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O déficit público: um modelo simples* * Versão inicial apresentada em Seminário do IPLAN a 29 de maio de 198S. Agradeço os comentários de Eduardo Lundberg e João do Carmo Oliveira.

Public debt: a simple model

RESUMO

Um modelo simples é desenvolvido para lidar com a dimensão financeira do público e sua relação com o ajuste externo. São discutidos os efeitos de uma desvalorização cambial, de uma flexibilização da restrição externa e o papel da política fiscal sob um efeito-riqueza bastante intenso. Por fim, um comentário sobre os determinantes da taxa de juros e seus aspectos intertemporais.

PALAVRAS-CHAVE:
Déficit público; estabilização

ABSTRACT

A simple model is developed to deal with the financial dimension of the public and its relation to external adjustment. The effects of an exchange devaluation, of an easing of the external restriction, and the role of fiscal policy under a wealth-effect intense enough are discussed. Finally, a comment on the determinants of the rate of interest and its intertemporal aspects.

KEYWORDS:
Public deficit; stabilization

É o déficit público o nó górdio da estabilização econômica no Brasil atual. Neste artigo, apresenta-se um modelo simples para captar questões levantadas nos debates recentes. Modelos mais sofisticados podem ser facilmente elaborados; o desafio está em captar os aspectos relevantes com máxima clareza.

A seção I discute as restrições interna e externa da economia. A seção II discute o modelo sob a hipótese básica e a seção III discute um caso paradoxal onde a redução do déficit exige uma política fiscal expansionista. A seção IV conclui com alguns comentários.

I. AS RESTRIÇÕES EXTERNA E INTERNA

Estima-se que 80% da dívida externa brasileira sejam dívida do governo. A dívida potencial, baseada em avais a devedores privados em difícil situação financeira, é maior ainda. Não nos interessa aqui comentar o processo de socialização da dívida externa, resultado tanto de cláusulas destinadas a evitar o risco cambial para devedores privados quanto da prática de honrar compromissos externos de devedores inadimplentes mesmo na ausência de avais da União. Interessa reter as implicações orçamentárias do fato de ser a dívida externa basicamente dívida do governo.

O modelo básico inicia-se com (1) e (2) abaixo:

T = r * D * - N M + d R (1)

a E r * D * + r D - F = D E F + b · E · N M - E · d R (2)

(1) é a restrição do balanço de pagamentos ou a restrição externa; (2) é a restrição orçamentária do governo, ou a restrição interna; (1) é escrita em dólares e (2) em cruzeiros reais, onde E é a taxa real de câmbio.

Em (1), T é a conta corrente sem juros; r* é a taxa nominal efetiva de juros em empréstimos externos (taxas de mercado mais sobretaxas e comissões); D* é a dívida externa liquida. NM é dinheiro novo e dR a variação de reservas. Por simplicidade, (1) omite o termo relativo aos investimentos diretos líquidos.

O lado esquerdo de (2) mostra os fatores responsáveis pelo déficit público global. A constante a é a proporção da dívida externa a cargo do governo, independente de sua alocação na União, nas Autoridades Monetárias, nas estatais ou em outros órgãos da administração. O termo rD capta, por sua vez, os juros sobre a dívida pública interna. A rigor deveríamos diferenciar entre dívida mobiliária, dívida bancária e a fornecedores, descontando os créditos do governo ao setor privado; r teria que ser similarmente decomposto. Em (2), F é o excesso de arrecadação do governo (impostos mais receita de estatais e autarquias) sobre o volume de gastos correntes exceto juros (isto é, gastos em consumo e investimento). F é o superávit fiscal corrente no seu verdadeiro sentido econômico, a não ser confundido, sob pena de grave equívoco, com o superávit do Orçamento Geral da União.

