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As equações quantitativas e seu alcance analítico

Quantitative equations and their analytical reach

RESUMO

Este artigo apresenta uma revisão da literatura e debates sobre equações quantitativas e teoria monetária. Segue os contornos de uma crítica geral ao conceito de velocidade de circulação do dinheiro e à inconsistência dos pressupostos neoclássicos. E acaba concluindo que as equações quantitativas não são importantes para o desenvolvimento de uma teoria monetária.

PALAVRAS-CHAVE:
Metodologia da economia; história do pensamento econômico; velocidade da circulação da moeda

ABSTRACT

This article presents a review of literature and debates on quantity equations and monetary theory. It follows the outlines of a general critique on the concept of velocity of circulation of money and the inconsistency of the neoclassical assumptions. And it ends up by concluding that quantity equations are not important to the development of a monetary theory.

KEYWORDS:
Economic methodology; history of economic thought; velocity of circulation of money

Ao analisar-se a evolução do pensamento econômico, é comum confundirem-se as inúmeras versões das equações quantitativas com a própria teoria monetária. O ordenamento das principais variáveis que interagem no contexto de uma teoria monetária pode ser, facilmente, representado pela velha equação de troca de Fisher ou por qualquer uma de suas sucedâneas: a equação de saldos de dinheiro de Cambridge ou a formulação-renda de Friedman. O objetivo deste trabalho será, então, o de perquirir o alcance e a validade prática do uso de tais equações.

Na primeira seção, falar-se-á de algumas das diversas interpretações a elas dadas (identidade ou condição-de equilíbrio), bem como do sentido de determinação das variáveis.

Na sequência, far-se-á uma evolução histórica dos conceitos - particularmente da velocidade de circulação do dinheiro - procurando-se mostrar a inconsistência das hipóteses neoclássicas. O debate entre Keynes e Friedman é, neste sentido, bastante ilustrativo.

As conclusões da terceira seção buscam mostrar que as equações quantitativas, entendidas como pontos de equilíbrio, são desnecessárias ao desenvolvimento de uma teoria monetária. Que para esta, o importante é o funcionamento da economia no curto prazo e que o longo prazo friedmaníano está distante da realidade do capitalismo.

1. INTERPRETAÇÕES DADAS ÀS EQUAÇOES QUANTITATIVAS

A mais usual representação das equações quantitativas relaciona o estoque de moeda (M), sua velocidade de circulação (V), a quantidade de bens trocados por dinheiro (Q) e o nível de preços (P): MV=PQ. Sua aparente simplicidade esconde, contudo, uma série de interpretações contraditórias, podendo-se distinguir pelo menos três leituras distintas.

Em primeiro lugar, se V for definido como PQ/M, a equação é apenas tautológica, porque diz que os gastos devem igualar os recebimentos, isto é, que a soma dos pagamentos monetários (MV) deve ser igual ao valor agregado dos bens vendidos (PQ) (Humphrey, 1984Humphrey, Thomas M. (1984) “Algebraic Quantity Equations before Fisher and Pigou”, in Economic Review, set/out/84, vol. 70/5, pp. 13-22., p. 13). Neste sentido, ela é uma identidade válida a todo momento.

Em segundo lugar, se aparece como M=(Q/V)P, onde V é definido independentemente das outras variáveis, ela diz que P deve ajustar-se de modo a igualar M (estoque nominal de moeda) com a demanda real por ele. Esta demanda é dada pela fração 1/V das transações reais Q que o público deseja manter sob a forma de saldos reais de caixa. Resumindo: P é determinado pela oferta nominal de moeda (M) e pela demanda real de dinheiro (Q/V), variando diretamente com o primeiro e inversamente com o último.

Finalmente, ela comporta uma leitura marxiana. Neste caso, o sentido de determinação das variáveis é inverso: “A circulação da moeda supõe a circulação das mercadorias: a moeda faz circular mercadorias que têm preços, ou seja, já idealmente equacionadas com determinadas quantidades de ouro” (Marx, 1859Marx, Karl (1859) Contribuição à Crítica da Economia Política, Livraria Martins Fontes Editora Ltda, São Paulo, 1977., p. 103). Na circulação simples, em que a moeda é o ouro, a quantidade do metal necessário à circulação é função direta da soma total dos preços das mercadorias a realizar - isto é, do nível de preços P multiplicado pela massa das mercadorias que circula Q - e inversa da velocidade de circulação do dinheiro V. “Dada a velocidade da circulação, a massa dos meios de circulação é simplesmente determinada pelos preços das mercadorias. Os preços não são altos ou baixos porque circula mais ou menos dinheiro, mas circula mais ou menos dinheiro na medida em que os preços são altos ou baixos” (idem, pp. 105/6).

Não me parece errado afirmar, então, que a equação quantitativa em Marx representa somente uma situação de equilíbrio enunciada em condições teóricas afastadas da realidade, vale dizer, na circulação simples. Só aqui pode-se relacionar M, V, P e Q sem se perquirir as causas reais de suas variações: “ ... as causas que provocam uma elevação do nível dos preços e, simultaneamente, uma aceleração em proporções ainda maiores da velocidade de rotação da moeda, bem como o movimento inverso, não cabem no estudo da circulação simples (...). O caráter superficial e formal da circulação simples do dinheiro manifesta-se precisamente no fato de todos os fatores que determinam o número dos meios de circulação dependerem de circunstâncias todas elas exteriores à circulação simples do dinheiro e que se limitam a refletir-se nela: a massa das mercadorias em circulação, os preços, a alta ou baixa destes, o número de compras e de vendas simultâneas e a velocidade de rotação da moeda dependem do processo de metamorfose do mundo das mercadorias: este, por sua vez, depende do aspecto de conjunto do modo de produção, do montante da população, da relação entre a cidade e o campo, do desenvolvimento dos meios de transporte, do grau de divisão do trabalho, do crédito etc” (idem, p. 105).

O antiquantitativismo de Marx expressa-se claramente na passagem em que afirma que

“... dada a soma de valor das mercadorias e dado o ritmo médio de suas metamorfoses, a quantidade de dinheiro ou de material-dinheiro circulante depende de seu próprio valor. A ilusão de que são, pelo contrário, os preços das mercadorias que dependem da massa dos meios de circulação e esta, por sua vez, da massa do material-dinheiro existente dentro de um país, é uma ilusão alimentada em seus primitivos mantenedores pela absurda hipótese de que as mercadorias se lançam ao processo circulatório sem preço e o dinheiro sem valor e que logo, ali, uma parte-alí­quota da massa formada pelas mercadorias se troca por uma parte-alíquota da mon­tanha de metal” (Marx, 1867Marx, Karl (1867) El Capital - Crítica de la Economia Politica, Fondo de Cultura Economica, México, 1978., p. 82).

2. EVOLUÇÃO HISTÓRICA

Desde suas primeiras manifestações, os economistas vêm interpretando as equações quantitativas como uma condição de equilíbrio entre o nível de preços (ou valor do dinheiro) e a oferta/demanda por dinheiro; isto é, como um modelo algébrico de determinação do nível de preços de equilíbrio (segunda leitura da seção anterior).

Costuma-se atribuir a Fisher e a Pigou a elaboração da equação de trocas e da equação de saldos de caixa, respectivamente. Em verdade, porém, a equação de saldos de caixa precedeu Pigou por mais de trinta anos, tendo sido apresentada por Léon Walras em 1886. Também as equações que envolvem velocidade de transação precederam Fisher - a mais antiga por mais de cem anos - tendo sido enunciada em 1804.

a) A velocidade de circulação do dinheiro enquanto “movimento”

  • I. Em termos não algébricos, autores como Petty (1664) e Cantillon (cerca de 1732) já tinham uma clara ideia de um fluxo circular associado ao curso do dinheiro. Tentaram seguir este curso e medir o tempo que o dinheiro levava para percorrê-lo. Tinham uma noção puramente mecânica de velocidade, entendendo-a como uma relação entre tempo e distância: em Petty, a distância entre duas sucessivas formações de renda; em Cantillon, a distância que o dinheiro levava para viajar entre o gasto do arrendatário e a volta às suas mãos. A essa concepção, que tem sólidas repercussões futuras, Holtrop (1929Holtrop, M.W. (1929) “Theories of the Velocity of Circulation of Money in Earlier Economic Literature”, in The Economic Journal (Supplement), J.M. Keynes e D.H. MacGregor (eds.), Londres, jan/29., p. 508), denomina “teoria do movimento” da velocidade de circulação do dinheiro.

