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Estabilidade de preços de alimentos e intervenções: uma nova postura governamental

Food price stability and interventions: a new government posture

RESUMO

Neste artigo defendemos a introdução de uma política agrícola mais estável, particularmente em termos de intervenções governamentais no funcionamento dos diversos mercados de produtos agrícolas em comparação com o padrão de tais intervenções no passado recente. Essa maior estabilidade é caracterizada em dois níveis. Primeiro, uma política de preços para as safras nacionais, incluindo estoques reguladores, preços mínimos e preços tetos que indicassem os momentos de aquisição e venda de estoques. Em segundo lugar, para as culturas exportadas, uma nova abordagem para a prática da política comercial, especialmente envolvendo exportações menos sujeitas a restrições governamentais.

PALAVRAS-CHAVE:
Política agrícola; preços mínimos; exportações

ABSTRACT

In this paper we argue for the introduction of a more stable agricultural policy, particularly in terms of governmental interventions in the functioning of the several markets for agricultural products as compared to the pattern of such interventions in the recent past. Such greater stability is characterized in two levels. First, a price policy for domestic crops, including buffer stocks, minimum prices and ceiling prices which would indicate the moments for acquisitions to and selling from stocks. Second, for exported crops, a new approach to the practice of commercial policy, especially involving exports less subject to governmental restrictions.

KEYWORDS:
Agricultural policy; minimum prices; exports

O produtor agrícola, em maior grau que a maioria daqueles em outros setores, enfrenta uma acentuada incerteza quanto ao resultado econômico da sua atividade. Isto é, a magnitude desse resultado econômico - lucro, taxa de retorno - que é uma variável de extrema relevância para a própria tomada de decisões, é desconhecida exatamente quando muitas dessas decisões precisam ser feitas. O agricultor, portanto, exerce suas atividades em uma situação de incerteza, caracterizada, por exemplo, por sua incapacidade, à época do plantio, de saber o preço real do produto a prevalecer na época da colheita, assim como a própria quantidade a ser colhida. Também, não são muito significativas as opções de ajustamento disponíveis aos agricultores, no momento em que o preço de venda de seu produto passa a ser conhecido, ou seja, próximo à colheita.

Essa peculiaridade da atividade agrícola em relação às demais, assim como a necessidade de medidas corretivas, são geralmente reconhecidas. Por exemplo, a literatura econômica aceita a possibilidade de que os programas agrícolas do governo americano, durante boa parte deste século, ao impedirem grandes variações para baixo nos preços agrícolas, através da política de preços de suporte, assim como para cima, através da manutenção de estoques reguladores, tenham contribuído para um período mais estável na agricultura americana,1 1 Seevers, G. L., “Food Policy: Implications for the Food Industry”, American Journal of Agricultural Economics, 58 (2): 270-276, 1976. sem dúvida, uma das mais eficientes e dinâmicas no mundo.

Estabilidade, ou um “período mais estável”, em termos de variáveis de mercado e de intervenções governamentais nesses mercados, parece ser um aspecto crucial na agricultura brasileira nos dias atuais. Ao contrário dos Estados Unidos, o Brasil, ainda que tendo os instrumentos legais para tal, não foi capaz de desenvolver um programa efetivo de suporte e estabilização da atividade agrícola. Apesar de, anualmente, ser grande a expectativa sobre os níveis de preços mínimos das culturas de verão, a eficácia dessa política de garantia tem sido baixa, e o país não foi, até agora, capaz de implementar um programa de estoques reguladores para diminuir as flutuações no abastecimento interno e reduzir a instabilidade dos preços. A crise no abastecimento alimentar, ao final de 1985 e início de 1986, é a mais recente evidência dessa incapacidade.

