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Notas sobre “recuperação” industrial e retomada do crescimento

Notes on industrial “recovery” and resumption of growth

RESUMO

A nota analisa a recente desaceleração da indústria brasileira e desafia a ideia de que o setor já estaria se recuperando.

PALAVRAS-CHAVE:
Crescimento econômico; produção industrial

ABSTRACT

The note provides an analysis of the recent deceleration of the Brazilian industry and challenges the idea that the sector would be already recovering.

KEYWORDS:
Economic growth; industrial output

Embora a economia brasileira tenha desacelerado seu crescimento a partir de 1974-1976, entre 1976 e 1980 a indústria de transformação ainda cresceu à taxa anual de 6,1%. As modificações da política salarial e o aumento do emprego, o aumento das exportações, e, principalmente, a manutenção do gasto público em altos níveis permitiram aquela expansão que, contudo, convivia com o recrudescimento inflacionário e com crescentes déficits do Balanço de Pagamentos.

Quadro 1:
Indústria de transformação taxas médias anuais de crescimento real da produção

A desaceleração imposta pelos novos rumos da política econômica recessiva, notadamente a “negociada” com o FMI, promoveu a mais profunda recessão de que se tem notícia neste pais. Em 1983, a indústria de transformação produziu 17% menos do que em 1980, e seus setores mais afetados foram o de Bens de Consumo Durável (22,4% menos) e de Capital (43,4% menos).

Regredimos. Vista a questão sob outra ótica, até o setor de Consumo não Durável foi consideravelmente atingido: embora tivesse diminuído “apenas” 4%, se considerarmos que a população do país aumentou no mesmo período 7,7% e adotando-se a hipótese de que a renda por habitante não tivesse crescido no período, esse setor, em 1983, era 12% menor do que em 1980.

A partir de fevereiro e março de 1984 certos setores da imprensa e até mesmo alguns economistas, valendo-se de resultados da produção industrial, menos ruins do que os apresentados em 1983, apressaram-se a dizer que já havíamos entrado na fase de recuperação. Alguns - e até economistas “progressistas” embarcaram nesta canoa furada - chegaram a afirmar que o próximo governo (de oposição) “não precisava fazer muito; bastaria não atrapalhar a inequívoca retomada que só os cegos e os recalcitrantes não enxergavam”.

Contra esse ufanismo apressado e inconsequente, publiquei alguns artigos (Gazeta Mercantil e Senhor) criticando aquela postura. Chamava a atenção para o fato de que, dos determinantes principais da demanda efetiva, os salários, lucros, gasto público, investimento e importações operavam a níveis reduzidos e que, portanto, ela não poderia crescer de forma autossustentada. O colossal aumento das exportações era circunstancial e devido a dois fatos que pouco tinham a ver com uma hipotética “política autônoma” de exportações: era a própria depressão do mercado interno que obrigava as indústrias a exportarem mais, e este aumento, em grande parte, se deveu ao substancial recorde do déficit comercial dos Estados Unidos em 1984.

Em síntese, mostrava que para uma efetiva recuperação havia que se retomar altos níveis de investimento e de gastos públicos redirecionados para uma política de emprego. Sem isto, o aumento provável de produção seria insuficiente para garantir as bases de uma retomada.

Advirta-se que a profundidade dessa crise, a estultice da política monetária e a violenta explosão dos preços trouxeram elementos adicionais que complicam ainda mais, tanto o quadro analítico quanto as possibilidades de um manejo mais eficiente da política econômica.

Com a inflação que temos e a desestruturação dos preços relativos, os parâmetros da questão se alteram gravemente. É hoje muito difícil tirar conclusões seguras e sérias sobre deflacionamento de séries de impostos, vendas, salários, produção etc., e seus resultados de altos ou baixos percentuais “em termos reais”.

Uma variável que certamente atuou não só sobre a sobrevivência das empresas, mas também inflacionou certas cifras “recuperacionistas” foi a da variação de estoques. O exemplo mais flagrante foi o caso do recorde de exportações de suco de laranja, em que parte dele foi produto de liquidação de estoques. Com a indústria de veículos parece ter ocorrido fenômeno inverso: suas vendas teriam caído ainda mais em 1984, enquanto sua produção se teria “recuperado” ... Contudo não dispomos de informações sobre essa variável, o que impede a análise mais acurada.