O lado esquerdo de (2) merece dois comentários:

  1. r* em (2) é o mesmo r* que figura em (1). Em (1), r* é a taxa nominal efetiva; em (2) é a taxa real efetiva. Ao não se descontar a inflação externa na determinação da desvalorização cambial nominal, transforma-se em taxa nominal externa em taxa real do ponto de vista do orçamento interno;

  2. a razão usualmente invocada para distinguir em (2) os fatores que pressionam o déficit em financeiros (E r* D” + r D) e fiscais (F) é a suposta diferença na velocidade de ajuste. Uma vez que os estoques da dívida (D* e D) são dados pelo passado, o componente financeiro seria, em um dado momento, menos compressível que o componente fiscal. Há razões mais profundas, no entanto, para diferenciar os dois componentes do que esta discutível diferença na velocidade do ajuste. Em 1985, F é uma magnitude positiva de aproximadamente 0,6% do PIB; é a existência de superávit fiscal corrente que fundamenta o diagnóstico sobre o caráter financeiro do déficit público brasileiro. Partições alternativas das contas do governo, como sua popularesca decomposição na soma dos déficits ou superávits dos vários orçamentos, impedem a correta apreensão da natureza do desequilíbrio do setor público. Além do mais, a decomposição entre componentes financeiros e fiscais permite identificar o papel crucial das taxas de juros. Um déficit pretérito que cresce a taxas reais de juros no mínimo mais de duas vezes maiores do que a taxa factível de crescimento econômico tende a perpetuar-se mesmo diante de políticas fiscais contracionistas.

O lado direito de (2) decompõe as fontes de financiamento do déficit global. A variável DEF é o financiamento interno do déficit ou, simplesmente; o déficit. DEF somente corresponde ao resultado operacional do FMI se a este adicionarmos os juros externos alocados às Autoridades Monetárias e sob a suposição NM = 0. DEF não é o déficit de caixa, uma vez que este é confinado ao financiamento interno via base monetária ou dívida mobiliária; DEF inclui, adicionalmente, fontes bancárias ou de fornecedores. Tudo o mais constante, quanto mais restritivo for o racionamento de crédito às estatais, maior o déficit de caixa, na medida que os recursos antes disponíveis têm agora que ser buscados ou via moeda ou via títulos; o déficit de caixa é, portanto, sensível à combinação de instrumentos utilizada para cobrir um dado valor de DEF.

Considere-se inicialmente o caso a = b = 0. Este é o caso do livro-texto; ao postular implicitamente que toda dívida externa é dívida privada, as teorias usuais só concebem a relação entre dívida externa e déficit através da acumulação ou desacumulação de reservas. Com efeito, com a = b = 0, (2) se transforma em (2.0):

E · d R + r D - F = D E F (2.0)

No Brasil de 1985, a está próximo de 0,8 e b da unidade. Substituindo (1) em (2), com b = 1, obtemos:

E · a T + 1 - a · d R - N M + r D - F = D E F (2.1)

O primeiro termo do lado esquerdo de (2.1) é aparentemente estranho. Vale a pena deter-se um pouco sobre seu significado.

Imaginemos uma situação inicial de equilíbrio em conta corrente: T = r* D*, com NM = dR = 0. Suponha-se um dólar extra inesperado na balança comercial que se traduza em um dólar de acumulação de reservas. Em (2.1), o impacto sobre o déficit é 1.E. Suponha-se agora uma queda nos encargos de juros de um dólar; com o mesmo T, há acumulação de um dólar de reservas. O impacto sobre o déficit público por (2.1) é somente (1 - a).E. A acumulação de reservas neste segundo caso impacta menos o déficit público porque o setor público beneficiou-se em uma proporção à da queda nos juros externos. A comparação entre os dois casos mostra que a mera observação da acumulação (ou desacumulação) de reservas não permite inferir seu impacto sobre o déficit financiado internamente quando parte substancial da dívida externa é dívida do governo.

Imaginemos agora uma situação de déficit em conta corrente financiado por dinheiro novo: r* D* - T = NM > 0, dR = 0. Há um colapso no mercado privado de crédito, NM cai a zero e o país equilibra-se aumentando T. Esta é a estória de sucesso no ajuste externo via expressivos saldos na balança comercial. A observação de (2.1) mostra que DEF cresce com maior T e menor NM. O ajuste externo traduz-se, assim, em desajuste interno do setor público, o endividamento externo sendo convertido em endividamento interno. O caso 3 na seção II examina a política necessária para conter o déficit público diante de estrangulamento externo.

