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“A Fantasia Organizada”: uma crônica do intervencionismo

“The Organized Fantasy”: a chronicle of interventionism

RESUMO

Trata-se de uma resenha de “A Fantasia Organizada” de Celso Furtado.

PALAVRAS-CHAVE:
Intervencionismo; Furtado; história do pensamento econômico; CEPAL; resenha

ABSTRACT

This is a review of “A Fantasia Organizada” by Celso Furtado.

KEYWORDS:
Interventionism; Furtado; history of economic thought; ECLAC; review

Com raríssimas exceções, os textos de economia costumam ser chatos e áridos, mesmo quando escritos por autores de talento. É preciso uma certa versatilidade para falar descontraidamente de temas como a inflação, o desemprego, o déficit público, a dívida externa e outros temas pesados. Mas isso não é problema para Celso Furtado, cujos 24 títulos publicados nos últimos 30 anos têm vendido inúmeras edições, principalmente após o clássico Formação Econômica do Brasil, de 1959, leitura obrigatória de todos os economistas brasileiros.

Na verdade, o batismo de fogo de Furtado nas artes literárias deu-se em 1946 com a publicação de um livro de contos De Nápoles a Paris, cujo fracasso de bilheteria teria levado o jovem autor a queimar os 500 exemplares encalhados, segundo contam os amigos. Foi assim que a literatura perdeu um possível talento e a economia política ganhou seu teórico de maior expressão no Brasil.

Entretanto, após um longo percurso explicando as várias facetas do capitalismo subdesenvolvido, Furtado retorna em 1984 com um trabalho polêmico sobre cultura (Cultura e Desenvolvimento em Épocas de Crise) e agora publica um livro, A Fantasia Organizada, que, apesar de ser uma obra de economia, ultrapassa as barreiras desse gênero literário, para entrar no campo da literatura econômica. Foram precisos muitos anos de reflexão e milhares de páginas escritas para que Furtado alcançasse a síntese de gêneros, amalgamando num só texto a história econômica, a história das ideias, a sua vivência pessoal e a dos principais personagens, misturados com pitadas de romance e reflexões filosóficas. Dessa maneira, ele conseguiu expor o nascimento e a consolidação do desenvolvimento no Brasil e na América Latina, precursor do atual estruturalismo, por meio de um método narrativo fundado por Platão com a dramatização das ideias filosóficas e que tem em Thomas Mann um de seus maiores expoentes atuais. Assim, A Fantasia Organizada apresenta as ideias e as interpretações econômicas dos principais intelectuais latino-americanos da década dos 50, não de forma fria e abstrata, mas encarnadas nos personagens que as criaram e defenderam, com uma certa carga de paixão e calor humano.

O tema central de A Fantasia Organizada é da maior atualidade, pois trata da formação da corrente intervencionista brasileira que iria se contrapor ao liberalismo econômico e ao neo­monetarismo de Eugênio Gudin e Octávio Bulhões prevalecente na época, para produzir uma concepção keynesiana de Estado adequada a um país de capitalismo retardatário. Daí por diante, o pensamento econômico brasileiro ficaria cindido em duas grandes correntes que perduram até o presente. De um lado, a velha corrente do liberalismo clássico e do monetarismo e, do outro, a corrente intervencionista estruturalista, com ramificações para o marxismo, mas centrada nas ideias da CEP AL (Comissão Econômica para a América Latina) e do desenvolvimentismo.