A variação dos preços relativos pode ter afetado seriamente a elaboração dos próprios índices da produção real da economia. A razão para isso é que: 1) quase todos os segmentos industriais aumentaram suas exportações; 2) o mercado internacional durante o período recessivo diminuiu os preços (em dólares) de nossas exportações; 3) para compensar esse movimento, os oligopólios mais “eficientes” aumentaram seus preços no mercado interno, acima do INPC, do IPA e, em muitos casos, bem acima do próprio IGP.

É dentro dessas limitações que farei alguns comentários sobre o balanço dos principais ramos industriais no período 1983-1984.

Antes, devo lembrar que o efeito do aumento das exportações sobre a produção industrial, para 1985 - como já havíamos advertido -, serão diminutos, tendo em vista não apenas as mudanças graduais no déficit norte-americano, como no baixo crescimento do comércio mundial, e das duras negociações externas que estão por vir.

SETORES DE BENS DE PRODUÇÃO E DE CONSUMO DURÁVEL

Embora os setores de bens de produção tenham crescido1 1 O confronto 1984-1983, neste artigo, compreende o “período” de janeiro-novembro, para a produção industrial, e janeiro-setembro, para as exportações. a taxas altas (10,0% no de bens intermediários e 12,4% no de bens de capital), não recuperaram seus níveis produzidos em 1980. A de intermediários em 1984 situa-se ainda 4,2% abaixo da de 1980 e a de bens de capital, em pior situação, 36,4% menor.

  • 1.1. A de bens intermediários - cuja tendência histórica no Brasil é crescer pouco acima da média industrial-, teve seu crescimento no período 1984-1983 causado, basicamente, pela expansão da metalúrgica (13,0%), química (8,8%), papel (6,4%) e borracha (11,1%). Contudo, a metalúrgica se encontra ainda 9% inferior ao nível de 1980, e o efeito depressivo da demanda interna de bens finais metálicos foi compensado em parte pelo aumento das exportações de produtos metalúrgicos básicos (19,7% em dólar), e de máquinas e bens de consumo durável (exclusive veículos), que cresceram 24,6% no período 1984-1983. Note-se que a relação exportações/valor da produção, que em 1980 era de 2,5% para o ramo metalúrgico, passa a 8,9% em 1983.

Fenômeno semelhante ocorreu com os ramos de papel e de borracha. Neste último, suas exportações cresceram substancialmente, com destaque para as de pneumáticos, que aumentaram l16% (em dólares). As exportações de papel e celulose aumentaram 48% (em dólares) e foram responsáveis diretas pela metade do aumento da produção desse ramo. O de química, de maior complexidade analítica, também teve seu. crescimento fortemente influenciado pelas exportações, notadamente as de derivados do petróleo e seus produtos.

  • 1.2. O compartimento produtor de bens de capital e de consumo durável teve desempenho diferenciado entre seus principais ramos. Enquanto as exportações de material de transporte caiam (em dólar) 4,7%, a produção de veículos pesados para o mercado interno aumentava substancialmente “compensando” parte da violenta queda de 1983. Tanto é assim que, a despeito da alta taxa de 1984, o ramo de material de transporte ainda se encontra 28% abaixo dos níveis de 1980.

O de mecânica, além do notável aumento de suas exportações, teve em máquinas agrícolas para o mercado interno a base de sua expansão. O ramo de material elétrico teve pequeno aumento, também ditado pela expansão das exportações.

Contudo, confrontadas a níveis produzidos em 1984, a mecânica situava-se 31% abaixo do de 1980 e o material elétrico, 24%. Cabe registrar a forte elevação de seus coeficientes de exportação, que passaram de 7% para l0%, na mecânica e material elétrico (juntos), e de 11% para 16% em material de transporte.

O SETOR DE BENS DE CONSUMO NÃO DURÁVEL

Corno se verá em seguida, o efeito depressivo sofrido por este setor é mais profundo do que aparentam seus índices de produção. Com efeito, enquanto a indústria de transformação, entre 1980 e 1983, reduzia sua produção à taxa média anual de -6,2%, a da produção de bens de consumo não durável atingia a taxa de -l,3%. Contudo, como mostrarei, o aumento substancial das exportações desse setor evitou que seus níveis de produção e desemprego fossem ainda maiores.

As dificuldades de informação estatística obrigam-me a analisar apenas seus principais ramos, agrupando-os em dois segmentos: o de alimentos/bebidas/fumo e o de têxtil/vestuário e calçados.