Aliás, é mesmo altamente provável que a inexistência de uma política de estabilização entre nós seja uma das razões para o desempenho bastante desfavorável do segmento agrícola de mercado interno no período mais recente. Esse será o ponto principal a ser discutido no presente trabalho. Isto é, neste momento, em que o próprio governo brasileiro, através do PND 1986-1989, contempla a realização de um crescimento econômico da ordem de 6% ao ano, e da agricultura, de 5% ao ano, discutiremos a necessidade de, rapidamente, se implementar uma política de estabilização para o setor agrícola, tanto aquele tipicamente de mercado interno, como aquele voltado às exportações, como um dos mecanismos para se alcançar aquele objetivo. Inicialmente, entretanto, apresentaremos uma breve revisão do desempenho agrícola recente, assim como as expectativas governamentais para o restante desta década.

AGRICULTURA: DESEMPENHO E PERSPECTIVAS

O desempenho da agricultura brasileira durante 1977-1984 foi marcado por uma característica de extrema importância: crescimento desequilibrado. Isto é, positivo no agregado, mas com taxas bastante distintas para os diversos segmentos do setor. Vejamos, então, as informações para as taxas anuais de crescimento da produção por habitante durante 1977-1984:2 2 Ver Homem de Melo, F., Prioridade Agrícola: Sucesso ou Fracasso? São Paulo, Editora Pioneira, 1985.

  1. mercado interno: -1,94% ao ano para o total de cinco produtos: arroz, zero; batata, -2,27% ao ano; feijão, zero; mandioca, -5,29% ao ano; milho, zero. Adicionalmente: cebola, 3,01% ao ano, e tomate, zero, ou seja, produção per capita estagnada;

  2. produtos de exportação: 2,56% ao ano para o total de sete culturas: algodão, zero; amendoim, -6,98% ao ano; cacau, 3,31% ao ano; café, zero; fumo, zero; laranja, 5,88% ao ano; soja, zero;

  3. carnes: produção per capita estagnada para o total de três carnes: bovina, -2,00% ao ano; suína, zero; de frango, 9,22% ao ano;

  4. trigo: -0,06% ao ano;

  5. cana-de-açúcar: 7,84% ao ano.

Assim, esse mais recente período registrou uma deterioração em nossa produção de culturas alimentares de mercado interno (domésticas), a estagnação na produção total de carnes, um pequeno declínio na de trigo, um razoável incremento na produção de culturas de exportação e, finalmente, um acelerado crescimento na produção per capita de cana-de-açúcar. Fica evidente, portanto, a necessidade de o Brasil retomar, urgentemente, um padrão de crescimento agrícola mais equilibrado entre os vários segmentos do setor.

Adicionalmente, a área total cultivada no Brasil teve não mais que um modesto crescimento durante 1977-1984, de 0,9% ao ano, portanto a uma taxa substanvialmente menor que a média histórica de 3,5% ao ano (1940-1980). Por outro lado, enquanto as produtividades físicas cresceram de modo bem satisfatório para as culturas de exportação (4,05% ao ano) e para a cana-de-açúcar (2,76% ao ano), ela permaneceu estagnada para o conjunto das culturas de mercado interno. É necessário, assim, um esforço na direção de se aumentar a produtividade dessas culturas, através da urgente adoção de inovações tecnológicas. Uma política de estabilização de preços recebidos e da renda auferida pelos produtores deverá facilitar a obtenção desse aumento de produtividade.

Ao pensarmos em agricultura no restante desta década, é impossível deixar de considerar as expectativas econômicas anunciadas através do I PND da Nova República, particularmente a possibilidade de um crescimento econômica da ordem de 6% ao ano durante 1986-1989. Dada essa taxa, a expectativa de um crescimento populacional de 2,2% ao ano até o final da década, assim como de uma gradativa melhoria na distribuição da renda nacional, tornar-se-ia necessário um crescimento do segmento agricultura de mercado interno, particularmente incluindo arroz, milho, feijão, mandioca, batata, leite, ovos e algumas carnes, da ordem de 4,5% ao ano. Em função das características de cada um desses produtos, suas taxas individuais de crescimento deveriam ficar compreendidas no intervalo 3,0 - 6,0% ao ano. A realização desse crescimento permitiria, inclusive, que o país recuperasse, até o final desta década, as perdas verificadas durante 1977-1984 na produção per capita de várias das atividades agrícolas de mercado interno, conforme acima mostrado.

