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A universalização da pré-escola no Brasil: uma análise de determinantes históricos

Preschool expansion in Brazil: an analysis of historical determinants

RESUMO

A taxa líquida de matrícula na pré-escola aumentou de 3,7% para 78,9% entre 1970 e 2018. Este artigo analisa o processo de universalização da pré-escola no Brasil ocorrido nos últimos 50 anos, documentando a evolução do acesso e discutindo de forma analítica a influência de fatores sociodemográficos e institucionais comumente atribuídos à expansão da pré-escola no Brasil. Fatores como oferta de trabalho feminina, investimento público e demografia, embora tenham sua importância, não foram decisivos para a expansão da pré-escola tal que a expansão observada no período parece fruto de políticas não coordenadas e não planejadas implementadas no período.

PALAVRAS-CHAVE:
Universalização da pré-escola; políticas públicas; determinantes da expansão pré-escolar

ABSTRACT

The school attendance of 4-5 years-old children raised from 3.7% to 78.9% between 1970 and 2018 in Brazil. This paper analyses the preschool expansion process in Brazil in the last 50 years, documenting the preschool attendance and discussing how sociodemographic and institutional factors usually associated with the expansion are related to the process. The paper shows that female labor force participation, public investments, and demographic factors were to some extent important but not crucial to the expansion of preschool attendance in Brazil. Furthermore, the observed expansion seems to be a result of uncoordinated and unplanned policies implemented in the period.

KEYWORDS:
Universal preschool; public policies; determinants of preschool expansion

1. INTRODUÇÃO

Desde o relatório Coleman, em 1966COLEMAN, James et al. Equality of Educational Opportunity, US Department of Health, Education and Welfare, Office of Education. Washington, DC: US Government Printing Office, 1966., fatores que contribuem para o sucesso escolar são investigados de forma sistemática (Coleman et al., 1966COLEMAN, James et al. Equality of Educational Opportunity, US Department of Health, Education and Welfare, Office of Education. Washington, DC: US Government Printing Office, 1966.). Mais recentemente, pesquisas têm mostrado que investimentos na primeira infância geram um impacto positivo maior do que programas voltados para a idade adulta (Heckman, 2007HECKMAN, James J.; MASTEROV, Dimitriy V. The productivity argument for investing in young children. Applied Economic Perspectives and Policy, v. 29, n. 3, p. 446-493, 2007.). Estudos em diversos lugares do mundo, e em especial nos Estados Unidos, têm apontado para o efeito positivo do ensino pré-escolar como um todo (creche e pré-escola), principalmente para crianças em condições de vulnerabilidade. Entretanto, no Brasil, o efeito positivo geralmente é observado apenas para a frequência à pré-escola e não para a creche (Santos, 2011SANTOS, D. A hora de ir para escola. Sinais Sociais, p. 38-85, 2011. ). Tal diferença pode ser atribuída à deficiência de qualidade da educação infantil no Brasil e à alta qualidade dos programas americanos avaliados (Schwartzman e Castro, 2013SCHWARTZMAN, Simon; CASTRO, Claudio de Moura. Ensino, formação profissional e a questão da mão de obra. Ensaio: Aval. Pol. Públ. Educ. , Rio de Janeiro, v. 21, n. 80, p. 563-623, Set. 2013.). Além disso, mais estudos longitudinais são necessários para mensurar o valor agregado da pré-escola e obter resultados mais robustos para o Brasil (Bartholo et al., 2019BARTHOLO, Tiago Lisboa et al. What do children know upon entry to pre-school in Rio de Janeiro?. Ensaio: Aval. Pol. Públ. Educ., Rio de Janeiro, 2019.).

Dada a importância desta etapa de ensino para o desenvolvimento infantil e acumulação de capital humano, este artigo analisa o processo de universalização da pré-escola no Brasil ocorrido nos últimos 50 anos. Nesse período, a taxa de matrícula de crianças de 4 e 5 anos na pré-escola saiu de menos de 4% em 1970 para quase 80% em 2018. O objetivo é documentar a expansão à luz de eventos históricos e econômicos ocorridos ao longo do período que possam estar, em maior ou menor grau, associados à expansão. Assim, são abordados aspectos que remontam ao final do século XIX até o surgimento do programa Bolsa Família no século XXI.

Embora a análise faça associações entre eventos ocorridos e a expansão da pré-escola, não se pretende atribuir relações causais. Isso não seria factível em um contexto que abrange um longo período permeado de fatos históricos que poderiam distintamente influenciar a expansão e ser objetos de análises mais profundas no sentido de avaliação de impacto. Ao contrário, por meio da apresentação de dados e informações relacionados à pré-escola, o interesse do artigo é discutir a expansão de forma mais abrangente. Dessa forma, há espaço para analisar todo o período aqui proposto, que foi definido, basicamente, pela existência de dados. Nesse sentido, a principal contribuição do artigo para a literatura é de analisar o processo de expansão ocorrido nas últimas décadas como um todo, dando um panorama geral do processo de universalização da pré-escola.

Este artigo divide-se em mais cinco seções além desta introdução. A seção 2 contextualiza o artigo ao apresentar os números associados à pré-escola, discutir a universalização em outros países, e abordar os aspectos históricos relacionados à pré-escola no Brasil. A seção 3 discute o papel da demografia no processo de universalização da pré-escola. A seção 4 estuda fatores associados à oferta que podem ter contribuído para a universalização. A seção 5 analisa o principal fator associado à demanda: a participação feminina no mercado de trabalho. A última seção apresenta as considerações finais.