Examinemos por último o dinheiro novo. Se partirmos de uma situação de déficit em conta corrente, é necessário dinheiro novo para evitar queda de reservas. Vemos em (2.1) que o dinheiro novo necessário para fechar o balanço de pagamentos, com dR = 0, não exerce impacto algum sobre o déficit público a ser financiado internamente quando comparado com a alternativa de fechar o balanço de pagamentos com queda no estoque de reservas. Partamos alternativamente de uma situação de equilíbrio em conta corrente onde, do ponto de vista externo, não haveria necessidade de dinheiro novo. Vemos em (2.1) que o impacto favorável de dinheiro novo ocorre não quando se traduz em mais reservas e sim quando permite uma redução em T sem necessidade de queima de reservas.

O modelo formado por (1) e (2.1) é completado com máxima simplicidade por (3) e, (4):

T = T E , y (3)

y = y E , F , r (4)

Em (3), T varia diretamente com E e inversamente com o nível de renda y. Estas relações seguem-se do peso da balança comercial em T. Em (4), o nível de renda depende diretamente da taxa de câmbio por causa da demanda externa e inversamente do superávit fiscal por causa da demanda interna. A hipótese básica que fundamenta a seção II é que a taxa de juros afeta inversamente a renda em (4).

A mecânica do modelo é simples. Controla o governo o câmbio E, a política fiscal F, a taxa real de juros interna e a variação de reservas dR. Os estoques de dívida D* e D são herdados do passado; resulta das variáveis de controle o nível de renda y, o déficit financiado internamente DEF e a conta corrente sem juros T.

II. O MODELO DA HIPÓTESE BÁSICA

Suponha-se dada a configuração do balanço de pagamentos (isto é, os valores T, r* D*, NM e dR), a taxa real de câmbio E e a proporção a. Para atingir o valor de T, só há um nível de renda possível por (3). A escolha de política é um par (F, r).

No Gráfico 1, a reta AA reflete os pares (F, R) que asseguram um dado valor para o déficit público. A curva de isodéficit AA é (2.1) para DEF=DEF¯. A curva BB, por sua vez, reflete os pares (r, F) consistentes com a configuração do balanço de pagamentos. Mais precisamente, a curva BB é a curva de iso-renda derivada de (4) ao valor da renda consistente com a configuração do balanço de pagamentos.

Gráfico 1:
A redução do déficit

O equilíbrio inicial é Q. A curva A’ A’ reflete um valor do déficit menor do que o da curva AA. O novo equilíbrio Q’ apresenta menor déficit e mesma renda que em Q; a redução do déficit é feita com menor taxa real de juros e política fiscal mais apertada.

No Gráfico 1, Q’ é o equilíbrio com r = r*. Em economias sujeitas a racionamento na oferta de crédito externo, a arbitragem entre taxas interna e externa de juros toma a forma da desigualdade r ≥ r* (ver AridaARIDA, P., (1985) “Macroeconomic Issues for Latin America. A ser publicado no Journal of Development Economics. ). Se no equilíbrio inicial r = r*, uma redução não recessiva do déficit público exigiria menor r e maior F. Mas se r = r* no equilíbrio inicial, o único instrumento disponível é a política fiscal. A contração fiscal sem queda nos juros é recessiva; a queda em y aumenta T e, portanto, ou reduz NM ou aumenta dR. O efeito sobre o déficit é indeterminado; tende a diminuir pela contração fiscal e aumentar pela acumulação de reservas ou redução de dinheiro novo necessário para fechar o balanço de pagamentos. O argumento vale igualmente se a taxa de juros for, por decisão de política, fixada a um patamar r=r¯>r*. Diante de taxas de juros fixas, a austeridade fiscal é certamente recessiva, mas não se pode determinar a priori seu impacto sobre o déficit. Quanto mais sensível o nível de renda ao superávit fiscal e mais sensível a conta corrente sem juros ao nível de renda, mais a austeridade fiscal sob taxas de juros fixas tende a aumentar o déficit público.

Consideremos agora o efeito de um alívio na restrição externa sem mudança na política cambial. O alívio aparece na forma de menor T sem perda de reservas. Pode decorrer o alívio de menores sobretaxas e comissões cobradas pelos credores externos, dinheiro novo, capitalização de juros, caping, queda da libor, etc. Com menor T, diminui o déficit público em (2.1) para um dado par (F, r). Por (3), cresce o nível de renda compatível com a restrição externa.

