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A medida da inflação no Brasil

Measuring inflation in Brazil

RESUMO

Esta nota gira em torno da questão da medição da inflação. Na primeira parte, rememora a história dos índices de inflação para depois discutir se os índices em uso no Brasil são do tipo Snyder.

PALAVRAS-CHAVE:
Inflação; índice de preços; índice de Snyder

ABSTRACT

This note revolves around the issue of measuring inflation. In the first part, it rememorates the history of inflation indexes to then discuss if the indexes in use in Brazil are of Snyder type.

KEYWORDS:
Inflation; price index; Snyder index

A inflação tornou-se no pós-guerra um dos principais problemas de política econômica em todo o mundo, tornando-se de maior importância a sua correta medição em cada economia nacional. Todos os países, e principalmente os mais desenvolvidos, apuram atualmente de forma regular um grande número de índices de preços com o objetivo de obter a melhor medida possível das tensões inflacionárias de suas economias.

Tipicamente, nas economias mais avançadas o problema inflacionário é avaliado e discutido em termos de três tipos de índices de preços: o índice de preços por atacado, o índice de custo de vida e o deflator implícito do PIB. Parece haver certo consenso de que o deflator implícito do PIB (ou, idealmente, do consumo privado) é a melhor medida para a pressão inflacionária global na economia, mas em geral este índice não está disponível em base mensal. Sua construção depende da apuração de todo o conjunto das contas nacionais, já que o deflator é obtido através da divisão do PIB em cruzeiros correntes por um índice do PIB real, o que na maioria dos países só é feito em base anual ou trimestral. Além disso, este é um índice que exige considerável tempo de processamento estatístico entre o fim do período de coleta de dados e a publicação final, o que reduz muito sua utilidade prática como indicador contemporâneo da evolução dos preços.

Na falta do deflator implícito resta a possibilidade de usar o índice de preços por atacado - que reflete os preços de mercadorias (não incluindo, portanto, nenhum preço de serviços) a nível de produtor industrial ou rural - ou de usar o índice de custo de vida - que reflete os preços de bens de consumo final (incluindo, portanto, serviços) a nível de varejo para uma cesta de consumo básica típica de um trabalhador de baixa renda. Nos países desenvolvidos ouve-se falar em inflação com referência aos dois tipos de índices, com alguma preferência entretanto pelo índice de custo de vida, o que, naturalmente, decorre da grande importância social e política que em geral se atribui à evolução do poder de compra do salário em situações inflacionárias.

Nesta questão o Brasil parece ocupar uma posição sui generis no ·cenário mundial. Ao que consta, somos o único país no mundo que adota oficialmente um índice composto de preços como medida de inflação, inclusive para uso legal em contratos com correção monetária. Trata-se, naturalmente, do Índice Geral de Preços, composto pela média ponderada do Índice de Preços por Atacado, do Índice de Preços ao Consumidor no Rio de Janeiro e do Índice Nacional de Custo da Construção, com pesos de 60%, 30% e 10%, respectivamente. Qual o origem deste índice e sua justificativa? Como explicar os pesos 6-3-1 para os três índices que o compõe? Quais as vantagens e desvantagens de sua utilização como medida oficial da inflação? São estas as questões que nos interessam nesta nota técnica.

PEQUENA HISTÓRIA DO ÍNDICE GERAL DE PREÇOS

É possível esboçar uma pequena história do Índice Geral de Preços através do exame sistemático de todos os números da revista Conjuntura Econômica desde a sua criação em novembro de 1947. A partir de seu número inicial a Conjuntura passou a apresentar um gráfico com um índice do valor dos negócios, calculado pela média simples de um índice da arrecadação do imposto de vendas e consignações no Rio de Janeiro - denominado pela revista de “movimento mercantil” ou “giro comercial” - e um índice de média diária de cheques compensados em todas as câmaras de compensação existentes no país - às vezes denominado pela revista “movimento financeiro”.1 1 É interessante, em vista da nossa discussão posterior, notar o paralelismo existente entre esta concepção de uma medida do valor dos negócios composta de giro comercial e movimento financeiro, e o esquema analítico do Tratado da Moeda de Keynes, que utiliza as noções de circulação industrial e circulação financeira.

