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Análise crítica da interpretação neoclássica do processo de modernização da agricultura brasileira* * Uma versão mais ampla deste trabalho foi melhorada graças aos comentários dos professores Fernando Homem de Melo, José Juliano de Carvalho Filho e Hélio Nogueira da Cruz. A responsabilidade pela versão final continua cabendo unicamente ao autor.

Critical analysis of the neoclassical interpretation of the process of modernization of the Brazilian agriculture

RESUMO

No presente trabalho, critica-se a interpretação neoclássica do processo de modernização agrícola brasileira. Voltando aos fatos históricos, mostra-se que uma estrutura agrária concentrada, aliada aos sistemas de escravidão e imigração utilizados, foram os principais fatores para explicar o baixo nível tecnológico empregado na agricultura até meados dos anos 60. As políticas econômicas domésticas, aliadas à disponibilidade de um “pacote” tecnológico em nível internacional, justificaram a aceleração do processo de modernização desde então.

PALAVRAS-CHAVE:
agricultura; mercado agrícola; produtividade agrícola

ABSTRACT

In the present work, the neoclassical interpretation of the Brazilian agricultural modernization process is criticized. Going back to historical facts, it is shown that a concentrated agrarian structure, together with the systems of slavery and immigration utilized, were the main factors to explain the low technology level used in agriculture until the mid 60’s. The domestic economic policies, together with the availability of a technological “package” at the international level, justified the acceleration of the modernization process since then.

KEYWORDS:
Agriculture; agricultural market; agricultural productivity

No Brasil, os autores defensores da modernização da agricultura através do uso de insumos industriais deram grande destaque à controvérsia com autores estruturalistas no que se refere à inelasticidade ou não da oferta agrícola.1 1 Será chamado de “teoria da modernização da agricultura” o conjunto de pressupostos contidos nos modelos de conservação, de impacto urbano-industrial, de difusão, de insumos modernos, de inovação induzida, de De Janvry e nas formulações de Pastore, Dias e Castro (1976) e Paiva (1971). Ver Santos (1986) para maiores detalhes. Dos resultados de alguns estudos empíricos por eles realizados saíram suas proposições de incentivos à modernização da agricultura sem alteração da estrutura agrária. Deram eles, no entanto, pouca atenção às controvérsias existentes nas décadas de 50 e 60 entre autores de abordagem marxista, onde reformas agrárias eram defendidas. A reforma proposta por defensores da “tese feudal” tinha por finalidade permitir a expansão do capitalismo na agricultura, através da eliminação dos resquícios feudais ou pré-capitalistas. Pode-se argumentar que a “teoria da modernização” atende às aspirações dos defensores da “tese feudal”, já que ela incentiva a penetração do capitalismo na agricultura, só que sem necessidade de reformas agrárias. Ignácio Rangel, partindo de bases diferentes das dos autores neoclássicos, defende a modernização da agricultura através de grandes empresas, o que também é feito por defensores da “teoria da modernização”, embora não encontrem estes justificativas nos fundamentos teóricos utilizados, já que nem Schultz (1965Schultz, T. W. (1965) A transformação da agricultura tradicional, Rio de Janeiro, Zahar), nem Hayami e Ruttan (1971Hayami, Y. & Ruttan, V. W., (1971) Agricultural development: an international perspective, Baltimore, J. Hopkins.) permitem antever em suas teorias que a modernização deve ser incentivada principalmente via grandes empresas. Outras controvérsias podem também ser resgatadas nas discussões entre defensores das diferentes teses em debate nas décadas de 50 e 60. Nos trabalhos de Alberto Passos Guimarães, Caio Prado Junior, Celso Furtado e Ignácio Rangel, são encontrados pontos que mostram como as políticas utilizadas para a agricultura brasileira, desde a época de sua ocupação, foram responsáveis pelas distorções introduzidas na sua estrutura agrária. Já defensores da “teoria da modernização” admitem que foi a abundância de terra e mão-de-obra existentes até aquela época no Brasil que sinalizou a não necessidade de inovações tecnológicas na sua agricultura, sendo que a estrutura agrária existente não se constituiu em empecilho quando a modernização da agricultura se tornou necessária.

A retomada das discussões ocorridas entre fins da década de 50 e início da década de 60 torna-se importante em qualquer análise do processo de modernização percorrido pela agricultura brasileira, já que a modernização dessa agricultura era a essência do que se discutia, quer a abordagem seja levada para respostas sobre porque não teria ela ainda se modernizado, ou para abordagens do tipo o que fazer para iniciar seu processo de modernização. Um tema surge então como divisor dos grupos em discussão: a estrutura agrária brasileira como óbice à modernização da agricultura. De um lado, defendendo, em maior ou menor grau, a extrema concentração da posse da terra no Brasil nas mãos de uma minoria de grandes proprietários de terra como o grande empecilho para uma maior participação da agricultura no processo geral de desenvolvimento, pode-se alinhar defensores das chamadas “tese feudal”, “crítica à tese feudal”, e “tese estruturalista”. De outro, reconhecendo que existem obstáculos que impedem o pleno desempenho da agricultura brasileira no processo de desenvolvimento, mas defendendo que tais obstáculos podiam ser removidos sem necessidade de reformas de estrutura, aliam-se defensores da “teoria da modernização”. Entre esses dois grupos pode-se colocar Ignácio Rangel e sua “crise agrária” que, embora identificando problemas na estrutura agrária brasileira, parte para uma solução que não exige grandes reformas de estrutura.

A partir de meados da década de 60 o Brasil passou a ver vigorar as ideias dos autores defensores da “teoria da modernização” na formulação das políticas dirigidas para sua agricultura. O incremento da produção deveria ser a partir de então promovido não apenas através do aumento da área agricultável, mas também via aumento da produtividade. Isso era justificado pelo reconhecimento de que a expansão da fronteira agrícola não tinha condições, por si só, de fazer crescer a oferta de produtos na proporção em que a demanda o exigia. A estratégia de política recomendada era então de, no curto prazo, criar instrumentos e desenvolver um conjunto de ações capazes de difundir, rapidamente, entre os agricultores, o estoque de conhecimentos acumulado no país e no exterior, e nesse último caso, quando adaptado às condições ecológicas da agricultura brasileira. Nos médio e longo prazos, criar condições para assegurar-se um crescimento autossustentado da produtividade agropecuária.

O objetivo principal deste trabalho é apresentar, através de uma análise crítica, as ideias de alguns dos principais autores que se destacaram ao defender a modernização da agricultura brasileira através da utilização de fundamentos da “teoria da modernização da agricultura”. Serão expostos e criticados os argumentos neoclássicos que se destacaram na explicação do porquê dos baixos níveis de produtividade mantidos na agricultura brasileira até meados da década de 60 e as sugestões dadas para se alterar tal situação.

EXPLICAÇÕES NEOCLÁSSICAS PARA OS ÍNDICES BAIXOS DE PRODUTIVIDADE DA AGRICULTURA BRASILEIRA

Foi afirmado na seção anterior que os defensores das teses “feudal”, “crítica à tese feudal” e “estruturalista”, consideram a estrutura agrária um dos fatores principais a explicar o atraso da agricultura brasileira até meados da década de 60. Foi também salientado que os defensores, no Brasil, da “teoria da modernização da agricultura” limitaram muito o debate às críticas à “tese estruturalista”, restringindo esta mais especialmente à existência nos países em desenvolvimento de uma pretensa incapacidade da agricultura a responder a estímulos de preços.

Uma interpretação bastante clara da posição neoclássica no debate pode ser encontrada no trabalho de Pastore (1971Pastore, A. C., (1971) “A oferta de produtos agrícolas no Brasil”, Estudos Econômicos, 1(3):35-69, set.-dez.). Ele começa analisando o que considera um mito da corrente estruturalista da inflação, que a oferta de produtos agrícolas responderia muito pouco, ou mesmo não responderia, aos estímulos de preços relativos, nos países com baixos níveis de renda per capita. Esse mito teria vigorado no Brasil por um longo tempo, sendo encontrado, segundo Pastore (1971Pastore, A. C., (1971) “A oferta de produtos agrícolas no Brasil”, Estudos Econômicos, 1(3):35-69, set.-dez.), no Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico, de 1962, e no Programa de Ação Econômica do Governo (PAEG), de 1964.

A explicação para esse mito seria encontrada na estrutura agrária prevalecente nesses países, dotada de vastos latifúndios, não interessados na maximização de lucros, e de minifúndios, onde os agricultores, por necessitarem atender a satisfações de suas próprias subsistências, não se voltariam ao mercado. A consequência mais importante de tal tipo de comportamento por parte dos agricultores seria a ausência de resposta destes a incentivos que visassem melhorar os métodos de cultivo. Os obstáculos que impediam o crescimento da produtividade agrícola somente poderiam ser superados com uma alteração da estrutura agrária.