Quanto ao segmento de exportação da agricultura brasileira, particularmente incluindo o algodão, café, soja, cacau, amendoim, laranja, fumo, açúcar e algumas carnes, estima-se a necessidade de um crescimento ligeiramente maior que o do período 1977-1984, isto é, a produção crescendo a uma taxa anual média de 5,5% durante os anos de 1986-1989. Essa taxa média de crescimento é compatível com as perspectivas de crescimento global das exportações brasileiras nos próximos anos. Também, estimamos a necessidade de um crescimento da ordem de 6% ao ano na produção de trigo, de modo a se aumentar a parcela de produto nacional no abastecimento e reduzindo-se os gastos com importações. Essa taxa de crescimento é semelhante à verificada em boa parte dos anos 70 e, se obtida, representará uma substancial melhoria em relação ao desempenho do período 1977-1984.

As diferentes taxas acima listadas implicam um crescimento para a agricultura como um todo da ordem de 5,0% ao ano. Apesar de não ser muito diferente daquela que tem sido historicamente observada (4,7% ao ano durante 1950-1981), destacamos que ela reintroduziria um padrão de expansão equilibrado entre os diversos segmentos do setor. Entretanto, é importante esclarecer que crescimento equilibrado não necessariamente significa que esses diversos segmentos - mercado interno, exportações e substituição de importações -, assim como as atividades agrícolas específicas neles incluídas, devam crescer às mesmas taxas anuais. Afinal, o próprio crescimento econômico previsto para o restante desta década (6,0% ao ano), através do aumento da renda dos consumidores, trará efeitos diferenciados nos mercados dos diversos produtos agropecuários.

UMA POLÍTICA DE ESTABILIZAÇÃO PARA O SETOR AGRÍCOLA

A ação governamental em política agrícola no restante desta década deveria, em nosso entender, ser caracterizada como geradora de maior estabilidade àqueles diretamente envolvidos com a produção agrícola, os agricultores, assim como àqueles outros agentes envolvidos com a industrialização e o comércio (interno e externo) de produtos agrícolas, respeitando-se o funcionamento dos diversos mercados e intervindo apenas com vistas à correção de distorções e obtenção de melhorias no quadro social. O alcance de um crescimento agrícola equilibrado entre os diversos segmentos da produção deveria servir como orientação básica das ações governamentais em política agrícola.

A política de preços é fundamental para o alcance dessa maior estabilização. Dada a segmentação da agricultura brasileira, entre outros, em produtos de mercado interno e de exportação, essa política terá que ser formulada levando-se em conta essa característica. Isto porque os preços dos produtos do primeiro subgrupo são, no curto prazo, determinados apenas pelas variáveis econômicas internas - quantidade produzida, renda per capita, preços de substitutos, condições de liquidez etc. Por outro lado, os produtos de exportação têm seus preços internos, predominantemente, determinados por variáveis externas, tais como os preços internacionais em dólares e a taxa de câmbio. Em função dos valores mais baixos das elasticidades-preço de suas demandas (internas), tudo o mais constante, em comparação com os dos produtos de exportação e com preços administrados, as culturas de mercado interno apresentam uma maior flutuação (risco) de seus resultados econômicos finais (receitas, lucros).3 3 Ver Homem de Melo, F., “Estabilização de Preços: Exportáveis vs. Domésticos”, relatório de pesquisa não publicado, Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, São Paulo, dezembro de 1985, assim como as evidências a seguir.