2. CONCEITOS, ASPECTOS HISTÓRICOS E A PRÉ-ESCOLA NO BRASIL E NO MUNDO

A taxa líquida de matrículas da pré-escola é a razão entre o total de matrículas de crianças com quatro e cinco anos de idade sobre a população de crianças na mesma faixa etária.1 1 Crianças com 6 anos de idade foram excluídas da análise por motivos de consistência da análise, pois a partir de 2006 a lei 11.274/2006 determinou que estas deveriam ser atendidas pelo Ensino Fundamental. No Brasil há um enorme salto na taxa líquida de matrículas da pré-escola entre 1970 e 2018. Em 1970, apenas 3,7% das crianças estavam matriculadas na pré-escola. Entre 1970 e 1980, e na década seguinte, entre 1980 e 1990, o percentual mais do que dobrou em cada um dos períodos, chegando a 10,7% em 1980 e 26,4% em 1991. Nos anos seguintes o crescimento desacelerou, aumentando em 10 pontos percentuais entre 1991 e 2000. Contudo, nos anos 2000 a taxa voltou a apresentar um forte crescimento (mais de 80%), de tal forma que, no final da década, duas em cada três crianças frequentavam a pré-escola (66,2%). Ao final de quase cinco décadas, em 2018, a parcela de crianças brasileiras entre 4 e 5 anos matriculadas na pré-escola chegou a 78,9%.2 2 Outras fontes de dados e metodologias podem trazer números diferentes. Por exemplo, a PNAD Contínua, com informações autodeclaradas, mostra que, no 3º trimestre de 2018, 94% das crianças de 4 e 5 anos frequentavam escola.

Para analisar o caso brasileiro será usado o conceito de universalização de matrículas efetivamente realizadas na pré-escola. Assim, ainda que este percentual não seja de 100%, o termo “universalização” será utilizado em referência à alta porcentagem de crianças matriculadas. Isso contrasta com outros conceitos utilizados na literatura que utilizam o termo universalização com referência à capacidade de provisão de vagas (universalização do acesso). Nesses casos, a taxa de matrícula pode ser baixa, mas a oferta de vagas é suficiente para atender toda a demanda.

A universalização da pré-escola está longe de ser alcançada mesmo em países desenvolvidos, muitos dos quais têm feito altos investimentos públicos para promover a educação pré-primária (Berlinski e Galiani, 2007BERLINSKI, S.; GALIANI, S. The effect of a large expansion of pre-primary school facilities on preschool attendance and maternal employment. Labour Economics, v. 14, n. 3, p. 665-680, 2007. ). Na Europa há uma grande variabilidade na universalização. Para a faixa dos três anos de idade, a educação pré-escolar é universalizada na França e Bélgica, alcança 60% na Alemanha, 44% na Grã-Bretanha, 28% na Espanha e em Portugal, e apenas 6% na Suíça. O mesmo ocorre em países na Ásia e Oceania, com taxas variando de 90%, casos de Cingapura e Japão, a 52%, caso da Austrália (Boocock, 1995BOOCOCK, S. Childhood Programs Early in Other Nations: Goals Outcomes. The Future of Children, v. 5, n. 3, p. 94-114, 1995. ).

A depender do contexto histórico e do lugar onde o programa é implementado, educação infantil tem diferentes finalidades. De uma forma geral, ela engloba desde o nascimento da criança até sua entrada na escola primária. Alguns programas têm o objetivo de prover cuidados para a criança enquanto os pais trabalham; outros focam na preparação do pré-escolar para seu ingresso na vida acadêmica; e ainda existem aqueles que oferecem um amplo serviço de saúde, além de desenvolvimento motor, cognitivo e social.

No Brasil, nem sempre o binômio educar e cuidar foi relevante para a educação infantil no sentido de se complementarem no processo educativo como discutido atualmente. De acordo com Bassetto (2006BASSETTO, L. Política e organização da pré-escola na Secretaria Municipal de Educação de Campinas entre 1969 a 1988. Campinas: Unicamp, 2006.), há basicamente três fases de desenvolvimento da educação infantil no país: início do atendimento à criança (do final do século XIX até os anos 1960); processo de massificação (as décadas de 1970 e 1980); e a fase do direito social (após a Constituição Federal de 1988).

Bassetto (2006BASSETTO, L. Política e organização da pré-escola na Secretaria Municipal de Educação de Campinas entre 1969 a 1988. Campinas: Unicamp, 2006.) e Rosemberg (1999ROSEMBERG, F. (FGV). Expansão da Educação infantil e processos de exclusão, 1999. ) argumentam que o surgimento do atendimento infantil no Brasil decorre de políticas assistencialistas e filantrópicas destinadas a crianças pobres e negras. Inspiradas no modelo francês da segunda metade do século XIX que visava mães pobres e operárias, as creches teriam surgido para atender filhos de escravas após a instituição da Lei do Ventre Livre. Outra forma de educação infantil eram as escolas maternais, também originárias da França, destinadas a atender órfãos e filhos de operários. Ambas teriam surgido com o nascimento da indústria no país para permitir o aumento da produção. Diferentemente das anteriores, o jardim de infância, de origem alemã, era ligado a órgãos de educação e destinado à elite burguesa da época. Havia ainda o parque infantil, criado pelo Departamento Cultural de São Paulo, que trazia concepções pedagógicas.

O segundo período de desenvolvimento da educação infantil foi caracterizado por políticas de expansão do atendimento com propostas emergenciais e de baixo custo com objetivo de atender o maior número de crianças (Bassetto, 2006BASSETTO, L. Política e organização da pré-escola na Secretaria Municipal de Educação de Campinas entre 1969 a 1988. Campinas: Unicamp, 2006.).3 3 Alguns exemplos são o Plano de Educação Infantil (PLANEDI) e o Programa de Atendimento ao Pré-escolar (PROAPE). O modelo adotado foi influenciado por propostas de organizações intergovernamentais, como Fundo das Nações Unidas para Infância (UNICEF) e Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), que visavam preparar crianças carentes para ingressar no ensino fundamental e melhorar as condições de vida envolvendo a família e a comunidade (Souza, 1984SOUZA, S. J. E. Tendências e fatos na política da educação pré-escolar no Brasil. Cadernos de Pesquisa, n. 51, p. 47-53, Nov. 1984. ).

Após a Constituição Federal de 1988, a educação infantil passou a ser pensada como um direito da criança a ser garantido pelos municípios. E, após 1996, com a nova Lei de Diretrizes e Bases (LDB), que trouxe a concepção de educação infantil, houve uma maior preocupação com o acesso à pré-escola e à educação infantil como um todo. A criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB) em 2007 e a antecipação da entrada na escola para quatro anos de idade em 2013 permitiram o desenvolvimento de políticas ligadas a educação infantil.

