Acessibilidade / Reportar erro

Endividamento e acentuação da miséria* * Limitaremos nosso estudo ao caso das economias subdesenvolvidas semi-industrializadas.

Indebtedness and poverty

RESUMO

Hoje o nível de endividamento está elevado e a responsabilidade desta situação não recai sobre o Fundo Monetário Internacional ou sobre os bancos. O endividamento tem origem no funcionamento dos regimes de acumulação e na política econômica seguida na década de 70. A modificação da situação econômica mundial, a passagem de uma economia internacional endividada e com liquidez para uma economia sem liquidez contribuíram para que o endividamento se autonomize em relação ao sistema produtivo. A dolarização das economias e do passivo das empresas públicas, a queda dos salários reais, o empobrecimento crescente de novos estratos populacionais, o agravamento da miséria alimentar nas cidades, constituem as consequências desse endividamento.

PALAVRAS-CHAVE:
Crise da dívida; dívida externa; fome; empobrecimento

ABSTRACT

Today the indebtment level is raised and the responsibility of this situation doesn’t fall back on the International Monetary Fund or the banks. The indebtment has origin in the functioning of accumulation regimes and in the economic policy followed in the 70’s. The modification of the world economic situation, the crossing of an indebtment international economy with liquidity to an economy without liquidity contributed so much to the debt become autonomous in relation to the productive system. The dollarization of economies and liabilities of public enterprises, the fall of real wages, the increasing impoverishment of new stratums of population, the aggravation of alimentary misery in the cities, constitute the consequences of this indebtment.

KEYWORDS:
Debt crisis; external debt; hunger; impoverishment

O montante da dívida reescalonada se eleva a 2,6 bilhões de dólares em 1981, 5,5 bilhões de dólares em 1982 e atinge 90 bilhões em 19831 1 W. Cline: International debt and the stability of the world economy. Ed, Institute for international economic. Washington 1983. p. 10. . Esta forte progressão poderia sugerir que os países subdesenvolvidos fora a OPEP não pagam mais suas dívidas. Não é nada disso.

O nível de endividamento é hoje tão elevado2 2 O Banco Mundial avalia em 810 bilhões de dólares, incluindo a dívida a curto prazo em 1983. Ver Debt and developing world 1984. que numerosos países não podem pagar o principal, pedem reescalonamento e pagam os juros. Mas o serviço da dívida é tão elevado hoje que, apesar destes reescalonamentos, assiste-se, recentemente, a uma mudança na orientação dos fluxos líquidos de capitais. As transferências líquidas fazem-se da periferia para o centro e, como observa The Economist, quanto mais os países subdesenvolvidos pagam, mais eles se desindustrializam, mais eles continuam a dever.3 3 The Economist, 31.03.84, pág. 77 e as figuras 1, 2, 3 no artigo.

A responsabilidade desta situação não recai sobre o Fundo Monetário Internacional ou sobre os bancos. O endividamento tem por origem o funcionamento dos regimes de acumulação ditos excludentes e a política econômica seguida nos anos 70.

A modificação da situação econômica mundial, a passagem de uma economia internacional de endividamento com liquidez a uma economia de endividamento sem liquidez contribui grandemente para que a dívida se torne autônoma em relação ao sistema produtivo. A análise desta proposição constituirá a primeira parte deste trabalho.

A dolarização das economias e dos passivos das empresas públicas, a queda dos salários reais, o empobrecimento crescente de novas camadas da população, o agravamento da penúria alimentar nas cidades, constituem as consequências deste endividamento. Elas serão analisadas na segunda parte do trabalho.

I.

