mudam a função de oferta monetária a curto prazo para cima ou para baixo, mas a curva de oferta de curto prazo permanece horizontal” (Costa, 1994COSTA, F.N. (1994)” Sobre o ‘horizontalismo’ da oferta de moeda: tréplica ao professor Cardim de Carvalho”. Revista de Economia Política 14(1). , p. 143). Nesse caso, a intervenção da AM necessariamente induz a deslocamentos verticais da curva de oferta, nunca a mudanças de sua inclinação nula.

Mas é necessário observar que a horizontalidade da curva de oferta de moeda não depende somente da suposição de que o Banco Central intervirá via preço de reservas estável no curto prazo. A hipótese de que o mark-up sobre o custo dos fundos é “relativamente estável” desempenha um papel crucial na argumentação de Moore.

A extensão de um mecanismo de formação de preços tipo mark-up para os empréstimos bancários parece ter sido inicialmente sugerida por Rousseas (1986ROUSSEAS, S. (1986) Post Keynesian Monetary Economics. Armonk, M.E. Sharpe. ). Em Moore essa hipótese adotou a forma da curva de oferta de moeda infinitamente elástica.5 5 Rousseas não compartilha desta opinião de Moore: “o grau no qual a oferta de moeda é positivamente inclinada depende das políticas discricionárias do Federal Reserve” (Rousseas, 1989, p. 478). Vários questionamentos já foram levantados quanto a esse tipo de abordagem: (i) qual a taxa básica que melhor representa o custo dos fundos bancários? (Niggle, 1987NIGGLE, C. (1987) “A comment on the markup theory of bank loan rates”. Journal of Post Keynesian Economics IX (4). ); (ii) há ou não discriminação via taxa de juros - que, obviamente, se expressaria no mark-up utilizado - entre pequenos e grandes tomadores de empréstimos, como sugegere Laudadio (1987LAUDADIO, L. (1987) “Cornmercial banks: market structure and short-term interest rates”. Journal of Post Keynesian Economics IX (4). ) ? (iii) os bancos limitam o crédito somente via preços, ou também recorrem a restrições quantitativas, já que “taxas de juros mais altas levariam a uma seleção adversa [de clientes], na qual somente tomadores de empréstimos” menos confiáveis iriam solicitar crédito? (Wray, 1990WRAY, L.R. (1990) Money and Credit in Capitalist Economies: the Endogenous Money Approach. Hants, Edward Elgar Publishing., p. 180); (iv) em que medida informações sobre a credibilidade do cliente - informações dispendiosas, não-transferíveis e que demoram para ser obtidas - são decisivas na concessão de empréstimos ou então o determinante é tão-somente a aceitação do preço fixado?6 6 Wray (1990, pp. 177-88) faz uma minuciosa discussão do assunto, para concluir que “há sempre uma ‘franja de tomadores de empréstimo insatisfeita’ - aqueles que não receberam nenhum crédito ou menos que o desejado”. Logo, “considerações micro levam a restrições de crédito em nível macro”. Na sua polêmica com Cardim de Carvalho, Nogueira da Costa (1994, p. 145) parece argumentar o contrário, que considerações em nível micro não afetam as conclusões horizontalistas em nível macro: “[t]emos uma concordância ‘micro’. A discordância é ‘macro’”.

Mas o questionamento essencial parece ser outro. Para demarcá-lo é necessário retomar um pouco a intenção desses autores com a extensão do mecanismo de formação de preços via mark-up à taxa de juros. Rousseas pretende adequar a versão kaleckiana de mark-up à formação de preços de empréstimos bancários. Observa, por exemplo, que “o excesso planejado de capacidade, que desempenha um papel crítico na teoria original de preços de Kalecki, deve ser abandonado, já que os bancos geralmente mantêm seu excesso de reservas a um [valor] mínimo” (1987, p. 642). E complementa: “bancos são fixadores de preços e tomadores de quantidade nos seus mercados ‘varejistas’ de empréstimos, e tomadores de preços e fixadores de quantidade nos seus mercados competitivos ‘atacadistas’, onde disputam a matéria-prima de seus negócios, determinando desse modo o custo de atrair fundos empregados para ‘produzirem’ seus empréstimos”. Já Moore procura destacar a impossibilidade de excesso de moeda em uma economia com moeda de crédito: da mesma forma que “em serviços tais como cortes de cabelo (sic), a oferta de moeda não existe de forma independente da demanda” (1989, p. 486). Mas, no que se refere especificamente à formação de preços, ele compartilha dos pontos de vista de Rousseas: “[c]omo outros varejistas, bancos são caracteristicamente fixadores de preço e tomadores de quantidade nos seus mercados varejistas” (p. 479).

