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O orçamento monetário e a socialização dos prejuízos da crise cambial

The monetary budget and the socialization of losses from the exchange rate crisis

RESUMO

Esta é uma crítica ao estado atual do orçamento monetário, considerando que o governo está socializando os encargos e perdas dos agentes privados relacionados com a sua dívida externa e a dolarização da dívida interna.

PALAVRAS-CHAVE:
Dívida externa; crise da dívida; estabilização; estrutura do orçamento

ABSTRACT

This is a critique of the current state of the monetary budget, considering that the government is socialising the burden and losses of private agents related to their external debt and the dollarization of the internal debt.

KEYWORDS:
External debt; debt crisis; stabilization; budget structure

Quem examinar as contas do orçamento monetário, a partir do balancete consolidado das Autoridades Monetárias (AM) publicado nos boletins mensais do Banco Central do Brasil (BCB), vai naturalmente perguntar como é possível ao BCB e ao Tesouro Nacional (TN) estarem com saldos negativos de recursos. Nos últimos anos, todos os segmentos da economia brasileira vêm sendo afetados pela ação governamental, através do aumento de impostos e tarifas, redução de gastos e subsídios e menor e mais caro acesso ao crédito das entidades financeiras governamentais. Essa atuação governamental, após mais de três anos de recessão econômica, fará com que este ano haja superávit operacional do setor público não financeiro1 1 Conforme o critério de desempenho acordado entre o Brasil e o FMI - Memorando Técnico da Carta de Intenções de março de 1984. e mais de Cr$ 6 trilhões de transferências do orçamento fiscal para o monetário. Mesmo assim, o saldo negativo da conta “Operações com o Tesouro Nacional Vinculadas à Execução Orçamentária” nas AM era de Cr$ 17,5 trilhões em junho de 1984, contra Cr$ 10,3 trilhões em dezembro de 1983, enquanto os Recursos Próprios do BCB eram igualmente negativos (Cr$ 4,9 trilhões em dezembro e Cr$ 9,4 trilhões em junho). Como entender tais números? Quais são as razões desse monumental déficit a exigir crescentes sacrifícios de todos os segmentos da economia brasileira?

Sem entrar no mérito de outras razões para esse déficit, entendemos que as causas principais da dilapidação dos recursos do orçamento monetário são a socialização de parcela da dívida externa não assumida produtivamente pelos agentes econômicos e a dolarização da dívida pública interna. Mecanismos do tipo das Resoluções 432, Circular 230 e ORTN cambiais explicam como foi possível aos empresários do setor privado sobreviver, com baixos índices de falências e bons lucros, a mais de três anos de recessão. O custo financeiro da manutenção desses instrumentos de auxílio-desemprego ao capital, entretanto, é a causa da penúria do orçamento monetário, tornando necessário o aporte de recursos de todos os segmentos da economia brasileira para que o BCB consiga cumprir seu objetivo de controlar a política monetária.

A seguir pretende-se apresentar melhor as contas monetárias brasileiras, para entender a devastação ocorrida em sua estrutura a partir de 1979, com a crise cambial e a forma utilizada para a socialização de seus prejuízos financeiros. A abertura de contas utilizada ressalta o “rombo financeiro” do BCB e TN, de forma a deixar bem clara a dependência financeira a que ficou reduzido o orçamento monetário, tornando o BCB totalmente incapaz de cumprir algumas de suas funções sem o suporte de transferências de recursos do orçamento fiscal. Os dados básicos utilizados são os oficiais do próprio BCB (Boletins Mensais - Quadros 1.3, 4.11 e 4.12), dos quais destacamos o balancete consolidado das AM, com ordenação diferente da usual, separando as contas por “Aplicações”, “Recursos de Terceiros” e “Recursos Próprios” (vide tabela anexa).

Tabela 1
Balancete consolidado das autoridades monetárias uma apresentação alternativa (saldos em Cr$ bilhões)

As principais aplicações das AM são as Contas Cambiais, basicamente as reservas internacionais do País, os Créditos ao Setor Financeiro e os Empréstimos do Banco do Brasil S.A. (BB). Como pode ser observado na tabela anexa, as aplicações de crédito doméstico das AM apresentam retração real nos últimos anos, enquanto as Contas Cambiais, também com tendência decrescente, apresentam recuperação real em 1983 e 1984, como reflexo da recomposição das reservas internacionais brutas.

