RESUMO
Do ponto de vista dos países em desenvolvimento, a chamada estratégia da dívida convencional é claramente insatisfatória, principalmente porque subestima a dimensão da crise e os custos internos do ajuste imposto aos países devedores. Novos empréstimos privados, de qualquer modo cada vez mais difíceis de obter, não seriam uma solução, no sentido de aumentarem uma dívida que já é extremamente elevada. Alguns mecanismos para reduzir o estoque da dívida externa foram introduzidos em recentes acordos de reescalonamento com bancos credores, como trocas de dívida por ações, recompras e troca de parte da dívida por títulos de longo prazo. No entanto, para muitos países, esses instrumentos de mercado não proporcionarão uma redução suficientemente grande do ônus das transferências financeiras para o exterior. Portanto, é necessário chegar a uma solução abrangente e duradoura para o problema da dívida externa, através da concepção de um ambiente institucional e legal adequado que possa fornecer mais suporte e garantias adicionais à implementação de esquemas de redução da dívida.
PALAVRAS-CHAVE:
Dívida externa; crise da dívida; gerenciamento da dívida
ABSTRACT
From the viewpoint of developing countries the so-called conventional debt strategy is clearly unsatisfactory, mainly because it underestimates the dimension of the crisis and the domestic costs of the adjustment imposed on debtor countries. New private loans, which are anyway more and more difficult to obtain, wouldn’t be a solution, in the sense that they would increase a debt that is already extremely high. Some mechanisms to reduce the stock of external debt have been introduced in recent rescheduling agreements with creditor banks, such as debt-equity swaps, buybacks, and the exchange of part of the debt for long-term bonds. However, for many countries, these market instruments will not provide a sufficiently large reduction of the burden of financial foreign transfers. Therefore, it is necessary to arrive at an encompassing and lasting solution to the external debt problem, through the design of an adequate institutional and legal environment that could provide more support and additional guarantees to the implementation of debt reduction schemes.
KEYWORDS:
Foreign debt; foreign debt crisis; debt management
OS RESULTADOS DA ESTRATÉGIA CONVENCIONAL
Seis anos após a eclosão da crise da dívida externa, os resultados da estratégia utilizada para o tratamento dos problemas de endividamento externo dos países em desenvolvimento estão muito aquém da expectativa inicial.
O fundamento básico do esquema delineado pelos países credores era a suposição de que a crise da dívida externa era um problema temporário de liquidez, a ser solucionado em prazo razoavelmente curto. Esperava-se que, com o ajustamento interno e externo das economias dos países endividados, estes voltassem a apresentar taxas significativas de crescimento e a ter acesso ao mercado financeiro internacional.
Do ponto de vista das instituições credoras, em sua maioria bancos privados, a chamada estratégia convencional de renegociação das dívidas externas permitiu o ajustamento gradual de seus portfólios e de suas reservas, evitando abalos maiores no sistema financeiro internacional e reduzindo sua vulnerabilidade à questão da dívida externa.
O mesmo sucesso não se verificou, entretanto, no que diz respeito aos países devedores. Apesar do forte esforço de ajuste externo, que pode ser ilustrado pela redução do déficit em conta corrente do conjunto dos países da América Latina, de US$ 41,1 bilhões em 1982 para US$ 9,3 bilhões em 1987, os bancos credores têm reduzido cada vez mais o volume de crédito e sua exposição em relação aos países endividados.1 1 CEPAL, Estudio Economico de America Latina y el Caribe, 1987: Sintesis Preliminar, abril de 1988, p. 2; Jeffrey D. Sachs, “New Approaches to the Latin American Debt Crisis”, Harvard University, setembro 1988, Table 7. Ao mesmo tempo, estes países estão experimentando taxas negativas ou medíocres de crescimento de seu produto real. Além disso, os indicadores de endividamento externo, como as relações dívida/produto interno bruto e dívida/exportações, pioraram consideravelmente ao longo do período 1982-1987.2 2 CEPAL, op, cit., pp. 2 e 50; CEPAL, Panorama Economico de America Latina 1988, setembro de 1988, p. 12.