A ênfase nessas analogias acaba obscurecendo o que é específico do setor bancário. Sem dúvida que do ponto de vista da formação de preços é relevante o maior ou menor impacto de determinado setor na economia, seja ele composto de bancos ou até mesmo de salões de beleza. Mas não é essa a diferenciação que deve ser enfatizada aqui. O fato fundamental a observar é que a concessão de crédito representa para o banco a aquisição de um ativo. Ao concederem créditos os bancos estão tomando decisões cruciais quanto à composição de seu portfolio e quanto à sua liquidez. Se é para estabelecer analogias, tais decisões, principalmente pelo seu conteúdo, estão mais próximas das decisões de investir do que das decisões de produzir.

Ao contrário dos oligopólios industriais ou do setor de serviços, não é provável - nem há por que ser uma norma de conduta - que os bancos reajam a uma rápida expansão da demanda por sua “mercadoria”, o crédito, somente com ajustes via quantidade; pelo simples fato de que tal expansão do crédito elevaria sua exposição, seus níveis de alavancagem. Ainda que os “novos” clientes não representem um grau de risco diferenciado em relação aos tomadores tradicionais de empréstimo, a incerteza incidente sobre o pagamento de todo e qualquer empréstimo, ampliada pela expansão acelerada destes, justifica que os bancos tendam a fazer frente a esse aumento da demanda também via ajuste de preços. Por mais especulativos - à la Minsky - que sejam, os bancos mantêm alguma preocupação com a “relação entre empréstimos e ativos seguros, tais como títulos governamentais mais reservas, e com a razão entre empréstimos e patrimônio líquido” (Wray, 1990WRAY, L.R. (1990) Money and Credit in Capitalist Economies: the Endogenous Money Approach. Hants, Edward Elgar Publishing., p. 179), para serem capazes de honrar seus compromissos no caso de inadimplência de devedores. Em suma, a preferência pela liquidez dos bancos afeta sua disponibilidade de conceder crédito. A um dado estado de preferência pela liquidez, um aumento acentuado da demanda por crédito tende a pressionar a taxa de juros sobre os empréstimos, elevando o spread em relação ao custo dos fundos.

Ainda assim é possível argumentar que os bancos atuam de uma forma similar àquela sugerida para a autoridade monetária na concessão de reservas: se sua preferência pela liquidez se altera, o resultado só se fará sentir no próximo curto prazo. Nesse caso, mesmo diante da argumentação anterior, a curva de oferta de moeda continuaria horizontal, com possíveis deslocamentos verticais tanto em função de mudanças no custo dos fundos como em função de variações no mark-up estabelecido pelos bancos.7 7 Parece ser essa a intenção de Nogueira da Costa (1994, p. 146) ao sugerir que Moore “também admite que uma variedade de fatores afeta o tamanho do mark-up sobre o custo por atacado das reservas”. Sendo assim, ainda que se considere “extremamente complexa a questão dos prazos na área financeira” (Costa, 1994COSTA, F.N. (1994)” Sobre o ‘horizontalismo’ da oferta de moeda: tréplica ao professor Cardim de Carvalho”. Revista de Economia Política 14(1). , p. 143), sobre ela é que recairia o ônus de compatibilizar variações na preferência pela liquidez dos bancos com a curva de oferta de moeda horizontal no curto prazo. A “sucessão de curtos prazos” - ou de “períodos de mercado” - é que permitiria compatibilizar o comportamento dos “banqueiros, como produtores de serviços”, fixando preços e tomando quantidades, com eventuais ajustes via preços na transição de um período para outro, resultantes agora de variações na sua preferência pela liquidez.

Desse modo, a horizontalidade da curva de oferta de moeda passa também a depender de forma crucial da maior ou menor frequência com que os bancos se disponham a alterar o spread entre taxas de captação de recursos e de concessão de empréstimos. Mais uma razão para concluir que a “validade do argumento fica ... confinada ao curtíssimo prazo” (Carvalho, 1993CARVALHO, F.C. (1993) “Sobre a endogenia da oferta de moeda: réplica ao professor Nogueira da Costa”. Revista de Economia Política 13(5). , p. 117). Na verdade, parece que ela se reduz à constatação de que “[t]odo crédito é contratado a uma dada taxa de juros, sobre a qual os demandantes decidem a operação de empréstimo” (Costa, p. 145). Não interessa se créditos a diferentes clientes são contratados a diferentes taxas, se alguns clientes têm mais crédito do que desejam, se outros têm menos do que necessitam, se hoje se contrata crédito a um preço, amanhã a outro. O relevante é que o crédito é contratado a um valor dado de taxa de juros e ao demandante só cabe a decisão de adquiri-lo ou não a esse preço. Posto nesses termos não há do que discordar, já que o argumento se torna genérico o suficiente para admitir diferentes perspectivas.