Assim, o surgimento e expansão da pré-escola ocorreu em diferentes contextos e muitos podem ser os fatores associadas à universalização observada nos anos recentes. Segundo Rosemberg (1999ROSEMBERG, F. (FGV). Expansão da Educação infantil e processos de exclusão, 1999. ), fatores sociodemográficos são geralmente associados a expansão. Processos de intensa urbanização, participação de mulheres no mercado de trabalho, queda na mortalidade infantil e na fecundidade estariam entre os fatores que propiciaram a expansão da demanda por educação infantil. Por outro lado, Menezes-Filho (2011MENEZES FILHO, Naercio. Pré-escola, horas-aula, ensino médio e avaliação. BACHA, Edmar e SCHWARTZMAN, Simon. Brasil: a nova agenda social. Rio de Janeiro: LTC Editora, p. 270-275, 2011.) argumenta que fatores institucionais motivaram o avanço educacional no país: a descentralização da alocação de recursos educacionais após Constituição Federal de 1988; os programas de progressão continuada que vieram para evitar as altas taxas de repetência dos anos 1970 e 1980 e regularizar o fluxo escolar; os programas sociais (Bolsa Escola e Bolsa Família) que fizeram com que famílias mais pobres matriculassem seus filhos na escola; e os fundos de redistribuição de receitas atreladas ao número de matrículas como o FUNDEB (que inclui o ensino infantil).

Como se nota, há diversos fatores com diferentes potenciais para influenciar oferta e demanda por pré-escola, direta ou indiretamente. A partir da próxima seção, os fatores são divididos e analisados em três grandes tópicos: demografia, políticas públicas e mercado de trabalho feminino.

3. DEMOGRAFIA

O aumento da cobertura da pré-escola em termos percentuais pode ocorrer tanto pelo aumento da oferta de vagas quanto pela redução da demanda por vagas. A Figura 1 apresenta a evolução da população de 4 a 5 anos e do total de matrículas na pré-escola das crianças nesta faixa etária separadamente no mesmo período analisado. Enquanto a população traz informações sobre a demanda potencial, a matrícula provê uma proxy do cenário associado à oferta, uma vez que não temos informação no número de vagas oferecidas e demandadas.

Figura 1:
Evolução da população e matrículas na pré-escola das crianças com 4 e 5 anos de idade: Brasil, 1970 a 2018

Em relação à população, há um crescimento até a década de 1990, seguido de uma estabilização até 2000, e, a partir de então, uma queda, tal que o número total de crianças em 2018 é apenas 3% maior que o observado em 1970 (5,65 milhões). Assim, a demanda potencial por pré-escola aumentou e caiu ao longo do período, terminando estável na última década (5,84 milhões). Analisando conjuntamente com trajetória da taxa líquida de matrícula há indícios de que apenas uma modesta parte do crescimento da taxa de matrícula nos anos recentes, especialmente após 2000, ocorreu por conta do fenômeno de redução ou estabilização da população-alvo.

Por outro lado, observa-se que o total de matrículas na pré-escola aumentou 21 vezes no período, ao passar de 0,21 milhão em 1970 para 4,61 milhões em 2018. A matrícula, portanto, vinha crescendo a uma taxa mais expressiva que a observada para o crescimento demográfico mesmo antes da estabilização da população. Isso sugere que o sistema escolar estava aumentando sua capacidade de atendimento (oferta) independente de variações na população assistida. Com isso, a análise demonstra que fatores demográficos não foram decisivos para a expansão da pré-escola no período.

4. POLÍTICAS PÚBLICAS

Esta seção discute o papel de políticas públicas adotadas desde 1969, primeiro ano para o qual dados foram encontrados. Políticas como o Programa Nacional da Pré-escola, em 1981, e o Programa Bolsa Família, em 2003, podem estar associadas à universalização da pré-escola, seja por estímulos diretos a investimento na primeira infância, seja pela promoção de ações que influenciam indiretamente. Aqui serão investigadas políticas de âmbito nacional, tal que políticas locais, promovidas por governos municipais ou mesmo estaduais, estão fora do escopo.

Desde a independência do Brasil em 1822, o país foi regido por sete constituições. De todas, a Constituição Federal de 1988 foi a única que explicitou a pré-escola como um dever do governo e determinou que os municípios seriam os principais provedores (Carvalho, 2006CARVALHO, A. M. O. T. Políticas nacionais de educação infantil: Mobral, educação pré-escolar e a revista Criança. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação, Campinas, SP. 2006.). Em 1996, a LDB definiu a educação infantil e determinou que esta fosse oferecida por meio de creches para crianças de até três anos de idade e pré-escolas para crianças entre quatro e seis anos. No entanto, as diferenças entre creche e pré-escola não foram estabelecidas de forma clara e objetiva. Note que, embora a Constituição Federal e a LDB tenham definido e regulamentado os aspectos e as reponsabilidades acerca da educação infantil, estas não são consideradas políticas públicas no contexto deste artigo. Ambas não provocaram efeito direto sobre matrículas, pois não estabeleceram a promoção de ações efetivas. No entanto, são consideradas condições necessárias para a existência das políticas públicas a partir de suas promulgações.

A análise desta seção consistirá em observar inflexões na tendência temporal da taxa líquida de matrícula. A ideia é a de que se uma determinada política pública influenciou a quantidade de matrículas, será observado um ponto de inflexão na série após sua implementação. Para isso, foi aplicado o Filtro HP que controla para componentes cíclicos da série temporal, obtendo uma representação suavizada da taxa líquida de matrículas da pré-escola. O ajuste feito pelo filtro permite que a série seja mais sensível aos efeitos de longo prazo de uma dada política (Kydland e Prescott, 1990KYDLAND, F. E.; PRESCOTT, E. C. Business cycles: Real facts and a monetary myth. Real business cycles: a reader, 383. 1990.; TELES et al., 2005TELES, V., SPRINGER, P., GOMES, M., PAES, N., & CAVALCANTI, A. Ciclos econômicos e métodos de filtragem: “fatos estilizados” para o caso brasileiro. Revista EconomiA, 6, 291-328. 2005.).