  • II. Em termos algébricos, às primeiras manifestações das equações quantitativas encontram-se em autores ingleses como John Briscoe (1694) e Henry Lloyd (1771), passam por E. Levasseur (1858) e, principalmente, por Simon Newcomb (1885), antes de chegar a Fisher. Newcomb, por exemplo, influenciou tanto o trabalho de Fisher que sua equação passou a ser conhecida como de Newcomb-Fisher.

Fazendo

  • K=número de transações reais;

  • V=volume de moeda;

  • R=velocidade de circulação;

  • P=nível de preços,

  • chega-se a VR=KP ou, na notação fisheriana, MV=TP.

“A partir de sua equação ele concluiu que os preços variam equiproporcionalmente com mudanças no estoque de moeda desde que o último não pode ter efeitos permanentes nos níveis estáveis das variações reais R e K. Valores de equilíbrio dessas variáveis reais, ele disse, são imunes a mudanças monetárias de forma que o último registra seu pleno impacto nos preços apenas” (Humphrey, 1984Humphrey, Thomas M. (1984) “Algebraic Quantity Equations before Fisher and Pigou”, in Economic Review, set/out/84, vol. 70/5, pp. 13-22., p. 19).

  • III. A equação de trocas de Fisher. No prefácio de seu livro The Purchasing Power of Money,Fisher (1926Fisher, Irving (1926) The Purchasing Power of Money, Augustus M. Kelley, Bookseller, Nova Iorque, 1963, cap. I/X.) afirma que o poder de compra do dinheiro é entendido como a recíproca do nível de preços e depende de cinco fatores definidos (diretos): volume de dinheiro em circulação, sua velocidade de circulação, volume dos depósitos em banco sujeitos a cheque, sua velocidade e volume de transações.

  • A. Supondo-se uma economia fechada e sem tempo, a equação de trocas assume a forma MV+M’V’=PT. O dinheiro (M) é definido de forma estrita, incluindo apenas aquilo que é “geralmente aceitável em troca por bens”. Ficam de fora os depósitos à vista (M’), classificados como meio circulante. Tal distinção, todavia, era absolutamente irrelevante já a seu tempo, quando todos os autores americanos não faziam qualquer tipo de diferenciação entre moeda manual e depósitos em conta-corrente.

Mais importante é a visão relativa à velocidade de circulação do dinheiro, isto é, a taxa média de giro do dinheiro em sua troca por bens. Ela é calculada, então, por V=E/M, onde E (expenditure) é a circulação total de dinheiro, o montante de dinheiro dispendido por bens, numa dada comunidade, durante um dado ano; e M (money) é o montante médio de dinheiro em circulação na comunidade, durante o ano, isto é, a média aritmética simples dos montantes de dinheiro existentes em sucessivos instantes separados uns dos outros por intervalos iguais de tempo indefinidamente pequenos.

Se houver acréscimo em M, o impacto far-se-á sentir em P, não podendo haver decréscimo em V, porque esta depende de condições técnicas, não mantendo qualquer relação com M. Tais condições ligam-se à densidade da população, à rapidez dos transportes e aos costumes comerciais, dentre os quais alinha os hábitos dos indivíduos quanto à parcimônia, ao uso de contas de crédito e de cheques. São institucionais, portanto.

V’ é a velocidade média de circulação dos depósitos e não merece qualquer destaque na sua teoria. Menciona-se, ainda, o volume de transações (T), que envolve bens, serviços e títulos. A teoria padece, porém, do problema de múltipla contagem, por incluir todas as transações: sejam intermediárias e finais, sejam correntes e de capital.

P, finalmente, é o nível de preços; é a média ponderada de todos os preços de venda dos bens transacionados na economia. Para Fisher, “o nível de preços é normalmente o único elemento absolutamente passivo na equação de troca”.

  • B. Relaxando-se a hipótese de inexistência de tempo, cai-se na análise dos períodos de transição, que se processam ao longo dos ciclos de crédito (capítulos IV/VII) e onde se fala das influências indiretas que se manifestam através das influências diretas: M, M’, V, V’ e T. Seriam elas as variáveis importantes e estas apenas as causas próximas: questões de ordem geográfica, tecnológica, subjetiva (desejos e hábitos humanos), populacional ou institucional (liberdade de comércio, caráter dos sistemas monetário e bancário; etc ...).

Se se sintetizar o ciclo de crédito de cerca de dez anos de Fisher, ver-se-á que as flutuações decorrem da demora na taxa de juros em se adaptar às altas e baixas do poder de compra do dinheiro, devido à crença geral das pessoas na estabilidade desse poder de compra. Assim, a fase de expansão começa com acréscimo em M, C produção maior de ouro, por exemplo), que implica aumentos em P, embora o lucro suba mais rapidamente porque a taxa de juros (componente de custos) sobe menos. Haverá estímulo a maior investimento (ou produção), financiável com aumento de empréstimos (a curto prazo, na maioria dos casos). Estes empréstimos bancários adicionais geram aumento de depósitos com M’, consequentemente, expandindo-se relativamente a M (M’ IM sobe). Esta expansão da moeda leva a novo acréscimo em preços, lucros e taxa de juros (nesta sempre a menos) e assim sucessivamente ... A conclusão é: “aumento de preços gera aumento de preços e continua a ser assim enquanto a taxa de juros estiver defasada com relação a seu nível normal.

  • C. A última hipótese relatada é a da economia fechada, o que é feito no capítulo VI, quando o autor desenvolve as influências indiretas sobre M, através da exportação e importação de dinheiro. Em última instância, o que sua “teoria quantitativa-ouro” - para usar a expressão de Schumpeter - faz, é ressaltar a solidariedade do nível de preços entre os países membros de um sistema de padrão-ouro.

Resumindo: influências indiretas alteram principalmente M e T. Das mudanças em M derivam as mudanças de M’, já que este guarda uma relação muito estável com o dinheiro primário. Às mudanças no volume de transações (T) seguem-se modificações na relação M’/M, em V e em V’. A tendência final do conjunto dessas forças seria a alteração dos preços a nível interno e mundial.

Fica claro, enfim, que sua teoria não captou a relevância da criação de depósitos a partir dos empréstimos, com o que se pode afirmar sua fraqueza estrutural. É particularmente importante a visão então prevalecente de que M’ é derivado de M. Como Schumpeter bem o demonstrou (1954Schumpeter, J.A. (1954) Historia del Analisis Económico, Ariel, Barcelona, 1971, parte IV, cap. 8 (Moneda, Credito y Ciclos)., pp. 1204 ss), só a partir de Robertson e Pigou, na Inglaterra, é que se compreendeu que os depósitos são criados a partir dos empréstimos. Obviamente, estes foram trabalhos que antecederam Keynes, que explicitou esta concepção no Treatise on Money (1930Keynes, J.M. (1930) A Treatise on Money, Macmillan St. Martin’s Press Ltd., Londres, vol. I, 1971., cap. 2).

Schumpeter (1954Schumpeter, J.A. (1954) Historia del Analisis Económico, Ariel, Barcelona, 1971, parte IV, cap. 8 (Moneda, Credito y Ciclos)., pp. 1192-6) vê diferenças entre a equação de trocas e a teoria quantitativa. Para ele, o quantitativismo significa, em última análise, admitir-se que variações autônomas da quantidade de dinheiro têm influência em seu valor. Muitos autores, no entanto, consideram-se quantitativistas quando o que pretendem dizer é, apenas, que julgam conveniente o uso de algum tipo de equação quantitativa.

Num certo sentido, Fisher não era um quantitativista típico por apresentar algumas características contraditórias.