Que um bem ou serviço seja colocado à venda (ou vendido) a determinado preço, em função do qual os demandantes decidem ou não adquiri-lo no “período de mercado”, até caracteriza uma formação de preços do tipo fix-price, porque o preço - no caso específico, a taxa de juros - é fixado, por hipótese, ex-ante; mas isso não informa muito sobre o grau de rigidez na formação de seu preço entre períodos e até mesmo entre operações de crédito sucessivas. Nesse caso, a tentativa de compatibilizar a preferência pela liquidez com a curva de oferta de moeda horizontal parece mais obscurecer a questão do que contribuir para o seu devido esclarecimento.

3.2 Os horizontalistas e a preferência pela liquidez

De fato, é importante considerar que tanto os horizontalistas como Rousseas discordam da concepção de preferência pela liquidez. Kaldor (1986KALDOR, N. (1982) The Scourge of Monetarism. Oxford, Oxford University Press, 1986. ) a considera uma mera modificação da TQM, não seu abandono. Tal opinião é compartilhada in totum por Moore (1988MOORE, B. (1988) Horizontalists and Verticalists: the Macroeconomics of Credit money. Cambridge, Cambridge University Press. ). Rousseas destaca que o relevante é o fluxo de crédito para o setor industrial, e vê no motivo finance, proposto por Keynes nos anos seguintes à publicação da Teoria Geral, um retomo a essa perspectiva, já desenvolvida por ele no Tratado sobre a Moeda. A essa perspectiva se contraporia a abordagem tipo “ativo - portfolio da teoria da preferência pela liquidez” (Rousseas, 1986ROUSSEAS, S. (1986) Post Keynesian Monetary Economics. Armonk, M.E. Sharpe. , p. ix). A interpretação de Moore vai na mesma direção: o motivo finance seria “realmente o argumento conclusivo pela endogeneidade do estoque de moeda”; com ele Keynes teria admitido que os “bancos retêm a posição-chave no processo de expansão econômica ... uma posição que Keynes mesmo tinha previamente desenvolvido, em alguma extensão, no Tratado” (1988, pp. 199-204).

Está claro que a diferenciação traçada por esses autores procura sublinhar uma provável incoerência entre as concepções desenvolvidas por Keynes nas suas duas obras principais. O conceito de preferência pela liquidez, por exemplo, estaria irremediavelmente associado à moeda exógena, enquanto o relevante seria o fluxo de crédito para a circulação industrial ou, em outros termos, a endogeneidade da moeda. Desconsidera-se, assim, que já no Tratado Keynes havia apresentado os elementos básicos de sua teoria da preferência pela liquidez. Nessa obra ele sugere uma taxonomia dos agentes em função de sua preferência por uma ou outra forma de conservar riqueza: um “baixista” é “aquele que prefere no momento evitar títulos” e opta por “reter direitos líquidos sobre moeda”, enquanto um “altista” é “alguém que prefere reter títulos - o primeiro antecipa que os títulos irão cair em valor monetário e o último que eles irão subir” (Keynes, 1971KEYNES, J.M. (1971) A Treatise on Money, vol.I, The Collected Writings of John Maynard Keynes, vol. V. Londres, MacMillan. , p. 224)8 8 Na Teoria Geral, Keynes (1936, p. 125) esclarece que embora não sejam conceitos “idênticos”, “a preferência pela liquidez devido ao motivo especulação corresponde ao que em ... [sua] obra Treatise on Money ... [denominou] o ‘estado de baixa’”. . Agrega a esta taxonomia a diferenciação adicional entre circulação financeira, associada à posse e ao intercâmbio de direitos à riqueza acumulada, e circulação industrial, vinculada ao processo de geração da renda. É neste quadro que as variações na preferência dos agentes por uma ou outra forma de conservar riqueza passam a determinar o ritmo de criação de nova riqueza. Justamente por isso os bancos podem desempenhar um papel-chave na regulagem do sistema econômico: a alteração dos “termos de concessão de empréstimos” interfere na distribuição dos agentes entre “baixistas” e “altistas”, influenciando assim sua opção entre formas líquidas ou ilíquidas de conservar riqueza.

Desse modo, toma-se claro quanto a posição de Moore se atém ao aspecto formal da questão. Os bancos detêm a posição-chave não porque se disponham a satisfazer toda a demanda de crédito a uma dada taxa de juros exogenamente fixada pela AM, mas por poderem interferir na preferência pela liquidez do público via variações na taxa de juros.9 9 No Tratado Keynes (197l, p. l64) atribui aos bancos o papel de um “agente livre ... [que] pode ... controlar o resultado final”, certamente um qualificativo não extensível a um sistema bancário cuja taxa de juros é determinada pela AM e cuja quantidade de moeda é fixada pela demanda. Na Teoria Geral Keynes desloca um pouco o eixo da questão. Embora não faça qualquer discussão mais explícita sobre o papel dos bancos, o seu ceticismo quanto à eficácia do emprego isolado da política monetária parece não deixar margem à dúvida quanto à sua descrença no real interesse dos bancos em desempenhar esse papel regulador. Se os bancos, diante de um aumento na preferência pela liquidez do público, podem satisfazer essa demanda por liquidez, adquirindo, por exemplo, os títulos de longo prazo em seu poder, e assim evitar um queda no valor desses títulos e os impactos negativos sobre a demanda efetiva, não significa que se disponham a fazê-lo. Isso em nada diminui a relevância do sistema bancário. Justamente ao contrário: à medida que a concessão de crédito passa a depender de forma decisiva da preferência pela liquidez dos próprios bancos, os “termos de empréstimo” e suas variações terão um impacto ainda maior na decisão dos agentes.

