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Reflexões sobre os limites e potencialidades econômicas da democratização* * Traduzido por Marina Brasil Rocha

Reflections on the limits and economic potentialities of democratization

RESUMO

A democratização na América Latina pode afirmar um novo paradigma de desenvolvimento para a região. Essa hipótese é considerada a partir da análise dos desafios econômicos externos e internos e das potencialidades econômicas da democratização. O maior desafio é transcender aquelas modalidades de organização econômica, social e política que deram origem ao autoritarismo e suas diversas modalidades. Analisam-se as potencialidades intermediárias e longínquas da democratização no circuito da inovação social, criatividade, gestão pública e integração regional, excluindo as concepções neoliberais no “Cone Sul” para sugerir novos caminhos e meios para o progresso.

PALAVRAS-CHAVE:
Democracia; desenvolvimento econômico

ABSTRACT

The democratization in Latin America can assert a new paradigm of development for the region. This hypothesis is considered from the analysis of both external and internal economic challenges, and from the democratization’s economic potentialities. The greatest challenge is transcending those modalities of economic, social and political organization, which originated the authoritarianism and its various modalities. The democratization’s intermediate and long-time potentialities are analysed in the circuit of social innovation, creativeness, public administration, and regional integration, excluding the neoliberal conceptions in “Cone Sul” in order to suggest new ways and means to progress.

KEYWORDS:
Domocracy; economic development

Na primeira parte, o trabalho visa caracterizar esquematicamente os desafios econômicos enfrentados nos processos de recuperação ou construção democrática, distinguindo aqueles que se vinculam ao contexto internacional dos que são gerados internamente. Com respeito a esses últimos, chama-se a atenção para a importância de se separar os efeitos da crise 1981/84, as heranças da aplicação do modelo neoliberal e os fatores estruturais (1950/80) que geraram a realidade econômica com que deverão conviver na fase atual de democratização. Apesar do caráter sintético dessas reflexões, emerge com clareza a relevância de se aprofundar a análise das especificidades nacionais, para o que estas páginas não são mais do que uma introdução superficial.

Na segunda parte, esboçam-se algumas considerações sobre as potencialidades econômicas que podem engendrar-se nos processos de democratização. A atenção concentra-se na identificação de alguns temas a serem explorados: vinculação democratização-inovação social em um contexto de lento crescimento, eficiência macrossocial-criatividade, transparência e descentralização da gestão pública e, finalmente, a vinculação democratização-integração regional.

A materialização plena dessas potencialidades supõe que as democracias nascentes superam os obstáculos econômicos de curto prazo, que, além de angustiantes, se apresentam com características diferentes em cada um dos países. O específico das circunstâncias atuais reside no fato de que, por ausência de graus de liberdade quanto a recursos financeiros externos, as opções de curto prazo quanto a prioridades sociais, setoriais e regionais condicionam a dinâmica e a orientação de médio e longo prazos. Se a democracia não consegue desencadear, em sua fase inicial, as potencialidades de inovação no âmbito social, elevar o nível de consciência, transparência e criatividade econômica e política, pode enfrentar, posteriormente, rigidez e desequilíbrios incompatíveis com as expectativas que estimulam e acompanham os processos de democratização.

1. DESAFIOS ECONÔMICOS

1.1. Desafios externos

A atenção concentra-se nas perspectivas gerais do contexto econômico internacional, nas tendências de transformação tecnológica produtiva dos países avançados e suas implicações para os países da região e, finalmente, na perplexidade que caracteriza o estado atual do pensamento econômico.

a) Tendências econômicas gerais

Ainda que haja uma frustração difundida e generalizada diante do amplo e variável espectro das projeções para curto prazo, parece existir maior grau de convergência nas visões de médio prazo (5 a 10 anos). Esse relativo consenso poderia caracterizar-se pelos seguintes termos: perspectivas de crescimento econômico mais lento nos países avançados que o do período 1950/80, ainda que levemente superiores ao do período 1980/85, o qual se traduziria por tênue melhora nos deteriorados termos de troca; níveis de desemprego suficientemente elevados para manter políticas protecionistas; taxas de juros reais maiores que as prevalecentes nos anos 50 e 60 e levemente inferiores às do período 1980/85. No conjunto, isso implicaria que os níveis de renda por habitante, prevalecentes na América Latina em 1980, recuperar-se-iam, conforme os países, entre os anos 1990 e 1995, ainda que, devido à natureza do ajuste recente, apresentem um grau de concentração de renda provavelmente mais acentuado que em 1980. Como ilustração dessa visão geral compartilhada por distintos estudos prospectivos, inclui-se a projeção do Banco Mundial para o período 1985/95, onde são considerados dois cenários de referência que poderiam ser caracterizados nos seguintes termos:1 1 World Development Report 1984, World Bank. Os quatro países considerados - Argentina, Brasil, Chile e Uruguai - estão incluídos na categoria: “receitas médias dos importadores de petróleo”. Argentina e Brasil, na subcategoria: “principais exportadores de manufaturados”. Chile e Uruguai, na subcategoria: “outros”.

  • I) Hipótese baixa: supõe para os países industrializados uma extrapolação das tendências econômicas dos anos 70, com déficit fiscal, taxas de inflação, desemprego, protecionismo e taxas de juros elevadas, com as correspondentes consequências negativas para os países em desenvolvimento.

  • II) Hipótese alta: supõe que os países industrializados reencontrem o caminho do crescimento, a um ritmo comparável ao da década dos 60, permitindo diminuir o déficit fiscal, taxas de juros, desemprego, tendências protecionistas e inflação, o que induziria a um crescimento nos países em desenvolvimento similar ao dos anos 60. Um fator decisivo para a materialização dessa hipótese otimista seria a redução tendencial do déficit fiscal dos Estados Unidos. O debate a respeito desse tema sugere que a verossimilhança desse cenário favorável está longe de ser evidente.

Quadro 1:
Perspectivas das economias industriais e em desenvolvimento (variação em porcentagem média anual}

B) A reestruturação tecnológico-industrial dos países avançados: desafio e oportunidade para os países da América Latina

A rapidez e efetividade com que os países industrializados se adaptaram às novas condições energéticas constitui a expressão relevante, mas parcial, de um processo mais complexo e profundo de reestruturação tecnológico-industrial, atualmente em curso. Estima-se que, em 1982, os países da OCDE utilizem 16% menos energia e 26% menos petróleo por unidade de PNB do que em 1973.

A vontade política de adaptar-se a um desafio dessa magnitude, unida à flexibilidade para modificar comportamentos sociais e inovar tecnologicamente, é reveladora da potencialidade daquelas situações em que a “capacidade criativa endógena” tem primazia com relação à “imitação acrítica”.

A particular valorização política e social que os países industrializados outorgam às atividades industriais, científicas e tecnológicas, na atual conjuntura de crise, reflete-se com nitidez nos acordos estabelecidos em todas as últimas “reuniões de cúpula” dos países avançados.

Independente dos mecanismos institucionais e das diferenças nas ênfases retóricas com respeito à intervenção pública, verifica-se empiricamente que, em completa coerência com a formulação anterior, ocorre um esforço sistemático e de grande envergadura por parte do setor público dos países industrializados para dar impulso, em estreita articulação com o setor privado, ao desenvolvimento e à incorporação das tecnologias de ponta na atividade produtiva nacional. Existe consenso nos países avançados de que as “vantagens comparativas” no comércio internacional das próximas décadas se constituem precisamente através dessa ação “voluntarista” e “intervencionista” a nível nacional.

Uma ilustração dessa coincidência substantiva que se superpõe a diferenças formais e institucionais é proporcionada pela comparação dos programas em áreas de ponta do MITI do Japão e do Departamento de Defesa nos Estados Unidos.

A transição tecnológico-industrial adquire relevância particular na adaptação energética e nas tecnologias de ponta, mas sua influência difunde-se pelo conjunto da produção de bens e serviços.

IMPLICAÇÕES PARA A AMÉRICA LATINA

Entre as múltiplas implicações que esse contexto pode ter para os países da América Latina, parece útil enfatizar as seguintes:

  • - Para a prevenção de um período relativamente prolongado de crescimento lento, os países avançados preparam e apoiam um processo de transição para um novo padrão tecnológico-industrial, que poderia levá-los a integrarem-se a um novo ciclo de crescimento; isso implica que os países da região enfrentarão presumivelmente um contexto internacional que a curto e médio prazos oferece um caso potencial de dinamismo, mas que, entretanto, permitirá engendrar uma nova estrutura produtiva em escala internacional, com respeito à qual as estruturas produtivas nacionais se não se transformarem poderão ficar parcialmente obsoletas.