Tratava-se, naturalmente, de um indicador da evolução do valor nominal dos negócios que mistura variações devidas a mudanças no nível de atividade com variações meramente inflacionárias. Como o gráfico tinha na revista o papel de encabeçar uma seção de análise de conjuntura, era óbvia a necessidade de um indicador complementar da evolução do valor real dos negócios, a ser obtido limpando o índice do valor nominal de seu componente inflacionário. A solução foi anunciada no mesmo número inaugural da Conjuntura:

“Para medir o valor real das transações impõe-se levar em consideração a marcha dos preços. Eis porque faz-se aqui o confronto do índice geral de preços com o índice de negócios. Nesse índice computamos os preços de atacado e de custo de vida, sendo que os dados referentes ao mês de agosto são ainda provisórios”.2 2 Conjuntura Econômica, ano 1, n. 1, p. 3.

Dessa forma, o índice Geral de Preços teve o seu début, no papel do deflator a ser utilizado para obter um índice do valor real dos negócios a partir do índice do valor nominal dos negócios. Ainda que isto não tenha sido explicitado na época, é fácil verificar que o IGP nesta primeira versão era uma média simples dos índices de preços por atacado e de custo de vida no Rio de Janeiro.

A estreia oficial do IGP, na forma que o conhecemos hoje, ocorreu na Conjuntura Econômica de abril de 1951, quando pela primeira vez foram publicadas as séries de valor nominal e valor real dos negócios, ao mesmo tempo que foi explicitada a nova metodologia de cálculo do deflator. Vale a pena transcrever parte do texto, que se intitulava “Revisão do índice dos Negócios”:

“Conjuntura Econômica apresenta hoje o seu. Índice de Negócios segundo um esquema modificado. Quando se elaborou em 1947 o esquema aplicado até o presente, o índice de preços de atacado e o de custo de vida, constituindo o índice geral dos preços evoluíam, praticamente, no mesmo ritmo. Era, pois, sem importância que se lhes dessem pesos diversos ou que se considerassem ambos equivalentes para a formação do nível geral dos preços, como nós o fizemos.

O paralelismo entre os dois índices de preços continuou até meados de 1948, mas a partir dessa data o movimento das duas séries tornou-se divergente: os preços de atacado tendiam a aumentar, enquanto custo de vida permanecia virtualmente estacionário. Em dezembro último, nosso índice dos preços de atacado, muito influenciado pelos produtos de exportação, como o café, o cacau e o algodão, elevou-se a 203,8 (base: 1946 = 100), enquanto o do custo de vida era de 143,9.

Nessas condições parecia necessário submeter o índice geral dos preços a uma revisão e atribuir a cada série um ‘peso’ que corresponda à sua importância para as transações comerciais e financeiras (vendas, mercantis e cheques compensados), sobre as quais se baseia o nosso Índice dos Negócios. Além disso, Conjuntura Econômica dispõe, a partir do último ano, de um novo índice de preços, o do custo da construção, cujos numerosos elementos - preços de material, salários, taxa de juros - constituem um suplemento a outros índices, especialmente ao de preços de atacado.

Os estudos a esse respeito mostram que as transações compreendidas em nosso Índice de Negócios são na maior parte direta ou indiretamente influenciadas pelo preço de atacado. Em particular, os cheques compensados se referem, na sua quase totalidade, à produção e ao comércio atacadista ou a operações de crédito a elas ligadas. O comércio exterior aí ocupa uma parte considerável. Tornava-se, pois, necessário atribuir aos preços de atacado um peso duas vezes maior que o relativo ao comércio de varejo e aos outros elementos componentes do índice de custo de vida. Quanto ao índice do custo de construção, a análise demonstrou que dois terços dos seus elementos constitutivos são preços de atacado, enquanto o outro terço é similar aos elementos do índice do custo de vida.