Portanto, da ótica dos países em desenvolvimento, a estratégia concebida para lidar com a crise da dívida externa apresenta grandes limitações, decorrentes, em grande medida, de forte subestimativa da dimensão da crise e do custo interno do ajustamento que viria a ser realizado pelos países devedores.
A TRANSFERÊNCIA DE RECURSOS PARA O EXTERIOR E SEU IMPACTO INTERNO
Além da redução significativa dos empréstimos bancários para os países latino-americanos, ocorreu forte queda na entrada de investimentos diretos.3 3 International Monetary Fund, International Financial Statistics, outubro de 1988. Ao mesmo tempo, a expansão do crédito de fontes oficiais não foi suficiente para compensar a perda dos créditos bancários. A contrapartida da insuficiente disponibilidade de financiamentos externos tem sido a geração de volumosos superávits comerciais para viabilizar a transferência requerida de recursos financeiros para o exterior.
Entre 1982 e 1987, os países da América Latina em conjunto transferiram cerca de US$ 147,5 bilhões para o resto do mundo, o que representou 23,4% de suas exportações de bens e serviços no período.4 4 CEPAL, Estudio ... , p. 44. Este fenômeno reverteu de maneira abrupta a direção dos fluxos de capitais internacionais, transformando prematuramente as economias em desenvolvimento em exportadoras de recursos.
Na maioria dos casos, este considerável esforço de ajustamento externo desorganizou internamente as economias dos países devedores. Em primeiro lugar, porque os saldos comerciais necessários foram obtidos, em grande medida, à custa de desvalorizações acentuadas das taxas de câmbio e de contenção das importações, em um contexto adverso de protecionismo dos países desenvolvidos e de redução no preço dos produtos exportados pelos países da América Latina. Entre 1980 e 1988 o valor das importações dos países latino-americanos diminuiu 27%. O valor das exportações, por sua vez, permaneceu inalterado entre estes anos, embora o quantum exportado tenha aumentado em 35%.5 5 CEPAL, Estudio ... , pp. 33 e 35.
Outro indicador que revela o ônus que tem sido suportado por estes países é a taxa de crescimento do produto interno bruto. Em termos acumulados, o produto dos países latino-americanos cresceu cerca de 9,8% entre 1982 e 1987. Esta taxa representa um crescimento médio anual de apenas 1,6% e uma redução acumulada do produto per capita da ordem de 3,8%.6 6 Ibidem, p. 2. Estes números. dão uma ideia do custo não apenas econômico, como também social e político, da estratégia que vem sendo empregada para lidar com a questão da dívida externa.
Um aumento considerável no saldo comercial em um contexto de crescimento medíocre ou estagnação do produto interno bruto requer redução significativa da absorção doméstica, o que significa diminuir o consumo ou o investimento. No período 1982-1987, a transferência anual de recursos financeiros para o exterior representou cerca de 20% da poupança interna dos países latino-americanos.7 7 CEPAL, Restrictions on Sustained Development in Latin America and The Caribbean and the Requisites for Overcoming Them, abril de 1988, p. 31. O ajustamento, além de recessivo, tem sido realizado em grande medida à custa do investimento, o que restringe o potencial de crescimento destes países a médio e longo prazos. De fato, na maioria dos países da América Latina a taxa de investimento declinou significativamente após a crise da dívida externa, como resultado da forte redução da poupança externa e do comprometimento de parte expressiva da poupança interna com o pagamento do serviço da dívida.8 8 CEPAL, Panorama ....., p. 13.
Além da recessão e da queda na taxa de investimento, a reversão abrupta no sinal do fluxo de recursos externos para as economias latino-americanas foi um dos fatores responsáveis pelo aumento substancial da taxa de inflação (de 86,4% em 1982 para 198,3% em 1987, considerando-se o conjunto dos países)9 9 CEPAL, Estudio, p. 2. e em desequilíbrio mais acentuado nas finanças públicas.
Na medida em que o setor público é responsável pela maior parcela da dívida externa (mais de 80%),10 10 CEPAL, Restrictions ...., p. 31. e o superávit comercial é realizado em grande parte pelo setor privado, o governo tem que gerar recursos para adquirir as divisas e para efetuar a contrapartida em moeda doméstica do pagamento do serviço da dívida. Estes recursos podem ser obtidos reduzindo-se os gastos públicos, ou então aumentando-se as receitas, a colocação de dívida interna, ou a emissão de moeda.