Com base no desempenho diferenciado dos produtos agrícolas, mostrado na seção anterior, os níveis dos preços mínimos deveriam ser compatíveis com a necessidade de se obter aumentos na produção de alimentos básicos de mercado interno (produtos domésticos), com correção monetária plena até os meses de colheita e comercialização nas principais regiões produtoras. Uma possibilidade com impactos muito favoráveis seria a fixação, apenas para os produtos domésticos, de preços mínimos em ORTNs, válidos por três anos, portanto, coerente como o conceito de plurianuais, findos os quais eles seriam revistos com base nos ganhos de produtividade obtidos e níveis de estoques, e novamente determinados por outros três anos e, assim, sucessivamente. Em complementação, concessão de clara prioridade quantitativa a esses produtos para a obtenção de financiamentos de comercialização (EGF) e nos recursos para venda direta ao governo (AGF).4 4 Ver Homem de Melo, F., Prioridade Agrícola..., op. cit. Adicionalmente, o início de uma efetiva política de estoques reguladores visando, ao longo do tempo, maior estabilização dos preços recebidos e da renda dos produtores de alimentos de mercado interno. Eventuais importações, como as de 1986, poderiam ser utilizadas para iniciar a formação de estoques de segurança, com regras claras quanto às possibilidades de sua liberação ao mercado, como veremos a seguir.

Em outras palavras, a implementação efetiva dessas medidas implicaria a existência, por um razoável período de tempo de um esquema de estabilização dos preços recebidos, válido apenas para as culturas alimentares domésticas, assim como dos preços pagos pelos consumidores desses produtos básicos de alimentação. Senão vejamos o seguinte: a fixação de preços mínimos aos produtores de alimentos por um período de três anos garantiria o nível mínimo a ser obtido, dada a prioridade a ser, simultaneamente, concedida aos produtos alimentares domésticos na alocação de recursos disponíveis para a comercialização, na forma de EGF e AGF.

No lado dos consumidores, esse esquema de estabilização seria completado pela fixação de uma regra clara e permanente quanto ao nível de preços de mercado (produtores) que, uma vez alcançado, daria início ao processo de liberação dos estoques e/ou, eventualmente com antecipação, importações seriam autorizadas. Esse diferencial entre os níveis de compra e venda dos estoques poderia, tentativamente, ser fixado em 15-25%.5 5 Essa faixa foi obtida, para arroz, milho e feijão, com base no critério de se obter um coeficiente de variação da receita total desses produtos, no mínimo igual ao ponto intermediário da faixa de instabilidade dos produtos de exportação. Ver Homem de Melo, F., “Estabilização de Preços...”, op. cit., p. 85, assim como o texto a seguir. Isso garantiria ao mercado uma certa flexibilidade na determinação de preços, aspecto essencial para a alocação de recursos na produção e formação de estoques privados, mas, ao mesmo tempo, impediria as excessivas flutuações de preços a que as culturas alimentares domésticas têm estado sujeitas ao longo do tempo, pelas suas próprias características. Note-se, em especial, que com esse mecanismo a estocagem privada seria até estimulada, visto que a ação governamental ficaria limitada pela garantia do preço mínimo e pela liberação automática de estoques, apenas quando os preços de mercado alcançassem os preços-teto.