Tomando em consideração estes diversos aspectos, estabelecemos o novo índice geral de preços, segundo a ponderação seguinte: preços de atacado, 60;.custo de vida, 30; custo de construção, 10”.3 3 Conjuntura Econômica, ano 5, n. 4, pp. 6-7.

O penúltimo parágrafo dessa citação é bastante obscuro, não oferecendo uma explicação razoável para as ponderações 6-3-1 utilizadas desde então no cálculo do IGP. Parece dizer que o comércio atacadista é duas vezes mais importante que o varejista em termos de valor de transações, mas a razão por que o custo de construção recebe o peso de 10% é indecifrável.

Até a Conjuntura Econômica de fevereiro de 1954, o Índice Geral de Preços foi apresentado apenas no gráfico denominado “índice dos Negócios” que abria a revista, não aparecendo na tabela “Índices Econômicos”, ·onde já estavam os seus três componentes. Somente a partir desse número a revista passou a incluir na tabela um item denominado “Evolução dos Negócios”, incluindo explicitamente o IGP. Não há dúvida de que, tendo em vista a modéstia com que entrou em cena, seria difícil imaginar naquela época a longa e brilhante carreira que o índice viria a ter nos trinta anos decorridos até hoje, quando logrou libertar-se dos índices de evolução dos negócios - que já não existem mais - e assumiu, tanto na prática oficial como no discurso popular, o papel místico de medida absoluta da inflação.

KEYNES, SNYDER E O PODER DE COMPRA DA MOEDA

Como a busca às origens não parece uma explicação convincente para as ponderações 6-3-1 utilizadas no IGP, gostaríamos de oferecer uma hipótese alternativa, altamente especulativa, sobre a origem destas ponderações, que tem a vantagem de nos permitir uma visão muito mais clara da lógica do IGP como medida da inflação. Para isso, entretanto, será útil apresentar inicialmente uma longa citação de um texto clássico sobre a metodologia de índices de preços, o segundo o livro A Treatise on Money; publicado por Lord Keynes em 1930.

Keynes começa sua argumentação com uma nítida definição do conceito de poder de compra da moeda:

“Um homem não usa a moeda com um fim em si mesma, mas pelo seu poder de compra - ou seja, pelo que ela pode comprar. Portanto, sua demanda não é uma demanda por unidades de moeda, mas por unidades de poder de compra. Como, entretanto, não há nenhuma maneira de se apropriar de poder de compra em geral que não seja pela posse de moeda, sua demanda por poder de compra se traduz em uma demanda por uma quantidade ‘equivalente’ de moeda. Qual é a medida de ‘equivalência’ entre unidades de moeda e unidades de poder de compra?

Como o poder de compra da moeda em um dado contexto depende da quantidade de mercadorias e serviços que a unidade de moeda poderá comprar, segue-se que ele pode ser medido pelo preço de uma mercadoria composta, consistindo dos vários bens e serviços individuais na proporção correspondente à sua importância como objetos· de dispêndio. Além disso, como existem muitos tipos e propósitos de dispêndio, nos quais podemos estar interessados em algum momento, para cada um existe uma mercadoria composta apropriada. Ao preço de uma mercadoria composta representativa de algum tipo de dispêndio chamaremos de agregado de preço (price-level); e à série de números indicativos de mudanças em um dado agregado de preço chamaremos de índice de preço. Segue-se que o número de unidades de moeda que é ‘equivalente’ em um dado contexto a uma unidade de poder de compra depende do agregado de preço a que se refere e é dado pelo índice de preço apropriado.