Por um lado, ao considerar P como a única variável passiva e as flutuações independentes de V e T como empiricamente sem importância, acabou por tornar M a única variável ativa. Se a isso somar-se seus rígidos supostos, “segundo os quais a quantidade total do meio circulante se rege (nas condições anglo-norte-americanas de 1911) pela produção de ouro e as exportações e importações deste metal ...”, percebe-se o quão radical é a sua aceitação não só da teoria quantitativa, mas de uma “teoria quantitativa-ouro”.

Por outro lado, sua admissão teórica de influências de T em V e em M, além da ênfase dada aos períodos de transição e às causas indiretas das alterações do nível de preços, acabam por debilitar seu alinhamento à própria equação de trocas, que acabaria não sendo mais que uma hipotética condição de equilíbrio.

Schumpeter coloca a questão claramente, mas conclui de forma insatisfatória.

Se M, V e T são as causas de P num esquema estático (economia sem tempo), mas deixam de sê-lo numa análise dinâmica (análise dos períodos de transição), para que insistir em seu uso? Em outras palavras, se o teorema é válido para uma situação de equilíbrio, mas este nunca ocorre (o próprio Fisher reconhece que a norma são os períodos de transição, onde a equação de trocas não é válida), para que o teorema?

Schumpeter tenta salvar o esquema teórico com um argumento fraco: “intenção de simplificar”. Fisher teria usado o teorema quantitativo para vender seu plano de dólar compensado, “... destinado a controlar o nível de preços mediante variações adequadas do conteúdo de ouro na unidade monetária” como solução para a depressão dos anos 30 (Galbraith, 1975Galbraith, J.K. (1975) Moeda: de onde veio, para onde foi, Livraria Pioneira Editora, São Paulo, 1983., p. 221). Quer dizer, o plano exigia uma redução do ouro contido no dólar à medida em que os preços caíssem. Os bancos, inclusive os do Federal Reserve teriam, então, mais dólares e reservas com os quais fazer empréstimos. Com isso, “... a expansão das reservas seria automática, não ficando sob o arbítrio do Sistema Federal de Reserva”. (idem)

Por enquanto, basta registrar que fica a sensação de que não se pode praticar uma política monetária ativa, no sentido de controle da moeda. Esta entraria em circulação por ser uma mercadoria produzida como outra qualquer (pense-se no ouro, preferencialmente) e porque dispunha de um mercado específico, que faria a arbitragem entre o bullion (a barra) e o dinheiro cunhado. M poderia crescer por ser uma mercadoria produzida como qualquer outra, entrando na circulação de duas formas: ou diretamente como bullion, através do comércio internacional, ou via arbitragem entre o bullion e a moeda, no caso da circulação interna de um país. Neste caso, a abundância de metal derivada da descoberta de novas minas, depreciaria seu valor, face à queda do custo de produção. Haveria, consequentemente, incentivo a cunhar moedas, pressionando para cima o valor do ouro em barras e para baixo o da moeda. O preço dos bens subiria como resposta à queda do valor do dinheiro.

b) A velocidade de circulação enquanto “saldos de caixa”

  • I. Locke (1692) seguiu caminho analítico alternativo ao da velocidade vista como movimento, contemplando o dinheiro numa posição de repouso, quando ele conforma um saldo de caixa. Este não deve ser visto “ ... como uma conglomeração de moedas que têm cada uma sua própria velocidade de circulação, mas como uma entidade orgânica, cujo tamanho é determinado pela forma com que recebimentos e desembolsos são ligados entre si. A necessidade total de dinheiro, da qual a velocidade de circulação é inversamente proporcional, é determinada pela soma desses saldos de caixa” (Holtrop, 1929Holtrop, M.W. (1929) “Theories of the Velocity of Circulation of Money in Earlier Economic Literature”, in The Economic Journal (Supplement), J.M. Keynes e D.H. MacGregor (eds.), Londres, jan/29., p. 509). Denominada de “teoria dos saldos de caixa”, seria esta, segundo creio, a mais antiga manifestação da linha teórica de pensamento dominante após Walras e Pigou.

  • II. Walras faz sua primeira apresentação da equação quantitativa em 1874, onde a velocidade ainda é encarada da forma tradicional.

Faça-se

  • Qa=numerário (medida de valor), que não seria propriamente uma função da moeda;

  • Q’a=quantidade do metal usado para finalidades não monetárias;

  • Q”a=estoque de moeda metálica a=M,

de modo que

Q a = Q a + Q a (1)

Se, além disso,

  • a’, b, c, d, ...=v=velocidade de circulação dos bens;

  • a”=V=velocidade de circulação da moeda; e

Q a + Q b p b + Q c p c + . . . = Σ p Q

chega-se a a”Q”a=a’Q’a+bQbpb+cQcpc+... ou, em notação fisheriana (com exceção de v), MV=ΣpQv

Em seguida, ele introduziu F (ou M’V’) para representar o valor das trocas efetuadas por meio de dinheiro fiduciário (não metálico): MV+M’V’=l:pQv.

Sua maior contribuição, porém, surge em 1886: a equação dos saldos de caixa. Neste caso,

Q a = a + b p b + c p c + d p d . . . (2)

é o encaixe desejado de moeda a, isto é, a quantidade de dinheiro necessária para satisfazer as exigências de caixa das pessoas.

A equação (2), em última análise, exprime a igualdade da oferta de moeda (sua quantidade Q”a) com a demanda de moeda (o encaixe desejado; o lado direito da equação). Ela provaria que os preços das mercadorias em moeda são proporcionais à quantidade de moeda, do que decorreria que “o montante de toda ou parte da riqueza social avaliada em moeda é proporcional à quantidade de moeda” (Walras, 1898Walras, Léon (1898) “Note sur la ‘Théorie de la Quantité’”, in Études d’Économie Politique Appliquée, F. Rouge, Libraire-Editeur, Lausanne.).

Em outra passagem, a equação se apresenta da mesma forma que Keynes o fará mais adiante no Tract on Monetary Reform: Q”aPa=H. Dada a demanda por saldos reais H, o valor do dinheiro (Pa) varia em proporção inversa à sua quantidade Q”a.

Com F, (Q”a+F)Pa=H.

Se F é múltiplo fixo f de Q, então, F=fQ

e, portanto,

Q a 1 + f P a = H . (3)

A equação (3) apresenta quatro elementos-chave da análise monetarista: a base monetária Q”a, um multiplicador monetário (1+f) para dar conta do papel-moeda, a demanda por saldos reais H e o valor do dinheiro Pa, ou seu inverso, o nível geral de preços (Humphrey, 1984Humphrey, Thomas M. (1984) “Algebraic Quantity Equations before Fisher and Pigou”, in Economic Review, set/out/84, vol. 70/5, pp. 13-22., pp. 18-9).

  • III. A equação de demanda por dinheiro de Pigou aparece em seu artigo “The Value of Money”, de 1917.

P = k R / M c + h 1 - c (4)

ou

M = k R / P e + h 1 - c

onde:

  • R=recursos totais (renda corrente da comunidade);

  • k=proporção desses recursos que às pessoas devem manter sob a forma de dinheiro, isto é, o inverso da velocidade; k tem a ver com dinheiro, em definição estrita;

  • M=estoque de dinheiro;

  • P=valor (poder de compra) da unidade monetária;

  • c=proporção de dinheiro mantida sob a forma de moeda manual;

  • (1-c)=idem, sob a forma de notas de banco e saldos bancários;

  • h=reservas bancárias.

O uso da teoria quantitativa é relativizado no sentido de que suas proposições não devem ser vistas, dicotomicamente, como falsas ou verdadeiras. Ao contrário, “ ... as fórmulas empregadas na exposição daquela teoria são meramente artifícios para capacitar-nos a reconciliar, de maneira ordenada, as principais causas pelas quais o valor do dinheiro é determinado” (Pigou, 1917Pigou, A. C. (1917) “The Value of Money”, Quarterly Journal of Economics, Cambridge, Mass., USA, vol. XXIV, n. 1, nov/1917., p. 38).