Pastore (1971Pastore, A. C., (1971) “A oferta de produtos agrícolas no Brasil”, Estudos Econômicos, 1(3):35-69, set.-dez.) cita uma série de trabalhos que teriam contribuído para a rejeição gradual do mito,2 2 Pode-se citar, por exemplo, o trabalho de Delfim Netto et alii (1969), que faz um exaustivo teste da relação entre produção agrícola e preços relativos para a agricultura brasileira, mostrando que a agricultura da região Centro-Sul responde a preços e não conseguindo mostrar que isto acontece na região Nordeste. sendo a maioria dos trabalhos inspirada no professor Schultz (1965Schultz, T. W. (1965) A transformação da agricultura tradicional, Rio de Janeiro, Zahar), que parte da hipótese de que os agricultores respondem a preços, atribuindo a falta de investimentos na agricultura tradicional à baixa taxa de retorno dos investimentos em fatores tradicionais. A indução a poupar, nas agriculturas tradicionais, seria baixa, devido às baixas taxas de retorno dos fatores existentes. Não existiriam alternativas de investir em fatores mais modernos por ser a oferta desses fatores inexistente ou insuficiente.

Ele próprio (Pastore 1971Pastore, A. C., (1971) “A oferta de produtos agrícolas no Brasil”, Estudos Econômicos, 1(3):35-69, set.-dez.), testa a resposta da produção agrícola aos preços no Brasil, chegando à conclusão de que tanto em termos agregados, como para as regiões estudadas, os resultados conseguidos não permitem rejeitar a hipótese de que, no Brasil, a produção agrícola reage sensivelmente aos preços relativos.3 3 Ele trabalha com as regiões Nordeste, Centro-Sul (Minas Gerais, Espírito Santo, Mato Grosso, Goiás, Santa Catarina, Paraná, Rio Grande do Sul, sem São Paulo) e São Paulo.

Esse tipo de discussão, em termos da resposta ou não-resposta da produção agrícola aos preços, tem o grave defeito de restringir a teoria estruturalista a uma de suas teses e esconder muitos pontos comuns entre defensores desta linha de pensamento e defensores, de linha neoclássica, da modernização da agricultura brasileira.

Existe uma Economia Política da CEPAL, que como afirma Mello (1982Mello, J. M. C. de, (1982) O capitalismo tardio; Contribuição à revisão crítica da formação e do desenvolvimento da economia brasileira, 2.ª ed., São Paulo, Brasiliense.) nasceu e se desenvolveu na luta pelo desenvolvimento da industrialização nacional dos países latino-americanos. Do combate às políticas de estabilização de inspiração ortodoxa, surgiu a teoria estruturalista da inflação. Do fracasso quase generalizado da industrialização latino-americana, após 1955, surgiu a teoria dos obstáculos estruturais, com suas posições de reforma de estruturas (Mello, 1982Mello, J. M. C. de, (1982) O capitalismo tardio; Contribuição à revisão crítica da formação e do desenvolvimento da economia brasileira, 2.ª ed., São Paulo, Brasiliense.). Há, pois, uma Teoria Econômica Estruturalista, que não pode ser resumida por apenas uma de suas teses levantadas.

Os argumentos estruturalistas procurando mostrar que a modernização da agricultura passa necessariamente pela reforma estrutural do setor agrícola são destacados muito claramente por Cline (1970Cline, W. R., (1970) Economic consequences of land reform in Brazil, Amsterdã, North-Holland.), que aponta duas diferenças, que considera primárias, entre políticas que partem da redistribuição de terras e políticas que ele chama de convencionais (de preços, subsídios a insumos modernos, serviços de extensão, crédito rural, armazenamento e transporte etc., sem que a redistribuição de terras seja o ponto de partida). A redistribuição de terras pode aumentar a produção melhorando a eficiência da estrutura agrícola, enquanto as políticas convencionais aumentam a produção induzindo a utilização de mais insumos numa ineficiente base estrutural. E a redistribuição de terras opera simultaneamente na procura de atingimento de duas metas, equidade na distribuição de renda e aumento no nível de produção, enquanto as políticas convencionais têm por meta o aumento da produção, só incidentalmente atendendo equidade na distribuição de renda.

Como visto, autores que seguem a linha de pensamento neoclássica geralmente não consideram a estrutura agrária como fator relevante na explicação dos baixos índices de produtividade atingidos pela agricultura brasileira até meados da década de 60. Várias causas outras são encontradas, podendo-se agrupá-las em dois grandes grupos:4 4 Ver, entre outros, Alves e Pastore (1975) e Alves (1983). 1) políticas econômicas aplicadas no Brasil, destacando-se a política de preços para o mercado interno e externo, a política de industrialização poupadora de mão-de-obra e a falta de investimento em pesquisa; 2) abundância de terra e mão-de-obra explicando a não modernização da agricultura brasileira.

Convém destacar que tal tipo de grupamento faz sentido quando é considerada a ênfase utilizada pelos autores para analisar as causas, já que estas são bastante interdependentes entre si para justificar qualquer tipo de separação. Fica, inclusive, muito difícil encontrar autores que não considerem os dois grupamentos de causas como de grande importância na explicação dos baixos níveis de produtividade encontrados na agricultura brasileira.

POLÍTICAS ECONÔMICAS APLICADAS NO BRASIL

Entre os autores neoclássicos que defenderam as políticas econômicas aplicadas no Brasil como causa principal dos baixos níveis encontrados na produtividade de sua agricultura, destacam-se Nicholls (1967Nicholls, W. H., (1967) The transformation of agriculture in a semi-industrialized country; the case of Brazil, Nova York, National Bureau of Economic Research., 1972Nicholls, W. H., (1972) “A agricultura e o desenvolvimento econômico do Brasil”, Revista Brasileira de Economia, 26(4): 169-206, out.-dez.), Schuh (1971Schuh, G. E. & Alves, E. R. A., (1971) O desenvolvimento da agricultura no Brasil, Rio de Janeiro, APEC., 1975Schuh, G. E. (1975) “A modernização da agricultura brasileira; uma interpretação”, in Contador, R. C. (ed.), Tecnologia e desenvolvimento agrícola, Rio de Janeiro, IPEA/INPES, pp. 7-45.) e Smith (1969Smith, G. W., (1969) “Brazilian agricultural policy: 1950-67”, in Ellis, H. S. (ed.), Essays on the economy of Brazil, Berckeley, Univ. of California Press.). Estes autores analisam as políticas econômicas, principalmente as que eram voltadas para a agricultura ou tiveram impacto sobre o setor, aplicadas no Brasil após a Segunda Grande Guerra até fins da década de 60. São analisadas aquelas políticas consideradas discriminatórias contra a agricultura, sendo destacadas a sobrevalorização da taxa cambial, que tinha o efeito de tornar mais baixos os custos de importações necessárias ao desenvolvimento industrial, como também ia de encontro aos esforços que se faziam na época para explorar a aparente posição monopolista do café no mercado mundial; a imposição de quotas de exportações, geralmente utilizadas sob o pretexto de controle da inflação interna; o artifício da inflação como meio de criar “poupanças forçadas”, que atingiu as classes rurais assalariadas e também os produtores rurais via aumento dos preços dos insumos agrícolas, que também se tornavam mais altos pela substituição de bens importados, mais baratos, por bens de fabricação nacional, mais caros; os efeitos dos preços relativos dos fatores, associados à política de desenvolvimento industrial, na redução dos incentivos à modernização agrícola brasileira. É salientado que os programas de previdência social e de salário-mínimo atuaram no sentido de tornar o preço privado do trabalho mais alto que seu custo social, enquanto os subsídios concedidos à industrialização favoreciam o capital físico. O efeito imediato destas medidas teria sido a baixa absorção de trabalho no setor industrial, que represou volume considerável de mão-de-obra no setor rural, impedindo “a escassez de trabalho que teria induzido a mecanização e outros tipos de modernização” (Schuh, 1975Schuh, G. E. (1975) “A modernização da agricultura brasileira; uma interpretação”, in Contador, R. C. (ed.), Tecnologia e desenvolvimento agrícola, Rio de Janeiro, IPEA/INPES, pp. 7-45., p. 15).