Em muitos dos países latino-americanos, todavia, estes agregados representam somente fração relativamente pequena do produto. Isto significa que para realizar transferências de recursos para o exterior da ordem de 4% do produto interno bruto é necessário diminuir drasticamente o déficit fiscal ou aumentar substancialmente as fontes internas de financiamento do setor público.
A redução do déficit fiscal tem sido obtida, na maioria dos casos, através de cortes no investimento público, comprometendo a conservação, expansão e modernização da infraestrutura econômica e social destes países. A emissão de moeda, por sua vez, pode ter forte impacto inflacionário, dado o pequeno estoque da base monetária em relação ao produto. Finalmente, o aumento da dívida pública reverte em maiores pagamentos de juros internos e, por conseguinte, realimenta o déficit fiscal. Os problemas de financiamento do setor público (e as pressões inflacionárias) também têm sido agravados pelas desvalorizações acentuadas das taxas de câmbio, requeridas pelo ajuste do setor externo.
Estas considerações permitem perceber, com clareza, que a estabilidade política e o desenvolvimento econômico e social da América Latina têm sido ameaçados pelos graves problemas decorrentes do endividamento externo, deflagrados em grande medida por fatores exógenos à região. Somente com a redução das remessas financeiras para o exterior, a um nível compatível com sua capacidade de pagamento, os países devedores terão o espaço de manobra necessário para realizar os ajustamentos estruturais de suas economias.
A REDUÇÃO DA TRANSFERÊNCIA DE RECURSOS PELO CANCELAMENTO PARCIAL DA DÍVIDA EXTERNA
Uma das formas de diminuir a transferência de recursos para o exterior é a concessão de novos créditos externos. Desde a crise da dívida, entretanto, os bancos privados têm reduzido sistematicamente sua exposição em relação aos países endividados, e é razoável supor que no futuro próximo somente será possível contar com recursos oriundos de organismos oficiais, reconhecidamente insuficientes para as necessidades dos países devedores. De todo modo, a contratação de novos empréstimos bancários não representaria uma solução, mas apenas um adiamento do problema, na medida em que resultaria no aumento do estoque de uma dívida já excessivamente elevada. É necessário, portanto, resolver a questão da dívida externa de maneira mais abrangente e permanente.
A ideia de que é necessário solucionar o problema do pesado encargo que as dívidas externas impõem sobre os países em desenvolvimento vem se consolidando e ganhando gradualmente novos adeptos. Propostas para a redução da dívida bancária foram inicialmente formuladas pela comunidade acadêmica dos países credores e devedores e, posteriormente, por bancos privados e representantes de governos dos países industrializados.
Vários são os esquemas propostos, com diferentes instrumentos e estratégias de ação. O ponto comum é a preocupação com o alívio financeiro mais duradouro dos países devedores, de tal forma a reconciliar a recuperação de suas economias com o pagamento do serviço da dívida.
Entre as estratégias sugeridas pela comunidade acadêmica e estudiosos do assunto destaca-se a de securitização da dívida com os bancos comerciais, isto é, a troca do total ou parte da dívida bancária por títulos de longo prazo. Estes títulos incorporariam uma redução do valor atual da dívida existente e poderiam ser emitidos pelo país devedor - com garantias externas ou de suas próprias reservas - ou por uma instituição multilateral designada ou criada para este fim. Operações com algumas destas características foram incluídas, ainda que de forma limitada, nas negociações da dívida externa da Argentina, Brasil e México. Neste último caso, a operação contou com o apoio do Morgan Guaranty Trust e do Tesouro americano.