A Figura 2 apresenta a evolução da tendência da taxa líquida de matrículas e a taxa de crescimento dessa tendência após o uso do Filtro HP e servirá de referência ao longo do artigo. Observa-se que nos anos de 1972, 1979, 1997, 2002 e 2011 são identificados pontos de inflexão na taxa de crescimento. Esses anos marcam o início de períodos de aceleração no crescimento das matrículas (1972, 1997 e 2011) e de períodos de desaceleração (1979 e 2002). Deve-se ressaltar que o nível da taxa de crescimento depende do nível de matrículas no período anterior e, portanto, não será o foco da análise.

Figura 2:
Evolução da tendência das matrículas de crianças com 4 e 5 anos na pré-escola e da taxa de crescimento da tendência - Brasil, 1969 a 2017

Nota: A tendência foi captada pelo uso do Filtro HP.


Com o objetivo de investigar as possíveis influências das polícias públicas na taxa de matrículas líquidas da pré-escola, esta seção apresenta uma análise sobre a evolução dos investimentos públicos na pré-escola, o FUNDEB, a política de correção de fluxo no ensino fundamental e o Bolsa Família. Destaca-se que foram consideradas influências diretas e indiretas das políticas públicas na taxa líquida de matrículas da pré-escola.

4.1 Investimentos

O primeiro movimento em caráter de política pública adotado pelo governo acerca do ensino pré-escolar ocorreu em 1981 através do Programa Nacional da Educação Pré-escolar (PNEP). Neste programa, o governo federal destacou a importância dos primeiros anos de vida do indivíduo para o seu desenvolvimento e se comprometeu a ofertar, principalmente para a faixa etária entre quatro e seis anos, o ensino pré-escolar. Apesar disso, não se observa uma quebra de tendência da taxa líquida de matrículas após 1981. Ao contrário, como se observa no gráfico de baixo da Figura 2, a taxa de crescimento da tendência segue em queda ao longo dos anos 1980, ou seja, há aumento da tendência da taxa líquida de matrículas, mas em um ritmo cada vez menor ano a ano.

Por outro lado, o número de estabelecimentos públicos que ofertavam pré-escola quintuplicou nos anos 1980. A Figura 3 mostra a evolução do número de pré-escolas, discriminado por rede - pública e privada. Como referência, a figura inclui também a taxa líquida de matrícula (eixo à direita). Após uma lenta expansão de estabelecimentos públicos nos anos 1970, observa-se um grande crescimento nos anos 1980 (mais que proporcional às matrículas) sugerindo que o PNEP influenciou a geração de infraestrutura que viria possibilitar adiante uma expansão mais forte das matrículas. Isso indica que a expansão pré-escolar observada no período foi puxada por investimentos públicos.

Figura 3:
Evolução do número de estabelecimentos com pré-escola: Brasil, 1969 a 2017

Notas:

1 - Em 1990 não houve Censo Demográfico nem Censo da Educação Básica.

2 - Os números de estabelecimentos em 1994 e 1995 foram omitidos por apresentarem valores inconsistentes com a série histórica.


Conjuntamente, outro fator pode ter contribuído indiretamente para o aumento da oferta de infraestrutura para a pré-escola, o Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL). O MOBRAL foi um órgão criado no final dos anos 1960 e efetivamente implementado no início dos anos 1970 para atuar prioritariamente na alfabetização de adolescentes e jovens. Com o passar dos anos, o programa expandiu seu campo de atividade, abrangendo as áreas de saúde e cultura e, no início dos anos 1980, já atuava em quase todos os municípios brasileiros (Carvalho, 2006CARVALHO, A. M. O. T. Políticas nacionais de educação infantil: Mobral, educação pré-escolar e a revista Criança. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação, Campinas, SP. 2006.). Em 1981, o PNPE foi lançado em associação ao MOBRAL, visando expandir as vagas de pré-escola a baixo custo. Assim, foi trazido à educação pré-escolar a metodologia já aplicada à alfabetização de adultos: recursos humanos não profissionais aplicados em espaços ociosos na comunidade (Carvalho, 2015CARVALHO, A. M. O. T. Formação Docente para a Educação Pré-Escolar na Época da Ditadura Militar. Educ. Real., Porto Alegre, v. 40, n. 4, p. 1061-1075, Dec. 2015.). Dessa forma, a existência do MOBRAL parece ter facilitado o planejamento e execução do PNPE.

A partir do final dos anos 1980 até meados de 2000, observa-se na Figura 3 um crescimento constante e praticamente linear do número total de estabelecimentos, até atingir o ápice em 2007. Deste ponto em diante, há um processo de ligeira redução do número de pré-escolas. Nota-se que a taxa de matrícula inicialmente não acompanha a referida expansão. Apesar de crescente, o aumento mais acelerado na taxa de matrícula ocorre após os anos 2000. Enquanto há aumento de 36 pontos percentuais entre 1980 e 2000, 30 pontos percentuais são observados entre 2000 e 2010. Isso indica que a expansão passou a ocorrer via aumento da quantidade de alunos por estabelecimento, uma vez consolidada a infraestrutura em termos de estabelecimentos.

Outra forma de observar a expansão da oferta de pré-escola é por meio do quadro de docentes. A Figura 4 mostra a evolução do número de docentes que atuam na pré-escola por rede pública e privada. Esse número apresenta uma trajetória mais suave de crescimento em todo o período, não havendo pontos relevantes de redução na quantidade total. A quebra na tendência observada entre 2006 e 2007 refere-se a uma mudança metodológica no Censo da Educação Básica.4 4 Em 2007, o Inep implementa o novo censo escolar baseado em registros individuais de alunos e professores. Nos anos 1980, a expansão do corpo docente não acompanhou a velocidade de expansão dos estabelecimentos (o número dobrou, ao passo que o de estabelecimentos triplicou), mas é nesta década que o setor público passa a ser mais expressivo que o setor privado em termos de número absoluto de docentes. Isso é consistente com a implementação do PNPE, via contratação de mão de obra não especializada em pré-escola. No período mais recente, caracterizado pela estabilidade no número de estabelecimentos, a expansão no número de docentes ainda persiste, o que corrobora a ideia de que as pré-escolas passaram a crescer em termos de número de alunos atendidos por escola.