Smith (1969Smith, G. W., (1969) “Brazilian agricultural policy: 1950-67”, in Ellis, H. S. (ed.), Essays on the economy of Brazil, Berckeley, Univ. of California Press.) é um dos grandes críticos das políticas voltadas para a agricultura entre 1950 e 1967. Ele destaca que a ênfase de tais políticas foi a de utilizar mecanismos de mercado e incentivos econômicos seletivos tradicionais, procurando aumentar o produto agrícola via expansão da área utilizada e procurando influir no aumento da produtividade agrícola, sem que isso provocasse um aumento nos preços para os consumidores, via subsídios a insumos modernos. Ele enfatiza que, nos anos 50, era dada ênfase às imperfeições e ineficiências da comercialização agrícola, destacando-se problemas de transporte, estocagem e oligopólio dos intermediários que participavam na comercialização agrícola. Outro instrumento utilizado era a política de subsídios ao uso de insumos modernos, sendo então utilizadas taxas de câmbio preferenciais para importações, redução de custo dos fretes e isenção de taxas. Já na década de 60 passa-se a utilizar o subsídio ao crédito rural e a política de preços mínimos, sendo tais instrumentos de política manipulados ano a ano numa tentativa de influenciar a oferta de curto prazo dos produtos agrícolas.

Um dos motivos importantes que explica a ênfase de política agrícola no Brasil, nas décadas de 50 e 60, é, segundo Smith (1969Smith, G. W., (1969) “Brazilian agricultural policy: 1950-67”, in Ellis, H. S. (ed.), Essays on the economy of Brazil, Berckeley, Univ. of California Press.), o desejo de se alcançar resultados rápidos, principalmente porque a agricultura só era lembrada em épocas de crise de curto prazo. “(A) agricultura no Brasil tem sido considerada primariamente como uma indústria intermediária, produzindo alimentos e matérias-primas para o produto final, industrialização.” (Smith, 1969Smith, G. W., (1969) “Brazilian agricultural policy: 1950-67”, in Ellis, H. S. (ed.), Essays on the economy of Brazil, Berckeley, Univ. of California Press., p. 262)

Smith (1969Smith, G. W., (1969) “Brazilian agricultural policy: 1950-67”, in Ellis, H. S. (ed.), Essays on the economy of Brazil, Berckeley, Univ. of California Press., p. 214) destaca o pequeno impacto dos incentivos de mercado sobre mudanças nos níveis da produtividade agrícola, sugerindo ações dirigidas para fatores estruturais que retardam a modernização da agricultura brasileira, “educação rural pobre, pesquisa e extensão inefetiva, e mesmo, talvez, a estrutura agrária”.

Estes argumentos de Smith (1969Smith, G. W., (1969) “Brazilian agricultural policy: 1950-67”, in Ellis, H. S. (ed.), Essays on the economy of Brazil, Berckeley, Univ. of California Press.) são complementados por Alves (1980Alves, E. R. A., (1980) A EMBRAPA e a pesquisa agropecuária no Brasil, Brasília, EMBRAPA-DID.) que acrescenta que, além de atribuir às grandes perdas no processo de comercialização a razão principal para as crises na oferta de alimentos, os formuladores de políticas do Brasil na época mais intensa do processo de substituição de importações acreditavam que existia nas gavetas dos pesquisadores brasileiros e nas mãos dos agricultores uma vasta gama de conhecimentos tecnológicos. Daí então os incentivos para expansão dos serviços de extensão rural e ampliação das políticas de preços mínimos, crédito agrícola a taxas de juros subsidiadas e programas especiais, facilitadores da adoção daqueles conhecimentos.

Entre os autores defensores da modernização da agricultura brasileira via utilização de insumos modernos, sem necessidade de reformas estruturais, Nicholls (1972Nicholls, W. H., (1972) “A agricultura e o desenvolvimento econômico do Brasil”, Revista Brasileira de Economia, 26(4): 169-206, out.-dez.) se destaca por procurar buscar na história brasileira os fundamentos dos seus argumentos. Ele reconhece que a atitude predatória dos colonizadores do Brasil é um fator importante para explicar o subdesenvolvimento da sua agricultura, mas que não explica tudo. Mostra que nos Estados Unidos também ocorreu forte exploração dos recursos naturais e forte atividade especulativa. A diferença é encontrada na forma de aplicação dos lucros obtidos nessas atividades predatórias. Nos Estados Unidos eles foram predominantemente utilizados para poupança e formação de capital privado nacional, nos setores agrícola e não-agrícola. No setor agrícola eles foram utilizados na formação de capital tangível e intangível, tendo financiado investimentos em infraestrutura social, como transportes, educação e serviços públicos rurais, o que permitiu, quando a fronteira agrícola do país se esgotou, partir para práticas visando o aumento da produtividade da terra, práticas então já desenvolvidas pela pesquisa, tanto agrícola como industrial (Nicholls, 1972Nicholls, W. H., (1972) “A agricultura e o desenvolvimento econômico do Brasil”, Revista Brasileira de Economia, 26(4): 169-206, out.-dez.).

Já no Brasil, um pouco menos em São Paulo, destaca Nicholls (1972Nicholls, W. H., (1972) “A agricultura e o desenvolvimento econômico do Brasil”, Revista Brasileira de Economia, 26(4): 169-206, out.-dez.), os lucros foram utilizados no “consumo conspícuo”, tanto público como privado. Ele destaca que a estagnação no nível de produtividade da terra é explicada no Brasil pela abundância de terra, já que a fronteira agrícola ainda não se esgotou. Mas ele teme que quando se tornarem necessários os diversos serviços rurais que deixaram de ser realizados pela negligência ocorrida, as necessidades dos agricultores não poderão ser atendidas.

Além das políticas econômicas, Nicholls (1972Nicholls, W. H., (1972) “A agricultura e o desenvolvimento econômico do Brasil”, Revista Brasileira de Economia, 26(4): 169-206, out.-dez.) destaca um fator que considera fundamental para explicar o atraso da produtividade do setor agrícola brasileiro: uma tendência, tal qual a agricultura do Sul dos Estados Unidos, a intensificar o uso de mão-de-obra desde a implantação do sistema de plantation que resolvia seu problema de escassez de mão-de-obra com a escravatura. Isto tinha como consequência a não-necessidade de utilização de técnicas poupadoras de trabalho, como também “criava uma atitude que visualizava o escravo como um insumo incapaz de melhoria tecnológica, quer diretamente, quer em termos de equipamento com que trabalhava. Determinava também uma organização social desfavorável à educação das massas e a outros serviços sociais essenciais ... “ (Nicholls, 1972Nicholls, W. H., (1972) “A agricultura e o desenvolvimento econômico do Brasil”, Revista Brasileira de Economia, 26(4): 169-206, out.-dez., p. 175).

Do mesmo modo que Schuh (1975Schuh, G. E. (1975) “A modernização da agricultura brasileira; uma interpretação”, in Contador, R. C. (ed.), Tecnologia e desenvolvimento agrícola, Rio de Janeiro, IPEA/INPES, pp. 7-45.), Nicholls (1972Nicholls, W. H., (1972) “A agricultura e o desenvolvimento econômico do Brasil”, Revista Brasileira de Economia, 26(4): 169-206, out.-dez.) destaca a importância do fortalecimento das indústrias de bens agrícolas, da melhoria dos níveis educacionais das áreas rurais e do fortalecimento da infraestrutura de pesquisa agrícola no processo de modernização da agricultura. Também reconhece que o processo de modernização da agricultura implicará maior liberação de mão-de-obra do setor agrícola para o não-agrícola, mas que medidas devem ser tomadas neste setor para maior absorção da mão-de-obra liberada.

Schuh (1975Schuh, G. E. (1975) “A modernização da agricultura brasileira; uma interpretação”, in Contador, R. C. (ed.), Tecnologia e desenvolvimento agrícola, Rio de Janeiro, IPEA/INPES, pp. 7-45.) mostra-se cético quanto à eficácia de políticas de reforma agrária, preferindo mostrar a maior eficiência das políticas que visam modernizar a agricultura via uso de insumos industriais. Ele acredita que “(a) modernização da agricultura, com sua consequente redução nos preços reais dos produtos, resulta numa distribuição dos frutos do progresso técnico em favor das classes de renda baixa” (Schuh 1971Schuh, G. E. & Alves, E. R. A., (1971) O desenvolvimento da agricultura no Brasil, Rio de Janeiro, APEC., p. 66).

