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Choque monetário na Argentina: ortodoxo ou heterodoxo?

Currency shock in Argentina: orthodox or heterodox?

RESUMO

A essência da reforma monetária argentina está na reversão de um processo inflacionário agudo, utilizando-se da introdução de uma nova moeda e de um conjunto de fixações nos preços-chave da economia.

PALAVRAS-CHAVE:
Inflação; estabilização; Plano Austral

ABSTRACT

The essence of the Argentine monetary reform lies in the reversal of an acute inflationary process, using the introduction of a new currency and a set of fixings in the economy’s key prices.

KEYWORDS:
Inflation; stabilization; Austral Plan

CARACTERIZANDO O PROCESSO INFLACIONÁRIO

Nos primeiros seis meses de 1985, a Argentina apresentou taxas de inflação mensal superiores a 25% (Tabela 1).

Tabela 1:
Argentina - Indice de preços ao consumidor (variações mensais - 1985)

O anúncio de um programa de contenção de preços em julho deste ano encontrou o país à beira da hiperinflação.

O governo argentino optou pelo abandono do gradualismo, pondo em prática uma política de tratamento de choque, cujos efeitos recessivos colocariam em dúvida, em última análise, a própria sustentabilidade do regime democrático.

O fim do gradualismo deveu-se à pouca sensibilidade dos agentes econômicos às forças e sinais de mercado. Os consumidores não fariam distinção entre aumentos de preços de 10% a 30% que se sucediam em questão de dias. Entre notável confusão de cálculos, os preços relativos encontravam-se, naturalmente, desalinhados.

O comportamento do empresariado, face à retração de demanda, era o de elevar ainda mais os preços, garantia de uma concentração industrial bem estabelecida. Atraentes taxas no mercado financeiro drenavam recursos para atividades não produtivas.

O PLANO AUSTRAL

A contenção de um agudo processo inflacionário passa pela reversão das expectativas dos agentes econômicos, restaurando a confiabilidade da moeda e viabilizando os investimentos produtivos.

A estratégia de política econômica argentina, conhecida como o Plano Austral, teve por uma de suas bases o choque heterodoxo, como proposto por Lopes (1984Lopes, Francisco Lafayete (1984) - “Só um choque heterodoxo pode derrubar a inflação’”, Economia em Perspectiva, Conselho Regional de Economia, agosto. e 1985Lopes, Francisco Lafayete (1985) - “Inflação inercial, hiperinflação e desinflação: notas e conjecturas”; Revista de Economia Política , vol. 5, n. 2, São Paulo. ) e Bresser-Pereira e Nakano (1984Bresser-Pereira, Luiz e Yoshiaki Nakano (1984) - “Política administrativa de controle da inflação”, Revista de Economia Política , vol. 4, n. 3, São Paulo. ). Esse elenco de medidas, que permitiu a queda da taxa de inflação para níveis não superiores a 6,2% no segundo semestre deste ano (Tabela 1), compõe o tema central deste trabalho.

Os pressupostos para um plano de desindexação geral da economia e congelamento de preços, juros, aluguéis e taxa de câmbio são, segundo Bresser-Pereira (1985aBresser-Pereira, Luiz (1985a) - “Como a Argentina acabou com sua inflação inercial”, Gazeta Mercantil, 17 de julho, p. 4. ):

  • 1) os preços relativos deverão estar ajustados, não havendo subsídios distorcendo as forças de mercado;

  • 2) as defasagens entre os aumentos de preços deverão estar reduzidas ao mínimo;

  • 3) a balança comercial do país deve estar equilibrada;

  • 4) que o déficit público real tenha sido eliminado.

Torna-se claro que o diagnóstico implícito na proposição do governo argentino assumia a hipótese da inflação inercial, na qual os agentes econômicos, procurando manter sua participação na renda através de aumentos defasados de preços, fariam com que a taxa presente de “inflação reproduzisse a taxa passada, como observado por Bresser-Pereira (1985bBresser-Pereira, Luiz (1985b) - “A inflação autônoma e a desindexação da economia na Argentina”, Revista de Economia Política, vol. 5, n. 4, São Paulo. ).