Portanto, a questão de fundo não é se a AM detém ou não controle completo sobre a quantidade de moeda. O importante é que o comportamento dos bancos na concessão de crédito tende a exacerbar as flutuações econômicas. Nos períodos de descenso, a postura defensiva dos bancos, optando por uma maior seletividade na concessão de créditos, mesmo diante de uma demanda mais restrita, tende a amplificar os efeitos depressivos. Já em épocas de boom, os bancos compartilham com o público uma redução acentuada da preferência pela liquidez e, por isso, tendem a sancionar suas mais variadas apostas especulativas, contribuindo para a fragilização da estrutura financeira. Minsky (1957MINSKY, H. (1957) “Central banking and money market changes”. Quaterly Journal of Economics LXXI (2). ) já sugeria isso em seu trabalho pioneiro sobre as inovações financeiras. Mudanças institucionais, como a criação do mercado interbancário (“mercado de fundos federais”) e dos acordos de recompra de títulos do tesouro, permitem expandir os depósitos à vista e ampliar a concessão de crédito, mesmo com uma quantidade de reservas constante e sob controle rigoroso da AM. Mas as inovações financeiras tendem a reduzir a liquidez da economia e aumentam sua vulnerabilidade, já que crises de liquidez localizadas têm seu potencial de generalização ampliado.

Vale destacar que, mesmo no caso de uma política monetária restritiva, Minsky deriva uma “curva de oferta de moeda” bastante elástica, tendo como base uma situação de preferência pela liquidez baixa, dos bancos e do público em geral.10 10 Nesse texto Minsky (1957, p. 185) trabalha com um conceito bem restrito de moeda e prefere referir-se à questão em termos de ampliação da “oferta de financiamento”: “durante um boom forte as taxas de juros não irão subir muito, já que a oferta de financiamento é, de fato, muito elástica”. Tal conclusão prescinde de qualquer das hipóteses de Moore, de um mark-up estável e de reservas bancárias endogenamente determinadas. Portanto, parece claro que “a política das autoridades monetárias pode ser confirmada, atenuada ou contraposta por uma estratégia adversa dos bancos” (Carvalho, 1993CARVALHO, F.C. (1993) “Sobre a endogenia da oferta de moeda: réplica ao professor Nogueira da Costa”. Revista de Economia Política 13(5). , p. 119). Uma estratégia que procura “conciliar lucratividade com liquidez” na aquisição de ativos, mas cuja ênfase em um ou outro desses atributos depende das variações na preferência pela liquidez. Nesse caso, é necessário analisar a relação entre essas variações e a evolução do portfolio bancário, inclusive para incorporar à discussão o impacto, em termos de fragilização da estrutura financeira, do maior ou menor grau de endogenia da moeda.

3.3 Entesouramento, preferência pela liquidez e fragilidade financeira

Mas essa é uma perspectiva que não encontra eco nos trabalhos de Moore. Basta, por exemplo, considerar sua observação a seguir: “em uma economia com moeda de crédito o entesouramento é socialmente benéfico ... [pois] ... representa a ampliação do ‘empréstimo de conveniência’ de moeda fiduciária ao sistema bancário e assim o aumento de crédito aos tomadores de empréstimos bancários” (1989, p. 482). O contraste com as concepções de Keynes é nítido. Enquanto este vê no “conceito de entesouramento ... uma primeira aproximação do conceito de preferência pela liquidez” (1936, p. 126) e, portanto, como um aspecto negativo inerente a qualquer economia monetária, Moore prefere colocar a questão em outros termos: o importante é que os encaixes líquidos não são retirados de circulação, possibilitando a intermediação bancária e a concessão de crédito para que os outros agentes realizem gasto deficitário. Nesse caso, o aspecto negativo do entesouramento estaria irremediavelmente associado a uma economia com moeda-mercadoria.11 11 Pois somente nesse tipo de economia o entesouramento “representava uma transferência da demanda por serviços e bens reprodutíveis para a acumulação de tesouros monetários estéreis” (Moore, 1989, p. 482).