Segue-se que, à maneira de Fisher, aceito que P é função de M, percebe-se a necessidade de buscar as causae causantes, que estão por trás de R, k, c e h.

Quanto ao R, ceteris paribus, quanto maior ele o for, maior a demanda por dinheiro. Seu crescimento, no geral, decorre de desenvolvimentos que aumentam a eficiência dos indivíduos ou da coletividade (invenções mecânicas ou na organização dos negócios).

No caso do k, este será tanto maior quanto menos atrativo for o uso produtivo do dinheiro (a perda de renda real envolvida com a retenção de recursos que poderiam ter sido devotados à produção de mercadorias futuras).

O c será tanto menor quanto maiores forem o número de contas bancárias e o prazo exigido pelos comerciantes para pagamento das contas; quanto mais rapidamente os cheques forem aceitos nas transações ordinárias e mais conveniente e menos custosa for a possibilidade de efetuar pagamentos através de acesso direto aos saldos bancários.

O h sofre influências similares às do k. Os principais fatores são, de um lado, a conveniência obtida (a organização interna do sistema bancário, de modo a economizar grandes reservas, por exemplo) e o risco evitado e, de outro, a vantagem que é sacrificada quando os recursos são mantidos nessa forma.

A oferta de dinheiro em Pigou depende de inúmeros fatores, sendo o básico a arbitrária decisão de emitir do governo no caso de países com uso exclusivo de papel-moeda inconversível.

O valor (ou preço) de qualquer mercadoria, à luz da teoria econômica pura, sairia sempre da integração das equações de demanda e oferta. Quando essa mercadoria fosse o dinheiro, no entanto, as dificuldades a superar seriam significativas.

Em primeiro lugar, porque no mundo real não se consegue encontrar causas que atuem exclusivamente sobre a oferta ou sobre a demanda. Uma invenção que facilite a produção, por exemplo, eleva a demanda por dinheiro, mas também pode facilitar a extração de ouro, alterando o esquema da oferta de moeda. Uma expansão geral da indústria não traria aumento em R (recursos), apenas; reflexos dar-se-iam, seguramente, em k, h e c.

Conclui-se que o quantitativismo de Pigou, embora patente, não se reveste do maniqueísmo estéril de muitas de suas vertentes. Se a causa básica da alteração de preços é a mudança exógena da moeda, em definição estrita, há que se considerar as alterações na proporção de moeda de crédito que as pessoas desejam manter sob forma líquida e que são de natureza basicamente institucional.

Rompe-se, pois, a suposição de estabilidade na velocidade e no volume de transações, com o que a variação dos preços seria equiproporcional à da moeda, assunto que Keynes retomará e aprofundará a partir de seu Tract on Monetary Reform. Além disso, é a partir da sua contribuição no Industrial Fluctuations que começa a se generalizar a noção de velocidade-renda da moeda.

  • IV. A equação de saldos de dinheiro de Cambridge-Keynes

  • A. A mim me parece que a maior contribuição de Keynes para o debate quantitativista foi a de tirá-lo do campo institucional e passá-lo para a área das expectativas. Se lá as mudanças nos hábitos do público e dos bancos em reter dinheiro só ocorrem no longo prazo (são estruturais), aqui, elas podem ocorrer no curto prazo.

Sua equação de saldos reais, enunciada no Monetary Reform (1924Keynes, J.M. (1924) A Tract on Monetary Reform, Harcourt, Brace and Co, Nova Iorque.), apresenta-se da seguinte forma:

  • n=p(k+rk’) - sendo no meio circulante (currency notes) ou outras formas de caixa em circulação com o público;

  • p é um índice de custo de vida ou o preço de uma unidade de consumo;

  • k é o número de unidades de consumo, sendo esta unidade de consumo igual ao conjunto de quantidades específicas de artigos de consumo-padrão ou outros objetos de gasto; isto é, os bens que formam o índice do custo de vida. Segundo Schumpeter, é uma cifra-índice que representa o complemento físico do dinheiro líquido em mãos do público e utilizado para transações diretas. Eu diria, enfim, que é a contrapartida ao montante de dinheiro que o público deseja manter em caixa e que tem o poder de compra sobre o conjunto dos bens acima;

  • k’ equivale à quantidade adicional de dinheiro que o público deseja manter disponível em bancos (em contas-correntes). Voltando a Schumpeter, é o número de unidades de consumo que representa o complemento físico dos depósitos do público em contas-correntes;

  • r é a proporção que os bancos mantêm em caixa com relação a k’, isto é, as reservas líquidas.

Para Keynes, a proporção k/k’ depende dos arranjos bancários do público, o valor absoluto de k e k’ depende dos hábitos desse mesmo público e o valor de r subordina-se às práticas de reserva dos bancos.

O grande erro, segundo ele (1924Keynes, J.M. (1924) A Tract on Monetary Reform, Harcourt, Brace and Co, Nova Iorque., p. 87), é que os partidários descuidados da Teoria Quantitativa assumiriam a estabilidade de k, r e k’, ficando n como uma variável independente dessas quantidades. Como consequência, qualquer variação em n ocasionaria uma variação igual e de mesmo sentido em p. Para Keynes, isto só poderia ser válido no longo prazo (quando, então, estaremos todos mortos!). Os prazos relevantes de análise seriam os de curto prazo, em que uma variação em n (a aceitação de um n fixado exogenamente acaba por dar razão a Schumpeter, que alega ter Keynes feito uma crítica contundente às equações quantitativas, mas nem por isso, ter deixado de incidir em quantitativismo), pode afetar k, k’ e r, da seguinte maneira:

  • - quando o ouro se torna relativamente abundante, embora as condições gerais de produção e destruição sejam normais, pode haver um entesouramento parcial (k, r e k’ sobem). Este seria o caso em países agrícolas atrasados, em que os camponeses poupariam o dinheiro que houvessem ganho·no comércio internacional, sem que p subisse na mesma proporção de n;

  • - em casos, contudo, de grande mudança em n (ouro da Espanha, por exemplo?), o acréscimo em p pode ser mais do que proporcional, seja durante, após ou mesmo antes das variações em n, porque as mudanças podem ser antecipadas, ou seja, em situações de mudanças de expectativas;

  • - colocando isto num ciclo de crédito, verifica-se que k e k’ caem num boom e crescem numa recessão, a despeito de alterações em n e r.

A conclusão geral (1924Keynes, J.M. (1924) A Tract on Monetary Reform, Harcourt, Brace and Co, Nova Iorque., p. 93-5) é:

  • - n e r estão sob controle direto do banco central;

  • - k e k’ não são diretamente controláveis e dependem dos hábitos do público e do mundo dos negócios;

  • - deve-se tentar influenciar k e k’ no sentido da estabilização (através da taxa de redesconto) e, na sua impossibilidade, em variar n e r de forma a contrabalançar os movimentos de k e k’, se desejamos estabilizar p;

  • - Keynes acha que no padrão-ouro (ou quando não se tem um banco central, mesmo fora do padrão-ouro, de forma que não se consegue entesourar o ouro redundante), n não está sob controle;

  • - sua maior crítica aos “advogados antiquados do dinheiro sólido” é a de que queriam n e r firmes, o que seria uma tolice, porque as flutuações cíclicas são, fundamentalmente, derivadas de mudanças em k e k’.

  • B. A questão da velocidade de circulação tem importantes desdobramentos no Treatise (1930Keynes, J.M. (1930) A Treatise on Money, Macmillan St. Martin’s Press Ltd., Londres, vol. I, 1971., pp. 38-43). É desta seção - que trata da relação entre volume de depósitos e volume de transações - que Friedman vai retirar sua visão acerca da equação de Cambridge:

Para resumir a posição de Keynes, creio que seria bom começar com alguns conceitos, que evoluíram entre o Treatise e a Teoria Geral:

  • - income deposits: estoque de dinheiro em contas-correntes de um indivíduo, para cobrir o intervalo de tempo entre recebimentos e pagamentos e para prover contingências;

  • - business deposits: idem no que se refere a uma empresa, sendo normalmente uma proporção das transações;

  • - cash deposits: income deposits+business deposits;

  • - saving deposits: rendem juros e não são mantidos com finalidade de efetuar pagamentos correntes. Correspondem à função de reserva de valor do dinheiro, grosso modo. Sua velocidade é nula, porque dinheiro como reserva de valor não circula.