Posição bastante semelhante a esta é defendida por Nicholls (1972Nicholls, W. H., (1972) “A agricultura e o desenvolvimento econômico do Brasil”, Revista Brasileira de Economia, 26(4): 169-206, out.-dez., p. 206) que defende que “não são as distorções e as iniquidades da estrutura agrária, nem a falta de espírito inovador empresarial, de parte dos proprietários rurais grandes ou pequenos, que farão da agricultura o ‘calcanhar-de-aquiles’ do desenvolvimento econômico brasileiro”. Para defender tal posição ele pressupõe que as estruturas rurais, em sua quase totalidade, são o resultado, ao invés da causa, das técnicas primitivas de produção. Como os produtores rurais respondem a preços e buscam lucros máximos, cabe ao governo tornar pois disponíveis as técnicas modernas, oferecer orientação técnica e tornar as relações de preços de insumos e produtos favoráveis aos produtores.

Schuh (1975Schuh, G. E. (1975) “A modernização da agricultura brasileira; uma interpretação”, in Contador, R. C. (ed.), Tecnologia e desenvolvimento agrícola, Rio de Janeiro, IPEA/INPES, pp. 7-45.) não trabalha com tal causalidade entre técnicas primitivas de produção e estrutura rural, preferindo utilizar a hipótese de Schultz (1965Schultz, T. W. (1965) A transformação da agricultura tradicional, Rio de Janeiro, Zahar) de que os produtores rurais que usam técnicas tradicionais podem ser eficientes, já que a taxa de retorno dos investimentos em tecnologias modernas pode ser inferior à dos investimentos em tecnologias tradicionais. Uma das funções do governo é então a de tornar viáveis os investimentos em tecnologias modernas.

O ponto chave é, no entanto, que tanto Schuh (1971Schuh, G. E. & Alves, E. R. A., (1971) O desenvolvimento da agricultura no Brasil, Rio de Janeiro, APEC.) como Nicholls (1972Nicholls, W. H., (1972) “A agricultura e o desenvolvimento econômico do Brasil”, Revista Brasileira de Economia, 26(4): 169-206, out.-dez.), partindo de suposições diferentes, chegam à mesma conclusão da necessidade da modernização da agricultura brasileira, sem que para isso julguem necessário uma reforma na estrutura agrária. Já a posição de Furtado (1982Furtado, C., (1982) “A estrutura agrária no desenvolvimento brasileiro”, in Análise do modelo brasileiro, 7.ª ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.), partindo de hipótese exatamente oposta à de Nicholls (1972Nicholls, W. H., (1972) “A agricultura e o desenvolvimento econômico do Brasil”, Revista Brasileira de Economia, 26(4): 169-206, out.-dez.), ou seja, a de que as técnicas primitivas de produção são resultado da estrutura agrária que se formou no Brasil, é a de que a modernização da agricultura brasileira não atingirá seus propósitos, uma vez seja mantida a estrutura rural do país, devendo-se, é claro, incluir entre estes propósitos a distribuição dos benefícios da modernização da agricultura em favor das classes de renda baixa.

ABUNDÂNCIA DE TERRA E MÃO-DE-OBRA

Schuh (1975Schuh, G. E. (1975) “A modernização da agricultura brasileira; uma interpretação”, in Contador, R. C. (ed.), Tecnologia e desenvolvimento agrícola, Rio de Janeiro, IPEA/INPES, pp. 7-45.) também dá ênfase, na explicação da não-modernização da agricultura brasileira até meados dos anos 60, ao não-aparecimento de escassez de terra e mão-de-obra rural. As terras foram postas em cultivo no Brasil, segundo ele, mais ou menos no mesmo ritmo em que se expandia a demanda efetiva do produto agrícola. A fronteira agrícola afastava-se, na verdade, cada vez mais dos centros urbanos, mas isto não implicava preços de alimentos significantemente mais altos, já que as terras férteis do Paraná, do Sul do Mato Grosso e de Goiás tornavam-se disponíveis, ao mesmo tempo que o progresso tecnológico que ocorria no setor de transportes contrabalançava a elevação de custos que poderia ocorrer devido às distâncias mais longas e o deslocamento simultâneo de populações marginais do Nordeste e do Rio Grande do Sul evitava o aumento do preço da mão-de-obra rural. Ele considera então o modelo de inovação induzida de Hayami e Ruttan (1971Hayami, Y. & Ruttan, V. W., (1971) Agricultural development: an international perspective, Baltimore, J. Hopkins.) útil para explicar a falta de modernização da agricultura brasileira, já que ela não deu nenhum sinal, em termos de sua dotação relativa de fatores, que indicasse o caminho eficiente para a modernização e crescimento do produto.

Diversos outros autores da linha de pensamento neoclássica, defensores da modernização da agricultura brasileira, consideram racionais as políticas econômicas direcionadas para o setor agrícola do Brasil, já que elas procuravam poupar o fator escasso, capital, e se baseavam na utilização intensiva de trabalho e terra, fatores abundantes.5 5 Além de Nicholls (1967, 1972) e Schuh (1971, 1973, 1975) ver, entre outros, Alves e Pastore (1980); Alves e Pastore (1975); Pastore, Alves e Rizzieri (1974); Barros, Pastore e Rizzieri (1977); e Alves (1980). Este tipo de abordagem deixa de lado os diversos fatores que cumulativamente foram tornando, em termos econômicos, a terra e a mão-de-obra abundantes no Brasil, e paralelamente formando o tipo de estrutura agrária que prevaleceria no país. O que geralmente é feito é tomar como ponto de partida de análise a situação prevalecente em determinado ponto no tempo, como após a Segunda Grande Guerra; identificar a existência de não escassez de terra e mão-de-obra; analisar as políticas utilizadas; mostrar que em termos globais a agricultura não deixou de cumprir as funções que dela se esperava (fornecer alimentos e matérias-primas, liberar mão-de-obra, transferir capital e fornecer divisas) e chegar então à conclusão que se, em geral, ela não se modernizou foi porque existia abundância de terra e mão-de-obra, não se constituindo a estrutura agrária fator relevante no processo.

Este tipo de abordagem pode ser contrastado com a abordagem de Furtado (1982Furtado, C., (1982) “A estrutura agrária no desenvolvimento brasileiro”, in Análise do modelo brasileiro, 7.ª ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.), que, ao explicar o desenvolvimento da economia brasileira tendo por base uma agricultura que praticamente não absorve progresso técnico, destacou três causas principais: a abundância de terras de que dispõe a empresa agromercantil, a existência de uma fronteira móvel e o crescimento da população trabalhadora rural. A abundância de terras e de mão-de-obra considerada pelos adeptos da “teoria da modernização” está contemplada nas duas últimas causas destacadas por Furtado. Uma das grandes diferenças entre as duas abordagens está na primeira causa, a ampla fronteira interna de que dispõe cada um dos grandes proprietários rurais no Brasil.

Furtado (1982Furtado, C., (1982) “A estrutura agrária no desenvolvimento brasileiro”, in Análise do modelo brasileiro, 7.ª ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.) vai buscar na história os fundamentos para a extrema concentração de terras nas mãos de uma minoria. As terras eram abundantes no Brasil, mas como o acesso à sua propriedade era limitado à grande empresa agromercantil, tornava-se ela escassa para o trabalhador livre, a quem restava a alternativa de se integrar a essa empresa em quaisquer das formas de relação de trabalho disponíveis ou a se tornar um roceiro itinerante em terras marginais. O controle do acesso à terra constitui então um fator fundamental na implantação do sistema de produção que utiliza a prática da agricultura itinerante, dentro de grandes propriedades, que imobiliza grandes quantidades de terra e perpetua técnicas agrícolas rudimentares, e entre os pequenos produtores ou sitiantes, que ocupam terras ainda não alcançadas pela empresa agromercantil, deslocando-se para novas terras assim que aquelas então ocupadas são reclamadas pelos proprietários, o que explica também o uso de técnicas rudimentares.

Para Furtado (1982Furtado, C., (1982) “A estrutura agrária no desenvolvimento brasileiro”, in Análise do modelo brasileiro, 7.ª ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.), a estrutura agrária existente explica a não modernização da agricultura, desempenhando a fronteira interna (à grande propriedade agrícola) papel fundamental no processo e explicando a abundância de mão-de-obra, que é abundante devido ao tipo de agricultura desenvolvido.