  • - A ação governamental dos países avançados tende a intensificar-se com vistas a reforçar a posição relativa de cada um dos países nesse processo de transição, do qual pode emergir uma nova hierarquia na gravitação relativa no plano internacional.

  • - Alguns dos setores em que se localizam os projetos mais importantes de alguns países da região coincidem com aqueles nos quais podem produzir-se transformações tecnológicas nos próximos anos a nível internacional. É o caso das indústrias automotriz, petroquímica e de bens de capital.

  • - Do anterior, depreende-se a importância decisiva que podem ter as iniciativas de cooperação regional, que permitam incorporar sistematicamente, ao processo de negociações internacionais em cada um desses setores, uma visão atualizada da mudança tecnológica previsível. Caso contrário, poderia ocorrer, como aconteceu no passado, que os países desenvolvidos desloquem as modalidades técnicas de fabricação e os equipamentos já superados pela mudança tecnológica para os países em vias de desenvolvimento. Tratando-se de setores que constituam o núcleo industrial mais avançado dos países da América Latina, essa eventualidade, ao materializar-se, afetaria seriamente as economias nacionais nas próximas décadas.

  • - Constata-se que alguns setores, nos quais até agora os países da região haviam concentrado esforços em matéria de exportações industriais, por terem uma intensidade elevada no uso de mão-de-obra, podem experimentar mudanças significativas, nos próximos anos, que afetem drasticamente a competitividade dos produtos nacionais. Seria o caso dos setores têxtil e de vestuário e uma gama variada de “maquinarias” do setor têxtil e de eletrônicos.

  • - Nas áreas tecnológicas e de ponta, parece evidente que os países da América Latina devem fazer um esforço de grande envergadura, para o que a cooperação regional poderia ser muito valiosa. Entretanto, os campos de aplicação preferencial podem apresentar diferenças significativas, reflexo da especificidade das carências e potencialidades, razão pela qual são objeto de atenção particular nos países avançados.

c) A crise do pensamento econômico

Ainda que as perspectivas de recuperação econômica estejam longe de ser evidentes, são mais promissoras que a capacidade da teoria econômica para interpretar a realidade. Essa incapacidade interpretativa gera perplexidade e angústia, que nutrem o florescimento das ideologias econômicas, o voluntarismo e a inconsequência entre o discurso e a prática, que se difundem nos países avançados e se projetam com particular intensidade nas sociedades latino-americanas.

Após a grande crise dos anos 30, emerge e se consolida com a Segunda Guerra Mundial um paradigma que inclui, como componentes principais, a democracia representativa, a industrialização e as políticas keynesianas, com o Estado como orientador, regulador e protetor da atividade econômica privada e de seu modo natural de funcionamento, o mercado. No final dos anos 60 e começo dos 70, quando o dinamismo e a taxa de rentabilidade no setor produtivo se esgotam, começa o assédio intelectual a esse paradigma, que passa a ser questionado em todas as frentes: argumenta-se que as democracias parecem crescentemente “ingovernáveis”; descobre-se e afirma-se que os serviços, liberados pela intermediação financeira, substituem a indústria como motor de crescimento; o mercado unido ao monetarismo emergem como substitutos do Estado e das políticas keynesianas que, por sua vez, se revelam impotentes para explicar e muito menos superar a coexistência da estagnação e da inflação dos anos 70. Finalmente, o espaço nacional em que se originara o crescimento econômico do pós-guerra começa a ser considerado pejorativamente, como simples reflexo dos obsoletos “nacionalismos paroquiais”.

A angústia existencial gerada pela incompreensão da realidade resultou na mais simples e, por conseguinte, sedutora das respostas: as virtudes do passado con­vertiam-se em vícios e vice-versa.

Assim, emerge a utopia conservadora e demoníaca que encontra apoio eleitoral nos países que lideraram a primeira e segunda revolução industrial - Inglaterra e Estados Unidos -, mas que antes é colocada em prática pela via coercitiva nos países que, em 1950, eram os mais avançados e articulados da região - Argentina, Chile e Uruguai-, pelo que, de modo semelhante aos Estados Unidos e Inglaterra, no caso dos países avançados, são os que experimentam o menor crescimento no pós-guerra na América Latina. É compreensível que a apelação à memória histórica do Século XIX triunfe eleitoralmente nos Estados Unidos e Inglaterra, e que, no caso do Cone Sul, só possa viabilizar-se pela via da compulsão.

No caso dos Estados Unidos, a “utopia manchesteriana” aplica-se com grande pragmatismo e não tem nenhum escrúpulo em recorrer ao injuriado déficit fiscal e ao financiamento externo, com os quais se compensavam os baixíssimos níveis de poupança interna, viabilizando o consumo duradouro, motor do crescimento nesse país; a recuperação assim gerada ocasionava um crescente déficit comercial que, curiosamente, do ponto de vista da América Latina, era acompanhado por elevação do dólar. Na América Latina, a proposta neoliberal também viabilizava a expansão do consumo duradouro com escassa poupança interna, com a diferença nada desprezível, entretanto, de que esse “motor de crescimento” só perdurou enquanto a frívola reciclagem de petrodólares pelos bancos privados permitiu substituir a precária base industrial precedente por uma ainda mais irracional importação de “modernização de aparência”.

Nos países avançados, especialmente nos Estados Unidos e em alguns países europeus, a resposta “progressista” à utopia manchesteriana é a “utopia japonesa”, à qual se soma, por parte dos setores com maior sensibilidade social, certo componente de “utopia sueca”. Buscava-se nada mais nada menos que a síntese do dinamismo industrial e tecnológico e a consequente competitividade internacional japonesa, com o equilíbrio, segurança e prosperidade do modelo sueco. Difícil encontrar uma expressão mais nítida de voluntarismo. Também nesse caso, dois países da América Latina haviam-se adiantado às “correntes progressistas” dos países avançados. Até a metade dos anos 70, os planos de desenvolvimento do Brasil e do México podiam, caricaturizando, resumir-se em “Brasil e México querem imitar o Japão”. É nesses casos que a reciclagem dos petrodólares e as receitas do petróleo, respectivamente, parecem viabilizar, durante a metade dos anos 70, a substituição da dimensão sueca de bem-estar e segurança social pela hipótese - com modalidades diferentes em cada caso - da acumulação ininterrupta propiciada pelo crescimento esperado.

A última ilustração da ideologização econômica e inconsequente dos países avançados é a recomendação com que esses países aspiram orientar o futuro dos países em desenvolvimento. Enquanto os países avançados, como já se assinalou no parágrafo anterior, constroem voluntariamente, com a decisiva intervenção pública, as vantagens comparativas do futuro comércio mundial, protegem seu mercado interno das importações, absorvem poupança externa, inclusive a dos países em desenvolvimento, para modernizar seu aparelho produtivo, e reorientam os fluxos do investimento direto no interior dos países centrais, eles recomendam aos países em desenvolvimento a liberação do setor público, a simplória abertura ao comércio internacional e a substituição de crédito externo por investimento direto.

Do anterior depreende-se que não só as perspectivas do contexto econômico internacional parecem ser mais modestas que as do passado, no que se refere a mercados e a financiamento externo, mas também, no plano das ideias, parece ser inevitável iniciar uma reflexão própria que transcenda o âmbito limitado das relações de subordinação da periferia com relação ao centro e aborde o estudo da dinâmica das economias avançadas.

Se o panorama acima descrito for correto, a atitude apropriada para abordar a temática dos desafios e potencialidades econômicas da democratização por um lado deve ser modesta e realista, mas, por outro lado, torna impostergável a necessidade de explorar, com largueza de espírito, os aspectos e modalidades de ação não-sacramentados pela “ciência perfeita”.

1.2. Desafios internos

A atenção se concentra em três temas principais: a crise externa 1981/84, nos quatro países considerados; a herança da aplicação do modelo neoliberal em alguns deles (Argentina, Chile e Uruguai); e os fatores estruturais de longo prazo (1950/80) que deram origem à crise atual.