A história de Furtado começa no imediato após guerra, quando o ex-pracinha retorna à Europa em reconstrução e vivencia o debate político-ideológico que conduziria a uma nova atuação do Estado nos países capitalistas mais avançados. Tomava-se consciência de que as economias de mercado eram intrinsecamente instáveis e que essa instabilidade tendia a agravar-se com o avanço do capitalismo, conforme haviam previsto anos antes Pierro Sraffa, Joan Robinson, J. Schumpeter e outros expoentes da teoria da concorrência imperfeita. Furtado verificava também a crescente concentração do poder econômico que conduzia à diminuição do espaço do indivíduo e a uma atrofia da vida política. Nesse contexto, caberia ao Estado prevenir as crises, neutralizar os efeitos sociais da instabilidade inerente às economias de mercado e contrabalançar o avanço do poder econômico dos grandes conglomerados. Daí· a aplicação do chamado estado keynesiano nos EUA, na França, Itália, Alemanha e demais países, com uma intervenção mais direta na economia para assegurar a melhor alocação de fatores produtivos, combater o desemprego e impulsionar novos ciclos expansivos.

Foi nesse cenário de crescente intervencionismo estatal do final da década dos 40 que a ONU implantou uma comissão econômica para fazer um diagnóstico da América Latina. A princípio tratava-se de um empreendimento provisório que deveria funcionar por tempo limitado, à semelhança do que ocorrera com a comissão econômica criada para a Europa no pós-guerra, que ficara a cargo de Gunnar Myrdal, e nem passava pela cabeça dos americanos e ingleses - que controlavam a ONU - a possibilidade de essa comissão vir a consolidar-se e a criar uma teoria econômica antagônica com os princípios liberais do FMI e dos interesses das metrópoles. E foi justamente ao ingressar nos quadros da CEPAL que o jovem economista brasileiro iria colaborar na formulação de uma nova interpretação da dinâmica centro periferia e dos desequilíbrios estruturais engendrados nas economias periféricas, ao lado do gênio de Raul Prebisch. Aliás, Furtado revela aspectos contraditórios muito pouco conhecidos desse que foi a figura máxima da CEP AL e do desenvolvimentismo latino-americano. Pois se por um lado reconhece-se os méritos do economista argentino em ter lançado as bases de uma nova teoria do comércio internacional e da dinâmica periférica, Furtado censura sua colaboração com a junta militar que sucedeu Perón na Argentina, aderindo a certos preceitos ortodoxos que não caíam bem àquele que fora o campeão da crítica da Teoria das Vantagens Comparativas, também de extração liberal.

De qualquer maneira, foi sendo gestada nas oficinas da CEPAL uma concepção inovadora do estado keynesiano, adequada às economias de capitalismo retardatário. Se mesmo os países avançados não poderiam ser deixados ao sabor das forças de mercado, com mais razão cabia aos Estados periféricos assumir as rédeas do chamado processo de desenvolvimento. Note-se que o Estado desenvolvido exerce primordialmente uma função anticíclica, minorando os desequilíbrios típicos das economias oligopolizadas e administrando a superprodução de capital, enquanto nas economias periféricas o Estado puxa o ciclo e administra a escassez de capital, desempenhando as funções que o capital privado não tem condições de exercer, para garantir o avanço da industrialização. Na verdade, Furtado e os demais desenvolvimentistas idealizavam um Estado que estivesse não somente acima, como até mesmo à frente das classes sociais, no caso em pauta adiante da própria burguesia latino-americana, fraca demais para capitanear um sólido processo de industrialização capitalista na região. E aqui os desenvolvimentistas exageravam, seja na neutralidade do Estado, seja nos benefícios sociais que a industrialização e o desenvolvimento capitalista deveriam trazer, conforme reconheceria o próprio Raul Prebisch alguns anos depois. Não previram também que o vazio de poder poderia ser preenchido por uma tecnoburocracia civil e militar que fazia as vezes da burguesia local e internacional, com igual ou maior zelo.