2.1. O segmento de alimentos/ bebidas/ fumo

No período 1980-1983, o ramo de alimentação teve taxa positiva que pode ser “explicada” a partir dos seguintes fatos: 1) aumento acumulado das quantidades exportadas em cerca de 30%; 2) violento aumento dos preços relativos no mercado interno; 3) reordenação dos gastos dos consumidores, tendo em vista os efeitos da depressão. Ainda assim, é preciso lembrar que a oferta de produtos agrícolas alimentares por habitante encontra-se hoje cerca de 25% abaixo dos níveis vigentes em 1977-1978.

No que se refere às exportações de alimentos, a quantidade exportada cresceu de 30%, mas seu valor caiu em 5%, refletindo a queda de cerca de 27% nos preços médios internacionais desses produtos. Portanto, o crescimento físico foi obviamente anulado pelo efeito-renda.

As principais alterações dessas exportações podem ser resumidas conforme apresentado no Quadro 2.

Quadro 2:
Exportações de produtos alimentares

Entre 1980 e 1983 os preços externos foram fortemente cadentes para açúcar, cacau e café, reduzindo acentuadamente o valor dessas exportações. Os preços da carne bovina industrializada e da congelada se reduziram em mais de 1/4, e o valor exportado só duplicou graças ao aumento de 264% nas quantidades exportadas. As carnes de aves tiveram preços reduzidos em 31%, aumentando o valor exportado à custa da duplicação da quantidade exportada.

A soja e seus produtos, graças a preços equilibrados e ao grande aumento da quantidade exportada, e ao notável aumento dos preços e das quantidades exportadas do suco de laranja, impediriam que a situação do conjunto das exportações do setor alimentar fosse ainda pior.

Em resumo, o efeito-preço transferiu para o exterior cerca de 27% do esforço produtivo­exportador do setor. Portanto, dado um coeficiente exportador de 0,25 para o setor, a produção exportada representou, para o total do período 1980-1983, 7,5% de crescimento da produção (8,8%), enquanto o mercado interno usou apenas 1,7%.

As estimativas recentes da FGV-IBGE para 1984-1983 apontam um sofrível desempenho para a agroindústria. Em que pese a “recuperação” havida na indústria, alimentos (-0,4), bebidas (0,1) e fumo (1,0) tiveram desempenho sofrível.

A situação adquire contornos mais graves se nos dermos conta de que, embora tenha havido melhoria nos preços externos (mais 22% em média), a quantidade total exportada caiu 5%. Com isso, o valor das exportações de alimentos cresceu apenas 16%. Dado um coeficiente médio de exportação de 25% para essa indústria, é lícito estimar que a taxa de crescimento do setor alimentar (-0,4%) pode ser decomposta em: 1) efeito exportação: 4,0%; 2) efeito mercado interno: -5,9% (!), pondo mais a nu a gravidade da atual crise.

Esse aumento das exportações de produtos alimentares deu-se em virtude do equilíbrio, entre 1983 e 1984, dos preços do açúcar e da carne, e dos aumentos que beneficiaram café, cacau e suco de laranja. Este último, graças ao desastre natural dos laranjais da Flórida, aumentou a quantidade exportada em 64% e o valor exportado em 115%. Soja e seus produtos sofreram ligeira queda, devido à redução dos preços e das quantidades exportadas de óleo refinado e de farelo, só parcialmente compensadas pelos aumentos dos preços e das quantidades da soja em grão e do óleo bruto.

Para o ramo do fumo, que tem hoje elevado coeficiente de exportação (0,33), a relação entre a crise e o aumento da exportação também se manifesta: entre 1976 (quando o coeficiente era de 0,19) e 1980, a indústria do fumo cresce 15,5% e sua exportação (fumo em folha) se eleva em 30% nas quantidades e em 120% no valor em dólares. Neste período, o “efeito exportação” parece ter sido responsável, no mínimo, por 40% do aumento da produção.

No período crítico de 1980 (coeficiente de exportação de 0,30) a 1983, a produção cai 2,6%; as quantidades exportadas crescem em 20% e seu valor em 60%, impedindo uma queda violenta desse ramo. Entre 1983 e 1984, a produção aumenta de 1%, paradoxalmente, junto com uma redução das quantidades exportadas (-7%) e do seu valor (-9%). Contudo, em São Paulo, o estado mais afetado pela crise, a produção do ramo em 1984 era 21% menor do que em 1983.