Na análise dos desafios internos, as especificidades nacionais adquirem relevância e deverão ser aprofundadas nas discussões particulares. O objetivo que se persegue com essa divisão é simplesmente proporcionar alguma informação básica comparativa e sugerir temas para reflexão, as quais se aprofundará no espaço dedicado posteriormente ao debate dos casos individuais.

a) Efeitos da crise 1981 /84

No Quadro 2, apresenta-se um conjunto de indicadores que sintetizam a magnitude do impacto experimentado pelas economias dos quatro países nos últimos anos: queda do produto interno bruto por habitante semelhante à do Brasil ou superior à experimentada no conjunto pela América Latina, sendo o caso limite o Uruguai, onde a redução praticamente duplica-se com relação à experimentada pelo conjunto da região. O propósito principal dessa drástica queda do nível de atividade interna era liberar recursos em moeda estrangeira para pagar, pelo menos, os juros da dívida externa, o que se conseguiu nos quatro países e no conjunto da região, principalmente mediante drástica redução das importações de bens; nos casos da Argentina, Chile e Uruguai, com a maior contenção das importações de bens de consumo, a queda é de aproximadamente 50%. Apenas no caso do Brasil, no ano de 1984, a diminuição das importações se complementou com forte incremento das exportações, devido basicamente à recuperação dos Estados Unidos.

Quadro 2:
Efeitos gerais da crise - 1981/84

A queda do nível da atividade econômica foi acompanhada por elevação da inflação e, nos países menores, pelo desemprego urbano aberto; em um extremo situa-se a Argentina, com 675% de inflação em 1984 e 4% de desemprego urbano, e no outro extremo situa-se o Chile, com 22% de inflação e 19$ de desemprego urbano (excluídos os programas de emprego mínimo). No Uruguai e no Chile, a taxa de desemprego urbano praticamente duplica entre 1981/84, mantendo-se praticamente constante nos casos da Argentina e do Brasil. Ao aumento do desemprego se soma, nos casos do Brasil e, com maior intensidade, do Chile e Uruguai, forte deterioração do nível de salários reais, que refletem a precariedade relativa da posição negociadora do setor trabalhista nesses países. Nos casos do Chile e Uruguai, com os maiores níveis de desemprego, constata-se, a nível dos salários-mínimos industriais e da construção civil, sistemática deterioração entre 1981 e 1984 e, no último ano, níveis absolutos significativamente inferiores aos do ano de 1970. No caso do Brasil, também se assiste a uma deterioração entre 1981 /84, mais suave que a dos casos anteriores e com níveis absolutos, em 1984, semelhantes ou superiores aos de 1970. Na Argentina, os níveis dos salários se incrementam entre 1981/84, alcançando, no último ano, níveis comparáveis aos de 1970.

A dimensão externa dessa drástica queda interna aparece refletida no mesmo Quadro 2. Observa-se, em primeiro lugar, significativa diminuição nos termos de troca, que conduz a um nível, em 1984, significativamente inferior ao do ano 1970, sendo os casos extremos o Chile, com nível de 34 em 1984 e, por outro lado, a Argentina, com nível de 81 para o mesmo ano (1970 = 100). Esse fato, aliado à restrição de crédito externo a partir de 1982 e à elevação das taxas de juros, explica que nos quatro países considerados se haja gerado uma saída líquida de recursos financeiros de volumes consideráveis, equivalente a 47% das exportações de bens, no caso limite da Argentina.

Afirma-se com razão que essa é a crise mais significativa que os países da região experimentaram desde a grande crise dos anos 30, o que torna legítimo indagar-se sobre a magnitude relativa de ambas as crises. No Quadro 3, tenta-se uma comparação sumária. Parece possível afirmar, com base nos escassos indicadores disponíveis (produto por habitante, termos de troca e variação do volume de importações), que se trata de acidentes econômicos de magnitude comparável. No caso do Chile, foi notoriamente mais acentuada a dos anos 30; no caso do Brasil, a queda no nível de atividade apresenta-se maior nos anos 80; e no caso da Argentina são comparáveis no âmbito interno, ainda que, no comércio externo, o impacto tenha sido mais intenso nos anos 30.

Quadro 3:
Comparação entre a crise dos anos 30 e a crise dos anos 80

Essa referência aos anos 30 poderia ser sugestiva uma vez que ali se gestou o modelo de desenvolvimento que prevaleceu nos países da região até meados dos anos 70 e, nesse sentido, tanto no terreno econômico como no social e político, parece legítimo indagar-se sobre o eventual impacto futuro da crise atual. Entre as múltiplas diferenças que se podem anotar entre ambas as situações, caberia citar as seguintes: a crise da América Latina, nos anos 30, foi parte de uma crise mundial; nos anos 70 e 80, os países avançados e o sistema financeiro internacional permaneceram praticamente incólumes no decorrer do período (o produto interno bruto dos países-membro da OCDE caiu apenas 0,5% em 1975 e 0,3% em 1982, sendo positivo em todo o período restante). Em segundo lugar, enquanto nos anos 30 ocorria a mudança da liderança econômico-financeira da Inglaterra para os Estados Unidos, a liderança destes últimos na atualidade é indiscutível. Em terceiro lugar, o grau e as modalidades da inserção econômica, política, ideológica e cultural dos países (população urbana e Governo) da América Latina no sistema mundial são mais intensos e complexos que os que prevaleciam nos anos 30; de fato, a confrontação ideológica, militar e econômica Este-Oeste não tinha vigência prática nos anos 30. Em quarto lugar, nos anos 30, iniciavam-se as etapas mais simples da industrialização latino-americana, enquanto nos anos 80 é preciso começar por racionalizar as deficiências da estrutura produtiva construída nos últimos 50 anos e avançar para fases de articulação e desenvolvimento produtivo de maior complexidade. Em quinto lugar, existia, nos anos 30, o padrão industrial e produtivo, consolidado, dos Estados Unidos como referência e, atualmente, assistimos à transição entre padrões produtivos tecnológicos sem que se configure claramente aquele que emerge no eixo Estados Unidos-Japão. Em sexto lugar, a suspensão do pagamento da dívida, que, nos anos 30, consistia principalmente em bônus, encontrava resistências marginais se se as compara com as que se observam na atualidade, no sistema bancário privado dos países avançados - onde prevalece a percepção de que os pecadores concentram-se na América Latina, razão pela qual devem expiar seus pecados -, cuja. magnitude, além disso, compromete em alguns casos a solvência de bancos líderes. É interessante destacar o fato de que, em fins de 1982, a dívida do conjunto dos países latino-americanos com o sistema bancário privado representava 60% da dívida do conjunto dos países em desenvolvimento, com o sistema bancário privado (Oriente Médio 13%; Ásia 12%; e África 16%).

No contexto interno e internacional, radicalmente distinto do atual, assistiu-se, na década dos 30, - à intensificação do processo de industrialização, refletida nas cifras do Quadro 3 para o conjunto da produção industrial e para um item em particular, diretamente vinculado à construção da infraestrutura e ao processo de urbanização - o cimento-, no qual se observa que, nos quatro anos considerados, se conseguiu, via substituição de importações, o abastecimento quase total. Pode-se imaginar situações comparáveis na próxima década.

b) Herança dos modelos neoliberais

As implicações internas e a capacidade de resposta ante a crise de financiamento externo e comércio internacional, do período 1981/84, estão fortemente condicionadas, nos casos da Argentina, Chile e Uruguai, pela aplicação do modelo neoliberal nesses países, desde meados dos anos 70. Existindo sobre esse assunto ampla bibliografia, menciona-se esquematicamente, em seguida, alguns resultados particulares que complementam o que já foi dito na seção anterior.

Um tema básico com implicações evidentes para os próximos anos é o retrocesso do setor industrial pela via da abertura drástica e indiscriminada às importações, que, estimuladas pelo amplo acesso ao crédito externo, se traduziu em forte incremento das importações de bens de consumo duráveis e em queda no coeficiente de investimentos, particularmente essa última no caso do Chile, onde a aplicação do modelo parecia ter alcançado o maior rigor. No Quadro 4, observa-se que o nível do produto industrial em 1983 retrocedeu em mais de 10 anos, nos casos da Argentina, Chile e Uruguai, e no que se refere à participação do produto industrial no PIB (grau de industrialização), o retrocesso foi, nos casos da Argentina e do Chile, de algo mais a 20 e 30 anos, respectivamente. Observa-se também que, tanto no que se refere ao nível do produto industrial como ao grau de industrialização, a situação do Cone Sul é notoriamente mais desfavorável que a do Brasil e do conjunto da América Latina. O contraste entre essa situação e a que existia em fins de 1950 é, nesse sentido, notável: em 1950, Argentina, Chile e Uruguai apresentavam um grau de industrialização superior ao do conjunto da região, incluídos Brasil e México.

