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Inflação inercial e curva de Phillips

Inertial inflation and Phillips curve

RESUMO

Esta nota apresenta o problema da indexação de salários, taxa de câmbio e outros preços na curva de Phillips. Com este objetivo desenvolvemos um modelo simplificado do processo inflacionário decompondo-o em: (1) inflação inercial; (2) a curva de Phillips; (3) inflação de choque administrado ou de oferta. Usando este modelo, primeiro mostramos que um choque de oferta desloca a curva de Phillips acelerando a taxa de tendência da inflação inercial. Segundo, que uma pressão de demanda contínua através da curva de Phillips leva a uma aceleração contínua da taxa de inflação. E terceiro, que um aumento na taxa de desemprego pode levar a um aumento oligopolista na margem de lucro, o que também leva a um deslocamento da curva de Phillips e a uma aceleração da inflação.

PALAVRAS-CHAVE:
Inflação; curva de Phillips

ABSTRACT

This note introduces the problem of indexation of wages, exchange rate, and other prices in the Phillips’ curve. With this aim, we developed a simplified model of the inflationary process decomposing it in (1) inertial inflation; (2) the Phillips’ curve; (3) administered or supply shock inflation. Using this model, first we show that a supply shock shifts the Phillips’ curve accelerating the trend rate of inertial inflation. Second, that a continuous demand pressure through Phillips’ curve leads to continuous acceleration of the rate of inflation. And third, that a rise in the rate of unemployment may lead to an oligopolistic increase in the profit margin, which also leads a shift in the Phillips’ curve and an acceleration of inflation.

KEYWORDS:
Inflation; Phillips curve

A curva de Phillips estabelece uma relação inversa entre a taxa de inflação e o nível de desemprego. Em trabalho anterior (1984Bresser-Pereira, Luiz e Nakano Yoshiaki, (1984) “Política administrativa de controle da inflação”, Revista de Economia Política, vol. 4, n. 3, jul.-set. Republicado em Bresser Pereira e Nakano, Inflação e Recessão, São Paulo, Brasiliense, 1984.), entretanto, afirmamos que, a partir de uma certa taxa de desemprego, nos quadros de uma inflação inercial e administrada, as empresas oligopolistas passariam a aumentar suas margens de lucro para compensar a perda de vendas. Em consequência, a curva de Phillips sofreria uma “inflexão”, passando a inflação a se acelerar à medida que aumentasse o desemprego. Vellutini (1985Vellutini, Roberto de Arnaldo da Silva (1985) “Política administrativa de controle da inflação: Alguns comentários”, Revista de Economia Política, vol. 5, n. 3, jul.-set.) observou corretamente que essa inversão seria fruto de sucessivos deslocamentos da curva de Phillips. Em nossa resposta (1985Bresser-Pereira, Luiz e Nakano Yoshiaki, (1985) “Sobre a curva de Phillips: uma resposta” Revista de Economia Política, vol. 5, n. 3, jul.-set.), entretanto, não desenvolvemos suficientemente a análise do problema. É o que faremos nesta nota, procurando relacionar mais sistematicamente a inflação inercial - que reproduz automaticamente a inflação passada - e a inflação administrada - que se acelera a partir de choques de oferta provocados pelo poder de monopólio das empresas, dos sindicatos e do Estado - com a curva de Phillips.

A aceleração da inflação pode ser causada tanto por aumento da demanda e consequente redução de desemprego, que provoca movimento ao longo da curva de Phillips, como por choques de oferta (poder de monopólio), que elevam momentaneamente os preços acima dessa curva. Se, através dos efeitos propagadores da inflação, adicionarmos um componente inercial, através do qual a inflação passada se reproduza no presente, teremos um deslocamento para cima de toda a curva de Phillips. Na primeira seção desta nota, examinaremos o caso de um choque de oferta somado à inflação inercial. Nessa circunstância, ocorrerá um único deslocamento da curva de Phillips, permanecendo, em seguida, a inflação inercialmente no novo patamar. Na segunda seção, veremos o caso de pressão de demanda levando a uma redução do desemprego. Nessa circunstância, o fator mantenedor da inflação provocará deslocamentos repetitivos, enquanto durar o excesso de demanda, levando a uma espiral inflacionária. Quanto à “inflexão” da curva de Phillips, que analisaremos na seção 3, é o resultado do aumento da taxa de inflação, quando aumenta o desemprego. A aceleração da inflação decorre de sucessivos choques de oferta, mais especificamente de aumentos autônomos das margens de lucro, que deslocam a curva de Phillips sucessivamente. Finalmente, na seção 4, desenvolveremos um modelo matemático geral combinando os choques de demanda e de oferta, ou seja, os fatores aceleradores da inflação, com seu eventual caráter inercial determinado pelos fatores mantenedores da inflação.