Schuh (1975Schuh, G. E. (1975) “A modernização da agricultura brasileira; uma interpretação”, in Contador, R. C. (ed.), Tecnologia e desenvolvimento agrícola, Rio de Janeiro, IPEA/INPES, pp. 7-45.) e os autores acima citados· procuram encontrar coerência entre a não-modernização da agricultura brasileira até meados da década de 60 e a hipótese da inovação induzida de Hayami e Ruttan (1971Hayami, Y. & Ruttan, V. W., (1971) Agricultural development: an international perspective, Baltimore, J. Hopkins.). A abundância de terra e mão-de-obra teria sinalizado, via preços relativos dos fatores, para que as políticas direcionais à agricultura poupassem capital, fator escasso, e utilizassem mais trabalho e terra, fatores abundantes. Na verdade, o que se faz é partir de um ponto no tempo, detectar (ou mesmo assumir) que tais fatores são abundantes, e, sem tentar explicar o processo que deu origem a tal abundância dos fatores, defender que a agricultura não se modernizou porque não existiu nenhuma pressão de origem endógena à própria agricultura que deflagrasse o processo de modernização.6 6 Às vezes esses fatores são identificados e mesmo destacados por aqueles autores neoclássicos que procuram realizar suas análises a partir da fase colonial brasileira. Mas estes fatores não são incluídos nos modelos utilizados para análise. Ver, por exemplo, Nicholls (1972) e Alves e Pastore (1975). Não se questiona sobre a ocorrência de forças de natureza exógena que tivessem inibido o aparecimento de tais pressões. Ou, quando muito, se indaga, sem procurar respostas, por que determinada pressão não provocou o resultado esperado, como fazem Alves e Pastore (1980Alves, E. R. A. & Pastore, A. C., (1980) “A política agrícola do Brasil e a hipótese da inovação induzida”, in Alves, E. R. A. et alii, Coletânea de trabalhos sobre a EMBRAPA, Brasília, EMBRAPA-DID, pp. 9-20., p. 11) que perguntam “(por) que a pressão para conquista da fronteira agrícola - inegavelmente um sinal de que a terra está ficando escassa - não se traduziu num apelo para o desenvolvimento de tecnologias poupadoras de terra?”.

Na verdade, para não tornar a primeira parte desta subseção incongruente com o que se está a afirmar agora, as políticas econômicas, principalmente as dirigidas para o setor agrícola, são consideradas também importantes para explicar parte do processo, só que as políticas pós-Segunda Grande Guerra, geralmente relacionadas ao processo de industrialização via substituição de importações. Mas, então, terra e mão-de-obra já podem ser consideradas abundantes! Por que não explicar que as políticas que procuravam tornar as terras disponíveis na época da ocupação do solo brasileiro (construção de ferrovias e estradas, por exemplo) são em muito responsáveis pelo não aparecimento de escassez (econômica) de terras no Brasil? Por que não destacar que a concessão de grande quantidade de terra a pessoas financeiramente bem-dotadas explica muito do sistema de produção então utilizado, onde parte das terras era mantida em descanso, sendo o restante utilizado na produção de um grande produto de exportação?

Sabe-se que a agricultura prosperou inicialmente no Nordeste do Brasil, principalmente com a cana-de-açúcar, foi ocupando novas fronteiras, pelo litoral, até chegar ao Sudeste. Será que todos os produtores do Nordeste transferiam suas produções para novas propriedades à medida que a fronteira externa (a propriedade) se deslocava? Ou a maior parte deles continuava produzindo em suas propriedades, ocupando suas fronteiras internas? Essas fronteiras internas não se esgotavam? Por que a não realização de investimentos, principalmente aqueles visando economizar terra, em suas propriedades? E sobre mão-de-obra, foi ela sempre abundante no Brasil? A escravidão e políticas outras utilizadas para “importação” de mão-de-obra no Brasil explicam o não-aparecimento de escassez de trabalho na agricultura brasileira, tendo contribuído para isto também as políticas que incentivavam as migrações internas no Brasil.

Fica muito difícil tentar responder às perguntas acima sem considerar o tipo de ocupação de terras que historicamente ocorreu no Brasil, as políticas direcionadas para possibilitar tal ocupação, o tipo de estrutura agrária que resultou, os interesses daqueles envolvidos no processo. Esquecendo-se a ação de tais fatores, e aqueles a ele relacionados, até a década de 40, é possível atribuir à abundância de terra e mão-de-obra (em termos econômicos, consequência da ação daqueles fatores) a não-modernização da agricultura brasileira.

Ainda mais interessante é o argumento defendido de que a política seguida, que conduziu a uma agricultura pouco capitalista, utilizando intensamente os fatores abundantes terra e trabalho, ajusta-se bem ao modelo de trabalho, ajusta-se bem ao modelo de inovação induzida de Hayami e Ruttan (1971Hayami, Y. & Ruttan, V. W., (1971) Agricultural development: an international perspective, Baltimore, J. Hopkins.).7 7 Como o faz, por exemplo, Schuh (1975) e Alves e Pastore (1980). Uma das hipóteses utilizadas pelos autores deste modelo é que “ ... (a) mudança técnica é guiada em torno de um caminho eficiente por sinais de preços no mercado, dado que os preços reflitam eficientemente mudanças na demanda e oferta de produtos e fatores ... “ (Hayami e Ruttan, p. 57). Ou ainda, eles consideram no modelo que “ ... as mudanças técnicas e institucionais são induzidas por forças econômicas que refletem a demanda do produto, alocação original de recursos e acumulação de recursos associados com o processo histórico de desenvolvimento econômico” (Hayami e Ruttan, p. 14).

Observando-se o processo histórico de ocupação de terras no Brasil, poder-se-á verificar que, da época colonial até meados da década de 60, ocorreram políticas voltadas exclusivamente para não tornar escassas quer a terra, quer o trabalho. É claro que o conceito de escassez de fator utilizado por Hayami e Ruttan (1971Hayami, Y. & Ruttan, V. W., (1971) Agricultural development: an international perspective, Baltimore, J. Hopkins.) é econômico, não físico. Assim sendo, os investimentos de construção de ferrovias e rodovias, prioritários no período acima considerado, tiveram por resultado tornar a terra sempre disponível no Brasil, influindo, pois, diretamente na dotação original do fator e no seu preço.

Esse tipo de política foi também utilizado nos Estados Unidos, e não tem nada de irracional, na medida em que o fator terra é abundante. No entanto os efeitos da política são bastante diferentes nos dois países. O modo em que ocorreu a ocupação de terras nos dois países explica muito dos resultados divergentes de um mesmo tipo de política. Como nos Estados Unidos a ocupação se deu por vias não concentradoras da posse de terras, as políticas que visavam tornar as novas fronteiras disponíveis não provocavam efeitos desestimuladores de adoção de novas tecnologias de produção pelos proprietários, já que as fronteiras internas das suas propriedades, por não serem de grande extensão, tendiam a ser ocupadas rapidamente. Já no Brasil, onde predominou, como já salientado, o sistema de ocupação de terras via grandes empresas agromercantis, a construção de rodovias e ferrovias contribuía, dada a concentração de posse de grandes extensões de terras nas mãos de poucos, para a utilização de métodos tradicionais de cultivo e criação, já que as políticas de transportes contribuíam para tornar disponíveis novas fronteiras internas às propriedades, permitindo que extensões de terra até então utilizadas pudessem ser colocadas em descanso, incentivando pois um tipo de agricultura itinerante. As amplas fronteiras internas de que dispunham os grandes proprietários de terras no Brasil contribuíram para que as políticas de transportes adotadas tenham estimulado, por um longo tempo, a utilização de técnicas tradicionais de cultivo e criação na agricultura brasileira.

A conclusão semelhante pode-se chegar no que se refere ao fator trabalho. A escravidão contribuiu para abastecer tanto o Nordeste como o Sul do Brasil com a mão-de-obra de que se precisava. Já a partir da proibição do tráfico de escravos, pode-se contar, no Sul do país, com a política de imigração do governo provincial, que, segundo Resende (1980Resende, G. C., (1980) “Trabalho assalariado, agricultura de subsistência e estrutura agraria no Brasil; uma análise histórica”, Pesquisa e Planejamento Econômico, 9(1): 179-216, abr.) foi de tal modo efetiva que em 1878 o Estado de São Paulo estava de tal forma abastecido de imigrantes, que os escravos não eram mais essenciais à continuação da sua prosperidade. A política de imigração foi conduzida de modo a “importar” trabalhadores em grande quantidade, de tal sorte a fornecer mão-de-obra abundante e barata para a expansão da indústria cafeeira. Resende (1980Resende, G. C., (1980) “Trabalho assalariado, agricultura de subsistência e estrutura agraria no Brasil; uma análise histórica”, Pesquisa e Planejamento Econômico, 9(1): 179-216, abr., p. 190) destaca que a mão-de-obra era escolhida na Europa entre os mais pobres, “tão pobres que nem podiam comprar suas próprias terras nem abrir pequenos negócios, sendo em vez disso obrigados a trabalhar nas plantações”. Já no Nordeste do Brasil, quando da abolição dos escravos, Resende (1980Resende, G. C., (1980) “Trabalho assalariado, agricultura de subsistência e estrutura agraria no Brasil; uma análise histórica”, Pesquisa e Planejamento Econômico, 9(1): 179-216, abr., p. 205) destaca que as terras de mais fácil uso já estavam ocupadas. Nas zonas urbanas já se contava com excedente de população, que “desde o início do século XIX constituía um problema social”. Isso tudo explica o fato de a antiga força escrava ter sido facilmente tornada assalariada mediante um salário relativamente baixo e de a economia de subsistência ter se expandido a grandes distâncias e “os sintomas da pressão demográfica sobre as terras semiáridas do agreste e da caatinga se fazerem sentir claramente”.