Quadro 4:
Efeitos do modelo neoliberal

O advento dessa súbita “modernização de aparência” viabilizada pelo sistema bancário privado interno e internacional, traduziu-se, como se observa no Quadro 4, em um incremento significativo da dívida externa entre 1978 e 1981. No caso do Brasil, o incremento não só é claramente menor como também se fez acompanhar por um processo acelerado de investimento que seria, posteriormente, determinante para explicar a capacidade de resposta do setor exportador industrial diante do incremento da demanda dos Estados Unidos em 1983 e 1984. O coeficiente de investimento do Brasil superava em 50% o da Argentina e equivalia ao dobro do do Uruguai e ao triplo do do Chile no período 1975/79. O serviço da dívida experimenta um incremento correspondente que, em 1984, chega a comprometer praticamente a metade das exportações de bens e serviços de Argentina e Chile e um terço das do Uruguai.

Uma visão sintética do impacto da aplicação do modelo ao setor industrial consistiria em analisar o saldo comercial dos produtos manufaturados, em que se incluem tanto os incrementos das exportações industriais - objetivo declarado do modelo - como a expansão das importações, estimuladas pela abertura e acesso fácil ao financiamento externo. No Quadro 4, observa-se que, para os casos da Argentina e do Chile, o incremento das importações superou amplamente a expansão das exportações industriais, com o consequente efeito sobre o emprego industrial.

Quando os fluxos do financiamento externo se restringem a partir de 1982, a viabilidade do modelo é colocada em questão, mas não seus efeitos negativos sobre o emprego, renda, setor externo, capacidade produtiva e, o que talvez seja seu efeito mais nocivo, a difusão, em várias camadas sociais, da vocação e do “know-how” especulativo.

c) Fatores estruturais

À crise externa do período 1981/84 e, no caso da Argentina, Chile e Uruguai, à aplicação do modelo neoliberal agrega-se, para os quatro países considerados, o conjunto de fatores de longo prazo, que configuram o estilo de desenvolvimento herdado da grande crise dos anos 30 e apoiado a partir do pós-guerra, cuja única modificação significativa, até hoje, seria a aplicação do modelo neoliberal no Cone Sul na metade dos anos 70. Em seguida, apontam-se algumas indicações de tipo geral sobre as características estruturais para esses quatro países, as quais se complementam, posteriormente, com uma análise comparativa com países de outras regiões, com o propósito de tentar-se identificar as especificidades do padrão adotado na região.

O primeiro aspecto a destacar seria a dramática erosão da posição relativa do Cone Sul, em relação tanto ao Brasil como ao conjunto da região (ver Quadro 5): em 1950, Argentina, Chile e Uruguai geravam 32% do produto interno bruto da América Latina, superando em quase 50% a dimensão econômica do Brasil; em 1983, sua participação relativa havia-se reduzido a 16% em relação à América Latina e equivalia praticamente à metade da do Brasil. Em 1950, a Argentina tinha uma participação no PIB regional levemente superior à do Brasil e, atualmente, esse último país praticamente a triplicou. O Brasil representa o país de maior dinamismo na América Latina e, no Cone Sul, o de menor dinamismo da região. Talvez não seja uma casualidade que, enquanto o Brasil sonhava ser o Japão nos países do Cone Sul, se aplicasse coercitivamente a utopia manchesteriana que, alguns anos mais tarde, se imporia eleitoralmente nos países de crescimento mais lento no mundo industrializado - Estados Unidos e Inglaterra.

Quadro 5:
Mudanças econômicas a longo prazo

Em 1950, pouco menos de dois terços da população concentrava-se na agricultura, no caso do Brasil, ao passo que essa proporção era inferior a um terço no Cone Sul; o grau de urbanização, o nível educacional, a articulação produtiva e o grau de integração social eram significativamente maiores no Cone Sul que no Brasil, sendo a diferença ainda mais acentuada nos casos da Argentina e do Uruguai do que no Chile, país colocado em posição intermediária, ainda que mais próxima dos anteriores que do Brasil. Embora durante essas três décadas a magnitude e o ritmo da transformação econômica e social experimentada pelo Brasil, em termos de crescimento econômico, urbanização, modificações na estrutura produtiva, organização social e institucional, sejam de grande envergadura, persiste, como se verá mais adiante, o contraste com o Cone Sul e, em especial, com a Argentina e o Uruguai, em termos de distribuição de renda, níveis educacionais, diferenças setoriais de produtividade e marginalidade urbana e rural (subemprego).

Além do crescimento econômico relativamente rápido da América Latina, constata-se que as modificações setoriais no interior da indústria manufatureira, que lidera a transformação econômica da região, apresentavam mudanças aparentemente similares às observadas no passado nos países atualmente desenvolvidos, no que se refere ao incremento de bens de consumo duráveis, ao peso crescente dos produtos químicos e à crescente participação da metal-mecânica. Isto é, reproduzem-se formalmente, na região, as tendências que resultaram estritamente funcionais às condições prevalecentes nos países avançados: a satisfação plena das necessidades básicas de consumo de não-duráveis impulsionava a expansão do consumo de duráveis e a crescente diversificação dos mesmos; a escassez de recursos naturais, aliada ao acesso barato ao petróleo, estimulava a substituição de produtos naturais por sintéticos, o que se expressava no rápido crescimento do setor químico; a intensificação da concorrência internacional e, finalmente, a pressão salarial e sindical estimulavam a rápida expansão da automatização, que se refletia na rápida elevação da produção de máquinas e equipamentos. Mas, na América Latina, região onde porcentagem muito elevada da população não dispõe das condições elementares, com dotação generosa de recursos naturais e mão-de-obra abundante e desempregada, tal padrão industrial não teve resultado estritamente funcional para as condições locais.

Para analisar a atual crise financeira dos países da América Latina, é imprescindível levar em consideração, além dos fatores externos aos quais já se fez referência em seção anterior, os aspectos estruturais da estratégia seguida até o momento. Evidenciou-se que a fragilidade da situação externa está intimamente ligada a este padrão industrial: a precária liderança automotriz aliada às carências e aos atrasos na produção de bens de capital, a assimétrica relação indústria-agricultura e a disfuncional plataforma energética constituem o núcleo central da explicação da vulnerabilidade externa e, em consequência, do endividamento externo; a superação dessa vulnerabilidade industrial, caracterizada pelo chamado protecionismo “frívolo’’, assim como de suas articulações com o setor agrícola e os recursos ambientais com a base energética de sustentação e com os mecanismos de intermediação financeira em que se apoiou. Uma característica básica adicional do padrão de desenvolvimento desses países e, de modo geral, da América Latina em conjunto é a relativa precariedade do empresariado privado nacional, particularmente no setor industrial, que ficou também particularmente em evidência e, ao mesmo tempo, se acentuou com a aplicação do modelo neoliberal no Cone Sul, diante do qual sua capacidade de resistência era mínima em contraste com a notável capacidade de adaptação à liderança emergente da intermediação financeira. No Quadro 6, aparece a quantificação da participação relativa das maiores empresas públicas (EE), privadas nacionais (EPN) e estrangeiras (ET), onde se evidencia a forte presença relativa das empresas públicas, mais acentuadas nos países menores - Chile e Uruguai -, acompanhada, em segundo lugar, no caso dos países maiores - Argentina e Brasil-, pelas empresas estrangeiras. Se a essa distribuição por tipo de empresas se adicionasse a desagregação setorial, encontrar-se-ia um modelo caracterizado pela liderança das ET nos setores de maior dinamismo definidores do estilo de desenvolvimento - automotriz, eletrodomésticos, química, farmácia e setores modernos de alimentação e vestuário -, apoiados em empresas públicas provedoras dos serviços de infraestrutura, energia, telecomunicações, transporte e de insumos básicos de uso difundido de alta intensidade de capital, siderúrgico e petroquímica básica e, em alguns casos, cimento. As empresas privadas localizam-se principalmente nos setores industriais tradicionais, na maioria com empresas pequenas e médias.

Quadro 6:
A gravitação dos distintos agentes econômicos

Os grandes grupos privados nacionais estão predominantemente localizados nos setores de construção e bancário. O tema das lideranças internas, públicas e privadas, civis e militares, econômicas e políticas, adquire novamente notoriedade a propósito da fuga de capitais, já que, além de suas óbvias implicações econômicas, possui relevância inegável quando se reflete sobre os modelos políticos futuros, o pacto, o consenso e seus respectivos conteúdos econômicos.