  • a. velocidade dos income deposits (Ml)=Vl

M l / P y = 1 / V l = k l ~ M l = k l P y

Isto significa que o giro entre a demanda por dinheiro para pagamentos dos indivíduos (preferência pela liquidez das pessoas) e o total de pagamentos (renda nominal da comunidade) é uma fração ki mais ou menos estável. “Falando em geral, deve-se esperar que o valor médio de ki em uma dada sociedade econômica seja uma quantidade bastante estável de ano para ano. Mas esta estabilidade média pode ser acompanhada por consideráveis flutuações sazonais, se a renda, embora crescendo firmemente dia-a-dia, não é recebida e desembolsada diariamente, mas a intervalos”.

Keynes vê k1=1/Vl como uma percentagem, mas pode-se entendê-la, também, como um período de tempo em que o dinheiro fica nas mãos dos indivíduos para fazer pagamentos (já que Vl=número de vezes que pagamentos são feitos dentro do período). O importante, porém, é que kl é uma função dos hábitos da comunidade com relação ao intervalo de tempo entre recebimentos e pagamentos e, por isso, é relativamente estável. “Mudanças em tais costumes e hábitos que afetam os tempos e estações de recebimento e desembolso que são, contudo, provavelmente lentos - irão ter geralmente mais influência no valor médio de kl ao longo de todo ano do que em flutuações em negócios ou em preços”;

  • b. velocidade de cash deposits (M3)=V3 maior que Vl, com estes depósitos crescendo em booms e caindo em recessões;

  • c. velocidade do business deposits (M2)=V2 maior que Vl, porque V3 maior que Vl, Vl é relativamente estável e V3 é uma média entre VI e V2. Quer dizer, em não havendo boas estatísticas para calcular V2, é necessário tirá-la por resíduo.

Os business deposits servem para as empresas fazerem transações produtivas (pagamentos a fatores de produção), especulativas (em bens de capital ou mercadorias) e financeiras (resgate ou reforma de títulos do tesouro ou mudanças de investimentos).

A probabilidade é que a demanda por dinheiro para este propósito seja muito menos estável porque:

  • - a demanda das empresas para transações de pagamento de salários e de etapas de um processo produtivo (que ele vai chamar de circulação industrial) deve ser estável, devendo flutuar proximamente às alterações do valor nominal da produção anual;

  • - por outro lado, as transações financeiras e especulativas (que juntamente com os savings deposits formam a circulação financeira) “ ... não necessitam, e não são, governadas pelo volume de produção corrente” (grifo meu).

Normalmente, o volume de transações com cheques supera em muito a renda anual e é altamente variável, o que é a evidência para o fato de incluir transações outras que não as ligadas à produção e consumo correntes.

“Agora, enquanto k1, em qualquer comunidade econômica dada, pode razoavelmente ser pensada como uma fração estável da renda nacional em termos nominais, isto não é o caso com k2. Pois tanto o volume quanto o nível de preços das transações que governam k2 são capazes de grandes variações que não correspondem a variações da renda nacional nominal. Assim, é enganoso representar os depósitos de caixa totais (isto é, depósitos de renda mais depósitos de negócios) como mantendo qualquer relacionamento estável ou normal com a renda nacional nominal” (Keynes, 1930Keynes, J.M. (1930) A Treatise on Money, Macmillan St. Martin’s Press Ltd., Londres, vol. I, 1971., p. 43).

A velocidade-renda está ligada, portanto, apenas às demandas transacional e precaucional. Assim, quando Friedman faz MV=Py está errando por associar V com M, quando o correto seria fazê-lo somente com MI. Keynes supôs, então, uma sociedade estática ou uma sociedade sem qualquer incerteza quanto às futuras taxas de juros. Nesse caso, a propensão a entesourar (L2) será sempre zero quando em equilíbrio. Logo, M2=zero e M=M1, “ ... de modo que qualquer variação em M fará com que a taxa de juros flutue até que o rendimento alcance um nível ao qual a variação M1 seja igual à que se supõe que ocorre em M” (Keynes, 1936Keynes, J.M. (1936) Teoria Geral do Juro, do Emprego e do Dinheiro, Abril Cultural, São Paulo, 1983., p. 147).

Segue-se que se M1V=Y, mas Y=QP (quantidade x preço da produção corrente), a relação MV=QP será verdadeira, “ ... o que guarda muita analogia com a teoria quantitativa da moeda em sua forma tradicional” (idem).

A analogia formal ressaltada não nos impede, porém, de perceber que “para os propósitos do mundo real, uma grande falha da teoria quantitativa é que ela não faz distinção entre as variações nos preços, que são uma função das variações da produção, e as que provêm das modificações na unidade de salário. Esta omissão talvez possa ser explicada pelas hipóteses de que nunca há propensão a entesourar e que há sempre pleno emprego, pois, neste caso, sendo Q constante e M2 igual a zero; segue-se, se também pudermos tomar V como constante, que tanto a unidade de salários quanto o nível de preços são diretamente proporcionais à quantidade de moeda” (idem). A teoria quantitativa da moeda seria válida, portanto, para uma sociedade sem especulação, sem incerteza.

Ainda a esse respeito, Keynes (1936Keynes, J.M. (1936) Teoria Geral do Juro, do Emprego e do Dinheiro, Abril Cultural, São Paulo, 1983., p. 147) conclui: “Se tivéssemos definido V não igual a Y/M1, mas igual a Y/M, naturalmente a teoria quantitativa seria um truísmo que se mantém em qualquer circunstância, embora sem nenhum significado”.

Em suma: os fatores que determinam as velocidades reais (em oposição às velocidades médias) envolvem considerações de conveniência e de sacrifício. Conveniência para o montante de transações envolvidas e sacrifício em termos de juros perdidos. Em geral, pode-se dizer que considerações quanto à conveniência “ ... são principalmente governadas por lentas mudanças sociais e hábitos de negócios”. Já as considerações quanto ao sacrifício em manter saldos depositados, envolvem “a) mudanças na demanda por capital de giro e na taxa de redesconto e b) expectativas quanto ao futuro curso dos preços”.

Deve-se, no entanto, atentar para o fato de que, muitas vezes, V muda não como resultado de mudanças reais em V1 e V2, mas sim porque muda a composição entre os M’s; isto é, alteram-se M1/M, M2/M e M3/M. Por exemplo: se numa fase de expansão há crédito farto, V pode ficar estável (enquanto o volume de transações T sobe); se, no entanto, o sistema de crédito não sanciona a maior demanda de capital de giro, V e T podem subir juntos. Há, portanto, que atentar para o fato de que alterações em V podem se dar devido a causas reais, mas podem enganosamente, refletir alterações em M, T ou P.

  • C. No Treatise (1930Keynes, J.M. (1930) A Treatise on Money, Macmillan St. Martin’s Press Ltd., Londres, vol. I, 1971., cap. 14), Keynes reformula sua visão com relação à equação do Monetary Reform, n=p(k+rk’), fazendo uma autocrítica nos seguintes termos:

  • a. a primeira é com relação ao p usado, que só se referiria a um índice de preços ao consumo, quando o poder de compra deve servir a uma multiplicidade de propósitos;

  • b. a segunda é achar que k’ só varia devido a mudanças de hábitos por parte do público. Se isto é válido para income deposits não o seria para cash deposits. Para consertar isto, faça-se:

  • P1=M/C=nível geral de preços não apenas de consumo, mas que pondera os diferentes objetos de gasto;

  • M=volume total de saldos de caixa, que é criado pelas decisões dos banqueiros ou oferta de moeda (corresponde a n do Monetary);

  • C=volume real dos saldos de caixa, que é criado pelas decisões dos depositantes ou demanda de moeda (corresponde a k e k’ do Monetary).