As principais captações de recursos de terceiros são a Base Monetária, a Dívida Pública e as Obrigações Externas. A Base Monetária, ou passivo monetário das AM, é a variável objeto da política monetária, sendo composta pelo Papel Moeda em Circulação, Depósitos dos Bancos Comerciais nas AM e Depósitos à Vista do Público no BB. Com a política monetária contracionista desenvolvida nos últimos anos, a Base Monetária vem perdendo participação enquanto fonte de recursos das AM. Como esses haveres monetários não oferecem nenhuma remuneração, essa redução tem o efeito de elevar o custo médio da estrutura de captação de recursos das AM. Outra importante parcela de captação de recursos das AM é a dívida mobiliária interna federal (LTN e ORTN), da qual destacamos a parcela absorvida pelo público, pela subtração da carteira própria de títulos federais das AM. Os títulos da dívida pública são uma forma de financiamento de déficits do TN, mas foram utilizados pelo BCB predominantemente como instrumento de controle da Base Monetária. Recentemente, com a crise cambial, as ORTN com opção de resgate pela correção cambial foram as vedetes do mercado financeiro, servindo aos seus tomadores como lastro de garantia contra desvalorizações cambiais inesperadas. Para tanto, também o BCB elevou sua carteira de títulos federais, para cobrir-se das despesas financeiras de suas obrigações externas.

Nos últimos anos a principal fonte de recursos das AM tem sido os depósitos e obrigações em moeda estrangeira. Mesmo antes de 1979, o governo, como forma de controle da oferta de moeda e estímulo à captação externa, vinha absorvendo créditos externos na forma de depósitos em moeda estrangeira, seja por transferência voluntária de empresas (Resolução BCB 432, de 23.6.77), seja por não aplicação de recursos externos da Resolução 63 pelos Bancos (Circular BCB 230, de 29.4.74), seja por retenção obrigatória, quando do ingresso (Resoluções BCB 449 e 479, de 17.11.77 e 20.6.78). Quando, a partir de 1979, encareceram os juros internacionais e aumentou o risco cambial, dadas as dificuldades em gerir as contas externas brasileiras, esses depósitos de créditos externos no BCB se intensificaram. Não bastasse absorver essas transferências, coube ao BCB, a partir de 1979, a tarefa de captar no exterior os recursos que faltassem para “fechar” o balanço de pagamentos, o que explica o crescimento acelerado da conta “Obrigações em Moeda Estrangeira”, principal rubrica das contas cambiais passivas das AM. Se, por um lado, as contas externas foram um importante fator de contração monetária, também passaram a representar um pesado fardo de despesas financeiras para o BCB, já que as desvalorizações cambiais e juros são apropriados como despesa financeira daquela autarquia federal. Uma das formas encontradas pelo BCB para reduzir seus prejuízos foi engordar sua carteira própria de títulos federais, fazendo estes títulos também o papel de transferir o ônus de obrigações externas para o TN.

As contas líquidas de recursos próprios das AM e TN no orçamento monetário estão apresentadas na tabela anexa subdividida em Tesouro Nacional, Fundos e Programas e Recursos Próprios do Banco do Brasil e Banco Central. Os recursos próprios do BB e os Fundos e Programas, já deduzidos os adiantamentos do BCB, são as únicas contas positivas, tendo esta última crescido bastante ultimamente, em função das transferências recebidas do TN e das taxas de juros mais elevadas cobradas na aplicação desses recursos. Já o BCB, por ter assumido a partir de 1979 maior volume de recursos financeiros externos, passou a apresentar patrimônio líquido negativo, que alcançou 4,1% do PIB em 1983, com tendência crescente. Sem dúvida, esse passivo a descoberto do BCB seria ainda maior, não fosse o artificial crescimento de sua carteira própria de títulos públicos, o que faz crescer sua receita, compensada como despesa do TN (conta “Outras Operações do TN”).

O Tesouro Nacional, entretanto, é o principal item negativo de recursos do orçamento monetário, basicamente originado pela apropriação de despesas financeiras. O item “Execução de Caixa” tradicionalmente tem fechado o ano fiscal equilibrado, já que o TN gasta ou transfere o total da receita de impostos e taxas arrecadado. O restante dos encargos atribuível ao TN é apropriado em outras contas do orçamento monetário, a saber: “Despesas Financeiras de Títulos Federais junto ao Público”, “Outras Operações do TN” e “Adiantamentos”. Os encargos financeiros da dívida com o público não aparecem explicitamente nas contas do BCB e foram obtidos por diferença entre a “Colocação Líquida de Títulos Federais junto ao Público” e a própria carteira de títulos federais junto ao público. As “Outras Operações do TN” incluem transações entre o TN e AM, e sua principal componente nos últimos anos tem sido a despesa financeira do TN com a carteira própria de títulos do BCB. Os “Adiantamentos” englobam créditos abertos pelo BB a diversas operações de responsabilidade do TN - subsídios ao trigo, petróleo, formação de estoques reguladores, Preços Mínimos-AGF, Aviso GB-588, etc. Destes “Adiantamentos”, o mais expressivo nos últimos dois anos é o Aviso GB-588, referente à cobertura pelo BB de encargos financeiros externos de responsabilidade de empresas estatais. Este adiantamento do BB em nome do TN é inadequadamente apresentado pelo BCB somado a despesas de natureza fiscal. E mais, aqueles do Aviso MF-30 que têm a mesma característica do GB-588, são somados em “Outras Contas-Saldo Líquido” do balancete consolidado das AM. Sabe-se, entretanto, pela soma dos fluxos apresentados ao FMI no quadro “Necessidades de Financiamento do Setor Público”, que o saldo conjunto do Aviso GB-588 e MF-30 foi de Cr$ 172 bilhões em dezembro de 1981, Cr$ 237 bilhões em dezembro de 1982, Cr$ 3.573 bilhões em dezembro de 1983 e Cr$ 6.808 bilhões em junho de 1984.