Delfim Netto (1985Delfim Netto, Antonio (1985) - “Alfonsín substitui demagogia por coerência”, Revista de Economia Politica, vol. 5, n. 4, São Paulo. ) apresenta de modo sintético as medidas que caracterizam o Plano Austral:

  • 1) congelamento geral de preços privados e públicos;

  • 2) congelamento geral dos salários vigentes em 1º. de julho;

  • 3) profunda modificação do sistema fiscal;

  • 4) corte nas despesas públicas;

  • 5) criação de uma nova moeda;

  • 6) fixação de taxa de câmbio;

  • 7) tabelamento da taxa de juros referente ao austral;

  • 8) proibição de emissões do austral.

As linhas básicas desse projeto revelam-nos traços de diferentes escolas do pensamento econômico, por assim dizer, ortodoxos-monetaristas e heterodoxos. Vamos examiná-las mais de perto.

O DIAGNÓSTICO MONETARISTA CONSERVADOR

O argumento ortodoxo é de que a inflação é causada por excesso de demanda e/ou excesso de moeda. As leis de oferta e procura são as indicativas de equilíbrio; a intervenção do Estado deve ser reduzida ao mínimo, a remuneração de cada fator de produção será igual à sua produtividade marginal.

Ao estado natural de crescimento econômico corresponderia o pleno emprego ou taxa natural de desemprego (desemprego voluntário). A exogeneidade da moeda (moeda ativa) faria com que a política de redução da inflação indicasse o controle sobre a emissão de moeda, redução de demanda agregada e do déficit público. Essa terapia de corte de despesas e de austeridade creditícia e fiscal reflete a crença ortodoxa da maior· eficiência do setor privado como agente econômico.

Por conseguinte, os fatores aceleradores da inflação seriam o aumento do déficit do setor público e/ou aumento real da emissão de moeda.

O DIAGNÓSTICO ESTRUTURALISTA­PROGRESSISTA

O receituário heterodoxo aponta a inflação como decorrente de choques de oferta, assumindo as formas de inflação administrada e/ou inercial.

A moeda é tida como endógena ao sistema econômico, que reflete imperfeições de mercado e pontos de estrangulamento. A insuficiência da capacidade para importar, por déficits estruturais no balanço de pagamentos, e a inelasticidade da oferta agrícola contribuem, como mostra Rangel (1983), para a caracterização do fenômeno inflacionário como intrínseco às economias em desenvolvimento.

Os fatores aceleradores da inflação, neste caso, seriam um aumento na margem de lucro das empresas, um aumento dos salários reais acima da produtividade ou uma desvalorização cambial real.

CHOQUE ORTODOXO OU HETERODOXO?

Apresentados em síntese os diagnósticos teóricos sobre o fenômeno da inflação, passemos à análise do Plano Austral em suas premissas.

A ideia de se quebrar um processo inflacionário, como o argentino, pressupõe a ação rápida do governo no sentido de reverter as expectativas dos agentes econômicos.

O congelamento proposto de preços e salário é, à primeira vista, medida heterodoxa, segundo nossa classificação. Uma vez que as forças de mercado não prevalecessem e que essas fixações não estivessem antecipando movimentos de oferta e procura futuros, o ajuste de preços relativos estaria sujeito às condicionalidades de política econômica específicas ao Plano Austral.