Conclui-se que:

se C e M estão em equilíbrio, P1 tende a não se alterar;

se C cai (porque há mais compradores que vendedores) e M fica estável, então P1 deve subir; e vice-versa.

Com as novas colocações de Keynes, julgo que a equação

n = p k + r k

deve ser vista como uma condição de equilíbrio (dada por p) entre a oferta de moeda n e a demanda de moeda k e k’. “A teoria quantitativa da moeda tem sido muito frequentemente enunciada em um só caminho, de forma a fazer parecer que o nível de preços depende somente dos saldos do volume de dinheiro criado pelos banqueiros. Mas o nível de preços pode ser afetado da mesma forma pelas decisões dos depositantes em variar os montantes de saldos reais que eles (os depositantes) mantêm, que pelas decisões dos banqueiros em variar os montantes dos saldos de dinheiro que eles (os banqueiros) criam” (Keynes, 1930Keynes, J.M. (1930) A Treatise on Money, Macmillan St. Martin’s Press Ltd., Londres, vol. I, 1971., p. 204). Esta citação, a meu ver, deixa bem clara a mudança de ênfase, antes centrada na oferta de moeda e agora destacando o papel da demanda, o que já começava a se observar em Walras e Pigou.

  • V. A formulação renda de Friedman

  • A. A posição de Friedman (1970Friedman, M. (1970) “A Theoretical Framework for Monetary Analysis”, in Milton Friedman’s Monetary Framework-A Debate with his Critics, Robert J. Gordon, ed., The University of Chicago Press, 1977, pp. 1-29., pp. 1-29) parte da equação de saldos de caixa de Cambridge. Sua pergunta básica refere-se ao montante de dinheiro que as pessoas ou empresas irão desejar manter, temporariamente, como poder de compra no intervalo entre compras e vendas.

Sua resposta é: “Como uma primeira aproximação, tem sido geralmente suposto que o montante guarda alguma relação com a renda, na suposição de que esta afeta o volume de compras potenciais para as quais o indivíduo ou empresa deseja manter uma residência temporária de poder de compra. Nós podemos, portanto, escrever M=kPy” onde:

  • M=estoque de dinheiro;

  • P=índice de preços implícito na estimativa da renda nacional a preços constantes;

  • y=renda nacional a preços constantes (Y=renda nacional nominal=Py); e

  • k=taxa do estoque de moeda sobre a renda. Igual a 1/V, sendo V a velocidade-renda da moeda ou “o número de vezes que o estoque de moeda ‘gira’ no intervalo de tempo relevante para financiar compras de um dado nível de produção (y) a um dado nível de preços (p)” (Adroaldo, 1981Silva, Adroaldo M. (1981) “Inflação: Reflexões à Margem da Experiência Brasileira”, in Revista de Economia Política, vol. 1, n. 3, jul/set/1981, pp, 57-81., p. 69).

Assim, se

Y = P y = > M Y / M = P y = > M = M / Y P y = > M = k P y

ou: M=1/VPy=>MV=Py, que é a “forma-renda da equação quantitativa”.

Ver-se-á que, no modelo friedmaniano, k simboliza uma série de variáveis, não devendo, portanto, “ser olhado como uma constante numérica, mas como uma função de ainda outras variáveis”.

Numa segunda aproximação, então, ele diz que a demanda por moeda interessa a dois grupos: proprietários da riqueza e empresas. A demanda dos primeiros será função de:

  • - riqueza total (y) - ele usa a renda (um fluxo) como proxy da riqueza (um estoque). “Reconhece” que as flutuações erráticas anuais da renda podem prejudicar a validade desta medida e, portanto, propõe o uso da “renda permanente” para o longo prazo;

  • - divisão da riqueza entre formas humanas (capacidade do homem) e não humanas (w) que se referem a moeda, títulos e bens físicos;

  • - taxa de retorno esperada sobre o dinheiro (rm) e outros ativos (rb=retorno sobre títulos de renda fixa e reretorno sobre ações);

  • - outras variáveis: taxa esperada de mudança nos preços dos. bens e, portanto, a taxa de retorno nominal esperada sobre ativos reais (1/P.dP/dt) e outras que não a renda, que podem afetar a utilidade atribuída aos serviços do dinheiro (u).

Em resumo:

M / P = f y , w , r m , r e , r b , 1 / P . d P / d t , u .

A demanda das empresas também pode ser representada pela equação acima, com exceção de w, já que a divisão da riqueza entre formas humanas e não humanas não teria significado especial para as empresas. Esta equação valeria, então, para a demanda total por dinheiro.

O que parece inaceitável é o fato de ele não fazer qualquer distinção entre as causas das diversas formas de liquidez, trabalhando com um M global, ao invés de discriminá-lo. Assim, se a demanda dos indivíduos e empresas por transações e precaução pode ser considerada função da renda, não há o menor sentido em afirmá-la dependente da taxa de retorno sobre outros ativos. Inversamente, se não fere Keynes subordinar a circulação financeira ou demanda especulativa (que está em parte nos business deposits e em parte nos savings deposits) ao sentimento especulativo - isto é, ao comportamento das taxas de juros ou à variação esperada no nível de preços -, é absurdo pensá-la dependente do volume da produção corrente.

A crítica aqui vai ficar só neste nível: Friedman destrói toda a diferenciação entre as diversas motivações para manter-se dinheiro. Como sempre, a busca de elegância formal faz tudo depender de tudo. Não é preciso muito esforço de imaginação para, desde já, reconhecer-se que uma demanda agregada de moeda só fará sentido se respeitar as especificidades das motivações dos agentes econômicos, sejam eles indivíduos, sejam empresas. O que Friedman faz, enfim (agora no restatement, 1966, cap. 2), é algo metodologicamente diferente de Keynes. Este procura chegar à demanda de moeda através do somatório das diversas motivações que levam indivíduos e empresas a reter dinheiro; motivações essas, que são função de variáveis não semelhantes. Aquele, ao contrário, encara a moeda como mais um dos possíveis ativos no portfolio de pessoas ou empresas: como uma forma de manter riqueza. Para ele, tudo obedece ao postulado da maximização da utilidade, tendo sua teoria implicitamente, apenas o motivo especulação. Afinal, sempre existiriam métodos para sincronizar melhor os prazos de recebimentos e pagamentos, de forma a tornar pouco importantes o volume de transações e as condições institucionais (como a forma de pagamento aos trabalhadores: se semanal, mensal etc ...), para a determinação da demanda por moeda. Ele claramente menciona que cada dólar deve prestar-se a uma série de propósitos (serviços), não podendo ser dividido entre “saldos ativos” (para transações) e “saldos ociosos” (para especulação).

O absurdo desta posição está, por exemplo, em considerar que uma empresa vai diminuir sua demanda por moeda sempre que subir o retorno do mercado de ações. Por mais especulativo que seja o capitalismo, nenhuma empresa mantém uma carteira de títulos de renda variável com recursos destinados à folha de salários ou às faturas dos fornecedores. Para estes casos, a taxa relevante seria a dos títulos de renda fixa e, mesmo assim, de forma secundária, já que as considerações principais girariam em torno de segurança e liquidez.

  • B. Ainda no Restatement, tem-se a versão friedmaniana da TQM, onde v é a velocidade-renda:

Y = v r b , r e , 1 / P . d P / d t , w , Y / P , u M .

Supondo M fixado exogenamente para que se possa ter um modelo de determinação da renda, seria necessário supor:

  1. “que a demanda por moeda é altamente inelástica com relação às variáveis em v” ou

  2. “que todas essas variáveis devem ser tomadas como rígidas e fixas”.

Para ser um “teórico quantitativista”, portanto, não bastaria crer nas “linhas gerais da análise precedente num nível puramente formal e abstrato”. Seria necessário também, dentre outros: “ ... aceitar a hipótese empírica de que a demanda por moeda é altamente estável”. Isto não significaria que a quantidade real de dinheiro demandado por unidade de produto ou a velocidade de circulação do dinheiro, devessem ser numericamente constantes ao longo do tempo, mas sim que houvesse uma relação funcional entre a quantidade de dinheiro demandado (e a velocidade de circulação) e as variáveis que os determinam.