Figura 4:
Evolução do número de docentes na pré-escola: Brasil, 1969 a 2017

Notas:

1 - Em 1990 não houve Censo Demográfico nem Censo da Educação Básica.

2 - O número de docentes em 1994 e 1995 foram omitidos por apresentarem valores inconsistentes com a série histórica.


Não há dados sobre despesas - pública ou privada - em pré-escola para o período até 2000. Por essa razão, a quantidade de estabelecimentos e o número de docentes foram utilizados como proxies para se obter uma estimativa, ainda que imperfeita. Os dados sugerem que pode ter havido certo “excesso” de investimento no setor público nos anos 1980 e 1990, já que, embora a taxa de matrículas tenha crescido junto com o número de docentes, essa não acompanhou o crescimento do número de estabelecimentos. Contudo, além de gerar condições para absorver a demanda na época, o investimento iria propiciar as condições necessárias para uma expansão mais vigorosa a partir da década de 2000. Já o setor privado permaneceu alheio a tudo isso, mantendo praticamente constante a relação entre estabelecimentos e docentes durante todo o período.

A partir de 2000, há dados de gasto público em pré-escola. Para se ter uma ideia de quanto o gasto público está associado ao aumento da matrícula, estima-se a correlação em 2000 entre a taxa de matrícula e as despesas no nível municipal. Como em 2000 a taxa de matrícula se encontrava em 37% no nível nacional, a variabilidade no nível municipal gera um ambiente favorável a este exercício, já que não há efeito teto na matrícula. A correlação linear estimada foi de 0,34, que pode ser considerada modesta. Para se ter uma ideia de magnitude, a correlação entre escolaridade e renda no nível do indivíduo em 2015 (dados da PNAD) era de 0,45. Ou seja, o exercício sugere que o investimento fez diferença, como observado na discussão até aqui; porém, sozinho não explica toda a história. Outros fatores certamente tiveram papel relevante.

4.2 Correção de Fluxo

Um fator que pode estar associado indiretamente à universalização da pré-escola é a política de correção de fluxo. Essa política inclui programas de promoção automática, regime de ciclos e classes de aceleração. Ainda que houvesse iniciativas pontuais nessa direção por parte de estados e municípios, essa política ganhou mais forma e força em meados dos anos 1990 com a participação do governo federal, regulada pela LDB. O Ministério da Educação e Cultura (MEC) passou a incentivar estados e municípios a aderirem ao programa Classes de Aceleração de Aprendizagem, um programa que tinha como objetivo corrigir o fluxo escolar dos alunos nos anos iniciais com defasagem de idade-série de dois anos ou mais. Em 1998, dois anos após seu início, com um total de R$ 107 milhões em incentivos (preços de 2019), havia 719 adesões, contabilizando cerca de 1,2 milhão de alunos (Prado, 2010PRADO, Iara. LDB e Políticas de Correção de Fluxo Escolar in Programas de Correção de Fluxo Escolar. Em Aberto v.17 (71) 49-56, Brasília. 2000.).

Com isso, em um contexto de redução demográfica, teria sido possível uma reorganização das escolas ao se reduzir em grande medida o número de alunos repetentes, de tal modo a liberar espaço para o aumento da oferta de vagas de pré-escola. Nesse sentido, o aumento no número de docentes na pré-escola pode ter ocorrido parcialmente devido à mudança da etapa de ensino de parte dos professores que lecionavam nos anos iniciais, os quais passaram a lecionar na pré-escola. Isso significaria que parte da expansão da pré-escola não precisou de mais investimento; o que teria havido foi uma realocação de recursos.

Infelizmente, não foram encontrados mais dados para documentar e/ou testar a hipótese acima. Para obter uma medida precisa, seria necessário observar, no nível do professor, a movimentação entre as etapas. No entanto, conforme mencionado anteriormente, o censo escolar passou a coletar informações no nível individual apenas em 2006. Assim, para avaliar o efeito dessas políticas, optou-se por analisar a distorção idade-série, que seria reduzida com a implementação da correção de fluxo.

A Figura 5 mostra que a taxa de distorção idade-série do ensino fundamental cai ao longo do período para o qual se tem dados, partindo de impressionantes 76,2% em 1982 até alcançar 17,2% em 2018. Nota-se que no período 1991-2010, que engloba a fase aguda da correção de fluxo, houve uma aceleração da redução da distorção quando comparada ao período anterior (1982-1991). Da mesma forma, há uma desaceleração na redução entre 2011 e 2018, isto é, após a fase aguda. Levando em consideração que não houve expansão do número de estabelecimentos a partir de meados da década de 2000, esse quadro reforça a ideia de que a correção de fluxo promoveu a liberação de espaço físico que permitiu a absorção de novas matrículas na pré-escola. Isso teria gerado o ponto de inflexão no crescimento das matrículas observado em 1997 (Figura 3).

Figura 5:
Taxa de distorção idade-série no ensino fundamental: Brasil, 1982 a 2018

4.3 FUNDEB

Outro mecanismo que influenciou diretamente o investimento na pré-escola foi a criação do FUNDEB em 2007. Ao vincular a repartição de recursos para educação ao número de matrículas, o fundo automaticamente criou um incentivo aos municípios - responsáveis pela provisão da educação infantil - a ampliar a oferta de vagas para toda a educação básica. Vale lembrar que o fundo que o precedeu, o Fundef,5 5 Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério. criado em 1997, destinava recursos apenas para o ensino fundamental. A taxa líquida de matrícula na pré-escola estava abaixo de 65% quando o FUNDEB foi criado. No entanto, nota-se que o Fundo não foi suficiente para evitar a queda na taxa de crescimento das matrículas nos primeiros anos após 2007. Conforme observado na Figura 2, há um ponto de inflexão apenas em 2011.