A necessidade de reestruturar de maneira abrangente os débitos dos países em desenvolvimento foi defendida pelo American Express Bank em fevereiro de 1988.11 11 James D. Robinson III, “A Comprehensive Agenda for LDC Debt and World Trade Growth “, The Amex Bank Review Special Papers, número 13, março 1988 A reestruturação da dívida seria realizada por intermédio de uma nova instituição, o Institute of International Debt and Development, que resultaria de um empreendimento conjunto do FMI e do Banco Mundial. Em uma abordagem caso a caso, esta instituição trocaria com os bancos credores a dívida desagiada dos países em desenvolvimento por obrigações emitidas por ela. Graças ao deságio com que a dívida seria negociada, seria possível à instituição conceder alívio significativo aos países devedores em termos de redução dos juros ou do principal da dívida. O esquema prevê que os créditos concedidos pelos bancos aos países em desenvolvimento, após a realização da reestruturação, teriam prioridade de pagamento em relação à dívida externa adquirida pela instituição. Esta cláusula de subordinação teria como objetivo incentivar a concessão de novos empréstimos aos países que estivessem realizando ajustamentos estruturais.
Representantes dos governos dos países industrializados, por sua vez, preocupados com o prolongamento da crise externa dos países em desenvolvimento, têm manifestado cada vez mais seu apoio a propostas que contemplam reduções da dívida:
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Na reunião de cúpula realizada em Toronto, em junho de 1988, o Ministro das Finanças do Japão, Kiichi Miyazawa, apresentou os termos gerais de um plano para a dívida externa. Segundo o plano, os países devedores transformariam parte de sua dívida bancária em bônus, cujo principal seria garantido por meio de reservas internacionais e de receitas oriundas da venda de ativos do setor público dos países devedores, ambas depositadas em instituição neutra. O restante da dívida seria reestruturado com prazo de carência de até cinco anos, durante o qual os pagamentos de juros seriam reduzidos, suspensos ou possivelmente perdoados.12 12 The Economist, 6.8.1988, p. 64.
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O presidente da França, François Mitterrand, em pronunciamento realizado na Organização das Nações Unidas, enfatizou a necessidade de redução do custo da dívida externa dos países em desenvolvimento por meio de sua transformação em bônus, garantidos por um fundo a ser criado no âmbito do Fundo Monetário Internacional. O financiamento deste fundo seria obtido pela parcela alocada aos países desenvolvidos em uma nova emissão de direitos especiais de saque.13 13 Discurso pronunciado por François Mitterrand, Presidente da República Francesa, perante a XLI-11ª Seção da Assembleia Geral das Nações Unidas em 29.9.88.
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A lei de comércio promulgada recentemente pelo Congresso norte-americano determinou que o Secretário do Tesouro dos Estados Unidos inicie gestões com os governos dos países industrializados e dos países devedores que julgar apropriados, com vistas à criação de uma agência internacional para a reestruturação da dívida externa (International Debt Management Authority). A agência teria como função adquirir, com deságio, os empréstimos concedidos pelos bancos comerciais aos países em desenvolvimento e reestruturá-los, repassando o deságio aos países devedores. O Secretário estará desobrigado de iniciar as gestões, caso apresente estudo que mostre a inadequação da agência para resolver o problema da dívida externa.14 14 Omnibus Trade and Competitiveness Act of 1988, Public Law 100-418, 23 agosto de 1988.
MECANISMOS DE MERCADO PARA A REDUÇÃO DA DÍVIDA
Não são apenas as propostas da comunidade acadêmica, dos bancos internacionais e dos governos dos países industrializados que reconhecem a necessidade de reduzir a dívida externa dos países em desenvolvimento. O substancial deságio com o qual são transacionados os títulos da dívida externa no mercado secundário mostra que o mercado aceita cada vez mais a ideia de que parte da dívida seja cancelada. Estima-se que em 1987, ano em que se verificou acentuada redução no valor dos títulos da dívida externa dos países em desenvolvimento, o valor transacionado no mercado secundário tenha atingido cerca de US$ 12,0 bilhões,15 15 The World Bank, Market-Based Menu Approach, setembro de 1988, p. 28. contra não mais de US$ 3,0 bilhões em 1985.16 16 Silvina Vatnick, “The Secondary Market for Debt: A Possible Explanation of How LDC Debt Prices are Determined “, abril de 1988, p. 1.