O Gráfico 2 ilustra o efeito do alívio externo. Por simplicidade omitimos o piso r*. A curva BB desloca-se para dentro; em B’B’ é possível atender a restrição externa com taxas de juros menores e menor esforço fiscal. A curva de isodéficit desloca-se para cima. O valor do déficit em A’ A’ (após o alívio externo) é idêntico ao valor do déficit em AA (antes do alívio externo).

Gráfico 2:
O alívio na restrição interna

Se o governo opta por manter o déficit inalterado, cresce o nível de renda e a política fiscal é mais folgada. Nada se pode dizer a priori sobre a taxa de juros; ela pode crescer ou diminuir na transição de Q para Q”. O efeito sobre o déficit público aparece na comparação entre os equilíbrios Q e Q’. A mix (r, F) de Q’, na ausência de alívio externo, não reduziria o déficit por comparação com o equilíbrio Q. Ao possibilitar o novo equilíbrio Q’, o alívio na restrição externa reduz o déficit e a taxa de juros, aumentando a renda com uma política fiscal mais folgada.

Examinado o alívio na restrição externa, passamos à discussão do efeito de um colapso no mercado privado de crédito como em 82. O valor de NM cai a zero; é feita uma desvalorização cambial real expressiva para compensar a queda em NM através de T. A melhoria na balança comercial é absorvida pelo pagamento de juros; não há acumulação de reservas.

Neste caso, aumenta o déficit público em (2.1) pois T e E são maiores. É necessário mudar a mix (r, F) para anular o efeito adverso da desvalorização sobre o déficit.

Devemos distinguir entre duas possibilidades. A desvalorização aumenta a renda em (4); trata-se de saber se o incremento na renda é estritamente aquele possibilitado pela desvalorização ou se há um overshooting na taxa de câmbio. Nas duas possibilidades, o aumento em T resultante de (3) é o mesmo; mas na segunda há espaço para crescimento adicional do nível de renda. No Gráfico 3, as curvas AA, A’ A’ e A” A” refletem todas o mesmo déficit. AA vale antes da desvalorização; A’ A’ vale para a desvalorização estritamente necessária para viabilizar o valor de T desejado; A” A” resulta do overshooting, o valor de T sendo o mesmo mas com maior E.

Gráfico 3:
A desvalorização cambial com déficit constante

A mesma distinção aparece quanto à curva BB. Se a desvalorização é a estritamente necessária, os pares (r, F) que asseguram o equilíbrio externo após a desvalorização são idênticos ao que valiam antes. Se há overshooting, o crescimento adicional de y leva a curva BB a deslocar-se para dentro até B’B’.

No Gráfico 3, Q é o equilíbrio existente antes da desvalorização; Q’ é o equilíbrio após a desvalorização estritamente necessária; e Q” é o equilíbrio com overshooting na taxa real de câmbio. Para manter o déficit constante diante de uma desvalorização cambial, é necessário diminuir a taxa real de juros. Tal resultado reforça a prescrição de ajuste estrutural em Arida e Lara-ResendeARIDA, P. e LARA-RESENDE, A., (1985) “Recessão e Taxa de Juros: O Brasil nos Primórdios da Década de 1980”, Revista de Economia Política, janeiro-março. ; a diferença é que naquele artigo prescrevia-se câmbio desvalorizado e taxa de juros real reduzida (igual à externa) através de um argumento de incentivos corretos ao investimento privado.

Vemos também no Gráfico 3 que, na ausência de overshooting, a política fiscal adequada para manter o déficit constante é contracionista: F é maior em Q’ do que em Q. Mas se o overshooting for suficientemente intenso, a política fiscal adequada pode ser expansionista: F é menor em Q” do que em Q’. O limite da expansão fiscal é, no entanto, ditado pelo piso r*. Um overshooting maior do que aquele implícito nas curvas B’B e A”A” só se traduz em aumento adicional na renda às custas de maior déficit. No caso das curvas B”B” e A”A”, a renda é maior no equilíbrio Q’ do que em Q”, mas o déficit cresce inevitavelmente.