2.2. O segmento de têxtil/vestuário e calçados

A crise atual e a necessidade de buscar mercados externos fez com que esses ramos, que em 1970 exportavam menos de 1% de sua produção, elevassem seus coeficientes, em 1983, para 7,7% (o têxtil) e 17,3% (vestuário e calçados). Os dois ramos, juntos, são hoje responsáveis por 7,7% do total exportado pelo país e por 11,9% das exportações de industrializados.

Esses ramos também se beneficiaram da nova política salarial e da continuidade da incorporação de novos trabalhadores: entre 1976 e 1980, cresceram, o têxtil, à taxa média anual de 4,8%, e o do vestuário e calçados a 3,3%. Contudo, 1/4 do aumento do ramo têxtil deveu-se ao acréscimo de suas exportações (que, em valor, aumentaram 74%), enquanto a cifra correspondente ao ramo vestuário e calçados situou-se em apenas 12%, dado que suas exportações cresceram somente 21% no período.

Entre 1980 e 1983, com o agravamento da crise, a retomada do arrocho salarial e aumento do desemprego, os dois ramos sofreram duramente. O têxtil reduziu sua produção à taxa média anual de -7,1% e o de vestuário e calçados, à taxa média anual de -2,6%.

O coeficiente de exportação/valor da produção, para o têxtil, que era de 1% em 1969, atingiu a 6,3% em 1980. Suas exportações, entre 1980 e 1983, caíram 2% em valor e aumentaram 31% em toneladas, refletindo tanto a profundidade da crise internacional (violenta queda nos preços externos), quanto a necessidade de aumentar as exportações para evitar os efeitos ainda mais danosos da depressão interna.

Não fora esse aumento das exportações, e a produção de 1983, que foi 19,6% menor do que a de 1980, cairia ainda mais, para 23%. No ramo de vestuário e calçados, cujo coeficiente exportador era de 0,5% em 1969 e sobe para 6,7% em 1980, as exportações aumentaram expressivamente, entre 1980 e 1983, em 35% nas quantidades e 64% no valor. Visto que a produção do ramo em 1983 foi 7,4% menor do que a de 1980, é lícito dizer que essa queda situar-se-ia entre 10% e 12% se não tivessem crescido suas exportações.

Neste ano - o da “recuperação” -, o IBGE estima, para o ramo têxtil, taxa de crescimento, em relação a 1983, de -4,3%. Dado que o coeficiente de exportação do ramo, em 1983, havia subido para 7,7%, e que as exportações têxteis cresceram excepcionalmente em 23% nas quantidades e em 30% no valor, pode-se deduzir que se as exportações não tivessem crescido, a queda da produção (devida à retração ainda maior do mercado interno) se teria situado entre -5,5% e -7,2%.

As perspectivas para o ramo têxtil tornaram-se ainda mais incertas, já que o comércio mundial de têxteis, regulado pelo GATT, estabeleceu quota de exportação aos países exportadores, nos principais mercados.

No caso brasileiro, as quotas já, foram atingidas em 1984 e, caso se mantenham contidas cm 1985, as exportações dificilmente poderão aumentar. Prevê-se, inclusive, redução, tendo em vista as alterações já anunciadas na política econômica dos Estados Unidos.

O ramo de vestuário e calçados, entre 1983 e 1984, tem crescimento estimado em 3,7%. Isto, já que o coeficiente exportador em 1983 atingiu a cifra de 17,3% como resultado do excepcional aumento de suas exportações (+ 55% em quantidades e + 57% em valor), fez com que o “efeito exportador” gerasse um crescimento de 9,7% e o “efeito interno” - no ano da “recuperação” - resultou numa queda da produção (-6,0%).

Os dados acima apontados mostram, de maneira inequívoca, a gravidade da crise brasileira, mais precisamente, revelam que, a manter-se a impatriótica política econômica atual, a economia do país regredirá ainda mais. O crescimento de 1984 revela cruamente que, além de crescermos por determinações alienígenas (FMI, déficit dos EUA etc.), remetemos para fora do país (juros) muito mais do que conseguimos crescer em relação a 1983.

O continuísmo, de que agora tanto se fala, significa a suicida política de se tentar manter esse estado de coisas.

Não foi para isso que o povo saiu, pacificamente, às ruas.

  • 1
    O confronto 1984-1983, neste artigo, compreende o “período” de janeiro-novembro, para a produção industrial, e janeiro-setembro, para as exportações.
  • JEL Classification: O47; O40.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 1985
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