Muitos bancos atualmente reconhecem que a negociação convencional para a dívida externa é insuficiente e percebem que está cada vez mais difícil mobilizar recursos novos, em nível satisfatório, para financiar parte dos juros devidos. Esta constatação levou os bancos a aumentar suas reservas contra os créditos concedidos a países devedores, permitindo, assim, que fossem incorporados em vários acordos de dívida externa alguns mecanismos que reduzem o pesado passivo externo destes países.
O mecanismo mais frequentemente utilizado tem sido a conversão da dívida externa em investimentos diretos. Valendo-se do mercado secundário, um investidor pode adquirir títulos da dívida externa com deságio, para convertê-los com desconto menor em moeda do país devedor. A operação reduz o passivo externo do país pelo montante da dívida externa convertida e, no caso em que é utilizada para financiar investimentos estrangeiros, cria um passivo externo, sob a forma de capital de risco, de valor inferior ao da dívida cancelada. A diferença entre o deságio no mercado secundário e o desconto na operação de conversão representa um subsídio, ao investidor estrangeiro, sob a forma de uma taxa de câmbio preferencial. A conversão de dívida permite ao país reduzir seu passivo externo, diminuir o pagamento de juros e estimular o investimento estrangeiro.
Este mecanismo pode apresentar, contudo, efeitos negativos para o país devedor. Do ponto de vista do balanço de pagamentos, a redução dos juros devidos pode ser mais do que compensada pela substituição de investimentos estrangeiros novos por conversão e pelo aumento da remessa de lucros e dividendos, de forma autorizada ou não. No que diz respeito à política monetária e fiscal, a conversão pressiona a base monetária ou a dívida pública interna, efeitos problemáticos em países com inflação elevada e fontes limitadas de financiamento do setor público. Do ponto de vista do investimento agregado, os efeitos da conversão são ambíguos. Além de substituir parcialmente investimentos externos que seriam realizados de qualquer maneira, a conversão pode substituir investimentos internos, caso o governo do país devedor, para financiar a operação, corte investimentos públicos ou créditos a outros setores da economia. Por fim, cabe ressaltar que o subsídio dado ao investidor estrangeiro faz com que parte considerável do deságio no mercado secundário deixe de ser apropriado pelo país devedor.
Os benefícios e os custos da conversão dependem da forma como é regulamentada a operação e da experiência concreta de cada país. Somente uma avaliação caso a caso pode determinar a conveniência deste mecanismo para abater a dívida externa.17 17 Para uma avaliação, baseada na experiência brasileira, dos prós e contras da conversão da dívida externa em investimentos, ver Arno Meyer e Maria Sílvia Bastos Marques, “Implicações Macroeconômicas da Conversão de Dívida Externa”, CEMEI/IBRE/FGV, n.º 10, dezembro de 1988.
Outros mecanismos de redução da dívida, mutuamente acordados em negociações bilaterais e de adesão voluntária, são a transformação de parte da dívida externa em bônus de longo prazo e a recompra da própria dívida pelos países devedores.
A redução da dívida externa através de sua transformação em bônus pode ser alcançada seja por redução na taxa de juros, seja pela aplicação de deságio sobre o estoque original. Os bônus de saída, previstos no acordo da dívida externa argentina de agosto de 1987 e no acordo da dívida externa brasileira de setembro de 1988, mantêm o valor de face da dívida e diminuem a taxa de juros. Já a emissão de bônus do governo mexicano, no primeiro trimestre de 1988, foi realizada com uma redução no valor nominal dos débitos originais.
Para o país devedor, é importante tentar melhorar a qualidade dos novos títulos e evitar que estes venham a ser transacionados com deságio no mercado secundário. Quanto melhor for a qualidade dos bônus, tanto maior será sua aceitação pelos bancos credores e tanto maior poderá ser a redução do valor atual da dívida original, seja pela redução na taxa de juros, seja pela redução no valor de face da dívida.
Os bônus de saída e os do governo mexicano apresentam alguns atrativos para os bancos credores. Além de serem títulos de maior liquidez, eles permitem aos bancos sair do processo de negociação. A dívida convertida em bônus não deve sofrer nova reestruturação e não entra na base de cálculo de novos empréstimos.