A justificativa, teórica e empírica, para esta proposta está ligada à própria segmentação da agricultura brasileira em produtos domésticos (em geral, alimentos), de exportação e com preços administrados pelo governo. Primeiro, o maior risco do resultado econômico das culturas domésticas, em função dos baixos valores das elasticidades-preço de suas demandas (internas), tudo o mais constante,6 6 As flutuações das respectivas demandas e a intensidade de variação das quantidades produzidas de cada uma delas. Ver Homem de Melo, F., “Instabilidade da Renda e Estabilização de Preços Agrícolas”, Pesquisa e Planejamento Econômico, 13 (3): 829-862, 1983. em comparação com aqueles das culturas de exportação, como salientado acima. Segundo, a nossa expectativa é de que os níveis de aversão ao risco sejam maiores para os pequenos que para os grandes produtores. Em consequência, a adoção de uma maior estabilização de preços recebidos pelos produtores de culturas domésticas contribuiria para a redução da variância (risco) dá receita, assim como favoreceria mais os pequenos e médios agricultores,7 7 Esse aspecto está perfeitamente de acordo com o argumento de Rezende, no sentido de que o simples alívio da restrição quantidade de terra disponível aos pequenos produtores, através da reforma agrária, não garantiria a expansão da produção de culturas domésticas. Ver Rezende, O. C., “Crescimento Econômico e Oferta de Alimentos no Brasil”, Revista de Economia Política 6 (1), 1986. inclusive no processo de adoção de novas tecnologias necessárias ao aumento de produtividade, aumento este que é muito importante na situação econômica atual, conforme exposto na primeira seção.

Em terceiro lugar, preços mais estáveis de produtos alimentares domésticos também favoreceriam os consumidores (em termos de utilidade da renda), desde que tenhamos baixos valores absolutos das elasticidades-preço e renda da demanda8 8 Na realidade, a condição necessária é que o coeficiente de aversão ao risco dos consumidores seja maior que a elasticidade-renda da demanda. Ver Dahlby, B. G., “Measuring the Effects on a Consumer of Stabilizing the Price of a Commodity”, Canadian Journal of Economics, 14 (3): 440-449, 1981. e valores altos para as parcelas orçamentárias desses produtos. Essas não são condições improváveis no caso de consumidores com menores níveis de renda.

Finalmente, o estabelecimento de regras claras e mais permanentes para os níveis de variação dos preços de produtos de mercado interno permitiria que o setor intermediário e processador operasse, também, com menor incerteza, particularmente quanto às intervenções governamentais. Estas, do modo como feitas até agora, têm sido desestabilizadoras em termos de funcionamento dos mercados. Em vez de as firmas investirem recursos na tentativa de prever eventuais intervenções do governo na comercialização, com todas as dificuldades envolvidas nessa tentativa, elas ficariam muito mais concentradas, em seus recursos gerenciais, na coleta e análise de informações sobre mercados agrícolas,9 9 Ver Seevers, O. L, “Food Policy...”, op. cit. visando uma mais eficiente operação.

Assim, mesmo que essa maior estabilização ocorra a níveis de preços superiores aos de mercado internacional (FOB), principalmente nos casos de arroz e milho, essa diferenciação poderá ser encarada como temporária. Esses dois produtos, de fato, têm apresentado, ao longo do tempo, uma situação caracterizada por preços recebidos pelos produtores a níveis superiores aos correspondentes preços externos internalizados às regiões produtoras.10 10 A esse respeito, deve-se ressaltar que, entre 1980 e 1984, os preços de arroz no atacado no Brasil estiveram quase sempre bem acima do preço de exportação de arroz pela Tailândia (o maior exportador mundial): 1980, + 12,l%; 1981, -2,4%; 1982, +66,8%; 1983, +70,2%; 1984, +34,2%. Em 1985-1986, novamente, o preço CIF do arroz importado da Tailândia era inferior ao de atacado em São Paulo. Essa circunstância, mais ainda, ressalta a urgente necessidade de, racionalmente, aumentarmos a nossa produção de alimentos domésticos a custos mais baixos, visto que os consumidores brasileiros de baixa renda estão pagando preços desses alimentos acima daqueles que prevalecem em vários países desenvolvidos e menos desenvolvidos. Apenas salientamos que isso deverá ocorrer de uma maneira ordenada ao longo de um certo horizonte de tempo. Para tal, a diminuição dos riscos econômicos na produção é uma importante medida.