III. A HIPÓTESE ALTERNATIVA

Na seção II, não discutimos a questão colocada por BarroBARRO, R., (1974) “Are Government Bonds Net Wealth?”, Journal of Political Economy.: seria D percebido pelo setor privado como parte de sua riqueza líquida? Se a resposta for positiva, um aumento na taxa real de juros r faria crescer a renda do setor privado e, portanto, estimularia o consumo. Neste caso, deveríamos reescrever (4) assim:

y = y E , r D - F , r (4.1)

O segundo argumento de (4.1) é o impacto do déficit sobre a demanda, supondo que o pagamento de juros sobre a dívida pública é percebido como renda pelo setor privado. O segundo argumento afeta positivamente y. O terceiro argumento capta os efeitos tradicionais adversos da taxa de juros sobre o investimento e o consumo e, portanto, sobre y.

Vários comentários devem ser feitos nesta conexão:

  • 1) o modelo da seção II pode ter validade mesmo que (4.1) seja a formulação relevante; basta que um aumento de r em termos líquidos diminua y, ou seja, que a queda no investimento privado e o estímulo à poupança mais do que compensem a expansão de consumo derivada da maior rentabilidade dos empréstimos ao governo;

  • 2) seria o segundo termo de (4.1) a especificação adequada do impacto do déficit público? Pode-se argumentar que o relevante é a própria contrapartida do financiamento interno, ou seja, que em vez de (4.1), deveríamos ter a formulação (4.2):

y = y E , D E F , r (4.2)

  • O leitor observará, no entanto, que, por (2.1), o argumento desta seção vale tanto para (4.1) quanto para (4.2);

  • 3) a formulação (4.1) implica, como possibilidade, a relação direta entre y e r. Argumentos com plausibilidade podem ser feitos neste sentido. Pode-se argumentar que o investimento privado depende hoje muito mais das expectativas e do investimento público do que da taxa de juros, entendida no interior de seu campo factível de flutuação. Pode-se argumentar que o efeito da taxa real de juros sobre o consumo é de segunda ordem; o crucial são salários e prazos de financiamento. Nestas condições, é possível que exista uma relação direta, em termos líquidos, entre r e y. É esta a hipótese alternativa que discutimos nesta seção.

Na hipótese alternativa, a curva BB (dada a configuração do balanço de pagamentos, a taxa de câmbio e a proporção a) é positivamente indicada no plano (r, F). A curva BB, agora definida a partir de (4.1), é necessariamente mais inclinada do que AA. O Gráfico 4 mostra as consequências dessa hipótese.

Gráfico 4:
O paradoxo visto pelo efeito-riqueza

A curva A’ A’ no Gráfico 4 reflete um valor do déficit menor do que AA. No novo equilíbrio Q’, a taxa de juros é menor, mas a política fiscal é mais folgada. Tanto no caso da hipótese básica quanto no da hipótese alternativa, a contração fiscal sob taxas de juros fixas é recessiva, tendo um efeito indeterminado sobre o déficit. A novidade face ao Gráfico 1 está em que a austeridade fiscal junto com menores taxas de juros torna-se, primeiro, certamente recessiva e, segundo, pode aumentar o déficit por seu efeito sobre as contas externas. Na hipótese alternativa, menores taxas de juros diminuem a renda e o déficit; para manter a renda constante mantendo o impacto positivo sobre o déficit é necessário dosá-la juntamente com uma política fiscal menos restritiva.

O leitor refará sem dificuldade a análise dos Gráficos 2 e 3 sob a hipótese alternativa aqui considerada.

IV. COMENTÁRIOS

O quadro analítico acima exposto requer clarificação em dois aspectos: os determinantes da taxa real de juros interna, comentados mais longamente, e a dimensão intertemporal de ajustamento, comentada de forma breve e alusiva.

Quanto à taxa de juros interna, cristalizou-se a percepção de que é uma função do próprio déficit. Na ausência de redução do déficit, a menor taxa de juros se traduziria em menos títulos, mais moeda e inflação. Com o risco da hiperinflação presente, a relação (5) teria validade:

r = r D E F (5)

Se (5) é verdade, as variáveis de efetivo controle são F e E; dado o câmbio, a configuração do balanço de pagamentos em (1) e a proporção a, substituindo (5) em (2.1) obteríamos uma relação linear entre o déficit e a política fiscal. A política fiscal contracionista reduziria o déficit, que por sua vez reduziria a taxa de juros, que por sua vez voltaria a reduzir o déficit justamente por seu caráter financeiro. A relação (5) instaura, ao mesmo tempo, a primazia da política fiscal e a existência de um multiplicador financeiro dela sobre o déficit público.