Duas objeções parecem óbvias. Em primeiro lugar, mesmo sistemas monetários menos sofisticados, baseados em alguma moeda-mercadoria, apresentavam relações de débito e crédito já desenvolvidas. Desse modo, mesmo nesse caso, o poder de compra não era exclusivamente determinado pela quantidade total de moeda. Ele dependia também da disponibilidade dos agentes e do sistema bancário em não entesourar, ampliando, assim, a possibilidade de conceder crédito. Além disso, a constatação de que sistemas monetários mais sofisticados, fundados em moeda sem lastro, ampliaram o poder de financiamento das decisões de gasto deficitário não representa qualquer novidade, nem dispensa de consideração a preferência pela liquidez dos bancos.

O questionamento básico, no entanto, parece ser outro. Moore observa que um aumento no entesouramento - ou, em seus termos, “um aumento no empréstimo de conveniência” ao sistema bancário - “não requer perda de liquidez ou adiantamento involuntário do consumo”. Nesse caso, o entesouramento pode ser considerado como “poupanças correntes ... mantidas líquidas por seus proprietários” (Keynes, 1973bKEYNES, J.M. (1973b) The General Theory and After: part II, Defence and Development, The Collected Writings of John Maynard Keynes, vol. XIV. Londres, MacMillan . , p. 284). Mas o que se desconsidera nesse tipo de abordagem é “o fato de que gastar libera fundos tanto quanto [essa] poupança” mantida líquida (Keynes, 1973bKEYNES, J.M. (1973b) The General Theory and After: part II, Defence and Development, The Collected Writings of John Maynard Keynes, vol. XIV. Londres, MacMillan . , p. 282), e que, enquanto não houver alteração no desejo dos agentes em reter depósitos à vista, em face da possibilidade de reter moeda em espécie - isto é, à medida que os depósitos à vista mantenham sua “monetabilidade” (Moore, 1989MOORE, B. (1989) “On the endogeneity of money once more”. Journal of Post Keynesian Economics XI (3). , p. 480) -, aqueles fundos, sendo gastos ou não, não deixarão o sistema bancário. De fato, se as unidades superavitárias decidissem zerar a parcela de seus superávits retida como depósitos junto aos bancos12 12 Wray (1989, p. 1187) interpreta o conceito de empréstimo de conveniência proposto por Moore como os “superávits” que as “unidades superavitárias normalmente retêm ... como depósitos nos bancos”. , optando por ampliar seus gastos, que efeito negativo isso traria para o empréstimo de conveniência? Provavelmente nenhum. Mas parece claro que tal decisão ampliaria a demanda efetiva, indicando que o entesouramento tem um efeito depressivo sobre ela; a não ser que se admita, implicitamente, que o aumento do empréstimo de conveniência necessariamente amplie a concessão de crédito. Nesse caso, como compatibilizar tal hipótese com a concepção de que a “quantidade de crédito bancário é inteiramente determinada pela demanda?” (Moore, 1989MOORE, B. (1989) “On the endogeneity of money once more”. Journal of Post Keynesian Economics XI (3). , p. 485).

Há por fim um último aspecto da questão, provavelmente o mais importante. O “empréstimo de conveniência” é visto por Moore como a “fonte de fundos de empréstimo com menor custo”, já que exigiria a “menor recompensa pecuniária para induzir um aumento de sua oferta”. E embora possa ser, “para cada depositante individual”, um empréstimo de “muito curto prazo”, no agregado ele “representa um empréstimo de longo prazo ao sistema bancário, que o banco pode transformar em empréstimo de longo prazo para tomadores de empréstimos individuais” (Moore, 1989MOORE, B. (1989) “On the endogeneity of money once more”. Journal of Post Keynesian Economics XI (3). , p. 483). Desse modo, além da intermediação entre unidades superavitárias e deficitárias, os bancos realizariam a transição entre um passivo de curto prazo e um ativo de prazo superior sem maiores dificuldades, seja porque dispõem de fontes de recursos baratos e, em termos agregados, de longo prazo, seja porque “a posição deficitária de alguns bancos, em função da concessão de empréstimos, ... [é] necessariamente igual à posição superavitária de outros”, de tal forma que a “posição líquida do sistema bancário” é “necessariamente” zerada no mercado de fundos no atacado (Moore, 1989MOORE, B. (1989) “On the endogeneity of money once more”. Journal of Post Keynesian Economics XI (3). , p. 481).