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Vamos partir de uma equação simplificada de inflação em que AM é o coefidciente de inercialidade ou de indexação; quando AM é igual a 1, a inflação passada

p ˙ = A p ˙ - 1 M + B d - 1 M + H M (1)

p˙-1 reproduz-se no presente integralmente. O segundo componente representa a curva de Phillips, sendo BM o coeficiente que mede a relação da taxa de inflação e a taxa de desemprego, d-1. Finalmente, AM representa todos os tipos possíveis de choque de oferta: aumento de margens de lucro, aumentos autônomos de salário real acima da produtividade, inflação corretiva, inflação importada, maxidesvalorização cambial. Em um primeiro caso vamos supor economia no ponto de equilíbrio d0, onde p˙=0, e imaginar um choque de oferta qualquer, que, no Gráfico 1, eleva os preços acima da curva de Phillips para o ponto h1. A inflação só se manterá nesse nível se, dada a existência de indexação plena AM=1, a inflação for inercial, ocorrendo o deslocamento da curva de Phillips até esse ponto h. Sem novos choques não haverá novos deslocamentos da curva de Phillips.

Gráfico 1

2

Suponhamos agora que um choque de demanda provoque a redução do desemprego de d, para o d, no Gráfico 2. A taxa de inflação se movimenta ao longo da curva de Phillips até o ponto correspondente a p˙1. Se, a partir daí, todos os agentes econômicos passarem a indexar plenamente seus preços, a curva de Phillips se deslocará para acima no mesmo valor da distância p˙0-p˙1, alcançando a taxa de inflação p˙2. Entretanto, como continuam as pressões de demanda e como o deslocamento da curva já incorporou o efeito acelerador provocado pelo choque inicial de demanda, a inflação terá nova aceleração correspondente à distância p˙0-p˙1, e, portanto, novo deslocamento da curva. Estaremos, assim, diante de uma espiral inflacionária, com a taxa de inflação se deslocando para os pontos A, B, C e assim sucessivamente, que só se paralisará quando esse nível de desemprego voltar para o d0. A eliminação do excesso de demanda provocará uma única redução da taxa de inflação através do movimento dessa taxa ao longo da curva de Phillips até o ponto correspondente, na vertical, a d0. No Gráfico 2, partindo de uma inflação p˙3, correspondente ao ponto C, a inflação cairá para p˙2, correspondente ao ponto D. Nesse ponto a inflação permanecerá inercial. Caso queiramos levar a inflação a p˙0 através de aumento de desemprego, além, do ponto d0, esse aumento será tanto maior quanto maior o patamar inicial de inflação. No gráfico 2, não basta voltar para o d0. Será necessário atingir níveis de desemprego muito altos, incompatíveis com um mínimo de estabilidade social.

Gráfico 2

Nesse modelo de inflação, se ocorrer uma aceleração provocada por sucessivos aumentos das margens de lucro dos setores oligopolistas destinados a neutralizar o aumento do desemprego, teremos uma aparente inflexão da curva de Phillips, resultante dos sucessivos deslocamentos dessa curva. O aumento das margens de lucro é um mecanismo de defesa das empresas para proteger a taxa de lucro frente à recessão, ou seja, à redução das vendas e ao consequente aumento dos custos fixos unitários.