As políticas descritas nos dois parágrafos anteriores podem pois ser consideradas essenciais para o não-aparecimento de escassez de terra e mão-de-obra no setor agrícola brasileiro.8 8 Sem deixar de considerar os demais fatores considerados anteriormente. E, por trás de tais políticas, fica claro que existia um objetivo de não modernizar a agricultura. É difícil pois aceitar a não-modernização do setor agrícola no Brasil como oriunda de um processo endógeno ao próprio setor. É fácil aceitar que as políticas acima mencionadas afetaram os preços dos fatores terra e trabalho, tornando-os mais baixos do que aqueles que vigorariam caso fosse respeitada a dotação original de fatores. São estes últimos os preços considerados por Hayami e Ruttan (1971Hayami, Y. & Ruttan, V. W., (1971) Agricultural development: an international perspective, Baltimore, J. Hopkins.). Também não se pode aceitar a tese de que tais políticas estimularam o uso de fatores abundantes no Brasil como fazem Alves e Pastore (1980Alves, E. R. A. & Pastore, A. C., (1980) “A política agrícola do Brasil e a hipótese da inovação induzida”, in Alves, E. R. A. et alii, Coletânea de trabalhos sobre a EMBRAPA, Brasília, EMBRAPA-DID, pp. 9-20.), mas sim que elas contribuíram para tornar abundantes fatores cuja escassez poderia ter deflagrado a modernização da agricultura brasileira desde o início da colonização do Brasil (como poderia ter sido o caso do trabalho). Pode-se aceitar que tais políticas podem ter sido racionais, mas dentro dos objetivos públicos e privados de então: produzir produtos agrícolas de exportação com os menores custos possíveis. Fica implícito que os custos com os investimentos em ferrovias e estradas e com a “importação” de escravos e depois imigrantes eram mais baixos que os custos em que se incorreria com investimentos que possibilitassem modernizar a agricultura poupando os fatores que fossem relativamente mais escassos.

A partir do início do processo de industrialização brasileira, boa parte dos autores neoclássicos, defensores da “teoria da modernização da agricultura”, consideram que as políticas econômicas discriminam contra a agricultura, por incentivar a manutenção do seu atraso tecnológico, considerando-as ao mesmo tempo racionais, por incentivar o uso na agricultura dos fatores abundantes terra e trabalho. Ao verificar que em certos estados, como São Paulo e Rio Grande do Sul, foram tomadas, já bem antes da década de 60, medidas visando aumentar a produtividade da agricultura, autores como Schuh (1975Schuh, G. E. (1975) “A modernização da agricultura brasileira; uma interpretação”, in Contador, R. C. (ed.), Tecnologia e desenvolvimento agrícola, Rio de Janeiro, IPEA/INPES, pp. 7-45.) e Alves e Pastore (1975Alves, E. R. A. & Pastore, J., (1975) Uma nova abordagem para a pesquisa agrícola no Brasil, São Paulo, USP/IPE.) procuram explicar tais fatos afirmando que, principalmente em São Paulo, ocorreu uma escassez precoce de trabalho e terra, o que levou à utilização de tecnologias biológicas e químicas e também da mecanização. Para explicar a escassez de terra, eles trabalham com o esgotamento da fronteira externa (à propriedade) no estado de São Paulo. Não é dada explicação para a escassez de mão-de-obra, que só pode ser de curto prazo, já que eles reconhecem que nas demais regiões, principalmente no Nordeste, continuava a mão-de-obra a ser abundante, e o processo migratório, intenso, interregionalmente.

Voltando-se à época da introdução da cultura de algodão em São Paulo, em meados dos anos 30, pode-se verificar que seu cultivo já era feito com o uso de tecnologia química e biológica, poupadora de terra, sendo que as despesas com o programa de pesquisa com algodão, nessa época, já eram, de acordo com Ayer e Schuh (1972Ayer, H. W. & Schuh, G. E., (1971) “Social rate of return and aspects of agricultural research: The case of cotton research in São Paulo, Brazil”, American Journal of Agricultural Economics, 54(4): 557-69.), maiores do que todos os gastos com a pesquisa de milho híbrido nos Estados Unidos. Neste período, se for analisada a disponibilidade de terras ao nível de propriedade (fronteira interna), descobrir-se-á que era imensa, já que é a época em que o café avança para o Paraná, deixando para trás terras abandonadas.

Szmrecsányi (1983Szmrecsányi, T., (1983) “Análise crítica das políticas para o setor agropecuário”, in Szmrecsányi, T., Análises de economia agrícola e da questão fundiária. Campinas, UNICAMP, pp. 15-40 (Cadernos IFCH).), trabalhando com dados do Ministério da Agricultura sobre aptidão de solos para culturas de ciclo curto, em sistemas de manejo tradicional e avançado, dados esses referentes a 1975, conclui que “os solos de melhor qualidade são bastante escassos e se encontram espacialmente concentrados em alguns poucos estados como São Paulo e Paraná ... (havendo entretanto) possibilidades de se expandir as áreas de lavouras em quase todos os estados ... mesmo sob o sistema de manejo tradicional” (Szmrecsányi, 1983Szmrecsányi, T., (1983) “Análise crítica das políticas para o setor agropecuário”, in Szmrecsányi, T., Análises de economia agrícola e da questão fundiária. Campinas, UNICAMP, pp. 15-40 (Cadernos IFCH)., pp. 57-60). As exceções citadas são os estados de Maranhão e Bahia.

Deve ser, pois, baseando-se nas informações acima, muito pequena a probabilidade de erro ao afirmar-se que existiam terras disponíveis, nas fronteiras internas das propriedades, nos anos anteriores a 1975, inclusive terras de qualidade, na maioria dos estados brasileiros.

O PROCESSO DE MODERNIZAÇÃO DA AGRICULTURA BRASILEIRA A PARTIR DE MEADOS DOS ANOS 60

A partir de meados dos anos 60 parece ficar claro que a produtividade da agricultura brasileira precisava ser aumentada e que era falacioso acreditar que isto poderia ocorrer via utilização de um suposto estoque de conhecimentos que existiria nas instituições públicas relacionadas à agricultura e nas mãos dos agricultores “mais progressistas”. Também ficava claro que a pesquisa agrícola era específica ao local, o que implicava enormes investimentos a serem feitos na geração e adaptação de tecnologias agrícolas importadas de outros países.

Escrevendo em 1968, Nicholls afirmava que o Brasil se defrontava com uma escolha difícil entre equidade e produtividade, sendo que o problema de equidade não encontraria soluções no setor agrícola. Para esse setor, e para o setor industrial, o objetivo principal devia ser o aumento de produtividade. “Tendo negligenciado por longo tempo a infraestrutura rural, (o) Brasil tem que olhar agora para seus médios e grandes produtores como o principal instrumento pelo qual pode encontrar melhorias essenciais na produtividade agrícola (e especialmente produtividade do trabalho)” (Nicholls, 1968Nicholls, W. H., (1972) “A agricultura e o desenvolvimento econômico do Brasil”, Revista Brasileira de Economia, 26(4): 169-206, out.-dez., p. 8).

Schuh (1971Schuh, G. E. & Alves, E. R. A., (1971) O desenvolvimento da agricultura no Brasil, Rio de Janeiro, APEC.), escrevendo entre 1966 e 1969, procura também mostrar que a modernização da agricultura é o caminho a ser seguido. Destaca a importância do fortalecimento das indústrias de bens agrícolas, da melhoria dos níveis educacionais e do fortalecimento da infraestrutura de pesquisa agrícola no processo de modernização da agricultura. Reconhece que o processo de modernização implicará maior liberação de mão-de-obra do setor agrícola para o não-agrícola, mas que medidas devem ser tomadas nesse setor para maior absorção da mão-de-obra liberada. Mostra-se cético quanto à eficácia de políticas de reforma agrária, defendendo políticas que beneficiem o uso de insumos industriais na agricultura. Apesar de reconhecer que a abundância de terras deve ter se constituído num dos fatores importantes a explicar a não modernização da agricultura brasileira, não aceita ele a justificativa da existên­cia de abundância de terras como fator impeditivo da adoção de políticas que beneficiem a pesquisa agrícola.