Assim, uma vez estabelecido o custo de recursos no mercado de fundos no atacado, a fixação pelos bancos da taxa de concessão de empréstimos e de captação de recursos no varejo, com base em mecanismos de mark-up e mark-down referidos àquela taxa básica, resolveria o problema bancário de intermediação de recursos no tempo e no espaço. Mas como desconsiderar que o descasamento dos prazos entre passivo e ativo torna possível uma evolução das taxas de captação e concessão que o emprego de mecanismos tipo mark-up não consegue solucionar? De fato, um aumento no entesouramento - ou na preferência pela liquidez - indica uma tendência à elevação da taxa de juros, que só não se efetivará se a AM garantir o aumento das reservas bancárias a um baixo custo. Mas, se aquela possibilidade se efetiva, como evitar o descasamento entre as taxas de juros dos ativos de longo prazo já em posse do sistema bancário e as novas taxas de captação vigentes? Se, por outro lado, esse risco é admitido, como ignorar um comportamento dos bancos muito mais sensível às oscilações de suas expectativas e grau de incerteza do que qualquer mecanismo tipo “mark-up relativamente estável” pode pressupor?13 13 Wray (1990, p. 192) argumenta que a experiência monetarista do Federal Reserve indica “que os bancos não podem se ajustar instantaneamente a um regime de taxas de juros mais altas simplesmente pela adição de um mark-up à taxa de redesconto”. A observação anterior complementa o argumento: ainda que os bancos procedam à sua formação de preços via mark-up, a mera existência desse descasamento entre prazos de captação e concessão torna o mark-up muito mais sensível às oscilações das expectativas.

De fato, mesmo na acepção empregada por Moore, o entesouramento indica a preferência dos agentes pelo curto prazo, em contraposição à possibilidade de manter a riqueza na forma de ativos de longo prazo, sejam eles financeiros ou de capital. As consequências de seu aumento são, portanto, óbvias, tanto para a demanda efetiva, como para o descasamento entre o passivo e o ativo bancário. Apesar disso, parece lógico que Moore desconsidere a inter-relação entre entesouramento e as variações na taxa de juros. Afinal, sua argumentação em defesa da exogeneidade da taxa de juros cumpre justamente o objetivo de negar validade à teoria da preferência pela liquidez e à sua intenção explícita de relacionar os estoques de riqueza líquida e a determinação da taxa de juros.14 14 “Já que as taxas de juros são exógenas, essa abordagem de portfolio para a determinação da taxa de juros pode agora ser vista como incorreta” (Moore, 1989, p. 487).

3.4 Os horizontalistas e as taxas de juros de longo prazo

Ainda assim Moore procura atenuar o caráter exógeno atribuído aos juros, quando analisa a formação das taxas de longo prazo. Ele sugere que essas taxas seriam “determinadas pelas expectativas [dos agentes] em relação ao comportamento futuro do Banco Central na definição das taxas de curto prazo” (1989, p. 487). Mas esse atenuante parece não diminuir o significativo grau de arbítrio que a AM manteria mesmo sobre as taxas de longo prazo. Afinal, se ela pode fixar as taxas de curto prazo - tanto as taxas correntes, como as futuras - e se há uma relação estreita entre essas taxas e as de longo prazo, pode-se concluir que uma ação determinada e coerente do Banco Central seria capaz de estabelecer um elevado grau de consenso dos agentes em tomo de sua política de juros e assim consolidar suas metas para o longo prazo.15 15 Se de fato a AM detém esse poder, também não haveria por que não exercê-lo. Como observa Wray, a consequência dessas posições é similar à intenção monetarista de obter preços estáveis e pleno emprego através de uma regra monetária rígida: “bastaria o Banco Central reduzir os juros que o pleno emprego seria atingido” (Wray, 1990, p. 192).

A distância em relação às opiniões de Keynes é nítida. Em primeiro lugar, deve-se observar que para esse autor é justamente a existência de “divergências de opinião” - a ausência de consenso entre os agentes - que toma o sistema sensível à administração monetária (1936, pp. 123-25). Suas sugestões para que o Banco Central amplie o alcance da política monetária através da negociação de “títulos e papéis de primeira linha de qualquer prazo” não o impediram de reconhecer a existência, ainda assim, de limitações na sua “capacidade ... de estabelecer certo complexo de taxa de juros para dívidas de diferentes prazos e riscos” (1936, pp. 145-6). Na verdade, quando o consenso dos agentes se estabelece em tomo de um “estado de baixa” - com uma preferência pela liquidez “virtualmente absoluta” - ou, então, em tomo de um “estado de alta” - quando o “excesso de otimismo triunfa sobre uma taxa de juros que, julgada a sangue-frio, seria considerada alta demais” -, as limitações da política monetária vêm à tona com toda a intensidade.

A mensagem é clara: a eficácia da administração monetária e sua capacidade de regular adequadamente a taxa de juros dependem de um padrão de expectativas que se distancie daquelas situações-limites. Aí está a origem do crescente pessimismo de Keynes com a política monetária como instrumento isolado de política econômica. Um pessimismo que Moore constata, mas parece não compreender. Afinal, como ser pessimista se se admite o controle exógeno do estoque de moeda por parte da AM?16 16 “Keynes tornou-se ... extremamente pessimista sobre a eficácia da política monetária, mesmo garantindo controle exógeno do estoque de moeda pelo Banco Central” (Moore, 1989, p. 178). Bem ao gosto dos monetaristas, política monetária toma-se sinônimo de controle sobre o crescimento dos agregados monetários. Para Keynes, no entanto, o objetivo da política monetária é regular a taxa de juros. E, sem dúvida, ele não atribuía à AM a onipotência que os horizontalistas parecem atribuir-lhe na regulagem dessa taxa.