O Prof. Simonsen, conhecido por suas ideias conservadoras, é esclarecedor quando relata que “o controle de preços deve funcionar como mera antecipação de mercado. Os preços não deverão ser tabulados artificialmente, com o simples objetivo de ocultar os sintomas da inflação, mas de modo a reproduzir aquilo que, no livre jogo de mercado, seria o resultado de uma crise de estabilização mais intensa. Como tal, os controles de preços se podem considerar virtualmente indispensáveis nos tratamentos de choque ou nas experiências de gradualismo rápido - desde que prevaleça o compromisso de sua posterior liberação” (Simonsen, 1970Simonsen, Mário Henrique (1970) - Inflação: gradualismo x tratamento de choque, Rio de Janeiro, APEC. ). Como um requisito à aplicação da reforma monetária argentina, o ajustamento de preços relativos contou com a equiparação das tarifas públicas a um nível em que permitisse a eliminação de déficits das empresas estatais e da administração direta, numa ótica de curto prazo.

O congelamento de preços das empresas privadas, ao nível do dia 12 de junho, fez com que os ganhos inflacionários fossem extintos.

Por assim ser, a fixação de preços das tarifas públicas (em níveis não-deficitários) em paralelo ao congelamento dos preços do setor privado (referente a 12 de junho) só não seria medida heterodoxa se estivesse antecipando movimentos futuros de mercado.

Um segundo ponto de discussão é o chamado choque fiscal e institucional. Através de cortes de despesas do governo, aumento de impostos, proibições de financiamentos bancários ao setor público e liquidação de empresas públicas, pretende-se sanear as finanças do Estado. À exceção do aumento de impostos, as medidas são nitidamente ortodoxas.

Poderíamos fazer a suposição, então, de que a participação do governo no produto iria diminuir, mas essa não é a conclusão de Delfim Netto (1985Delfim Netto, Antonio (1985) - “Alfonsín substitui demagogia por coerência”, Revista de Economia Politica, vol. 5, n. 4, São Paulo. ): “O ajuste do déficit público se fará muito mais pelo aumento da carga tributária, pela antecipação dos impostos e pelo aumento real dos preços públicos do que pelo corte das despesas”.

O congelamento da oferta de moeda é nosso terceiro ponto de discussão. Por definição, o estancamento da emissão monetária é medida ortodoxa, a partir de relação causal entre oferta de moeda e nível de preços, tal como na equação de trocas (MV = PT).

Para o caso argentino, Bresser-Pereira (1985aBresser-Pereira, Luiz (1985a) - “Como a Argentina acabou com sua inflação inercial”, Gazeta Mercantil, 17 de julho, p. 4. ) propõe interpretação diferente. Para ele, a relação causal numa economia indexada parte da elevação dos preços e prossegue com o aumento de moeda. Nas suas próprias palavras: “A moeda só aumenta porque, como os preços estão aumentando, é necessário manter a liquidez do sistema econômico. Se os preços são congelados administrativamente em um ponto em que não haja grandes prejudicados nem grandes beneficiados, deixa de haver necessidade de aumento da oferta da moeda”.

No que se refere à taxa de câmbio, nosso quarto aspecto, o Plano Austral prevê a sua fixação, orientada por uma necessidade de aceleração da exportação de manufaturados. É sabido que a estabilidade cambial será elemento de vital importância para o sucesso da reforma argentina, visto que a perfeita conversibilidade da moeda servirá para reverter as expectativas inflacionárias.

A questão é saber se a fixação foi feita adequadamente ou, como esclarece Delfim Netto (1985Delfim Netto, Antonio (1985) - “Alfonsín substitui demagogia por coerência”, Revista de Economia Politica, vol. 5, n. 4, São Paulo. ), “se a paridade do austral poderá ser defendida (com auxílio dos empréstimos externos de curto prazo) sem criar problemas para o crescimento das exportações”. Delfim manifesta dúvida se o caminho alternativo ortodoxo de política cambial livre às forças de mercado não seria mais conveniente, refazendo a confiança no valor externo da moeda e aumentando a poupança doméstica, via de consequência.

Um último ponto de controvérsia está na fixação da taxa de juros. É fato que boa parte do mercado operaria com níveis preestabelecidos, o que, na concepção ortodoxa, condicionaria a taxa de poupança, que determinaria a de investimento.