Qual é, portanto, o padrão histórico de instabilidade de preços recebidos pelos produtores no Brasil? Ao estudarmos essa questão, utilizando cinco indicadores diferentes de instabilidade de preços para onze das mais importantes culturas da agricultura brasileira durante 1948-1976, chegamos à seguinte conclusão:11 11 Homem de Melo, F., “Padrões de Instabilidade entre Culturas da Agricultura Brasileira”, Pesquisa e Planejamento Econômico, 9 (3): 819-844, 1979, cf. pp. 836-837. “A nossa constatação, com o exame da colocação dos produtos, ... é de grande consistência entre os diversos indicadores de instabilidade de preços; apenas o indicador variação relativa média apresenta maiores alterações entre os seis primeiros classificados. Entretanto, mesmo esse caso não altera a observação dos cinco produtos de mercado interno (mandioca, feijão, batata, cebola e arroz), entre os seis produtos com maior instabilidade de preços, o outro produto entre os seis primeiros é o café, o que não deve se constituir em grande surpresa. Por outro lado, todos os indicadores são coincidentes em mostrar que cana-de-açúcar e soja são os produtos com menor instabilidade de preços. Finalmente, algodão, amendoim e milho alternam-se nas posições intermediárias entre os diversos indicadores”. Portanto, temos indicações concretas de que, durante 1948-1976, a maioria dos produtos por nós considerados como domésticos (mercado interno) teve preços mais instáveis do que a maioria dos exportáveis ou aqueles com preços administrados.

Na Tabela 1 apresentamos, para os vários produtos no período 1977-1984, o indicador coeficiente de variação dos preços recebidos. Mostramos, também, os coeficientes de variação para os preços externos (em dólares) dos produtos de exportação e, finalmente, as instabilidades (coeficientes de variação) da receita auferida pelos produtores no Brasil durante 1977-1984. Com os dados dessa tabela percebe-se que, durante o período mais recente, 1977-1984, permaneceu, de modo geral, o quadro anterior (1948-1976) de um diferencial de instabilidade em desfavor das culturas domésticas (mercado interno). Assim, excetuando os casos da mandioca e amendoim, ficamos próximos da conclusão anterior, a saber, as culturas domésticas com igual ou maior instabilidade dos preços recebidos que a das exportáveis e aquelas com preços administrados.

Tabela 1
comparação do coeficiente de variação* dos preços reais recebidos, preços externos e receita auferida, diversas culturas 1977-1984 (em %)

Vejamos a ordenação das magnitudes dos coeficientes de variação dos preços recebidos, em particular, considerando-se os três segmentos da agricultura (Tabela 1). As duas culturas com preços administrados têm os menores coeficientes de variação, ambas com valores abaixo de 5%. Caso excluíssemos o amendoim, exportável, e a mandioca, doméstica, o seguinte quadro surgiria: na faixa 6-15%, todas as culturas de exportação, enquanto na faixa 14-31%, todas as domésticas. Isto é, o limite superior da faixa de variabilidade de preços das culturas de exportação é o limite inferior da faixa de variabilidade das domésticas.

As faixas de instabilidade de preços acima indicadas nos ajudam a justificar a escolha, anteriormente mencionada, do diferencial de 15-25% entre os preços mínimos de compra pelo governo para a formação de estoques de produtos domésticos e os preços de venda desses mesmos estoques ao mercado, através de leilões. Esse diferencial de 15-25% entre os limites inferior e superior - o “túnel” em que os preços recebidos pelos produtores de culturas domésticas (arroz, feijão e milho) flutuariam livremente - é compatível com um coeficiente de variação da ordem de 5-10%. Esta ordem de magnitude para o coeficiente de variação a ser buscado pela política de estabilização de preços das culturas domésticas teria o mérito de induzir um coeficiente de variação da receita total no mínimo igual ao ponto intermediário de faixa de instabilidade da receita dos exportáveis (última coluna da Tabela 1). Em outras palavras, com a medida aqui proposta, simplesmente passariam a ser mais próximos os padrões de instabilidade das receitas dos diferentes segmentos da agricultura brasileira. Como resultado, passaríamos de um quadro desigual entre os segmentos para um quadro mais equilibrado, particularmente no que se refere ao risco econômico das atividades. O risco em questão é aquele consequente à instabilidade da receita auferida pelos produtores, em função da instabilidade dos preços recebidos.