Será que algum destes agregados de preço corresponde par excéllence ao que entendemos como poder de compra da moeda? Não precisamos hesitar em relação à resposta para esta pergunta. Independente de quão grandes sejam as dificuldades teóricas e práticas de se medir o poder de compra da moeda, não é necessário ter qualquer dúvida sobre o que queremos dizer com o termo. Este poder de compra é o poder da moeda para adquirir os bens e serviços nos quais uma dada comunidade de indivíduos gasta sua renda com propósitos de consumo. Ou seja, ele é medido pela quantidade destes bens e serviços ponderados de acordo com sua importância como objetos de consumo, que uma unidade de moeda comprará; e o número índice apropriado é do tipo às vezes designado como Índice de Consumo (Consumption Index).

Isto não quer dizer que não existem outros tipos de mercadorias compostas, agregadas de preço e índices de preços de grande interesse e importância para vários propósitos e interesses de pesquisa. Mas a existência de uma pluralidade de outros agregados de preços secundários, como eles podem ser razoavelmente denominados, apropriados para diferentes propósitos e diferentes contextos, não é razão para admitirmos qualquer ambiguidade quanto ao significado da noção de poder de compra da moeda”.4 4 Lord Keynes, A Treatise on Money, vol. 1, 1930, pp. 53-54.

Após esta definição do conceito de poder de compra em termos de um agregado de consumo final, Keynes examina os problemas práticos para a obtenção de um índice de preço apropriado para este agregado:

“Um índice para o poder de compra da moeda deveria incluir, direta ou indiretamente, e uma única vez, todos os ítens que entram no consumo final ponderados em proporção à quantidade de renda nominal que o público consumidor devota a eles. Como seria muito complexo compilar um índice abrangente nesta linha, deveríamos nos satisfazer na prática com um índice que cobrisse uma parcela grande e representativa do consumo total. Mas não temos no presente nem isto.

O fracasso em compilar um índice completo ou adequado do agregado de consumo pode ser em parte explicado pelas grandes dificuldades práticas que apresenta; mas deve-se também ao excessivo prestígio que está associado a um particular índice de preço secundário, a saber, o índice de preço por atacado. Quando estamos considerando fenômenos de curto prazo, como no ciclo de negócios, este número índice tem o defeito de que seus movimentos não ocorrem no mesmo tempo e no mesmo grau que os movimentos correlatos no poder de compra da moeda. E quando estamos considerando fenômenos de longo prazo, ele está sujeito a crítica por omitir ou ponderar inadequadamente alguns importantes objetos de consumo - em particular, serviços pessoais ... A omissão é uma séria fonte de confusão em uma comunidade com desenvolvimento tecnológico e aumento de riqueza, já que o progresso técnico tende a reduzir o custo das mercadorias em termos de serviços, enquanto ao mesmo tempo a comunidade gasta em serviços uma proporção crescente de sua renda à medida que sua riqueza média aumenta. Na maioria dos países a coisa mais próxima a um índice de preço do consumo é o índice de custo de vida das classes trabalhadoras. Este índice tem o mesmo defeito, entretanto, que o índice de preço por atacado, ainda que em menor grau, particularmente quando ele é estendido para cobrir também outras classes na comunidade, a saber, que ele subestima o dispêndio em mercadorias”.5 5 Idem, pp. 57-58.

Vale a pena inserir aqui uma outra passagem do mesmo livro, na qual Keynes entra em maiores detalhes na comparação entre os índices de preços por atacado e o índice ideal de consumo:

“No que diz respeito à importância de diferentes objetos de dispêndio para os índices por atacado e de consumo respectivamente, é evidente que - à parte outras discrepâncias na estrutura de ponderação - o primeiro ignora serviços pessoais e a maior parte dos custos de comercialização, além de toda a parte do consumo que é derivada do desfrute de ativos imobilizados de consumo (como, por exemplo, o serviço de habitação de uma casa) no custo do qual a taxa de juros entra como um elemento importante; e no entanto estes itens são parte entre si responsáveis por uma grande proporção das despesas de consumo. Não há, portanto, nenhuma razão no mundo para que no longo prazo devamos esperar que os dois índices se movam juntos.