É possível argumentar que a queda na taxa de crescimento seria ainda maior na ausência do FUNDEB. Há evidências de que o fundo (juntamente com o Fundef) teria aumentado a frequência escolar para alunos de 7 a 14 anos entre 2000 e 2010 (Cruz e Rocha, 2018CRUZ, G., ROCHA, R. Efeitos do FUNDEF/B sobre frequência escolar, fluxo escolar e trabalho infantil: uma análise com base nos Censos de 2000 e 2010. Estudos Econômicos (São Paulo) 48, no. 1 (2018): 39-75.), de tal modo que poderia ter um efeito positivo também na pré-escola. Ao analisar a legislação da época, há indícios de que a nova política de redistribuição de recursos pode ter tido um efeito maior após uma mudança na constituição acerca da educação básica.

Em 2009, a Emenda Constitucional nº 59 determinou que a idade obrigatória para o ingresso aos estudos da educação básica fosse reduzida de seis para quatro anos de idade, tornando obrigatória a frequência à pré-escola. Nota-se pela Figura 2 que a taxa de crescimento da tendência continuou caindo após 2009. No entanto, como a emenda foi aprovada em novembro daquele ano, é razoável supor que não tenha tido um grande efeito em 2009 nem em 2010. O ponto de inflexão observado em 2011 sugere que a obrigatoriedade fez aumentar as matrículas após um período de ajuste. Ao que tudo indica, a existência de estabelecimentos e de recursos foi importante para a recuperação do crescimento da taxa.

4.4 Bolsa Família

As políticas analisadas até aqui foram majoritariamente voltadas à provisão de oferta de vagas na pré-escola. Um possível efeito sobre a demanda por pré-escola pode ter sido gerado pelo Programa Bolsa Família, criado em 2003 via Medida Provisória (convertida em lei em 2004). Embora o benefício seja composto por uma transferência monetária condicional ao cumprimento por parte da família de determinadas ações associadas a saúde e educação das crianças, a frequência escolar é cobrada apenas das crianças a partir dos seis anos de idade. No entanto, é possível que a existência da condicionalidade tenha influenciado o comportamento das famílias também com relação às crianças menores de seis anos, gerando um aumento da demanda por pré-escola.

Como o programa possui um público-alvo bem definido, para estudar uma possível relação entre o programa e a matrícula na pré-escola, a ideia é analisar o comportamento da taxa de matrícula para grupos mais e menos afetados pelo programa. Sob a hipótese de que o programa teve um efeito diferencial na frequência escolar das crianças em idade pré-escolar, espera-se que a frequência tenha aumentado mais para famílias de renda mais baixa, principalmente quando comparada à frequência observada para famílias com renda superior, mas próximas ao nível de renda mais baixo.

A Figura 6 mostra a frequência escolar por decil de renda domiciliar per capita de 2001 a 2015. Não há uma tendência clara de maior crescimento da frequência escolar para o primeiro decil. A mesma conclusão vale para o segundo decil. O que se observa é um crescimento relativamente homogêneo para os oito primeiros decis da distribuição de renda, resultando na queda da diferença dos demais decis em relação ao decil mais alto da distribuição, que já era bastante elevado em 2001. Em 2015, 17 pontos percentuais separavam o decil mais alto do mais baixo. Portanto, apesar da limitação do quadro apresentado, não parece haver fortes indícios de que houve uma grande contribuição do programa Bolsa Família para o aumento das matrículas na pré-escola.

Figura 6:
Frequência escolar por decil de renda domiciliar per capita: 2001 a 2015

Com isso, encerra-se aqui a análise da interação entre políticas públicas e expansão da pré-escola no Brasil. O termo “políticas públicas” foi utilizado para se referir a temas abrangentes, incluindo legislação, financiamento, emenda constitucional e programas de promoção à pré-escola propriamente ditos. Conforme observado anteriormente, o objetivo não foi esgotar a lista de possíveis temas associados à pré-escola. Após uma revisão histórica do período em questão, analisaram-se as políticas de caráter nacional com maior potencial para influenciar a universalização da pré-escola. Observou-se que políticas de correção de fluxo e a obrigatoriedade de matrícula aos quatro anos de idade foram ações que potencialmente impactaram a tendência da taxa de matrícula da pré-escola no período analisado. O que foi viabilizado possivelmente pelo investimento público prévio em estabelecimentos pré-escolares.

5. PARTICIPAÇÃO FEMININA NO MERCADO DE TRABALHO

A parte final da análise da universalização da pré-escola aborda um dos fatores mais presentes na literatura sobre a demanda por escola para crianças em idade pré-escolar, a saber, a importância da participação feminina no mercado de trabalho. A hipótese é a de que o crescente anseio das mulheres em ofertar trabalho a partir da segunda metade do século XX pressionaria o poder púbico a expandir a oferta de vagas pré-escolares.

As creches foram produto da primeira Revolução Industrial que trouxe consigo necessidades específicas da nova classe trabalhadora. Nesse contexto, alguns autores argumentam que o atendimento da pré-escola, assim como o da creche, foi consequência de reivindicações atreladas à maior participação feminina no mercado de trabalho (Kuhlmann Jr., 2000KUHLMANN JR, M.; FUNDAÇÃO C. C. Histórias da educação infantil brasileira. Revista Brasileira de Educação, p. 5-19, 2000. ; Rosemberg, 1987ROSEMBERG, F. A educação da criança pequena na produção do conhecimento e a universidade. Revista de Psicologia, v. 5, n. 2, p. 3-12, 1987. ). No Brasil, até 1996, a educação infantil não fazia parte da educação básica brasileira e, legalmente, apenas a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) de 1943 fazia menção a creches especificamente para atender às trabalhadoras com filhos em período de amamentação.6 6 Art. 389, Parágrafo Único da CLT/1943.