Para os produtos de exportação, o aspecto principal a ser salientado reside em uma nova postura quanto à prática da política comercial. Essa política, incluindo o conjunto de regras (licenciamentos, quotas etc.) referentes às transações internacionais de produtos agrícolas, bem representa uma área em que o governo deveria transmitir uma visão de maior estabilidade e respeito às forças econômicas originárias da atuação dos mercados. Em outras palavras, deveria o governo limitar, tanto quanto possível, a sua ingerência nas negociações privadas sobre exportações agrícolas. Essa intervenção governamental deveria ficar, doravante, restrita às circunstâncias excepcionais nesses mercados, representadas por momentos atípicos de elevações ou baixas das cotações internacionais, o atípico sendo caracterizado em relação à tendência histórica desses preços.

No momento atual, um dos elementos que garante uma maior estabilidade aos mercados de produtos agrícolas de exportação é a própria política cambial do governo, ou seja, taxa de câmbio real praticamente constante a partir de março de 1983, ao contrário do que ocorre com os produtos de mercado interno. Em garantindo, adicionalmente, que sua intervenção, através de instrumentos comerciais, como quotas, impostos, licenciamentos etc., será a mínima possível, o governo deixaria o mercado mais livre para determinar a alocação de recursos na agricultura, transmitiria uma maior estabilidade ao setor produtor, intermediário e processador, e concentraria sua atuação em produtos e produtores, conforme já descrito, que estejam efetivamente carentes de maior apoio (culturas domésticas).

Na penúltima coluna da Tabela 1 mostramos as magnitudes das instabilidades de preços internacionais (em dólares) de nossos produtos de exportação. Na ausência de qualquer instabilidade da taxa real de câmbio, o coeficiente de variação dos preços internos (em cruzeiros) seria igual ao coeficiente de variação dos preços externos (em dólares), desde que o mercado em questão não sofresse intervenções governamentais via política comercial (impostos, quotas, licenciamentos etc.). Com isso em mente, observamos, na Tabela 1, que dos seis produtos de exportação, três apresentaram instabilidade de preços internos maiores que as dos externos (amendoim, fumo e soja). Na prática do período 1977-1984, duas razões devem explicar isso: primeiro, as próprias flutuações de nossa política cambial12 12 Ver Homem de Melo, F., Prioridade Agricola..., 1985. e, segundo, as intervenções governamentais através da política comercial (exemplo, soja e derivados em alguns dos anos). Como, a partir de março de 1983, a taxa real de câmbio tem permanecido praticamente constante em valores reais (variância quase nula), as intervenções comerciais do governo passaram a se constituir na única fonte de instabilidade a partir de então (além da do preço em dólares). Nesse contexto, a proposta aqui colocada contribuiria para reduzir essa instabilidade dos preços internos.

CONCLUSÕES

Neste trabalho, procuramos mostrar a necessidade de se introduzir uma política agrícola mais estável, particularmente em termos de intervenções governamentais no funcionamento dos diversos mercados, ao contrário daquilo que tem existido no passado mais recente. Essa maior estabilidade foi caracterizada em dois níveis. Primeiro, em termos da política de preços para os produtos de mercado interno, através de um programa de estoques reguladores com preços mínimos plurianuais e preços-teto que indicariam as aquisições para os e liberações dos estoques. Segundo, em termos dos produtos de exportação (competitivos nos mercados internacionais), uma nova postura quanto à prática da política comercial, em especial envolvendo exportações menos sujeitas a restrições governamentais.