Até fins de 1983, o estoque de ativos latino-americanos não-oficiais nos Estados Unidos alcançava 160 bilhões de dólares, dos quais aproximadamente 140 haviam chegado no período 1977 /83. Se se considera que, até fins de 1983, a dívida com o sistema bancário privado dos Estados Unidos alcançava 209 bilhões de dólares, deve-se concluir que se está diante de um fenômeno cuja relevância transcende a dimensão financeira.2 2 Dados do Departamento de Comércio dos Estados Unidos, citados por Carlos Díaz Alejandro em “Notes on the early 80’s in Latin America”, mimeo, 1985. Nesse sentido, existem indicações de que a situação do Brasil é notoriamente mais favorável que a dos outros países. Afirma-se que nesse país praticamente não existiria fuga de capitais.3 3 “Latin America’s debt: a reform proposal”, Edmar Bacha, apresentado em reunião de técnicos da CEPAL sobre Crise e Desenvolvimento, abril de 1985, p. 6.

Com o objetivo de identificar algumas das especificidades que caracterizam o padrão de desenvolvimento dos países considerados, o qual dificilmente poderá superar a presente crise, procura-se realizar, em seguida, algumas comparações quantitativas com um conjunto de países que, por diversas considerações e motivações, aparecem relacionados ao debate sobre estilos futuros de desenvolvimento. Para essa comparação, consideram-se: os Estados Unidos e a Inglaterra, líderes da primeira e segunda revolução industrial, onde a “utopia manchesteriana” triunfa eleitoralmente; o Japão, que segue a “utopia progressista”, e a Coréia, sua ex-colônia, base do paradigma exportador; a Suécia, símbolo da equidade com prosperidade; e a Espanha, caso exitoso de democratização em um país de ‘’modernização tardia”. Concentra-se a atenção em alguns tópicos específicos relevantes para efeitos de identificar tanto as tarefas como os desafios que enfrentam os processos de recuperação democrática: dinamismo, equidade, nível de vida, grau de articulação econômica e inserção internacional.

DINAMISMO

O crescimento econômico rápido legitima o sistema político em que se insere e favorece a fluidez das transformações econômicas e sociais. As perspectivas e a materialização do crescimento atenuam os conflitos de “interesses” e de “paixões”. Pode, inclusive, mitigar as “alianças democráticas” e o questionamento das desigualdades na distribuição dos benefícios do crescimento. Se todos melhoram sua sorte, não parece ser tão grave que alguns elevem sua posição relativa. O dinamismo contribui para que se difunda a crença de que as tensões sociais se resolverão como subproduto do crescimento econômico, que se transforma no tema central de reflexão e debate. As inovações no âmbito da organização da sociedade carecem de relevância e apresentam-se como secundárias, uma vez que o crescimento é percebido como a melhor prova de que, com todos os seus inconvenientes, a organização social existente é funcional ao dinamismo, que se encarregará de induzir as modificações requeridas para sua perpetuação. A confrontação de utopias soluciona-se pela hegemonia daquelas que são portadoras do crescimento, as quais, por essa razão, podem coexistir sem temores de uma dissidência. Em determinadas condições, empiricamente pouco frequentes, o elevado grau de consenso, que costuma acompanhar a prosperidade, permite a alternância política efetiva.

A experiência na América Latina mostra, entretanto, que quando a contenção do crescimento se apoia na desarticulação social, econômica e cultural e na exclusão de setores sociais importantes, os conflitos de “interesses” e “paixões” são adiados, mas acentuam-se pouco depois.

Esse crescimento de caráter espasmódico, apoiado na renda gerada por recursos naturais valiosos ou pela permissividade financeira internacional, permite o transplante físico da “modernização de aparência”, mas não contribui para favorecer a estruturação econômica e social interna nem, muito menos, a sólida inserção na economia internacional.

É nesse momento que, sob certas circunstâncias e diferentes motivações, irrompe e se generaliza a aspiração democrática nos quatro países considerados.

A comparação entre os ritmos de crescimento (Quadro 7) mostra que a ausência de dinamismo do Cone Sul é ainda mais acentuada que a dos países líderes - Inglaterra, Estados Unidos e Suécia -, quanto à prosperidade e antiguidade de sua industrialização, e que o rápido crescimento do Brasil é comparável ao da Espanha e significativamente inferior ao do Japão e de seu discípulo, a Coréia. Essa comparação deve levar em conta o fato de que: os países industrializados de crescimento lento (Estados Unidos, Inglaterra e Suécia) têm renda per capita equivalente a 4 ou 6 vezes a dos países do Cone Sul; a renda per capita da Espanha é mais que o dobro da do Brasil; e o país de mais rápido crescimento, a Coréia, ainda não alcança o nível de renda per capital dos países latino-americanos considerados.

Quadro 7:
Dinamismo: crescimento anual do produto nacional bruto por habitante - 1960/82

EQUIDADE

Apesar de todas as conhecidas qualificações que merecem as indicações quantitativas relativas à distribuição da renda, as cifras do Quadro 8 fornecem sugestões interessantes para reflexão. O Brasil aparece como o caso extremo de concentração de renda, onde 20% da população de renda mais elevada recebe quase dez vezes a renda de 40% da população de renda mais baixa; no outro extremo, situam-se o Japão e a Suécia, onde essa relação é inferior a dois, seguidos da Inglaterra, Espanha, Coréia e Uruguai, onde a relação mencionada é inferior a 3, mas superior a 2; a Argentina e o Chile situam-se em nível comparável ao dos Estados Unidos; o Japão apresenta o recorde, nada desprezível, de compatibilização do maior dinamismo com o nível mais favorável de equidade, o que obviamente coloca em questão a tese de que a concentração é o requisito do crescimento. É interessante o contraste entre Brasil e Espanha, que compartilham um ritmo similar de crescimento, mas que diferem radicalmente na distribuição dos benefícios correspondentes, aspecto a ser considerado quando se analisam os desafios que a recuperação democrática do Brasil pode gerar. Os países do Cone Sul, com um produto per capita equivalente à sexta parte do dos Estados Unidos, apresentam características comuns com esse país quanto à distribuição de renda e lento ritmo de crescimento e, por essas semelhanças, diferem radicalmente do Japão e da Coréia, onde coexistem dinamismos com níveis mais avançados de equidade.

Quadro 8:
Eqüidade - Relação entre a receita de 20% da população de maiores rendas e de 40% de menores rendas

ARTICULAÇÃO

O conceito de articulação (e seu oposto, o de desarticulação) caracteriza tanto a estrutura dos sistemas produtivos nacionais como as derivações dessa estrutura nos âmbitos social, espacial e, inclusive, cultural. Esse conceito constitui o atributo mais significativo de diferenciação entre as estruturas produtivas dos países avançados e a dos países da região.

Em contraste com os processos de paulatina articulação - característica dos países avançados -, os países da região apresentam uma dinâmica que leva à reprodução da matriz estrutural básica, gerada no período colonial, que incide, sobretudo, na fase crítica de conformação das relações entre agricultura e indústria e de formação e desenvolvimento dos mercados internos. Os enclaves mineiros e as estruturas (fazendas e latifúndios) sobrepostas, em muitos casos, a comunidades campesinas de origens distintas deram lugar a padrões de demanda, tanto de bens de consumo como de equipamentos incapazes de estimular a produção em escala de bens simples e padronizados, e impediram, com isso, a formação de um círculo vicioso entre a demanda agro-rural e a urbano-industrial, semelhante à descrita para os países avançados. Os caminhos tecnológicos adotados nos processos de modernização acentuaram a bi modalidade originária das estruturas produtivas, conduzindo a uma assimilação passiva de opções geradas em outros contextos e divorciadas do que a escassez relativa de recursos naturais aconselhava, desviando, por essa via, para o exterior, os efeitos multiplicadores da demanda, e/ou criando as condições para um tipo de industrialização destinado a proporcionar a adoção prematura de padrões de consumo próprios dos países avançados, mas sem possibilidade, como nesses últimos, de generalização pela grande maioria da população.

O crescimento orgânico e interdependente das distintas partes do complexo industrial, que, por impulso do mercado (os casos de “modernização de baixo para cima”) ou por condução do Estado (nas situações de “modernização de cima para baixo”), se verificou nos países avançados, foi transplantado para os países da região pelo transplante de fragmentos da estrutura mencionada, confiando ao exterior as complementaridades críticas ao funcionamento do conjunto.