A relação entre oferta de trabalho e oferta de pré-escola - nas duas direções - é inconclusiva na literatura internacional, ora apresentando correlações positivas, ora apresentando ausência de correlação (Blau e Carrie, 2006BLAU, D.; CARRIE, J. Who’s Minding the Kids?: Preschool, Day Care, and After School Care. The Handbook of Education Economics, v. 2, n. March 2003, p. 1163-1266, 2006. ; Gelbach, 2002GELBACH, J. B., 2002. Public schooling for young children and maternal labor supply. Am. Econ. Rev. 92 (1), 307-322.; Berlinski e Galiani, 2007BERLINSKI, S.; GALIANI, S. The effect of a large expansion of pre-primary school facilities on preschool attendance and maternal employment. Labour Economics, v. 14, n. 3, p. 665-680, 2007. ; Baker et al,. 2008BAKER, Michael; GRUBER, Jonathan, MILLIGAN, Kevin, 2008. Universal child care, maternal labor supply, and family well-being. J. Polit. Econ. 116 (4), 709-745.; Lefebvre e Merrigan, 2008Lefebvre, Pierre, Merrigan, Philip, 2008. Child-care policy and the labor supply of mothers with young children: a natural experiment from Canada. J. Labor Econ. 26 (3), 519-548.; Lundin et al., 2008LUNDIN, D.; MÖRK, E.; ÖCKERT, B. How far can reduced childcare prices push female labour supply? Labour Economics , v. 15, n. 4, p. 647-659, 2008.; Cascio, 2009CASCIO, E. U., 2009. Maternal labor supply and the introduction of kindergartens into American public schools. J. Hum. Resour. 44 (1), 140-170.; Fitzpatrick, 2010Fitzpatrick, M. D., 2010. Preschoolers enrolled and mothers at work? The effects of universal pre-kindergarten. J. Labor Econ. 28 (1), 51-85.; Havnes e Mogstad, 2011HAVNES, T.; MOGSTAD, M. Money for nothing? Universal child care and maternal employment. Journal of Public Economics , v. 95, n. 11-12, p. 1455-1465, 2011. ; Nollenberger e Rodríguez-Planas, 2011NOLLENBERGER, N., Rodríguez-Planas, N. Child care, maternal employment and persistence: a natural experiment from Spain. IZA Discussion Paper No. 5888. 2011.; Schlosser, 2011SCHLOSSER, A. Public Preschool and the Labor Supply of Arab Mothers: Evidence from a Natural Experiment. Tel Aviv University, 2011. ; Bassok et al., 2014BASSOK, D.; FITZPATRICK, M.; LOEB, S. Does state preschool crowd-out private provision? The impact of universal preschool on the childcare sector in Oklahoma and Georgia. Journal of Urban Economics, v. 83, 2014. ; Haeck et al., 2015HAECK, C.; LEFEBVRE, P.; MERRIGAN, P. Canadian evidence on ten years of universal preschool policies: The good and the bad. Labour Economics , v. 36, 2015. ). Bauernschuster e Schlotter (2015BAUERNSCHUSTER, S.; SCHLOTTER, M. Public child care and mothers’ labor supply-Evidence from two quasi-experiments. Journal of Public Economics, v. 123, 2015. ) argumentam que uma das explicações para a baixa correlação seria que uma diminuição marginal nos custos não afetaria a oferta de trabalho materno quando a taxa de empregabilidade e cobertura de atendimento já são altas. Além disso, não seriam esperados efeitos substanciais em termos de emprego se houver um efeito de compensação (crowding out) entre estabelecimentos privados e públicos.

No Brasil, Scorzafave e Menezes Filho (2001SCORZAFAVE, L. G.; MENEZES-FILHO, N. A. Participação feminina no mercado de trabalho brasileiro: evolução e determinantes. Pesq. Plan. Econ., v. 31, n. 3, p. 441-478, Dec. 2001. ) mostram um aumento na participação feminina de 35% entre 1982 e 1997 usando dados da PNAD (IBGE). Os autores encontram ainda que filhos com menos de dez anos reduzem a probabilidade de participação no mercado de trabalho. Já Bruschini e Lombardi (1996BRUSCHINI, M. C. A.; LOMBARDI, M. R. O trabalho da mulher brasileira nos primeiros anos da década de noventa. Anais do X Encontro Nacional de Estudos Populacionais. Anais. 1996) argumentam que a participação feminina se expandiu durante os anos 1970 quando mulheres mais escolarizadas de classe média buscaram inserção no mercado de trabalho. O crescimento econômico brasileiro da época e a expansão do setor terciário teriam contribuído para a absorção da força de trabalho feminina. Isso sugere um papel menos relevante da demanda por pré-escola no Brasil para explicar a universalização.

A Figura 7 mostra a evolução da taxa de participação das mulheres no mercado de trabalho de acordo com Censo Demográfico (eixo à direita). A figura inclui também o número de estabelecimentos com pré-escola (eixo à esquerda) entre 1970 e 2017, já apresentado na Figura 3. Como pode ser observado, a participação cresceu em todo o período, com duas fases um pouco mais agudas, sendo uma nos anos 1970 e outra nos anos 1990. Nos anos 1970, a expansão dos estabelecimentos, no entanto, foi modesta. Já nos anos 1990, a expansão dos estabelecimentos iniciada na década de 1980 continua, mas de forma menos acelerada em relação à década anterior e ao que se observaria na década seguinte. Com relação às matrículas, por um lado, a expansão da participação nos anos 1970 coincide com o aumento da taxa de crescimento das matrículas na segunda metade da década, como pode ser observado na Figura 2. Entretanto, é uma época em que o nível de matrículas ainda é baixo. Por outro lado, nos anos 1990, observa-se uma redução na taxa de crescimento das matrículas. Levando em conta todo o período, o cenário sugere que a oferta de trabalho reagiu à expansão de pré-escolas ao invés de tê-la pressionado.

Figura 7:
Evolução da taxa de participação feminina e estabelecimentos com pré-escola: 1970 a 2017

Notas:

1 - Em 1990 não houve Censo demográfico e nem Censo da educação básica.