Além disso, há uma boa razão para que se espere que o índice por atacado flutue mais violentamente que o índice de consumo, já que o primeiro é mais influenciado pelos preços de itens altamente especializados, enquanto o último leva mais em consideração os serviços relativamente não-especializados, como o transporte e o comércio. Por exemplo, os preços de produtos agrícolas para o fazendeiro variam muito mais amplamente que os preços dos mesmos produtos para o consumidor, que incluem transporte e margem de comercialização”.6 6 Idem, pp. 68-69.

Voltando à sequência da citação anterior, vejamos as soluções que Lord Keynes tinha a oferecer para o problema da construção de um índice adequado do poder de compra da moeda:

“A despeito de tudo, com o crescimento da base estatística, os recursos de um departamento governamental empreendedor devem estar à altura da tarefa de compilar um índice razoavelmente acurado do poder de compra da moeda dentro de poucos anos. No ínterim teremos que nos contentar fazendo o melhor que podemos combinando algumas das séries existentes de índices de preços secundários.

Um trabalho pioneiro nesta linha tem sido feito pelo sr. Carl Snyder, o estatístico do Banco de Reserva Federal de Nova Iorque. Seu número índice, que ele chama de “índice do nível geral de preços”, é obtido pela combinação dos quatro seguintes índices secundários com as ponderações indicadas:

Preços por atacado.......................2

Salários........................................3½

Custo de vida...............................3½

Aluguéis......................................1

Eu usarei este índice com uma aproximação tolerável ao índice ideal de consumo.

Pode ser que alguns itens de dispêndio apareçam, direta ou indiretamente, em mais de um dos componentes considerados pelos sr. Snyder; mas não há nenhum mal nisto, desde que o peso dado a eles no agregado não seja desproporcional. A principal superioridade do índice do sr. Snyder; mas não há nenhum mal nisto, desde que o peso dado a eles no agregado não seja desproporcional. A principal superioridade do índice do sr. Snyder sobre todos os outros, quando visto como um índice de consumo, está no fato de que ao introduzir o agregado de salários ele chega mais perto de fazer uma apropriação adequada do custo dos serviços pessoais”.7 7 Idem, pp. 58-59.

Keynes finaliza a discussão reenfatizando a superioridade de um índice geral de consumo sobre qualquer índice obtido a partir da combinação de outros índices:

“Um índice que deliberadamente visasse o agregado de consumo seria obviamente preferível a qualquer dos índices combinados, como o do sr. Snyder discutido anteriormente, ou o índice de ‘finalidade-geral’ do Professor Wesley Mitchell, que é uma média de diversos números índices de diferentes tipos; ainda que tais índices possam ser úteis como substitutos para um índice adequado de poder de compra, na falta de qualquer coisa melhor”.8 8 Idem, pp. 62-63.

SERIA O IGP UM ÍNDICE DE SNYDER?

A hipótese que desejamos levantar aqui possivelmente nunca poderá ser confirmada ou negada conclusivamente. No início dos anos cinquenta o Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas era, indubitavelmente, o centro de excelência do pensamento econômico no Brasil. Lá estava Eugênio Gudin, entre outros pioneiros da ciência econômica e da estatística econômica do país. Certamente muitos destes profissionais estavam familiarizados com o Tratado da Moeda, de Keynes e, possivelmente, também com a obra de Snyder (ainda que não nos tenha sido possível encontrar qualquer coisa dele em bibliotecas do Rio de Janeiro, nem mesmo seu artigo da Review of Economic Statistics, de fevereiro de 1928). Em minha opinião, isto é tudo que se precisa para dar plausibilidade à hipótese que quero sugerir, ainda que possa ser difícil obter confirmação para um evento, aparentemente não documentado, que se passou há trinta anos.

Peço ao leitor que se imagine sentado num gabinete do Instituto Brasileiro de Economia (ou Núcleo de Economia, como se chamava na época), preferivelmente no do Dr. Gudin, no primeiro trimestre de 1951, e tendo que resolver a questão de definir um deflator adequado para o índice do valor nominal dos negócios. Você tem à sua disposição apenas os índices de preços por atacado, de custo de vida e de custo da construção, e lembra-se perfeitamente das passagens do Tratado da Moeda citadas acima (ou, alternativamente, dos trabalhos relevantes de Snyder).