4. CONCLUSÃO

Se no contexto suposto na Teoria Geral - com um estoque de moeda dado e sem incorporar de forma explícita o papel dos bancos - Keynes já via com ceticismo a possibilidade de a AM regular a taxa de juros de forma a garantir o pleno emprego, abandonar aquelas hipóteses só tende a agravar suas conclusões. De fato, deve-se considerar que, com a inclusão da moeda de crédito, incorpora-se ao debate não-somente o poder do sistema bancário de alterar o estoque de ativos monetários, como também sua capacidade de provocar variações nas taxas de juros.

Mas para os horizontalistas a endogenia monetária tem como contrapartida a possibilidade de controle exógeno das taxas de juros. Justamente aqui se encontra o ponto central de divergência. Admitida essa hipótese, bastaria a persistência da AM em uma política de juros adequada para se alcançar o pleno emprego. Desse modo, a questão do desemprego, nos termos propostos por Keynes, não faria qualquer sentido.

Na verdade, ao abandonarem o conceito de preferência pela liquidez, os horizontalistas acabam por excluir a noção de moeda como um ativo, cujo retomo é determinado exclusivamente por sua liquidez, e com isso desconsideram todas as principais consequências da proposta de uma teoria monetária da produção. Fazem isso por enxergarem um desvio monetarista em qualquer referência à relação entre liquidez da moeda e sua escassez relativa.17 17 “O próprio dinheiro não tarda a perder o atributo de liquidez quando se esperam fortes variações na sua oferta” (Keynes, 1936, p. 167). Mas o fato é que não parece possível compatibilizar a noção de moeda plenamente endógena e o conceito de teoria monetária da produção. Afinal, como conceber um sistema econômico no qual “o curso dos eventos não pode ser predito, seja no longo ou no curto prazo, sem um conhecimento do comportamento da moeda entre o primeiro e o último estado” (Keynes, 1973aKEYNES, J.M. (1973a) The General Theory and After: part I, The Collected Writings of John Maynard Keynes, vol. XII. Londres, MacMillan . , p. 408), quando a moeda é vista sempre como “efeito”, nunca como “causa”?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • WRAY, L.R. (1990) Money and Credit in Capitalist Economies: the Endogenous Money Approach. Hants, Edward Elgar Publishing.
  • 1
    “Vamos levantar a hipótese de que o postulado das propriedades da moeda é ‘negligenciável’ na teoria monetária pos-keynesiano”, (Costa, 1993COSTA, F.N. (1993) “(Im)propriedades da moeda”. Revista de Economia Política 13(2). , p. 62).
  • 2
    “Inclusive na vigência do padrão ouro ... a moeda deve ser vista como endógena” (Costa, 1993COSTA, F.N. (1993) “(Im)propriedades da moeda”. Revista de Economia Política 13(2). , p. 65). 7
  • 3
    Keynes faz ainda a sugestiva observação de que o “hábito de não se dar a devida atenção à relação da taxa de juros com o entesouramento pode explicar, em parte, a razão pela qual o juro tem sido usualmente considerado como uma recompensa por não gastar, quando, na realidade, ele é a recompensa por não entesourar”.
  • 4
    “O estoque da moeda será determinado pela demanda, e a taxa de juros ... pelo Banco Central” (Kaldor, 1982KALDOR, N. (1982) The Scourge of Monetarism. Oxford, Oxford University Press, 1986. , p. 24).
  • 5
    Rousseas não compartilha desta opinião de Moore: “o grau no qual a oferta de moeda é positivamente inclinada depende das políticas discricionárias do Federal Reserve” (Rousseas, 1989ROUSSEAS, S. (1989) “On the endogeneity of money once more”. Journal of Post Keynesian Economics XI (3). , p. 478).
  • 6
    Wray (1990WRAY, L.R. (1990) Money and Credit in Capitalist Economies: the Endogenous Money Approach. Hants, Edward Elgar Publishing., pp. 177-88) faz uma minuciosa discussão do assunto, para concluir que “há sempre uma ‘franja de tomadores de empréstimo insatisfeita’ - aqueles que não receberam nenhum crédito ou menos que o desejado”. Logo, “considerações micro levam a restrições de crédito em nível macro”. Na sua polêmica com Cardim de Carvalho, Nogueira da Costa (1994COSTA, F.N. (1994)” Sobre o ‘horizontalismo’ da oferta de moeda: tréplica ao professor Cardim de Carvalho”. Revista de Economia Política 14(1). , p. 145) parece argumentar o contrário, que considerações em nível micro não afetam as conclusões horizontalistas em nível macro: “[t]emos uma concordância ‘micro’. A discordância é ‘macro’”.
  • 7