Existem, entretanto, formas adicionais de aumentar a qualidade dos bônus, tais como: a utilização de uma caução que garanta o pagamento do principal; o compromisso de que os juros sobre os bônus tenham preferência em relação aos demais pagamentos da dívida bancária e a introdução de garantias para o pagamento de juros.
O vencimento do principal dos bônus mexicanos conta com a caução de letras emitidas pelo Tesouro americano (zero coupon bonds), adquiridas com reservas internacionais do México. O rendimento das letras, que não pagam juros, é dado pela diferença entre o valor de face e o desconto com o qual são vendidas. Desta forma é possível garantir o vencimento futuro de um bônus, com letras adquiridas a um preço muito inferior ao valor do principal do bônus emitido.
A utilização de cauções deste tipo é uma opção limitada a países com nível adequado de reservas internacionais. A compra de uma caução pode, entretanto, não ser a melhor aplicação para as reservas. Elas podem, por exemplo, ser utilizadas na importação de bens de investimento necessários à formação de capital. Em geral, a utilização de reservas internacionais para a aquisição de uma caução é tanto mais recomendável quanto menor for a taxa de retorno social utilizada para descontar as reservas e quanto maior o deságio a ser apropriado pelo país devedor com o lançamento dos bônus.
A insuficiência de reservas internacionais pode ser contornada parcialmente pela criação, ao longo do tempo, de um fundo de compensação (sinking fund) que pode, então, servir de caução. As contribuições do país devedor ao fundo devem ser dimensionadas de forma tal que, na data de vencimento do bônus, o fundo cubra inteiramente o principal. As contribuições podem, adicionalmente, ser ajustadas à capacidade de pagamento do país devedor, vinculando-as a um índice de preços de commodities exportadas ou importadas. É importante frisar, contudo, que um fundo de compensação não tem o mesmo status de uma caução previamente existente.
Cabe lembrar que a utilização de reservas internacionais para a caução de títulos da dívida exige que os bancos abram mão de cláusula contratual que impede a vinculação de reservas a créditos específicos (negative pledge clause).
A concessão de prioridade ao pagamento dos juros, uma forma adicional de melhorar a qualidade dos bônus, exige que todos os bancos credores renunciem ao direito conferido pela cláusula de partilha (sharing clause). De acordo com esta cláusula, os bancos devem partilhar todos os pagamentos proporcionalmente.
Uma alternativa é a obtenção de garantia para o pagamento de juros por parte de uma instituição multilateral. O recente aumento de capital do BIRD, de US$ 75 bilhões, aliado ao fato de que a concessão de garantias está prevista em seus estatutos, tornam esta instituição um candidato possível para este tipo de garantia. Uma outra hipótese seria a obtenção de garantia para os juros através de negociação direta com os governos dos países credores.
A recompra da dívida externa pressupõe que o país devedor disponha de reservas internacionais suficientes. A conveniência de utilizá-las para este fim depende novamente do seu custo de oportunidade. O benefício a ser obtido com a recompra será positivo sempre que a redução no valor atual da dívida externa for superior ao custo de oportunidade das reservas. Desta forma, quanto maior o deságio no mercado secundário, mais atrativa será esta opção para o país devedor.
A escassez de divisas restringe a recompra da dívida externa, para a maioria dos países devedores. Mesmo na ausência desta restrição, a recompra, quando realizada à margem de um acordo com os bancos por instituições vinculadas ao país devedor, tende a ser uma opção limitada, pois operações de maior porte tendem a reduzir o deságio no mercado secundário, diminuindo o interesse pela operação. Estas dificuldades podem ser contornadas, caso a determinação do deságio seja negociada entre as partes interessadas. Esta negociação pode envolver, também, o financiamento da operação. A recompra pode ser financiada pelos próprios bancos credores ou então por instituições financeiras oficiais. No caso da Bolívia, que negociou a recompra de sua dívida bancária em julho de 1987, a operação foi financiada por doações internacionais.