Delfim Netto, escrevendo em 1962, já sugeria que maior atenção deveria ser dada à agricultura, principalmente ao nível técnico de mão-de-obra, ao nível da mecanização (às vezes um simples equipamento com tração animal), ao nível de utilização de adubos e à existência de variedades adequadamente selecionadas.

São argumentos como esses três últimos apresentados que passam a influenciar o rumo dado à agricultura brasileira a partir de meados dos anos 60. Isso está claramente expresso nas linhas principais de política resumidas por Alves e Pastore (1980Alves, E. R. A. & Pastore, A. C., (1980) “A política agrícola do Brasil e a hipótese da inovação induzida”, in Alves, E. R. A. et alii, Coletânea de trabalhos sobre a EMBRAPA, Brasília, EMBRAPA-DID, pp. 9-20., p. 14), reproduzidas a seguir. Segundo eles, a política está baseada nos seguintes pontos:

  1. a promoção da produção é o objetivo central;

  2. o incremento da produção, na escala necessária, não se pode fazer apenas em função da área agricultável. É preciso engendrar um processo autossustentado de aumento da produtividade agrícola;

  3. a modernização da agricultura, conjugada com o aperfeiçoamento dos mercados de trabalho e de capital, ensejará o melhoramento do padrão de vida da população rural, não sendo necessária a realização de reformas profundas;

  4. o aumento da produtividade pode ser obtido através de instrumentos, como preços mínimos, crédito rural e programas intensos de assistência técnica e de pesquisa;

  5. nas regiões em que a estrutura agrária é impeditiva à modernização, será implantada reforma agrária de caráter limitado, cujo objetivo central será o aumento da produtividade e não a distribuição de justiça social.

Vale a pena citar também o comentário apresentado após a apresentação desses pontos: “Sendo o objetivo central o aumento da produção a curto prazo, é natural concentrarem-se esforços nos grupos de agricultores que têm maior capacidade de absorver a tecnologia existente e de dar resposta rápida aos incentivos do Governo. Estes grupos de agricultores, inegavelmente, pertencem aos estratos dos médios e grandes proprietários”. (Alves e Pastore, 1980Alves, E. R. A. & Pastore, A. C., (1980) “A política agrícola do Brasil e a hipótese da inovação induzida”, in Alves, E. R. A. et alii, Coletânea de trabalhos sobre a EMBRAPA, Brasília, EMBRAPA-DID, pp. 9-20., p. 15)

Pelo que foi apresentado até este ponto, nesta seção, espera-se que tenha ficado claro que os argumentos não seguem mais necessariamente os fundamentos originais da “teoria da modernização”, tais quais concebidos por Schultz (1965Schultz, T. W. (1965) A transformação da agricultura tradicional, Rio de Janeiro, Zahar), já que este não previa que apenas os grandes e médios agricultores respondessem a estímulos de mudanças na agricultura. O que foi feito no Brasil foi procurar moldar o processo de modernização à estrutura agrária existente, buscando a aceleração da utilização de técnicas modernas na agricultura via fortes subsídios beneficiando, em especial, grandes e médios produtores rurais. Os instrumentos de política utilizados, crédito rural, preços mínimos e extensão rural moldaram-se muito bem aos objetivos pretendidos, beneficiando os grandes e médios agricultores.

A partir do momento em que se decide acelerar o processo de modernização da agricultura brasileira, utilizando-se subsídios ao crédito rural para incentivar o uso de insumos modernos, chegando-se mesmo a taxas de juros nominais iguais a zero no caso de financiamentos para aquisição de fertilizantes, fica difícil continuar defendendo que o desenvolvimento da agricultura no Brasil se ajusta bem ao modelo de inovação induzida de Hayami e Ruttan (1971Hayami, Y. & Ruttan, V. W., (1971) Agricultural development: an international perspective, Baltimore, J. Hopkins.). Se, através de políticas econômicas, são alterados os preços relativos dos fatores para permitir o uso de alguns deles, que em termos do país são os mais escassos, como defender que a dotação original de fatores, via sinalização de preços relativos, está a indicar o caminho a ser seguido no encaminhamento de tecnologia para o setor agrícola brasileiro?9 9 A não ser que a presença de proteção à indústria nacional corrija os preços relativos.

O próprio direcionamento do processo de modernização para os grandes e médios produtores já traz embutidos em si alguns vieses que orientarão o tipo de tecnologia a ser utilizado. Um primeiro é no sentido de mecanizar a produção, principalmente no que se refere ao preparo da terra para cultivo, pois só assim se toma viável a utilização de vastas áreas dentro de uma mesma propriedade. O objetivo de grandes ganhos conduz necessariamente os grandes empreendimentos agrícolas na direção de produtos largamente comercializados, no mercado interno e externo. A disponibilidade de tecnologia no exterior conduz à produção de itens agrícolas, como trigo e soja, que utilizam inclusive a mecanização na colheita, que é indubitavelmente poupadora de mão-de-obra. A utilização de vastas áreas introduz também o uso de herbicidas, também poupador de mão-de-obra. A utilização da terra duas vezes no ano, com culturas de verão (como soja e milho) e culturas de inverno (como o trigo) na região Centro-Sul, junto com a utilização de vastas áreas numa mesma propriedade, também conduz ao uso de tecnologias poupadoras de mão-de-obra.

Não se pode afirmar que o direcionamento do processo de modernização da agricultura para os grandes e médios produtores estimule o uso de tecnologias poupadoras de terra, principalmente quando se dispõe de áreas de boa qualidade, como era o caso das regiões Sul e Sudeste do Brasil. No entanto, a aceleração do processo de modernização da agricultura brasileira se realiza numa época em que a tecnologia agrícola se direcionava, em termos internacionais, pesadamente para o uso de insumos industriais poupadores de terra. Era a época do que ficou conhecido como a “revolução verde”, onde novas cultivares, desenvolvidas em países como Estados Unidos e México, eram transferidas e cultivadas com relativo sucesso em países tropicais. A disponibilidade de tal tecnologia influenciou muito, como acima mencionado, os produtos que passaram a ser cultivados nas grandes e médias propriedades (como soja, trigo, milho, além do café e cana-de-açúcar), levando inclusive à utilização de técnicas poupadoras de terra, apesar das vastas extensões de áreas em nível de propriedade. O uso destas técnicas foi também muito influenciado pela concessão de subsídios pelo governo.

Outro fato que também não é muito explicitado é o que ocorria na economia nacional em meados dos anos 60. Passa-se de um modelo de substituição de importações para um de promoção de exportações, sem retirar-se a proteção à indústria doméstica. Opta-se por maiores taxas de crescimento econômico, deixando-se uma melhor divisão da renda nacional para depois. À agricultura cabe uma função mais ativa no processo, demandando insumos e bens industriais em maior escala. A ela, também, cabe o papel relevante na captação de um maior volume de divisas via exportações, tirando vantagens do enorme crescimento do comércio internacional.

A aceleração da modernização da agricultura brasileira é incentivada, pois, em condições bastante específicas. E as especificidades têm de ser consideradas na interpretação do processo de modernização, o que torna bastante ilusório querer que tenham se repetido no Brasil as etapas ocorridas em alguns países mais desenvolvidos.10 10 Procurar interpretar o processo de modernização da agricultura brasileira de acordo com o modelo de inovação induzida de Hayami e Ruttan conduz à busca de situações de escassez de terra e mão-de-obra que, no mínimo, podem ser consideradas polêmicas, reduzindo a plano secundário uma série de fatores que explicam o caráter específico de tal processo.

SUMÁRIO E CONCLUSÕES

Entre meados dos anos 50 e início dos anos 60 ocorreu um debate sobre as possíveis razões que explicariam os baixos níveis de produtividade da agricultura brasileira. Nas políticas agrícolas que se seguiram predominaram as opiniões daqueles autores que não atribuíam importância maior à estrutura agrária prevalecente no Brasil como explicação do atraso tecnológico encontrado na sua agricultura. Segundo eles, as causas principais de tais atrasos podiam ser encontradas nas políticas discriminatórias contra a agricultura que predominaram até então e na abundância de terra e mão-de-obra. Se a agricultura não se modernizou até meados dos anos 60, explicavam tais autores, foi porque as pressões de origem interna (à agricultura) direcionaram o processo para utilizar os fatores abundantes e poupar os fatores escassos (como máquinas e fertilizantes). Em outras palavras, o processo teria se adaptado aos pressupostos da hipótese da inovação induzida de Hayami e Ruttan. Entretanto, esses mesmos autores defendiam a posição que a estrutura agrária não se constituiria em empecilho para a modernização da agricultura brasileira, o que poderia ser feito via uma “revolução” tecnológica, utilizando insumos modernos, sem mexer em tal estrutura agrária.