Por esta apresentação pode-se verificar que o déficit do setor público financiado no orçamento monetário é predominantemente financeiro, e hoje seu total é mais elevado do que aquele existente antes do ajustamento promovido na economia brasileira nestes últimos quatro anos. Este ajustamento externo foi realizado com políticas que importaram na redução do nível de atividade e uma grande depreciação cambial do cruzeiro. Além disso exigiu uma grande austeridade na execução das contas do setor público, com reflexo sentido em todos os segmentos da economia brasileira. Esta austeridade foi necessária também para acomodar o crescimento esperado do déficit financeiro do setor público, dada a depreciação cambial e a elevação dos juros que incidiram sobre o endividamento do setor público existente e daquele que viria a ser assumido.

As empresas do setor privado, de uma forma geral, conseguiram ajustar-se com bastante facilidade à crise por que atravessou a economia brasileira. Isto porque o governo facilitou-lhes a transferência dos encargos financeiros originários das maxidesvalorizações cambiais, através dos mecanismos das Resoluções 432 e ORTN cambiais. Além disso, a empresa privada típica mantém uma estrutura de ativos mais concentrada em estoques, com baixos índices de imobilizações. Com a elevação dos juros e redução do mercado interno foi possível reduzir esse ativo circulante, pela racionalização na administração de seus estoques, para inclusive beneficiar-se da manutenção dos elevados ganhos produzidos no mercado financeiro. Os balanços das grandes empresas privadas nacionais e multinacionais publicados na imprensa provam isso, não tendo ocorrido aumento expressivo dos índices de inadimplência de empresas do setor privado. Assim, a conjuntura financeira não só beneficiou os intermediários financeiros, mas também a maioria dos empresários privados de grande porte que conseguiram facilmente ajustar-se.

Já as empresas do setor público, entretanto, não tiveram a mesma facilidade de ajustar-se. Primeiro, porque o governo restringiu-lhes o acesso ao crédito doméstico, impedindo na prática a substituição dos créditos externos viabilizável pela Resolução 432. Segundo, porque a empresa estatal típica concentra seus ativos em grandes investimentos (imobilizado), com menores índices de ativo circulante, o que dificulta seu ajustamento a uma situação de redução do mercado. Com isso, as empresas estatais, muitas delas em fase de execução de grandes investimentos, tiveram suas dívidas amplificadas com as desvalorizações cambiais e juros mais elevados, passando a apresentar crescentes dificuldades financeiras, o que vem obrigando o TN e AM a socorrê-las.

Em resumo, o maior impacto financeiro do ajustamento externo brasileiro foi absorvido pelo setor público, através de seu endividamento externo e interno e pelos mecanismos que permitiram ao setor privado transferir seus compromissos. Hoje, o déficit do setor público é predominantemente financeiro, atingindo todos seus diferentes segmentos - empresas estatais, governos estaduais e municipais, Tesouro Nacional e Autoridades Monetárias. Dadas suas características de banqueiros de governo, as AM centralizaram a função de financiar esses déficits financeiros produzidos pela crise cambial no orçamento monetário, a exigir crescentes transferências de recursos de toda a sociedade brasileira, através do orçamento fiscal. Essas transferências, entretanto, não têm sido suficientes para cobrir a socialização dos prejuízos financeiros incorridos, o que vêm desestruturando a atuação do TN e AM. A Reforma Bancária em curso terá que equacionar essa situação para permitir que as AM voltem a emprestar e que o governo volte a gastar e a investir.

  • 1
    Conforme o critério de desempenho acordado entre o Brasil e o FMI - Memorando Técnico da Carta de Intenções de março de 1984.
  • JEL Classification: F34.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 1985
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