Com essa nova postura governamental em política agrícola teríamos uma diminuição do grau de incerteza enfrentado pelos agricultores, assim como pelos intermediários e processadores de produtos primários, através das menores flutuações de preços e das receitas auferidas. Assim, esses agentes poderiam concentrar seus recursos gerenciais, de uma maneira mais adequada, na coleta e análise de informações sobre mercados agrícolas, visando uma condução mais eficiente de suas atividades. Dada a necessidade que o país tem, no momento presente, de obter consideráveis incrementos em sua produção agrícola, tanto aquela voltada ao abastecimento interno, como aquela para exportações, essa nova postura assume grande importância. Em outras palavras, as medidas arroladas neste trabalho contribuiriam positivamente para a realização das taxas de crescimento estimadas, pelo próprio governo, como necessárias até o final desta década pela agricultura brasileira em seus dois principais segmentos (produtos domésticos e de exportação).

  • 1
    Seevers, G. L., “Food Policy: Implications for the Food Industry”, American Journal of Agricultural Economics, 58 (2): 270-276, 1976.
  • 2
    Ver Homem de Melo, F., Prioridade Agrícola: Sucesso ou Fracasso? São Paulo, Editora Pioneira, 1985.
  • 3
    Ver Homem de Melo, F., “Estabilização de Preços: Exportáveis vs. Domésticos”, relatório de pesquisa não publicado, Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, São Paulo, dezembro de 1985, assim como as evidências a seguir.
  • 4
    Ver Homem de Melo, F., Prioridade Agrícola..., op. cit.
  • 5
    Essa faixa foi obtida, para arroz, milho e feijão, com base no critério de se obter um coeficiente de variação da receita total desses produtos, no mínimo igual ao ponto intermediário da faixa de instabilidade dos produtos de exportação. Ver Homem de Melo, F., “Estabilização de Preços...”, op. cit., p. 85, assim como o texto a seguir.
  • 6
    As flutuações das respectivas demandas e a intensidade de variação das quantidades produzidas de cada uma delas. Ver Homem de Melo, F., “Instabilidade da Renda e Estabilização de Preços Agrícolas”, Pesquisa e Planejamento Econômico, 13 (3): 829-862, 1983.
  • 7
    Esse aspecto está perfeitamente de acordo com o argumento de Rezende, no sentido de que o simples alívio da restrição quantidade de terra disponível aos pequenos produtores, através da reforma agrária, não garantiria a expansão da produção de culturas domésticas. Ver Rezende, O. C., “Crescimento Econômico e Oferta de Alimentos no Brasil”, Revista de Economia Política 6 (1), 1986.
  • 8
    Na realidade, a condição necessária é que o coeficiente de aversão ao risco dos consumidores seja maior que a elasticidade-renda da demanda. Ver Dahlby, B. G., “Measuring the Effects on a Consumer of Stabilizing the Price of a Commodity”, Canadian Journal of Economics, 14 (3): 440-449, 1981.
  • 9
    Ver Seevers, O. L, “Food Policy...”, op. cit.
  • 10
    A esse respeito, deve-se ressaltar que, entre 1980 e 1984, os preços de arroz no atacado no Brasil estiveram quase sempre bem acima do preço de exportação de arroz pela Tailândia (o maior exportador mundial): 1980, + 12,l%; 1981, -2,4%; 1982, +66,8%; 1983, +70,2%; 1984, +34,2%. Em 1985-1986, novamente, o preço CIF do arroz importado da Tailândia era inferior ao de atacado em São Paulo.
  • 11
    Homem de Melo, F., “Padrões de Instabilidade entre Culturas da Agricultura Brasileira”, Pesquisa e Planejamento Econômico, 9 (3): 819-844, 1979, cf. pp. 836-837.
  • 12
    Ver Homem de Melo, F., Prioridade Agricola..., 1985.
  • 13
    JEL Classification: Q11; Q17.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 1986
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