A implantação deste mecanismo depende da superação de alguns problemas contratuais. A recompra requer que os bancos credores desistam dos direitos conferidos pela cláusula de partilha e pela cláusula que estabelece que os pré-pagamentos de dívida externa sejam rateados proporcionalmente entre os bancos credores (mandatory prepayment clause). A não ser em casos especiais como o da Bolívia, será difícil convencer todos os bancos credores de um país a renunciar a cláusulas que impedem o pagamento a determinados credores em detrimento de outros. Uma forma de contornar este obstáculo seria negociar, no âmbito de. um acordo com os bancos credores, a não validade destas cláusulas contratuais para montantes limitados da dívida, distribuídos ao longo do tempo.
Os mecanismos voluntários de redução da dívida representam um passo correto na superação da crise da dívida externa dos países em desenvolvimento, embora sua utilização ainda esteja muito aquém de suas potencialidades. Nos casos cabíveis, estes mecanismos deveriam ser incentivados e ampliados. Além das alterações contratuais mencionadas, seu fortalecimento depende da criação de um quadro legal e fiscal favorável nos países credores. Este é um dos pré-requisitos para que os mecanismos de mercado venham a desempenhar um papel mais significativo na redução das transferências financeiras dos países devedores para os países credores.
UMA SOLUÇÃO ABRANGENTE PARA A DÍVIDA EXTERNA
Ainda que representem um avanço, os mecanismos de mercado são insuficientes para aliviar de maneira efetiva o peso das transferências financeiras ao exterior de muitos países. Neste caso, faz-se necessária uma solução mais abrangente que confira maior apoio institucional e legal e, portanto, maior confiança a propostas de redução das transferências. Sem este apoio, muitos bancos deixarão de aderir a mecanismos voluntários de redução da dívida, uma vez que cada banco individualmente tende a esperar a adesão dos demais bancos para tentar se beneficiar do alívio financeiro do país devedor, proporcionado pela redução da dívida.
Um esquema abrangente, cooperativo, baseado em um tratamento caso a caso, poderia basear-se na criação ou na designação de uma instituição multilateral que teria como objetivo adquirir, com deságio, a dívida externa dos países em desenvolvimento em carteira nos bancos credores. A compra poderia ser financiada pela venda no mercado de títulos emitidos pela instituição multilateral e garantidos pelos governos dos países industrializados. A instituição multilateral reestruturaria a dívida adquirida, repassando o deságio aos países devedores, e cobriria o serviço dos títulos com os pagamentos da dívida renegociada dos países devedores.
O valor da garantia a ser fornecida pelos governos industrializados equivaleria ao total da dívida desagiada. O aporte efetivo de recursos corresponderia, no entanto, a apenas uma fração do valor da garantia e seria distribuído ao longo de vários anos e rateado entre os principais países industrializados. A contribuição anual efetiva de cada país industrializado seria relativamente modesta. A instituição multilateral, para cobrir seus custos operacionais e se precaver contra eventuais ·perdas, poderia reestruturar a dívida dos países devedores a um custo ligeiramente superior ao dos títulos por ela emitidos.
A aquisição da dívida dos países em desenvolvimento em poder dos bancos poderia ser financiada de diferentes formas. A instituição multilateral poderia adquirir a dívida entregando seus próprios títulos diretamente aos bancos, ou poderia permitir que os países devedores negociassem diretamente com os bancos credores a transformação de sua dívida externa em bônus e, então, fornecer as garantias necessárias.
A determinação dos deságios a serem aplicados na aquisição da dívida dos países em desenvolvimento deveria tomar como base os deságios praticados no mercado secundário para os títulos da dívida externa de cada país participante do esquema. O período de referência utilizado, em cada caso, para a apuração dos deságios, teria que ser negociado entre os bancos credores interessados em participar do esquema abrangente, os países devedores e a instituição multilateral. Os débitos afetados pelo esquema seriam as dívidas bancárias de médio e longo prazos.
A adesão dos bancos credores, bem como dos países devedores, seria voluntária. No entanto, para viabilizar uma redução significativa das transferências financeiras, deveriam ser criados alguns incentivos para estimular a participação dos bancos.