Nas palavras de Adroaldo (1981Silva, Adroaldo M. (1981) “Inflação: Reflexões à Margem da Experiência Brasileira”, in Revista de Economia Política, vol. 1, n. 3, jul/set/1981, pp, 57-81., p. 70), “os movimentos do nível de produção física (y) no longo prazo são independentes dos movimentos do estoque nominal de moeda (M) e do índice geral de preços (P) . e os movimentos da velocidade-renda da moeda (v) refletem a atitude dos agentes econômicos em relação ao estoque real de moeda que o público deseja reter face às flutuações do produto real e das expectativas inflacionárias e são assim não controláveis pelos responsáveis pela condução da política econômica. Assim como y, a trajetória de v é independente das variações no estoque nominal de moeda e reflete o comportamento racional e previsível dos agentes econômicos (empresários, trabalhadores e consumidores)”. As estabilidades de y e V não significariam, portanto, “constância dessas variáveis, mas sim trajetória estável e não sujeita a flutuações erráticas, a menos de intervenções danosas do governo através de controle de preços, excesso de gastos, subsídios generosos e políticas ineficientes de emprego”, o que dá bem uma medida do viés ideológico do monetarismo.

A longo prazo, são as alterações nas forças não monetárias o que importa para a renda real (o dinheiro não importa). Por outro lado, são M e as outras variáveis (inclusive a própria renda real) que afetam k, tudo o que importa para a determinação a longo prazo da renda nominal. O nível de preços não é, portanto, um dado institucional, mas sim “ ... um resultado conjunto de forças monetárias que determinam a renda nominal e de forças reais que determinam a renda real”.

A curto prazo, alterações em M não se impactariam totalmente em k, como ele atribui a Keynes, mas sim em k, P e y.

Em suma: o nível geral de preços (P) resulta da interação de forças reais (nível de tecnologia· e estrutura de preços relativos) com a política monetária (quantidade nominal de moeda). “Ora, como na visão monetarista os valores de y e V refletem movimentos estáveis das forças automáticas dos mercados livres, segue-se que os movimentos do índice geral de preços refletem os movimentos do estoque nominal da moeda, o qual, por sua vez, é determinado pela política econômica” (idem).

A título ilustrativo, uma aplicação prática de Friedman está em Polak (1957Polak, J.J. (1957) “Monetary Analysis of Income Formation and Payments Problems”, in The Monetary Approach to the Balance of Payments, ed. pelo FMI, Washington, 1977., p. 22), criador do modelo de ajuste monetário do balanço de pagamentos do FMI, que faz a defesa da hipótese friedmaniana de velocidade de circulação do dinheiro constante, embora diferente entre os diversos países: “Em primeiro lugar, é bastante plausível presumir que as pessoas ajustam suas posses de dinheiro em proporção a mudanças nas transações monetárias, das quais, em prazo relativamente curto, a renda nacional (ou produto nacional bruto) é um indicador aceitável. Em segundo lugar, é relevante notar que as autoridades monetárias em muitos países baseiam sua política na hipótese de que a velocidade-renda é aproximadamente constante. Finalmente, é provavelmente possível isolar pelo menos alguns dos fatores que determinam tais flutuações na velocidade à medida em que ocorrem”.

Em primeiro lugar, isso fere Keynes, que só aceita estabilidade para as demandas transacional e precaucional, mas não para a especulativa, como já se viu. Além disso, Polak parece basear sua teoria na constância da velocidade, só porque muitos países fazem essa hipótese, ainda que suas evidências não o confirmem.

3. CONCLUSÕES

  • a. Do que foi visto até agora decorre a necessidade de discutir o verdadeiro estatuto das equações quantitativas: seriam elas uma condição hipotética de equilíbrio ou uma identidade, isto é, uma relação de igualdade válida para qualquer valor assumido pelas variáveis envolvidas?

Para Humphrey (1984Humphrey, Thomas M. (1984) “Algebraic Quantity Equations before Fisher and Pigou”, in Economic Review, set/out/84, vol. 70/5, pp. 13-22., p. 21), os autores primitivos - no sentido de anteriores a Fisher e Pigou - viram suas equações quantitativas ou como equações de preço, em que P era.uma função matemática das variáveis M, V e Q, ou como equações de oferta/demanda de moeda expressando uma condição de equilíbrio entre o estoque de moeda e os determinantes da demanda para mantê-lo. Em qualquer caso, elas expressavam relacionamentos funcionais e não meras identidades.

Fisher a definiu como segue: “a equação de troca é uma afirmação, em forma matemática de todas as transações efetuadas num certo período em uma dada comunidade. Ela é obtida simplesmente somando as equações de troca para cada transação individual”.

Schumpeter (1954Schumpeter, J.A. (1954) Historia del Analisis Económico, Ariel, Barcelona, 1971, parte IV, cap. 8 (Moneda, Credito y Ciclos)., p. 1189), é claro: “Esta equação não é uma identidade, mas uma condição de equilíbrio. Pois Fisher não diz que MV seja PT, nem que MV seja igual a PT por definição: uns valores dados de M, V e T tendem a produzir um determinado valor de P, não implicam um determinado P”.

Esta é uma questão metodológica importante: sendo uma condição de equilíbrio, as equações só seriam utilizáveis no caso de teorias que trabalhassem com suas variáveis em situações extremas. Embora pontos de equilíbrio e análises na margem sejam absolutamente lógicos, creio serem eles destituídos de validade quando se trata de estudar a faixa de relevância das variáveis envolvidas; isto é, o seu comportamento nas condições normais de mercado. Elas, enfim, não enfrentam as verdadeiras questões ligadas à teoria monetária: “O problema fundamental da teoria monetária não é meramente estabelecer identidades ou equações estáticas relacionando, por exemplo, a mudança de instrumentos monetários à mudança de objetos trocados por dinheiro. A função real de tal teoria é tratar o problema dinamicamente, analisando os diferentes elementos envolvidos, de maneira a exibir o processo causal pelo qual o nível de preços é determinado e o método de transição de uma posição de equilíbrio para outra.

“As formas da teoria quantitativa (...) são mal adaptadas para este propósito. Elas são exemplos particulares das inúmeras identidades que podem ser formuladas conectando diferentes fatores monetários. Mas elas não têm, nenhuma delas, a vantagem de separar aqueles fatores através dos quais, num sistema econômico moderno, o processo causal realmente opera durante um período de mudança” (Keynes, 1930Keynes, J.M. (1930) A Treatise on Money, Macmillan St. Martin’s Press Ltd., Londres, vol. I, 1971.: 120).

Creio que esta citação de Keynes, mesmo que ainda presa a um método estático-comparativo, vai ao centro da questão. Sua relevância fica ressaltada quando se a contrasta com a justificativa de Schumpeter para a equação de troca: “quando se trata de explicar o comportamento de uma só variável do sistema econômico é evidente que convém acumular todas as demais, reunindo-as em uns poucos grandes agregados e considerar estes agregados como ‘causas’ que determinam a variável que se trata de explicar. A chamada equação de troca é, sem dúvida, o sistema mais simples possível dos agregados que contêm o valor do dinheiro ou o nível de preços. E se o que se trata de explicar é este último, tudo o mais se situa naturalmente (embora ilogicamente) na função de ‘causas’ do que há de se explicar e a equação de troca - que em si mesma não é senão o enunciado de uma relação formal sem conotação causal alguma - se converte ou pode se converter na teoria quantitativa”.

  • b. Fisher (1926Fisher, Irving (1926) The Purchasing Power of Money, Augustus M. Kelley, Bookseller, Nova Iorque, 1963, cap. I/X., pp. 176-81) afirma que o nível de preços é determinado pela equação de troca. O esquema de oferta/demanda· (ou custo de produção) só pode determinar preços individuais. Esta é outra questão metodológica de peso: não se pode “raciocinar diretamente de preços particulares para gerais”.