Com o objetivo de operacionalizar esse conceito, apresenta-se no Quadro 9 um conjunto de indicadores que refletem aspectos parciais do conceito de articulação: a distribuição da renda, a participação relativa do emprego agrícola, a relação entre a produtividade do setor industrial e o setor agrícola e a participação da educação secundária e superior nos grupos de idade correspondentes. Supõe-se que o grau de articulação econômica é maior à medida que diminui a participação relativa do emprego agrícola; que se homogeneízam os níveis de produtividade da indústria e da agricultura; e que se incrementam as proporções de participação no processo educativo. Concentrando a atenção nos quatro países latino-americanos, parece ter fundamento empírico a hipótese de que o Uruguai e a Argentina teriam o maior grau de articulação e de que, no outro extremo, colocar-se-ia o Brasil, situando-se o Chile numa posição intermediária.4 4 Atribuindo-se a mesma ponderação dos cinco indicadores escolhidos, definiu-se o grau de articulação como a soma dos níveis correspondentes a cada país como indicador, ordenando-os em sequência crescente.

QUADRO 9
ARTICULAÇÃO

Essa ordenação parece semelhante à de 1960 e à de 1981. Ao introduzir-se a comparação com os países restantes, surgem algumas sugestões interessantes: a Espanha apresentaria, em 1960, grau de articulação notoriamente inferior aos da Argentina e Uruguai nessa data; mas, passados 21 anos, a Espanha apresenta grau de articulação econômica maior que o dos países do Cone Sul e notavelmente mais favorável que o do Brasil.

Em geral, sustenta-se que a cobertura educativa aumenta com a urbanização, e essa é a impressão que emerge do quadro em questão, com uma salvaguarda importante, entretanto, referente ao Japão e à Coréia. Nesses países, observa-se, desde os anos 60, um nível de cobertura educativa maior que a que se poderia esperar pela participação do emprego agrícola, com níveis excepcionalmente altos no caso do Japão; essa situação reforça-se ainda mais no ano de 1981, o que estaria indicando “modernização” do campo notavelmente mais acentuada que na América Latina e, inclusive, em outros países avançados. Essa situação, precedida por documentadas transformações na estrutura de propriedade agrícola, contribui para explicar os níveis satisfatórios anteriormente mencionados no âmbito da equidade.5 5 Até 1960, 100% da área agrícola da Coréia compreendia propriedades inferiores a 5 ha; em 84% da agricultura do Japão verificava-se essa mesma condição. No Brasil, no Chile e no Uruguai, cerca de 1%, 0,7% e 0,2%, respectivamente, correspondiam a explorações desse tamanho, ao passo que 44%, 73% e 57% da área correspondiam a propriedades superiores a 1 000 ha.

Os países que, de acordo com esses indicadores, apresentaram o grau mais alto de articulação econômica foram o Japão, os Estados Unidos e a Suécia, precisamente os países com maior nível de PNB por habitante (ver Quadro 10). Para neutralizar as conhecidas limitações das comparações de nível de vida através do PNB, originadas nos diferenciais de preços internos e na vigência relativa das taxas de câmbio, agregaram-se alguns indicadores “físicos” adicionais (Quadro 10). Observa-se que um país como a Argentina, cujo nível de PNB por habitante é a quarta parte do do Japão, apresenta consumo de energia e densidade de automóveis por habitante que é a metade do do Japão, e nível de calorias por habitante semelhante ao dos Estados Unidos e superior ao do resto dos países avançados.

QUADRO 10
NÍVEL DE VIDA

A diferença mais notável entre o padrão de consumo dos países da região e da Coréia (com níveis semelhantes de PNB por habitante) - fonte de inspiração do paradigma exportador - fica em evidência ao comparar-se a cobertura educacional e a densidade de automóveis: a “modernização”, medida pela presença de automóveis, relega a Coréia à situação de marginalidade em relação aos países da América Latina, e à situação oposta, se a cobertura educativa é utilizada como reflexo da modernização. A opção latino-americana é, obviamente, mais precária e excludente que a do Sudeste Asiático, e isso se reflete nitidamente no âmbito da inserção internacional.

INSERÇÃO INTERNACIONAL

Quanto ao grau de abertura das distintas economias (exportações totais sobre PNB), observa-se que o Brasil, país latino-americano sobre cujas exportações mais se lê na imprensa internacional, apresenta o índice mais baixo de abertura, similar ao dos Estados Unidos. Em troca, quando se faz referência ao conteúdo das exportações, a seu dinamismo e à diversificação de destinos, o Brasil coloca-se em uma situação de destaque (Quadro 11).

Quadro 11:
Inserção Internacional

Os países de maior dinamismo econômico interno são os que apresentam incremento mais rápido da produtividade e um ritmo mais elevado de crescimento das exportações do setor industrial; o círculo vicioso - crescimento, produtividade, competitividade - encontra plena confirmação. Em um extremo, têm-se o Japão e a Coréia e, no outro, Estados Unidos e Inglaterra entre os países industrializados. No Cone Sul, entre os semi-industrializados, o Brasil, numa situação comparável à da Espanha, ocupa posição intermediária.

2. AS ESPECIFICIDADES NACIONAIS E AS POTENCIALIDADES ECONÔMICAS DA DEMOCRATIZAÇÃO

2.1. Especificidades nacionais

O exposto deixa em evidência a diversidade de situações que se enfrentam nos distintos casos nacionais considerados. Nessa seção, pretende-se enfatizar a importância de aprofundar-se na questão das especificidades nacionais e no reconhecimento da completa vinculação entre a economia e a democratização.

Pode-se falar de memória democrática histórica apenas nos casos do Chile e Uruguai, e de recuperação democrática apenas no último caso. Os países de maior potencial econômico e grau mais avançado de industrialização - Argentina e Brasil - enfrentam melhor o processo de “construção democrática”, a partir de sociedades políticas com grau de organização e “densidade” talvez inferiores às que se poderiam esperar se existissem vinculações nítidas e lineares entre economia, sociedade e política. A relevância das “lideranças carismáticas” na construção democrática de ambos os países parece confirmar essa opinião.

Esse aparente atraso na sociedade política coexiste, no caso da Argentina, com um grau avançado de articulação econômica e, talvez, social. No caso do Brasil, a desarticulação econômica e social seria acompanhada, entretanto, por dois elementos positivos fundamentais: o aparente compromisso dos setores empresariais com os objetivos do desenvolvimento nacional, dos quais uma das expressões mais nítidas seria a ausência de fuga de capitais nos últimos anos, uma diferença fundamental em relação à Argentina e ao Chile, principalmente, e, em segundo lugar, a adequação de atitudes e comportamentos dos distintos agentes econômicos e sociais à dinâmica do crescimento, fenômeno singular aos países do Cone Sul.

A autonomia econômica relativa do setor empresarial, em relação ao Estado, e a capacidade de negociação do setor trabalhista, em relação ao Estado e ao setor empresarial atualmente, poderiam ser relacionadas em ordem decrescente, da seguinte forma: Argentina, Brasil, Uruguai e Chile. É inevitável a tentação de observar-se que se trata de uma sequência similar, por um lado, aos índices de inflação e emprego e, inversa, à queda das remunerações nos últimos anos. O tema de vinculação da inflação, emprego, salários e configuração e participação dos distintos agentes econômicos e sociais é mencionado com frequência na literatura, mas tem recebido escassa atenção quanto à investigação rigorosa na região.

O caso do Chile, com uma sólida tradição de alternância democrática e perspectivas incertas de recuperação democrática, merece algumas reflexões particulares.

Uma das especificidades nacionais mais notáveis é a amplitude de variedades de utopias e projetos históricos com expressão orgânica significativa, com que durante muitas décadas se tem convocado a população; a quase totalidade dessas utopias apresentam referencial internacional claro e experiência de governo. O anterior é significativo se se considera o escasso número de países desenvolvidos em que a alternância política se tem verificado e, nesses casos, com uma gama de opções ideológicas notavelmente mais restritas que no caso do Chile e, em sociedades com grau de integração econômica, social, política e cultural, notavelmente mais sólido que no caso nacional. O consenso nesses países apoiava-se na legitimação gerada nos processos históricos de desenvolvimento, em que a modernização precedeu em mais de um século a paulatina democratização.