Havendo a fixação da taxa de juros, resta saber como ela condicionará o nível de atividade econômica. O dilema é claramente colocado por Modiano (1985Modiano, Eduardo (1985) - “O choque argentino e o dilema brasileiro”,’ Texto para Discussão, n. 112, PUC, Rio de Janeiro. ): “Se por outro lado as taxas de juros reais devem ser suficientemente altas para inibir a estocagem especulativa de bens e de moeda estrangeira no período do congelamento, por outro lado não devem ser tão altas a ponto de prejudicar sensivelmente a atividade econômica”.

COMENTÁRIOS FINAIS

A essência da reforma monetária argentina está na reversão de um processo inflacionário agudo, utilizando-se da introdução de uma nova moeda e de um conjunto de fixações nos preços-chave da economia.

A inspiração teórica do plano partiu de um diagnóstico de inflação inercial, em que os reajustes de preços ocorridos no presente são devidos às variações ocorridas em período imediatamente anterior.

Elementos de mais de uma escola de pensamento econômico estiveram presentes no choque argentino. O grande trunfo dos monetaristas-conservadores, estancamento da emissão de moeda, foi posto lado a lado com uma política de controle de preços, salários, juros e câmbio.

O déficit do setor público ortodoxamente condenado, mas combatido de maneira heterodoxa, ou seja, via aumento da tributação.

É claro que, por se tratar de uma reforma inovadora, os seus resultados só poderão ser melhor avaliados a médio-prazo; o conjunto de indicadores macroeconômicos obtidos já no ano de 1985 indicam-nos uma vitória no combate à inflação. As dúvidas restantes dizem respeito à recuperação da atividade econômica argentina.

A discussão sobre o resultado ortodoxo (baixa inflação com queda do nível de atividade) de um choque heterodoxo (pelo menos na concepção do processo inflacionário) é motivo para pesquisas posteriores.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • Bresser-Pereira, Luiz (1985a) - “Como a Argentina acabou com sua inflação inercial”, Gazeta Mercantil, 17 de julho, p. 4.
  • Bresser-Pereira, Luiz (1985b) - “A inflação autônoma e a desindexação da economia na Argentina”, Revista de Economia Política, vol. 5, n. 4, São Paulo.
  • Bresser-Pereira, Luiz e Yoshiaki Nakano (1984) - “Política administrativa de controle da inflação”, Revista de Economia Política , vol. 4, n. 3, São Paulo.
  • Campos, J. R. (1985) - “Com inflação menor, Argentina já pensa na retomada”, Folha de S. Paulo, 8 de dezembro, p. 48.
  • Delfim Netto, Antonio (1985) - “Alfonsín substitui demagogia por coerência”, Revista de Economia Politica, vol. 5, n. 4, São Paulo.
  • Kandir, Antonio e Lídia Goldenstein (1985) - “A experiência argentina de política antinflacionária: junho de 1985”, Revista de Economia Política , vol. 5, n. 4, São Paulo.
  • Lara Resende, André (1985) - ‘’ A moeda indexada: uma proposta para eliminar a inflação inercial”, Revista de Economia Política , vol. 5, n. 2, São Paulo.
  • Lopes, Francisco Lafayete (1984) - “Só um choque heterodoxo pode derrubar a inflação’”, Economia em Perspectiva, Conselho Regional de Economia, agosto.
  • Lopes, Francisco Lafayete (1985) - “Inflação inercial, hiperinflação e desinflação: notas e conjecturas”; Revista de Economia Política , vol. 5, n. 2, São Paulo.
  • Modiano, Eduardo (1985) - “O choque argentino e o dilema brasileiro”,’ Texto para Discussão, n. 112, PUC, Rio de Janeiro.
  • Rangel, Ignácio (1963) - A inflação brasileira, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro.
  • Simonsen, Mário Henrique (1970) - Inflação: gradualismo x tratamento de choque, Rio de Janeiro, APEC.
  • JEL Classification: E31.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 1986
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