Esta é a expressão mais sofisticada do argumento segundo o qual, se há um déficit, tudo o que é necessário é cortar gastos e aumentar impostos. A necessidade de austeridade fiscal emerge nas discussões do Gráfico 1 e confere um elemento de verdade a este argumento. A observação da realidade brasileira, contudo, dificilmente autoriza a relação linear (5). A taxa de juros interna resulta, além da arbitragem com r*, em grande medida de instruções legais e administrativas como as regras de compartimentalização dos mercados financeiros, o racionamento legal de crédito bancário interno ao setor público, os impostos no sistema de intermediação, o mecanismo das cartas de recompra, o formato dos leilões de títulos públicos, a regra de correção monetária e cambial, a existência de ativos com taxas de retorno legalmente determinadas etc. A parte o conjunto de instruções legais e administrativas, há a questão de saber se no espectro relevante de flutuação haveria a suposta relação entre queda na taxa real de juros e a expansão monetária. Se houver insensibilidade das demais variáveis, é possível reduzir, até certo ponto, a taxa real de juros sem monetização. Há por último a questão de qual o grau ideal de monetização, a regra de “quanto menos moeda, melhor” refletindo bem a retórica adequada para as Autoridades Monetárias, mas não necessariamente sua prática ideal.

Em resumo, ao invés de uma relação ponto a ponto em (5), mais adequado nas condições brasileiras parece ser descrever o campo de flutuação da taxa interna real de juros como apenas balizado pelo déficit e pela taxa externa.

Suponha-se, por contraste, que este campo se tenha esgotado e (5) tenha validade. Dois comentários são apropriados. Primeiro, uma contração fiscal reduz o nível de renda em (4), aumenta T em (3) e se traduz por mais reservas ou menor tomada de dinheiro novo. Nos dois casos, o déficit público tende a crescer. A formulação (5) não permite escapar da indeterminação da relação entre superávit fiscal e déficit, mencionada anteriormente; mas ao excluir a taxa de juros do rol dos instrumentos efetivos, faz com que, caso esta relação seja perversa, o único caminho de redução na taxa de juros passe por uma política fiscal expansionista.

Segundo, note-se que (5) supõe a dívida pública percebida como riqueza líquida do setor privado, pois no mundo de Barro não há relação entre déficit e taxa de juros. A combinação de (5) e a hipótese alternativa, contudo, reforça a indeterminação da relação entre política fiscal e déficit, pois a acumulação de reservas (ou redução de NM) é agora estimulada adicionalmente pela queda na taxa de juros induzida pelo aperto fiscal.

Quanto à dimensão intertemporal, cabe notar sua ausência no modelo acima desenvolvido. Do ponto de vista de um dado período analítico, é indiferente saber se o alívio na restrição externa, por exemplo, advém de uma queda na taxa de juros efetivamente paga ou de uma capitalização. Vale, todavia, uma advertência. A solidariedade entre a restrição externa e a restrição interna, dada pelo fato de ser a dívida externa basicamente dívida do governo, vale tanto no interior de um período, como vimos acima, quanto para uma série de períodos. Quanto mais rápido o ajuste externo (maior T), maior a necessidade de financiamento interno do governo. Não há muita originalidade em antever o resultado: dados os limites para a monetização, o peso do componente financeiro e a sensibilidade do emprego ao superávit fiscal, a trajetória do endividamento interno associada ao ajuste externo é de desequilíbrio crescente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • ARIDA, P., (1985) “Macroeconomic Issues for Latin America. A ser publicado no Journal of Development Economics.
  • ARIDA, P. e LARA-RESENDE, A., (1985) “Recessão e Taxa de Juros: O Brasil nos Primórdios da Década de 1980”, Revista de Economia Política, janeiro-março.
  • BARRO, R., (1974) “Are Government Bonds Net Wealth?”, Journal of Political Economy.
  • *
    Versão inicial apresentada em Seminário do IPLAN a 29 de maio de 198S. Agradeço os comentários de Eduardo Lundberg e João do Carmo Oliveira.
  • JEL Classification: H62; H63.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 1985
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