2 - O número de estabelecimentos em 1994 e 1995 foram omitidos por apresentarem valores inconsistentes com a série histórica.


A Figura 8 traz mais elementos para a análise. Utilizando dados da PNAD ­(IBGE), verificou-se se havia crianças com até cinco anos de idade residindo no mesmo domicílio em que moravam as mulheres. Com isso, foi possível calcular a participação no mercado de trabalho de acordo com a característica do domicílio. A ideia é construir uma proxy para verificar em que medida o aumento da oferta de trabalho ocorreu para mulheres com filhos, que teriam interesse em matriculá-los na pré-escola. A figura apresenta os dados de 1976 a 2015.7 7 Ao longo dos anos, há alterações na definição de participação no mercado de trabalho por conta de mudanças no questionário. Como o interesse recai na tendência, a preocupação com um possível viés é baixa. A ideia é que, para haver uma pressão feminina na demanda por pré-escola, o crescimento da taxa de participação durante a década de 1980 teria que ser puxado por mulheres com crianças em idade pré-escolar ou próximas a esta. Da mesma forma, se é verdadeira a hipótese de que a expansão da pré-escola permitiu o ingresso da mulher no mercado de trabalho, o mesmo fenômeno teria que ser observado na década de 1990.

Figura 8:
Composição da taxa de participação feminina em domicílios com e sem crianças de até 5 anos de idade de 1976 a 1999

A figura mostra que a participação de mulheres que residem em domicílios com crianças permaneceu estável na maior parte do tempo, oscilando entre 15% e 16% até 2006, quando se inicia um período de queda na taxa. Com isso, o crescimento da participação feminina está majoritariamente associado a mulheres em domicílios sem crianças em idade pré-escolar. Em 1977, a taxa de participação era de 36%, sendo que 58% (21% - barra cinza-claro) eram mulheres sem crianças em casa. Já em 2009, ápice da participação feminina (56%), a porcentagem de mulheres sem filhos alcança 75%. Dessa forma, a maior parte das mulheres que ofertavam trabalho, e que foi responsável pelo crescimento da oferta, não poderia ter sido beneficiada pela expansão de estabelecimentos pré-escolares nem ter sido a causa do excesso de demanda de vagas.

Portanto, a participação feminina no mercado de trabalho brasileiro não parece explicar de forma contundente a universalização pré-escolar observada no final dos anos 2010 nem o surgimento e expansão ocorridos após a década de 1980. Isso não significa que, em alguns casos particulares - estado ou município ou mesmo em algum ano - a participação das mulheres não tenha sido importante. No entanto, de forma geral, apesar do crescimento observado no período tanto para a pré-escola quanto para a oferta de trabalho das mulheres, há evidências que não corroboram a hipótese da pressão exercida pela participação feminina.

CONCLUSÃO

Considerando crianças de 4 e 5 anos de idade, observa-se que, em 50 anos, a taxa de matrícula na pré-escola saiu de 3,7 para 78,9%. Este artigo procurou analisar em que medida fatores como oferta de trabalho feminina, investimento público e demografia contribuíram para essa expansão.

A análise sugere que não houve um fator decisivo para a expansão da pré-escola no Brasil. Fatores tidos como cruciais na expansão, como a pressão da oferta de trabalho feminina ou a redistribuição de recursos via FUNDEB, não encontram respaldos inequívocos nos dados, o que não significa que não tiveram sua parcela de contribuição. Por outro lado, é possível que efeitos colaterais do MOBRAL, que aparentemente permitiu avanços em termos de estrutura física, e as políticas de correção de fluxo, que teriam contribuído para geração de vagas para uma demanda crescente, possam ter tido sua importância, ainda que não tivessem como objetivo específico o atendimento à pré-escola. É possível ainda que ações pontuais no âmbito municipal ou estadual possam ter contribuído para a expansão; porém, por serem específicas, não foram objetos de análise deste artigo - mas dificilmente teria efeitos nacionais. Além do papel da demografia, a universalização da pré-escola parece fruto de políticas não coordenadas, que reagiam a situações que se tornaram relevantes com o passar do tempo e, que, portanto, não tinham o potencial de alterar o que já estava em curso, a não ser marginalmente.

Finalmente, vale ressaltar que o artigo não trata de qualidade da pré-escola. É relativamente recente na literatura a consolidação da ideia de que o investimento na primeira infância é um dos principais determinantes do sucesso escolar e profissional. Talvez por isso o foco das políticas públicas ao longo dos anos tenha sido a oferta de vagas. Com a rápida expansão da pré-escola, há a preocupação com um possível trade-off entre quantidade e qualidade, mas ainda há pouca evidência a respeito desse tema.

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  • VIEIRA, S. L. A educação nas constituições brasileiras: texto e contexto. Revista brasileira de estudos pedagógicos. 2007.
  • 1
    Crianças com 6 anos de idade foram excluídas da análise por motivos de consistência da análise, pois a partir de 2006 a lei 11.274/2006 determinou que estas deveriam ser atendidas pelo Ensino Fundamental.
  • 2
    Outras fontes de dados e metodologias podem trazer números diferentes. Por exemplo, a PNAD Contínua, com informações autodeclaradas, mostra que, no 3º trimestre de 2018, 94% das crianças de 4 e 5 anos frequentavam escola.
  • 3
    Alguns exemplos são o Plano de Educação Infantil (PLANEDI) e o Programa de Atendimento ao Pré-escolar (PROAPE).
  • 4
    Em 2007, o Inep implementa o novo censo escolar baseado em registros individuais de alunos e professores.
  • 5
    Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério.
  • 6
    Art. 389, Parágrafo Único da CLT/1943.
  • 7
    Ao longo dos anos, há alterações na definição de participação no mercado de trabalho por conta de mudanças no questionário. Como o interesse recai na tendência, a preocupação com um possível viés é baixa.
  • 8
    JEL Classification: H52, I21; N36.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2024

Histórico

  • Recebido
    17 Ago 2022
  • Aceito
    31 Out 2023
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