    Parece ser essa a intenção de Nogueira da Costa (1994COSTA, F.N. (1994)” Sobre o ‘horizontalismo’ da oferta de moeda: tréplica ao professor Cardim de Carvalho”. Revista de Economia Política 14(1). , p. 146) ao sugerir que Moore “também admite que uma variedade de fatores afeta o tamanho do mark-up sobre o custo por atacado das reservas”.
  • 8
    Na Teoria Geral, Keynes (1936KEYNES, J.M. (1936) A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda. São Paulo, Nova Cultural, 1985. , p. 125) esclarece que embora não sejam conceitos “idênticos”, “a preferência pela liquidez devido ao motivo especulação corresponde ao que em ... [sua] obra Treatise on Money ... [denominou] o ‘estado de baixa’”.
  • 9
    No Tratado Keynes (197lKEYNES, J.M. (1971) A Treatise on Money, vol.I, The Collected Writings of John Maynard Keynes, vol. V. Londres, MacMillan. , p. l64) atribui aos bancos o papel de um “agente livre ... [que] pode ... controlar o resultado final”, certamente um qualificativo não extensível a um sistema bancário cuja taxa de juros é determinada pela AM e cuja quantidade de moeda é fixada pela demanda.
  • 10
    Nesse texto Minsky (1957MINSKY, H. (1957) “Central banking and money market changes”. Quaterly Journal of Economics LXXI (2). , p. 185) trabalha com um conceito bem restrito de moeda e prefere referir-se à questão em termos de ampliação da “oferta de financiamento”: “durante um boom forte as taxas de juros não irão subir muito, já que a oferta de financiamento é, de fato, muito elástica”. Tal conclusão prescinde de qualquer das hipóteses de Moore, de um mark-up estável e de reservas bancárias endogenamente determinadas.
  • 11
    Pois somente nesse tipo de economia o entesouramento “representava uma transferência da demanda por serviços e bens reprodutíveis para a acumulação de tesouros monetários estéreis” (Moore, 1989MOORE, B. (1989) “On the endogeneity of money once more”. Journal of Post Keynesian Economics XI (3). , p. 482).
  • 12
    Wray (1989WRAY, L.R. (1989) “Review of Moore’s ‘horizontalists and verticalists: the macroeconomics of credit money’ “. Journal of Economic Issues XXIII (4). , p. 1187) interpreta o conceito de empréstimo de conveniência proposto por Moore como os “superávits” que as “unidades superavitárias normalmente retêm ... como depósitos nos bancos”.
  • 13
    Wray (1990WRAY, L.R. (1990) Money and Credit in Capitalist Economies: the Endogenous Money Approach. Hants, Edward Elgar Publishing., p. 192) argumenta que a experiência monetarista do Federal Reserve indica “que os bancos não podem se ajustar instantaneamente a um regime de taxas de juros mais altas simplesmente pela adição de um mark-up à taxa de redesconto”. A observação anterior complementa o argumento: ainda que os bancos procedam à sua formação de preços via mark-up, a mera existência desse descasamento entre prazos de captação e concessão torna o mark-up muito mais sensível às oscilações das expectativas.
  • 14
    “Já que as taxas de juros são exógenas, essa abordagem de portfolio para a determinação da taxa de juros pode agora ser vista como incorreta” (Moore, 1989MOORE, B. (1989) “On the endogeneity of money once more”. Journal of Post Keynesian Economics XI (3). , p. 487).
  • 15
    Se de fato a AM detém esse poder, também não haveria por que não exercê-lo. Como observa Wray, a consequência dessas posições é similar à intenção monetarista de obter preços estáveis e pleno emprego através de uma regra monetária rígida: “bastaria o Banco Central reduzir os juros que o pleno emprego seria atingido” (Wray, 1990WRAY, L.R. (1990) Money and Credit in Capitalist Economies: the Endogenous Money Approach. Hants, Edward Elgar Publishing., p. 192).
  • 16
    “Keynes tornou-se ... extremamente pessimista sobre a eficácia da política monetária, mesmo garantindo controle exógeno do estoque de moeda pelo Banco Central” (Moore, 1989MOORE, B. (1989) “On the endogeneity of money once more”. Journal of Post Keynesian Economics XI (3). , p. 178).
  • 17
    “O próprio dinheiro não tarda a perder o atributo de liquidez quando se esperam fortes variações na sua oferta” (Keynes, 1936KEYNES, J.M. (1936) A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda. São Paulo, Nova Cultural, 1985. , p. 167).
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    O autor agradece a Mário Possas as sugestões feitas em diferentes estágios da elaboração deste trabalho. Evidentemente os erros, omissões e opiniões são de exclusiva responsabilidade do autor.
  • 19
    JEL Classification: B50; E12.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 1995
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