Mudanças nos regulamentos bancários e na política fiscal nos países credores seriam os instrumentos utilizados para este fim. Por exemplo, aos bancos participantes seria permitida a amortização gradual das perdas incorridas com o deságio, ao mesmo tempo em que se exigiria dos bancos não participantes práticas contábeis mais realistas em relação aos empréstimos em carteira concedidos aos países em desenvolvimento. Os bancos que não aderissem ao esquema abrangente de redução da dívida continuariam sujeitos às regras convencionais de reescalonamento e concessão de novos financiamentos.
A abordagem abrangente da dívida externa não é um substituto para os mecanismos de mercado já mencionados. Na realidade, esta abordagem apenas proveria o devido apoio institucional, legal e fiscal por parte dos países industrializados, para a implantação de um mecanismo que já vem sendo testado pelo mercado - a transformação da dívida em bônus de longo prazo.
A redução das transferências financeiras ao exterior, por intermédio da redução da dívida, permitirá aos países devedores adotar programas de reformas econômicas sem sacrifício do crescimento e da estabilidade de preços. A redução da dívida e a retomada do crescimento sustentado facilitarão a reinserção dos países devedores no mercado financeiro internacional. Por outro lado, a recuperação econômica dos países devedores tenderá a beneficiar as próprias exportações dos países industrializados.
Uma solução abrangente requer a coordenação de uma instituição multilateral. Envolve a mobilização de recursos financeiros e alterações nos regulamentos bancários e fiscais dos países industrializados. Exige a superação de difíceis questões como a determinação dos deságios para a compra da dívida externa dos países em desenvolvimento. Nenhum destes problemas é, contudo, insuperável, caso haja suficiente vontade política para resolvê-los.
Do equacionamento da crise da dívida externa depende o futuro de muitos países devedores. Nos países em que a dívida é demasiadamente grande, as soluções estritamente de mercado não são suficientes para produzir o alívio necessário à retomada do desenvolvimento. Nestes casos, uma estratégia abrangente pode propiciar o necessário apoio, não só para a supressão da crise econômica, como também para a consolidação da democracia.
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1
CEPAL, Estudio Economico de America Latina y el Caribe, 1987: Sintesis Preliminar, abril de 1988, p. 2; Jeffrey D. Sachs, “New Approaches to the Latin American Debt Crisis”, Harvard University, setembro 1988, Table 7.
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2
CEPAL, op, cit., pp. 2 e 50; CEPAL, Panorama Economico de America Latina 1988, setembro de 1988, p. 12.
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3
International Monetary Fund, International Financial Statistics, outubro de 1988.
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4
CEPAL, Estudio ... , p. 44.
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5
CEPAL, Estudio ... , pp. 33 e 35.
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6
Ibidem, p. 2.
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7
CEPAL, Restrictions on Sustained Development in Latin America and The Caribbean and the Requisites for Overcoming Them, abril de 1988, p. 31.
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8
CEPAL, Panorama ....., p. 13.
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9
CEPAL, Estudio, p. 2.
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10
CEPAL, Restrictions ...., p. 31.
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11
James D. Robinson III, “A Comprehensive Agenda for LDC Debt and World Trade Growth “, The Amex Bank Review Special Papers, número 13, março 1988
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12
The Economist, 6.8.1988, p. 64.
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13
Discurso pronunciado por François Mitterrand, Presidente da República Francesa, perante a XLI-11ª Seção da Assembleia Geral das Nações Unidas em 29.9.88.
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14
Omnibus Trade and Competitiveness Act of 1988, Public Law 100-418, 23 agosto de 1988.
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15
The World Bank, Market-Based Menu Approach, setembro de 1988, p. 28.
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16
Silvina Vatnick, “The Secondary Market for Debt: A Possible Explanation of How LDC Debt Prices are Determined “, abril de 1988, p. 1.
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17
Para uma avaliação, baseada na experiência brasileira, dos prós e contras da conversão da dívida externa em investimentos, ver Arno Meyer e Maria Sílvia Bastos Marques, “Implicações Macroeconômicas da Conversão de Dívida Externa”, CEMEI/IBRE/FGV, n.º 10, dezembro de 1988.
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Os autores agradecem os comentários e sugestões de Sérgio Silva do Amaral e Paulo Nogueira Batista Jr.
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JEL Classification: F34; F63.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
15 Jan 2024 -
Data do Fascículo
Apr-Jun 1989