Naturalmente a associação do item aluguel do índice de Snyder ao índice de custo da construção seria imediata, dando margem à ponderação de 10% que de fato existe no IGP. Mas o que fazer com o item salários, ao qual Snyder atribui o peso de 35%? Se houvesse indexação salarial - que de fato não havia na época - o mais lógico seria associar este item ao custo de vida, produzindo a ponderação 2-7-1 para os preços por atacado, custo de vida e custo de construção. Alternativamente, poder-se-ia associar o item salários aos preços por atacado - consistentemente com a noção, publicada na Conjuntura, de que “as transações compreendidas em nosso Índice dos Negócios são na maior parte direta ou indiretamente influenciadas pelo preço de atacado” - produzindo a ponderação 5½-3½-1. Tendo em vista que a revisão da metodologia de cálculo do IGP foi motivada, como está dito na nota explicativa da Conjuntura Econômica, de abril de 1951, pelo fato de que o custo de vida parecia estar subestimando a pressão inflacionária, resultante principalmente dos preços de exportação, a qual se fazia mais explícita nos preços por atacado, parece lógica a adoção da segunda alternativa, que minimizaria o risco de superestimar o crescimento do valor real dos negócios (isto é, do nível de atividades) devido à ilusão monetária. Neste caso, um pequeno arredondamento produziria a ponderação 6-3-1, que foi a efetivamente utilizada no IGP.

A rigor, portanto, não se pode descartar a hipótese de que o IGP seja apenas uma forma adaptada do índice de Snyder. Tendo em vista a limitada base estatística disponível na época, o índice certamente poderia ser aceito segundo o critério de Keynes de que o índice combinado pode ser útil como substituto para um índice adequado de poder de compra “na falta de qualquer coisa melhor”.

IGP, ÍNDICE DE SNYDER E INPC AMPLO

Em abril de 1951, o IGP poderia ser justificado como o índice de Snyder possível de se construir com a base de dados existente, apesar de que pudesse haver dúvida se a ponderação alternativa, 2-7-1, que associa o item salários de Snyder ao custo de vida, não seria a melhor opção. Mas o que dizer sobre a justificativa para o IGP hoje, independente do fato de já existir por trinta anos?

Em primeiro lugar, vale notar que com a base estatística atualmente disponível pode-se construir uma versão muito mais perfeita do índice originalmente proposto por Snyder. Note-se que a adaptação representada pelo IGP de certo modo trai a motivação original do índice: a de dar uma ponderação adequada aos serviços no dispêndio de· consumo. Não apenas o item salários foi totalmente eliminado, como o custo da construção não pode representar adequadamente, pelo menos no curto prazo, o custo dos serviços de habilitação.

Com os recursos hoje disponíveis pode-se construir um índice de Snyder muito mais perfeito através das seguintes opções metodológicas:

  1. usar o item habitação do índice de Preços ao Consumidor no Rio de Janeiro no lugar do custo da construção para representar o item aluguéis de Snyder.

  2. usar para o item salários uma média móvel de seis meses do INPC defasada dois meses em relação ao mês de apuração do índice. A suposição aqui é que os salários são reajustados semestralmente pela variação integral do INPC defasada de dois meses, com uma distribuição uniforme por mês de reajuste da massa salarial dentro de cada semestre. Esta opção metodológica naturalmente ignora o fato de que em determinados períodos no passado recente a política salarial contemplou reajustes inferiores à variação integral do INPC. Por outro lado, parece uma solução melhor do que o simples uso do salário nominal médio na indústria, dado este que não deve refletir adequadamente o custo da mão-de-obra em serviços pessoais e no setor de varejo.

A Tabela 1 apresenta as taxas de variação mensal desta versão do índice de Snyder, que respeita as ponderações originais de 20-35-35-10. A comparação com o IGP é feita na Figura 1.