Além de traçar um quadro vivo do rico processo de gestação do desenvolvimentismo intervencionista no Brasil, A Fantasia Organizada ainda ajuda a elucidar algumas questões obscuras da história da consolidação do capitalismo no Brasil. Antes de mais nada ele esclarece que a CEPAL somente sobreviveu às investidas dos EUA e Inglaterra graças à obstinação dos seus membros e ao respaldo de alguns governos latino-americanos, particularmente do governo Vargas, que buscavam alternativas menos dependentes dos centros hegemônicos mundiais. E aqui fica claro que os países mais avançados se opunham à industrialização brasileira patrocinada por um Estado planejador e protecionista, que acabaria diminuindo a ingerência externa nos negócios brasileiros. O capital estrangeiro interessou-se pelo nosso parque manufatureiro somente depois que a industrialização se tornou um fato irreversível, decididamente patrocinado pela burguesia industrial local, que demonstrou muita receptividade às ideias desenvolvimentistas, conforme atestam os animados debates relatados por Furtado entre o “staff” da CEP AL e as entidades de classe dos empresários.

Outra passagem importante de A Fantasia Organizada esclarece porque a Comissão Mista Brasil-EUA, uma comissão de alto nível formada em 1951 por técnicos americanos e brasileiros para analisar a realidade econômica do país e sugerir políticas de desenvolvimento, aceitou o projeto de industrialização dos intervencionistas caboclos, com protecionismo, lei do similar nacional e controle cambial, e chegou a propor a criação do BNDE, apesar da posição tradicionalmente contrária de Washington a tudo isso. Tratou-se de mais uma manobra de Getúlio Vargas, que exigiu essa posição dos EUA em troca do apoio brasileiro à Guerra Fria e à Guerra da Coréia. Curiosamente, o chefe da equipe brasileira dessa comissão, empenhado em defender as ideias desenvolvimentistas e intervencionistas, era nada mais nada menos do que o senador Roberto Campos, atual campeão do liberalismo econômico no Brasil. Em entrevista recente (Leia Livros/set. 85) o ex-ministro do Planejamento do Governo Castelo Branco afirmou que seu apoio ao protecionismo não passou de um “arroubo juvenil” que ele procurou consertar no presente. Entretanto, o “arroubo juvenil” do senador mato-grossense durou muitos anos e o perseguiu não só ao longo da década dos 50, quando ele foi presidente e superintendente do BNDE - principal instrumento do desenvolvimentismo no país, tendo inclusive convidado Furtado a trabalhar numa diretoria do BNDE dedicada ao Nordeste - como continuou praticando a intervenção maciça do Estado na economia após o golpe de 1964, se bem que sem nenhuma restrição ao capital estrangeiro.

Aliás, o desenvolvimentismo cochilou em relação ao capital estrangeiro, conforme reconhece Furtado, e deixou abertas as portas para a sua maciça penetração, apesar de ostentar bandeiras nacionalistas, que se aplicavam apenas às atividades comerciais. Em outras palavras, o capital de risco que implementava a industrialização, a grande meta do desenvolvimentismo, foi bem-vindo e provavelmente ultrapassou as expectativas e a capacidade de previsão dos estrategistas brasileiros, talvez em virtude do desinteresse que o capital estrangeiro demonstrara pelo parque manufatureiro local até meados dos anos 50. Nos trabalhos da CEPAL ficava clara sua concordância com a ideia de que os países da América Latina não tinham poupança suficiente para implementar um ritmo satisfatório de investimentos. Daí a necessidade de “poupança externa”, que poderia vir sob a forma de empréstimos de governo a governo e, em menor medida, como capitais de risco, até o ponto em que não comprometessem o equilíbrio dos balanços de pagamentos. Acontece que esses limites ficaram vagos e o capital estrangeiro soube se aproveitar muito bem dessa indefinição.

Uma questão· importante que não chega a ser abordada por Furtado diz respeito ao fracasso do desenvolvimentismo em produzir os benefícios sociais que prometera, como a elevação da renda dos trabalhadores, uma divisão mais equitativa da riqueza e outros efeitos que deveriam advir da industrialização. Mas essa é uma explicação que Furtado deverá dar nos próximos livros porque, afinal de contas, A Fantasia Organizada só vai até 1958 e relata uma pequena parte da rica experiência de vida do autor.

  • JEL Classification: Y30; B22.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 1986
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