Independentemente de quais sejam os múltiplos fatores que explicam essa ampla diversidade de convocações, com expressão orgânica, apoio maciço e experiência de governo, e da possível tendência à acentuação, em um período como o atual, dessas identidades coletivas, fica claro que constitui ingrediente fundamental do enorme desafio que se coloca diante da elite político-intelectual de construir um acordo (pacto ou projeto) suscetível de abrir caminho para a recuperação democrática. Acredita-se coexistirem a vontade e a disposição de construção do acordo, com a fragmentação e desconfiança recíproca; setores empresariais que tradicionalmente têm requerido o apoio público experimentam uma situação de “subsidiariedade” com relação ao Estado, em evidente contraste com o propósito original da proposta neoliberal, notavelmente acentuada pela precariedade de sua situação econômica, e concentram suas energias na sobrevivência, para o que o amparo público é considerado insubstituível. Sua ambígua disposição à aproximação com o centro político afeta sua “relação especial” com o Estado, e essa apreensão se reforça com experiências do passado e com a percepção de que a participação social relativa à esquerda política mantém sua vigência. Isso marca um contraste com o que ocorre na Argentina, Uruguai e Brasil, onde o setor empresarial tem um grau relativamente alto de autonomia econômica em relação ao Estado, mantém frouxas ligações com o centro político que aparece como majoritário e onde a presença relativa da esquerda é notoriamente menos significativa que no caso chileno, o que favorece a “credibilidade” do centro político nesses países e, em consequência, de sua capacidade de constituir-se no eixo da recuperação ou da construção democrática.

A democracia na América Latina enfrenta, obviamente, obstáculos de grande envergadura e também a necessidade imperiosa de superar a concepção neoliberal, mas o desafio fundamental é transcender aquelas modalidades de organização da economia, da sociedade e da política, que deram origem ao autoritarismo em suas diversas modalidades.

Em seguida, esboçam-se algumas reflexões sobre as potencialidades da democratização nos âmbitos da inovação social, da criatividade, da gestão pública e da integração regional.6 6 Esses temas são abordados e desenvolvidos em documento recente da CEPAL, “Desarrollo y Crisis en América Latina y el Caribe”, Santiago, maio 1985. Trata-se de potencialidades de médio e longo prazos, que supõem que os desafios de curto prazo, em âmbitos tais como a inflação e o desemprego, encontram respostas econômica e politicamente viáveis.

A perspectiva política, a partir da qual se formulam essas reflexões sobre as potencialidades econômicas da democratização, supõe a ampliação das alianças sociais que sustentam o padrão de desenvolvimento precedente e o deslocamento do centro de gravidade das mesmas para os setores sociais majoritários. Nessa definição, subjaz a convicção de que, como resposta ao desafio que coloca o caráter excludente no político, social e econômico das concepções neoliberais aplicadas no Cone Sul e nas duas décadas de autoritarismo no Brasil, tornando verossímil que se manifestem coalizões capazes de articular objetivos que anteriormente inspiravam movimentos políticos e sociais diferentes e, às vezes, contraditórios.

O questionamento pejorativo dos “nacionalismos paroquiais” e dos “excessos da democracia”, a substituição dos valores da equidade e solidariedade pelos vereditos inapeláveis do mercado e a pretensão de substituir a visão integral do homem pela “científica racionalidade” do “homo economicus” poderiam gerar, como resposta, diversas aproximações à articulação entre o nacional, o popular e o democrático.

2.2. Democratização e inovação social

A magnitude da restrição externa nos países comentados aliada, no Cone Sul, à debilidade do processo inversionista na última década e às perspectivas da economia internacional levam a prever que, quaisquer que sejam o talento e a imaginação dos responsáveis pela conduta econômica, os países devem esperar, com alta probabilidade, um ritmo muito modesto de crescimento. O crescimento lento é compatível com a recuperação democrática, à medida que os atores políticos representativos das maiorias sociais participem de um compromisso nacional sólido e prolongado. O ritmo de crescimento econômico, determinado em grau significativo pela restrição externa, só pode elevar-se uma vez que substitua essa restrição, o que implica modificações na estrutura produtiva e no comportamento dos distintos atores econômicos e sociais. Perante a restrição externa não há soluções milagrosas. Requerem-se inovações no âmbito da sociedade, cm seja, no conteúdo do crescimento, e essa talvez seja a potencialidade básica da democratização. A hipótese de restrição externa prolongada constitui um dado básico para a reflexão econômica e política. Para que um país possa emergir integrado e fortalecido de um período sustentado de austeridade, como se prevê, requerem-se, no aspecto político, consenso e liderança; no social, solidariedade e um mínimo de equidade; e, no econômico, a articulação lúcida entre Estado, mercado e sociedade civil, todos eles, ingredientes básicos do processo de “construção democrática” e recuperação democrática.

A restrição externa define prioridades e limites à ação do Estado, exige racionalidade no âmbito comandado pelo mercado e, sobretudo, requer um compromisso de participação e imaginação por parte da sociedade civil. Carências sociais cobertas no passado pela ação de um Estado que concentrava a atenção em setores médio e populares organizados, e que logo foram transferidos para um mercado míope e insensível, deverão ser assumidas, como sua responsabilidade, por uma sociedade civil densa, organizada e descentralizada. Pela envergadura quantitativa das carências sociais básicas acumuladas, seria ingênuo imaginar uma resposta global por parte do Estado e, por sua natureza, seria insensato mantê-las expostas às veleidades do poderiam ser assumidas parcialmente pela sociedade civil, serão seguramente variadas e diferentes das conhecidas no passado e do sacramento nos respectivos textos clássicos. É por isso que se sustenta que, no futuro previsível, a inovação no âmbito do social transcende os limitados graus de liberdade disponíveis no âmbito econômico.

Em um contexto em que se tenha produzido descentralização e desconcentração significativas do aparelho público, nos termos esboçados mais acima, é possível converter a organização dos agentes sociais, nos diversos âmbitos que ocupam, em um recurso produtivo de alta potencialidade, tanto na produção de bens e serviço como, de modo geral, no melhoramento da qualidade de vida. Referimo-nos ao impulso e fortalecimento tanto de organizações homogêneas de produtores rurais e urbanos como de novas formas de organização da população em suas áreas de inscrição territorial. Em termos mais específicos, trata-se de dar impulso à constituição de empresas associativas e auto gestionárias em ampla gama de atividades rurais e urbanas, entre outras, e a título de exemplo: empresas de trabalhadores rurais sem terra dedicadas à construção de infraestrutura complementar (recursos em mão-de-obra, pequenas obras hidráulicas, infraestrutura local de apoio, escolas rurais, postos de saúde ou clínicas etc.); organizações econômicas ou empresas comunitárias a nível de bairros de localidades rurais (que reúnam tecelões, produtores artesanais de móveis etc.); organizações a nível de bairro (ou outra inscrição territorial), destinadas ao melhoramento ou equipamento local; unidades locais de compra coletiva de bens de consumo básico etc.

A formação de um tecido social organizado, capaz de constituir-se em ‘uma rede de iniciativas múltiplas, unida à disposição do aparelho público de delegar autoridade local nos múltiplos núcleos da dita rede, constituiria o marco adequado para socializar e enfrentar criativamente as condições restritivas que tenderão a desenvolver-se nas economias da região por um período considerável.

2.3. Democratização, eficiência e criatividade

O pressuposto básico não-explicitado, sobre o qual se constrói o conceito de eficiência que se usa nas distintas convocações presentes nos países capitalistas e socialistas avançados, é de sociedades econômica, social e culturalmente articuladas e estruturadas. Nessas circunstâncias, a agregação das decisões eficientes a nível microeconômico conduz à elevação da eficiência macroeconômica. Em sociedades em que não se verifica essa hipótese básica, como na América Latina, podem coexistir atividades de grande eficiência, sem que esta se difunda via preços ou vinculações interindustriais ao resto da economia. O que costuma ocorrer é que os excedentes gerados nessas atividades se canalizam parcialmente para o exterior, e assiste-se a uma situação de economias estagnadas com elevado desemprego, que incluem atividades isoladas de alta eficiência e produtividade.

Por essa razão, a concepção de eficiência, relevante para sociedades desarticuladas no processo de construção democrática, deve incluir como ingredientes os requisitos que permitam buscar a superação dessa condição. Estima-se que o crescimento e a criatividade constituam condição necessária para avançar nesse processo. A restrição externa limita o crescimento e os graus de liberdade no âmbito econômico, pelo que a criatividade no âmbito social e político adquire primazia.

A inclusão da criatividade como componente essencial da eficiência é requisito funcional e específico da perspectiva política enunciada anteriormente. Com efeito, se a superação das carências majoritárias não fosse assumida como objetivo real, bastaria o transplante de produtos, técnicas, modos de organização, esquemas educacionais, de saúde, habitação, comunicação e recreação. A experiência tem mostrado, na América Latina, que o crescimento é compatível com a ausência de criatividade. Só que, nesse caso, sacrifica uma proporção elevada da população, cujas aspirações postergam-se por meio da não-comunicação e, como se não bastasse, da coerção. No caso de alguns países da América do Sul, onde um conjunto completo de fatores favoreceu maior integração social, a ausência de criatividade, unida ao “embate social”, terminou por sacrificar o crescimento e gerar a crise, que conduziu nesse caso, através de um caminho diferente, à solução coercitiva.