Por trás do estudo do preço de um produto haveria sempre, antecedendo-lhe, uma análise do nível geral de preços. Se o preço de um bem sobe, há que cair o preço de outro, porque M é dado. Sua teoria é de preços relativos, inexistindo uma teoria do valor (valor é meramente o produto do preço pela quantidade de um bem).

Sua negação em aceitar que o nível de preços (visão agregada) possa ser fruto de um estudo sobre a formação de preços (visão micro) esbarra, porém, na própria definição da equação de trocas enunciada no item anterior e cujo final repete-se: “ ... ela é obtida simplesmente somando as equações de troca para cada transação individual”.

Se ela é obtida pela soma das transações individuais, mas, ao mesmo tempo, a formação de preços individuais (por interação entre oferta/demanda) já pressupõe a quantidade de dinheiro (M), há aqui uma circularidade inescapável, que embaralha os planos de análise.

Em Marx, o sentido de determinação de P para M decorre da própria explicitação das três determinações do dinheiro. A primeira é ligada ao processo de formação de preços e a moeda assume, então, um caráter meramente ideal. A segunda, é a de meio de circulação e aí a quantidade de dinheiro importa. A última função (tesouro), manifesta-se sob a forma de metais preciosos nas sociedades pré-capitalistas e evolui, com o desenvolvimento da sociedade burguesa, para a acumulação de reservas monetárias para saldar operações a crédito (meios de pagamento) e transações internacionais (dinheiro mundial).

Ressalte-se, como o faz Brunhoff, a complementaridade destas funções do dinheiro, básica para o desenvolvimento pleno de uma teoria monetária. Assim sendo, a segunda determinação pressupõe a primeira: no capitalismo, o ciclo do capital industrial implica um processo inicial de determinação dos preços para, sé depois, desaguar na necessidade de dinheiro (metálico ou simbólico) para sua realização. Por isso é que Marx fala que a circulação é o realizar-se dos preços.

A dimensão tesouro assumida pelo dinheiro, por seu turno, pressupõe as duas anteriores: é ela que compatibiliza a quantidade de ouro existente com a quantidade de dinheiro em circulação.

O funcionamento de uma economia capitalista, portanto, implica que a quantidade de dinheiro decorra da formação de preços individuais. Como diz Galbraith (1975Galbraith, J.K. (1975) Moeda: de onde veio, para onde foi, Livraria Pioneira Editora, São Paulo, 1983., p. 220): “a maior parte da oferta de moeda, como agora é adequadamente entendido, é formada pelos depósitos nos bancos. Esses surgem à medida em que as pessoas e empresas tomam empréstimos em dinheiro. Se a economia estiver em fase suficientemente má, as perspectivas de lucro forem suficientemente negras e a depressão for suficientemente profunda, os empresários poderão não tomar empréstimos. Logo, não serão criados depósitos, e com isso nenhum dinheiro surgirá. Os bancos poderão receber dinheiro para reserva quando os Bancos Federais de Reserva comprarem títulos públicos dos próprios bancos ou dos seus clientes. Este dinheiro ficará então ocioso nos bancos”.

Em condições inversas, de expansão dos negócios, de perspectivas de alta nos lucros, de otimismo empresarial enfim, a oferta crescente de dinheiro também virá em resposta a pedidos de empréstimos. E pedidos de empréstimos já têm, por trás, um cálculo capitalista quanto a preços e quantidades possíveis de serem oferecidos em seus respectivos mercados.

  • c. A busca de quantificação das variáveis em tela levou a uma evolução nos conceitos empregados, particularmente quanto à velocidade de circulação do dinheiro.

Partindo de uma ideia de movimento, alcançou-se o estágio dos encaixes desejados (deslocando analiticamente a oferta em favor da demanda de moeda) e à sua mensuração relativamente à renda nacional. Ainda assim, os teóricos quantitativistas pioneiros - partidários da exogeneidade da moeda e do uso frequente de suas equações para explicar o comportamento dos preços - jamais abriram mão das hipóteses de estabilidade de V e Q. Hipóteses fundamentais na medida em que lhes permitia subordinar as variações de P a M. Isso está bem na linha de tradição clássica, que sempre atribuiu aos preços (P) o principal papel no ajuste do balanço de pagamentos em países sob o regime do padrão-ouro.

Com o advento de Keynes, há uma substancial mudança com relação às suposições da doutrina clássica, sofrendo as equações quantitativas uma cerrada crítica. Seus refinados conceitos de “expectativas” e “entesouramento parcial” permitem desenvolver uma teoria monetária que tira a demanda de moeda do plano institucional (estrutural) para o do curto prazo. Em outras palavras: não mais se admite que os encaixes desejados pelo público e pelo sistema bancário, sejam função de hábitos solidamente arraigados, variando muito lentamente no tempo. Trata-se, agora, de analisar as reações desses indivíduos e empresas à luz de informações antecipadas no curto prazo. Rompe-se, com isso, o dogma da estabilidade de V, particularmente com os estudos desenvolvidos quanto à demanda especulativa de moeda.

Friedman ao retomar as estabilidades de y e V - agora travestidas de “trajetória estável e não sujeita a flutuações erráticas”, o que tem a ver com expectativas adaptativas e racionais - não faz mais que retroceder à fase pré-Pigou, Tenta substituir o ajuste no produto e emprego de Keynes, pelo velho ajuste nos preços.

Talvez se possa dizer que, em Friedman, o longo prazo subordina o curto prazo, porque ele tem uma visão idealizada do capitalismo - capitalismo estável - causada pelos mecanismos do mercado e pela disciplina da moeda. Keynes, ao contrário, subordina o longo ao curto prazo, porque sua ótica é a de um capitalismo instável, onde o horizonte de expectativas é de curto prazo, com grandes reflexos na esfera da decisão de investimentos. Melhor seria dizer, talvez, que ele se recusa até mesmo a formular questões para o longo prazo, porque o considera não teorizável.

A crítica maior a Friedman não está, em verdade, na sua tentativa de integrar esses planos de análise. O inaceitável é considerar o longo prazo o melhor dos mundos, com o curto prazo representando apenas pequenas fricções do sistema. Qualquer tentativa séria de integração deve passar por Schumpeter (1949Schumpeter, J.A. (1949) Capitalismo, Socialismo e Democracia, Zahar, Rio de Janeiro, 1984., pp. 112-3), para quem o capitalismo é, em essência, “uma forma ou método de mudança econômica e não apenas nunca está, mas nunca pode estar, estacionário (...). O impulso fundamental que inicia e mantém o movimento da máquina capitalista decorre dos novos bens de consumo, dos novos métodos de produção ou transporte, dos novos mercados, das novas formas de organização industrial que a empresa capitalista cria”. A estrutura econômica é incessantemente revolucionada “a partir de dentro, incessantemente destruindo a velha, incessantemente criando uma nova. Esse processo de Destruição Criativa é o fato essencial do capitalismo”.

O desempenho do sistema deve ser medido no longo prazo, mas “todos os elementos da estratégia de negócios (...) devem ser vistos em seu papel, sob o vento perene da destruição criativa; não podem ser compreendidos a despeito dela ou, na verdade, sob a hipótese de que existe eterna calmaria (...). Em outras palavras, normalmente se vê o problema de como o capitalismo administra as estruturas existentes, enquanto o relevante é saber como ele as cria e destrói”.

O longo prazo é, portanto, o período que engloba todas· as grandes transformações, todas as revoluções no modo de produção, e não faz sentido confundir forças meramente tendenciais com o mundo real.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • Fisher, Irving (1926) The Purchasing Power of Money, Augustus M. Kelley, Bookseller, Nova Iorque, 1963, cap. I/X.
  • Friedman, M. (1970) “A Theoretical Framework for Monetary Analysis”, in Milton Friedman’s Monetary Framework-A Debate with his Critics, Robert J. Gordon, ed., The University of Chicago Press, 1977, pp. 1-29.
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    JEL Classification: B22; B41.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 1987
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