No Gráfico 3, a partir do nível de desemprego d., as empresas oligopolistas aumentarão sucessivamente suas margens de lucro de forma que a curva de Phillips sofrerá sucessivos deslocamentos. Na medida em que o desemprego aumenta para d2, d3 e d4 a curva de Phillips se deslocará de I para II, III e IV e a taxa de inflação, ao invés de sofrer uma redução ao longo da curva original, I, caminhará na direção A, B, C e D, como se a curva de Phillips sofresse uma inflexão como está representado pela linha pontilhada. Neste caso, pode-se perceber que a taxa de inflação sofrerá uma aceleração com o aumento do desemprego (capacidade ociosa). Fica evidente que as políticas ortodoxas de combate à inflação através de recessão podem ter efeitos perversos, gerando uma estagflação.

Gráfico 3

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Esta análise pode ser expressa através de um modelo matemático um pouco mais completo do que o representado pela equação (1). Vamos explicitar como os valores de A, B, H e M são determinados. Para isso vamos recorrer a uma equação que, utilizando-se da teoria de mark-up de preços, representava a taxa de variação de preços, p, como determinada pela taxa de variação dos custos diretos (salário e matéria-prima) e da própria taxa de variação da margem de lucro, m:

p ˙ = m ˙ + α w ˙ - q ˙ + 1 - α v ˙ + e ˙ + x ˙ (2)

em que w é a taxa de salário, q, a produtividade, v, preço da matéria-prima em moeda estrangeira, e, a taxa de câmbio e x, a quantidade de matéria-prima por unidade produzida. O ponto em cima da letra indica taxa de variação no tempo.

Para tornar mais completo o modelo, podemos adicionar à equação acima o efeito da taxa de juros e dos impostos indiretos. O efeito da taxa de juros pode ser representação de uma forma simplificada assumindo-se que as empresas dependem de empréstimos para financiar o capital de giro (salário e matérias-primas) e repassam aos preços os seus custos financeiros. Neste caso, o efeito da variação da taxa de juros sobre os preços pode ser representado por βr˙ onde r˙ é a variação da taxa nominal de juros e β um fator de proporcionalidade indicando a importância dos empréstimos em relação ao capital de giro total. No caso dos impostos indiretos t˙, o efeito de sua variação é direto e repassado integralmente aos preços. Assim, a equação (2) passa, ter a seguinte forma:

p ˙ = m ˙ + α w ˙ - q ˙ + 1 - α v ˙ + e ˙ + x ˙ + β r ˙ + t ˙ (2’)

O mecanismo de indexação formal ou informal afeta esta equação de três formas. Em primeiro lugar, se as margens de lucro são administradas pelas empresas oligopolistas, qualquer elevação dos custos decorrente dessa administração de preços é repassada para os preços finais. Em condições normais de operação as empresas mantêm as margens constantes, mas, em casos de acentuada queda ou aumento na demanda, as margens de lucro podem ser elevadas para proteger a lucratividade da empresa ou para racionar a demanda.

A segunda forma como a indexação afeta a equação (2’) refere-se ao fato de os reajustes de salários nominais ficarem automáticos de acordo com a inflação passada. Os sindicatos, em condições de inflação crônica, lutam para recompor o pico de salário real alcançado anteriormente e mesmo por aumentos autônomos de salário. Este fenômeno foi representado de uma forma bastante simplificada nos capítulos anteriores incorporando-se à curva de Phillips um componente de indexação salarial, cp˙-1, e outro de elevação autônoma de salário, w˙a. Assim, a curva de Phillips tomava a forma:

w ˙ = a + b d - 1 + c p ˙ - 1 + w ˙ a (3)

em que c é o coeficiente de indexação dos salários, d, a taxa de desemprego e a e b, parâmetros da curva de Phillips.

A forma como a indexação afeta a nossa equação de taxa de inflação é o mecanismo de indexação cambial. Exprimindo a atual experiência brasileira em que a taxa de câmbio sofre um reajuste instantâneo em relação aos preços, podemos expressar a variação da taxa de câmbio por:

e ˙ = g p ˙ + M a x (4)

onde g representa o grau de indexação do câmbio em relação à inflação corrente e pode variar em função da política de desvalorização cambial; e Max representa uma variação inesperada e autônoma na taxa de câmbio, devido a uma maxidesvalorização.