É evidente, por exemplo, que uma aliança social como a que sustentou a proposta de levar os países do Cone Sul à condição pretérita de exportador de recursos naturais e importador de uma “modernização de aparência” não requer enfatizar sua dimensão criativa. E mais, necessita-se erradicar expressões de criatividade que poderiam generalizar o questionamento de um modelo carente de toda transcendência. A relevância da dimensão “criatividade” no conceito de eficiência que se adota no texto nutre-se, por um lado, desse desafio de superar carências sociais acumuladas e, por outro lado, do fenômeno assinalado no capítulo anterior, da transição entre os padrões tecnológicos que vivem atualmente os países avançados. Os microprocessadores, a engenharia genética, o laser, a fibra ótica e as novas fontes de energia estão na base das vantagens comparativas do futuro, mas, além disso, constituem a oportunidade de enfrentar, por vias insuspeitadas, problemas tão fundamentais como a educação maciça, a nutrição, a integração e o desenvolvimento culturais, a descentralização de decisões e a industrialização da agricultura.

Entre os diversos fatores que exercem influência sobre o processo de criatividade, convém destacar aquele referente ao grau de descentralização da vida econômica. Com efeito, uma condição relevante parece ser que as unidades que interagem entre si tenham margem de autonomia suficiente para poder desenvolver a criatividade, para fins tanto “agressivos” quanto “defensivos”, assim como para estimular os atores e autores da mesma. Um esquema que concentre o grosso das decisões em um reduzido setor institucional e da população pode tender a corroer a imaginação criadora dos que atuam no resto do sistema, e daquele que está subordinado às diretrizes que emanam dessa cúpula dirigente, ainda que conte com plena legitimidade política para fazê-lo. Sem dúvida, não está alheia a essa consideração a sistemática tendência à descentralização que se promove em algumas economias socialistas na atualidade.

2.4. Democratização e gestão pública

Os escassos graus de liberdade de que disporá o Estado no âmbito econômico por muitos anos, aliados à necessidade de concentrar sua atenção nos temas “heróicos” (superação da restrição externa, equilíbrios macroeconômicos, infraestrutura física, serviços sociais básicos para os estratos modestos e desorganizados), levam a que os temas “cotidianos” sejam assumidos em um marco de grande flexibilidade normativa e de fiscalização, por um setor privado cuja contribuição ao emprego e à superação de restrição externa constituiria os critérios essenciais para o outorgamento dos “favores públicos”. A “economia subterrânea”, à italiana, deveria legitimar-se enquanto contribuísse para a geração de divisas. A fiscalização tributária e, de forma geral, a obsessão pelo cumprimento dos regulamentos públicos em uma economia com escassos recursos financeiros e elevado desemprego podem contribuir mais para estimular a corrupção e a perda de fontes de trabalho do que para elevar as receitas fiscais.

Uma das tarefas importantes que a sociedade civil deverá enfrentar é tornar transparente a ação empresarial pública (a nível dos serviços centralizados e das empresas descentralizadas) e das grandes empresas privadas. O arcaico e o ideologizado debate entre empresas públicas e privadas deveriam ser substituídos pelo relevante debate referente às atividades (públicas ou privadas) que, por sua natureza, deveriam submeter-se ao escrutínio democrático e que, frequentemente, constituem feudos impenetráveis à opinião pública e ao próprio poder executivo. Essas situações se tornam evidentes apenas quando as empresas privadas quebram e buscam o apoio público, ou quando o montante de subsídios requeridos (empresas públicas) excede as possibilidades financeiras internas ou externas.

A experiência internacional sugere como critérios básicos de “boa gestão” das grandes empresas:

  • grau elevado de autonomia na gestão da empresa;

  • transparência diante do escrutínio público; e

  • grau de compromisso do conjunto dos trabalhadores com os objetivos da empresa.

O anterior aplica-se às empresas tanto públicas como privadas de países capitalistas e socialistas. No caso dos países considerados, ficou em evidência, nos últimos anos, que a ausência de transparência afetou a gestão das grandes empresas privadas ante os intermediários financeiros e, no caso do Cone Sul (em particular do Chile), a hipertrofia de um Estado que aspirava à função subsidiária. Na raiz desse curioso distanciamento entre o discurso e a realidade, está precisamente a opacidade da gestão pública e dos grandes grupos privados ante o escrutínio democrático. Diante da irracional “privatização” do passado, deve-se buscar a resposta na “democratização”, entendida tanto como supervisão por parte dos cidadãos como pela presença dos trabalhadores na gestão das empresas públicas e das grandes empresas privadas. À medida que se verificam os critérios antes enunciados, o tema da propriedade passa a ser secundário. Em troca, em circunstâncias em que não se verificam esses critérios, nem a propriedade pública garante a busca do “bem comum”, nem a propriedade privada garante a “descentralização”.

2.5. Democratização e integração

Parece possível afirmar que a consolidação de processos de construção democrática, como expressão da ampla aliança de setores sociais, abre possibilidades de colaboração regional, que obviamente parecem ser restritas em regimes políticos excludentes que veem com receio os esforços de colaboração horizontal por seu eventual efeito de perturbação social. A insegurança inerente aos regimes autoritários leva-os a ver com desconfiança aquelas iniciativas de cooperação regional que abrem oportunidades de contato e intercâmbio entre os setores sociais subordinados, mesmo quando se incluem, entre eles, os núcleos empresariais nacionais. A legitimidade de novos regimes políticos, unida à vontade de desenvolvimento de suas potencialidades humanas e naturais, criaria possibilidades de levar adiante programas de cooperação em âmbitos tais como a saúde, a educação, a infraestrutura de transporte e comunicação, a plataforma energética, a comercialização internacional e o desenvolvimento de uma atividade coordenada no âmbito das pesquisas científica e tecnológica aplicada, ao mesmo tempo que permitiria redução significativa nos gastos militares. Tudo isso não implica desconhecer as limitações e os obstáculos que se observam atualmente no processo real de integração. Trata-se de enfatizar as projeções que um eventual processo de democratização e modernização endógeno, susceptível de desencadear-se a partir da crise atual, teria sobre o âmbito da cooperação regional. Os limites alcançados pelos distintos processos de integração desenvolvidos nas últimas décadas refletem, em larga medida, as estratégias nacionais adotadas no passado.

Por sua vez, a modernização, ao diversificar a estrutura produtiva e favorecer o processo interno de criatividade, abre oportunidades de cooperação regional obviamente limitadas em estruturas produtivas centradas na exportação de alguns recursos naturais. A experiência internacional sugere a existência de relação direta entre a diversificação da estrutura produtiva, o potencial de cooperação regional e o processo de democratização.

  • 1
    World Development Report 1984, World Bank. Os quatro países considerados - Argentina, Brasil, Chile e Uruguai - estão incluídos na categoria: “receitas médias dos importadores de petróleo”. Argentina e Brasil, na subcategoria: “principais exportadores de manufaturados”. Chile e Uruguai, na subcategoria: “outros”.
  • 2
    Dados do Departamento de Comércio dos Estados Unidos, citados por Carlos Díaz Alejandro em “Notes on the early 80’s in Latin America”, mimeo, 1985.
  • 3
    “Latin America’s debt: a reform proposal”, Edmar Bacha, apresentado em reunião de técnicos da CEPAL sobre Crise e Desenvolvimento, abril de 1985, p. 6.
  • 4
    Atribuindo-se a mesma ponderação dos cinco indicadores escolhidos, definiu-se o grau de articulação como a soma dos níveis correspondentes a cada país como indicador, ordenando-os em sequência crescente.
  • 5
    Até 1960, 100% da área agrícola da Coréia compreendia propriedades inferiores a 5 ha; em 84% da agricultura do Japão verificava-se essa mesma condição. No Brasil, no Chile e no Uruguai, cerca de 1%, 0,7% e 0,2%, respectivamente, correspondiam a explorações desse tamanho, ao passo que 44%, 73% e 57% da área correspondiam a propriedades superiores a 1 000 ha.
  • 6
    Esses temas são abordados e desenvolvidos em documento recente da CEPAL, “Desarrollo y Crisis en América Latina y el Caribe”, Santiago, maio 1985.
  • JEL Classification: P17; P11; O54.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 1986
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