Figura 1
IGP-DI e Snyder (Taxa de variação anual)

Tabela 1
Taxas De Variação Mensal (%)

Será esta a melhor medida de inflação possível na realidade brasileira atual? Na realidade a base estatística de que dispomos permite-nos avançar ainda mais longe da direção do índice ideal de poder de compra da moeda, definido por Keynes como o indicador do “poder da moeda para adquirir os bens e serviços nos quais uma dada comunidade de indivíduos gasta sua renda com propósitos de consumo” (Tratado da Moeda, p. 54). Trata-se, naturalmente, do INPC amplo, o índice de custo de vida calculado pelo IBGE com base na estrutura média de consumo das famílias com renda até 30 salários-mínimos. Este é um índice mais abrangente que o INPC restrito, utilizado nos reajustes salariais, ou que os vários outros índices de custo de vida existentes no país, que tipicamente se definem como medidas do custo de vida para as classes trabalhadoras com renda inferior a três, ou, em alguns casos, a cinco salários-mínimos. O INPC amplo, ao contemplar o padrão médio de consumo das famílias com renda até trinta salários-mínimos, aproxima-se muito mais de uma medida correta do deflator implícito do consumo pessoal agregado, que é o que se deseja. As taxas de inflação deste índice são apresentadas na Tabela 1, e seu comportamento em termos de taxas acumuladas em doze meses pode ser comparado. nas figuras 2, 3 e 4 ao IGP, índice de Snyder e INPC restrito.

Figura 2
IGP-DI e INPC-amplo (Taxa de variação anual)

Figura 3
INPC e INPC-amplo (Taxa de variação anual)

Figura 4
Snyder e INPC-amplo (Taxa de variação anual)

Naturalmente, na medida em que dá maior peso aos serviços pessoais, este índice mais abrangente do custo de consumo reduz a sensibilidade da medida da inflação às variações dos preços agrícolas. De fato, o peso dos produtos agrícolas na ponderação do INPC amplo é de 32, 71%, em comparação com 46,9% no INPC restrito ou 36,5% no IGP. A consequência é que o INPC amplo reflete muito menos o impacto de choques agrícolas que os outros índices, inclusive o de Snyder, como se pode ver nas Figuras 5 e 8.

Figura 5
IGP-DI, IPA-GA e INPC-amplo (Taxa de variação anual)

Figura 6
IGP-DI, IPA-GA e INPC (Taxa de variação anual)

Figura 7
IPA-GA, INPC e INPC-amplo (Taxa de variação anual)

Figura 8
Snyder, IPA-GA e INPC (Taxa de variação anual)

Esta, inegavelmente, é uma propriedade extremamente desejável para a medida oficial de inflação numa economia altamente indexada. Existe um certo absurdo no fato de que o setor agrícola, que representa menos de 15% da produção total do país, venha a explicar quase metade do índice de preço. Numa economia indexada, isto significa que qualquer variação do preço real dos produtos agrícolas será fortemente amplificada em um impulso inflacionário estrutural, tornando o sistema econômico desnecessariamente vulnerável aos choques agrícolas.

  • 1
    É interessante, em vista da nossa discussão posterior, notar o paralelismo existente entre esta concepção de uma medida do valor dos negócios composta de giro comercial e movimento financeiro, e o esquema analítico do Tratado da Moeda de Keynes, que utiliza as noções de circulação industrial e circulação financeira.
  • 2
    Conjuntura Econômica, ano 1, n. 1, p. 3.
  • 3
    Conjuntura Econômica, ano 5, n. 4, pp. 6-7.
  • 4
    Lord Keynes, A Treatise on Money, vol. 1, 1930, pp. 53-54.
  • 5
    Idem, pp. 57-58.
  • 6
    Idem, pp. 68-69.
  • 7
    Idem, pp. 58-59.
  • 8
    Idem, pp. 62-63.
  • JEL Classification: E30; C43; E31.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 1986
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