Substituindo-se (3) e (4) em (2’), temos:

p ˙ = α c 1 - 1 - α g · p - 1 + 2 b 1 - 1 - α g · d - 1 + m ˙ + 1 - α v ˙ + x ˙ + 1 - α M a x + β r ˙ + t ˙ + α w ˙ a 1 - 1 - α g

Nesta equação a taxa de inflação é explicada por três componentes:

  • 1) componente inercial, representado por

A M = α c 1 - 1 α g (6)

  • 2) componente de demanda (curva de Phillips), representado por:

B M = α b 1 - 1 - α g (7)

  • 3) componente de oferta, representado por:

H M = m ˙ + 1 - α v ˙ + x ˙ + 1 - α M a x + β r ˙ + t ˙ + α w ˙ a 1 - 1 - α g (8)

O multiplicador inflacionário (ver item 64) é dado por:

1 M = 1 1 - 1 - α g (9)

  • 2) componente de demanda (curva de Phillips), r

O componente inercial da inflação definido por (6) mostra com clareza que a taxa de inflação depende do grau de indexação dos salários, e, e do câmbio, g. No caso se uma indexação plena, c=1 e g=1 e AM=1. Neste caso, mantidos os demais componentes neutros, a taxa de inflação presente, p, é determinada pela taxa de inflação do período anterior, cp˙-1, e se mantém de forma estável. Obviamente a redução dos coeficientes de indexação para c<1 e g<1 pode contribuir para reduzir no decorrer dos períodos a taxa de inflação.

O segundo componente da equação (5) representa o componente de demanda da inflação e tem efeito quando o nível de desemprego se reduz e se aproxima do nível de pleno emprego (plena utilização de capacidade produtiva). Na linha dos modelos keynesianos, o efeito inflacionário deste componente se faz sentir antes do lado dos custos, através da curva de Phillips, do que do lado da demanda de bens propriamente dita. Assume-se que os efeitos da elevação de salários devido à redução do desemprego manifestam-se sobre os preços antes do que a pressão de demanda agregada no mercado de bens e serviços, devido ao elevado grau de utilização da capacidade produtiva.

Os diversos componentes de choque, tais como a elevação da margem de lucro, a elevação do preço da matéria-prima (v), a maxidesvalorização cambial, a elevação da taxa de juros e a elevação dos impostos indiretos, estão representados pelo terceiro componente da equação (5). Qualquer fator que provoque pressão nestas variáveis tem efeitos inflacionários e seu impacto final na taxa de inflação é condicionado por dois fatores. De um lado, pela sua incidência no custo direto total, e de outro, pelo multiplicador inflacionário. Este último fator, representado pela equação (9) e determinado pelo mecanismo de indexação, amplifica o impulso primário causado pelos choques de custos, através da sua propagação nos demais preços. Em outras palavras, o multiplicador inflacionário expressa o fato de que um choque de custos (que na ausência de indexação tem efeitos localizados) tem o efeito de universalizar a elevação de preços pelo repasse contínuo dos custos para os preços, tendendo, desta forma, a manter os preços relativos inalterados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • Bresser-Pereira, Luiz e Nakano Yoshiaki, (1984) “Política administrativa de controle da inflação”, Revista de Economia Política, vol. 4, n. 3, jul.-set. Republicado em Bresser Pereira e Nakano, Inflação e Recessão, São Paulo, Brasiliense, 1984.
  • Bresser-Pereira, Luiz e Nakano Yoshiaki, (1985) “Sobre a curva de Phillips: uma resposta” Revista de Economia Política, vol. 5, n. 3, jul.-set.
  • Vellutini, Roberto de Arnaldo da Silva (1985) “Política administrativa de controle da inflação: Alguns comentários”, Revista de Economia Política, vol. 5, n. 3, jul.-set.
  • JEL Classification: E31; E24.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 1986
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