Neste trabalho foi feita uma crítica a tal interpretação neoclássica do processo de modernização da agricultura brasileira. Recorrendo-se a fatos históricos, chegou-se à conclusão de que a estrutura agrária concentrada, junto com os sistemas de escravidão e imigração utilizados, constituiu-se na explicação principal do tradicionalismo das técnicas usadas na agricultura até meados da década de 60. As políticas econômicas internas, que privilegiavam o setor industrial, junto com a disponibilidade de um “pacote” tecnológico a nível internacional, justificou a aceleração do processo de modernização a partir de então. Fatores exógenos ao setor agrícola contribuíram para deslanchar o processo de modernização da agricultura brasileira. A tecnologia cujo uso passou a ser então incentivado não leva em consideração a dotação natural de fatores, que, dada a estrutura agrária que prevalece, exibe uma ampla disponibilidade de terras nas fronteiras internas de cada grande propriedade e um grande número de trabalhadores rurais sem terras.

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  • Santos, R. F. dos, (1986) Presença de viéses de mudança técnica na agricultura brasileira, São Paulo, USP/IPE (versão preliminar de tese de doutoramento).
  • Schuh, G. E. (1975) “A modernização da agricultura brasileira; uma interpretação”, in Contador, R. C. (ed.), Tecnologia e desenvolvimento agrícola, Rio de Janeiro, IPEA/INPES, pp. 7-45.
  • Schuh, G. E., (1973) “Modernização e dualismo tecnológico na agricultura; alguns comentários”, Pesquisa e Planejamento Econômico, 3(1):51-94, mar.
  • Schuh, G. E. & Alves, E. R. A., (1971) O desenvolvimento da agricultura no Brasil, Rio de Janeiro, APEC.
  • Schultz, T. W. (1965) A transformação da agricultura tradicional, Rio de Janeiro, Zahar
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  • *
    Uma versão mais ampla deste trabalho foi melhorada graças aos comentários dos professores Fernando Homem de Melo, José Juliano de Carvalho Filho e Hélio Nogueira da Cruz. A responsabilidade pela versão final continua cabendo unicamente ao autor.
  • 1
    Será chamado de “teoria da modernização da agricultura” o conjunto de pressupostos contidos nos modelos de conservação, de impacto urbano-industrial, de difusão, de insumos modernos, de inovação induzida, de De Janvry e nas formulações de Pastore, Dias e Castro (1976Pastore, A. C.; Dias, G. L. S. & Castro, M. C. de, (1976) “Condicionantes da produtividade da pesquisa agrícola no Brasil”, Estudos Econômicos, 6(3): 147-82, set.-dez.) e Paiva (1971Paiva, R. M., (1971) “Modernização e dualismo tecnológico na agricultura”, Pesquisa e Planejamento Econômico, 1(2):171-234, dez.). Ver Santos (1986Santos, R. F. dos, (1986) Presença de viéses de mudança técnica na agricultura brasileira, São Paulo, USP/IPE (versão preliminar de tese de doutoramento).) para maiores detalhes.
  • 2
    Pode-se citar, por exemplo, o trabalho de Delfim Netto et alii (1969Delfim Netto, A. et alii, (1969) Agricultura e desenvolvimento, São Paulo, ANPES.), que faz um exaustivo teste da relação entre produção agrícola e preços relativos para a agricultura brasileira, mostrando que a agricultura da região Centro-Sul responde a preços e não conseguindo mostrar que isto acontece na região Nordeste.
  • 3
    Ele trabalha com as regiões Nordeste, Centro-Sul (Minas Gerais, Espírito Santo, Mato Grosso, Goiás, Santa Catarina, Paraná, Rio Grande do Sul, sem São Paulo) e São Paulo.
  • 4
    Ver, entre outros, Alves e Pastore (1975Alves, E. R. A. & Pastore, J., (1975) Uma nova abordagem para a pesquisa agrícola no Brasil, São Paulo, USP/IPE.) e Alves (1983Alves, E. R. A., (1983) O dilema da política agrícola brasileira; produtividade ou expansão da área agricultável, Brasília, EMBRAPA-DID.).
  • 5
    Além de Nicholls (1967Nicholls, W. H., (1967) The transformation of agriculture in a semi-industrialized country; the case of Brazil, Nova York, National Bureau of Economic Research., 1972Nicholls, W. H., (1972) “A agricultura e o desenvolvimento econômico do Brasil”, Revista Brasileira de Economia, 26(4): 169-206, out.-dez.) e Schuh (1971Schuh, G. E. & Alves, E. R. A., (1971) O desenvolvimento da agricultura no Brasil, Rio de Janeiro, APEC., 1973Schuh, G. E., (1973) “Modernização e dualismo tecnológico na agricultura; alguns comentários”, Pesquisa e Planejamento Econômico, 3(1):51-94, mar., 1975Schuh, G. E. (1975) “A modernização da agricultura brasileira; uma interpretação”, in Contador, R. C. (ed.), Tecnologia e desenvolvimento agrícola, Rio de Janeiro, IPEA/INPES, pp. 7-45.) ver, entre outros, Alves e Pastore (1980Alves, E. R. A. & Pastore, A. C., (1980) “A política agrícola do Brasil e a hipótese da inovação induzida”, in Alves, E. R. A. et alii, Coletânea de trabalhos sobre a EMBRAPA, Brasília, EMBRAPA-DID, pp. 9-20.); Alves e Pastore (1975Alves, E. R. A. & Pastore, J., (1975) Uma nova abordagem para a pesquisa agrícola no Brasil, São Paulo, USP/IPE.); Pastore, Alves e Rizzieri (1974Pastore, A. C.; Alves, E. R. A. & Rizzieri, J. A. B., (1974) A inovação induzida e os limites à modernização na agricultura brasileira, São Paulo, USP/IPE, (Trabalho para discussão interna, 25)); Barros, Pastore e Rizzieri (1977Barros, J. R. M. de; Pastore, A. C. & Rizzieri, J. A. B., (1977) “A evolução recente da agricultura brasileira”, in Barros, J. R. M. de & Graham, D. H., Estudos sobre a modernização da agricultura brasileira, São Paulo, USP/IPE, (monográfica, 9).); e Alves (1980Alves, E. R. A., (1980) A EMBRAPA e a pesquisa agropecuária no Brasil, Brasília, EMBRAPA-DID.).
  • 6
    Às vezes esses fatores são identificados e mesmo destacados por aqueles autores neoclássicos que procuram realizar suas análises a partir da fase colonial brasileira. Mas estes fatores não são incluídos nos modelos utilizados para análise. Ver, por exemplo, Nicholls (1972Nicholls, W. H., (1972) “A agricultura e o desenvolvimento econômico do Brasil”, Revista Brasileira de Economia, 26(4): 169-206, out.-dez.) e Alves e Pastore (1975Alves, E. R. A. & Pastore, J., (1975) Uma nova abordagem para a pesquisa agrícola no Brasil, São Paulo, USP/IPE.).
  • 7
    Como o faz, por exemplo, Schuh (1975Schuh, G. E. (1975) “A modernização da agricultura brasileira; uma interpretação”, in Contador, R. C. (ed.), Tecnologia e desenvolvimento agrícola, Rio de Janeiro, IPEA/INPES, pp. 7-45.) e Alves e Pastore (1980Alves, E. R. A. & Pastore, A. C., (1980) “A política agrícola do Brasil e a hipótese da inovação induzida”, in Alves, E. R. A. et alii, Coletânea de trabalhos sobre a EMBRAPA, Brasília, EMBRAPA-DID, pp. 9-20.).
  • 8
    Sem deixar de considerar os demais fatores considerados anteriormente.
  • 9
    A não ser que a presença de proteção à indústria nacional corrija os preços relativos.
  • 10
    Procurar interpretar o processo de modernização da agricultura brasileira de acordo com o modelo de inovação induzida de Hayami e Ruttan conduz à busca de situações de escassez de terra e mão-de-obra que, no mínimo, podem ser consideradas polêmicas, reduzindo a plano secundário uma série de fatores que explicam o caráter específico de tal processo.
  • 12
    JEL Classification: Q11.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 1988
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