Dois grandes acontecimentos vão caracterizar os anos 70. O dólar se torna inconversível em 1971. O preço do barril de petróleo aumenta enormemente em 1974 e em 1979. Uma distorção profunda aparece nos déficits e nos excedentes das contas correntes. O mercado dos eurodólares se desenvolve consideravelmente. A característica principal da fase 66-674 4 Pelas razões que acabamos de indicar, pode-se considerar esta fase como muito heterogênea. Os números que damos a seguir são médias entre o período antes de 1974 e o que vem a seguir. Atenuam a importância de novos fenômenos que observamos a partir de 1974. Constituem, entretanto, os únicos números que dispomos para o conjunto dos países e foram retirados do estudo do CEPII, publicado em Economie Prospective Internationale: “Vers des limites financières de la croissance” Doc. Française n. 3 1980. é a seguinte: estamos diante de um mercado de vendedores. A cotação do dólar é baixa, as taxas de juro também. A capacidade de financiamento dos países do Oriente Médio pertencentes à OPEP se eleva, com efeito, a 139,5 bilhões de DTS5 5 1 DTS valia, em 1971, 1,77 dólar. Todos os números citados vêm ao estudo do CEPII. , a da Alemanha a 42,5, do Japão a 15,5, do conjunto dos países do Benelux e Itália a 14,3, dos outros países pertencentes à OPEP a 13,1, da França a 8. O desequilíbrio é menos profundo do lado da demanda. A oferta é, portanto, concentrada. Os EUA têm necessidades de financiamento de 36,6 bilhões de DTS, os “outros países industrializados”6 6 Trata-se do Canadá, dos países Alpinos, Escandinavos e da Europa Meridional. de 57,9, os NPI de 38,1, os outros PVD de 38,4 e os países do Leste de 52,3.

Os mecanismos de financiamento também diferem profundamente. Enquanto anteriormente a emissão de moeda internacional provinha essencialmente do endividamento dos EUA7 7 Ver a esse respeito, M. Aglietta: As configurações da economia mundial, relatório do CEPII 1982 e “Les régimes monétaires de crise”. Critiques de l’Economie politique n. 26-27. , passa a repousar, cada vez mais, sobre as inserções dos países com excedentes e dos países com déficits. É assim, por exemplo, que o Oriente médio - OPEP - opera principalmente através do Setor Público (Banco Central e Tesouro). Este último empresta 56,3 bilhões de DTS aos Bancos estrangeiros e 56,4 bilhões aos Setores públicos dos outros países. A França, ao contrário, caracteriza-se principalmente pelo desenvolvimento do seu setor bancário e das operações interbancárias a nível internacional, enquanto o Setor Público da RF A empresta aos outros setores públicos. Ao contrário, o Setor Público dos EUA conhece um comprometimento líquido de 62,4 bilhões de DTS, principalmente em relação aos Setores Públicos dos outros países. Paralelamente, os setores privados e sobretudo bancários alimentam os circuitos internacionais.8 8 Assim, os bancos americanos encaminham para os circuitos internacionais 21,4 bilhões de DTS captados internamente.

Modificação dos saldos das contas correntes, reciclagem dos petrodólares, criação de liquidez, excesso de poupança de certos países e sua colocação nos circuitos internacionais, perspectivas de rentabilidade pouco satisfatórias na maioria dos países capitalistas desenvolvidos, distribuição mais igualitária dos empréstimos entre os diferentes países com necessidade de financiamento, constituem as principais características desta fase.

É neste contexto que se efetuou o endividamento dos países desenvolvidos. Esta fase de excesso de liquidez foi a pré-condição e não a causa do endividamento. Sua origem se situa no funcionamento dos regimes de acumulação e das políticas econômicas adotadas.

Nós não vamos, aqui, nos estender sobre esse ponto, pois o fizemos em outra oportunidade.9 9 Por exemplo, em “Endettement et disette urbaine” CEP Nº 25, 1983 e o livro de co-autoria com Tissier: L ‘industrialisation dans le sous développement. Ed. Maspéro, 1982. Nós nos limitaremos a lembrar certos mecanismos.

O regime de acumulação que as principais economias latino-americanas conhecem ou conheceram (México, Argentina) repousa sobre a capacidade de fazer crescer, simultaneamente a parcela das camadas, ditas médias, na renda e os setores produtores de bens de consumo durável e de bens de equipamento. É por isso que este regime foi caracterizado como modelo excludente dito de terceira demanda10 10 Por economistas pós-cepalianos inspirados sobretudo pelos trabalhos de Kalecki e por nós mesmos. Ver Um procès de sous développement, ed. Maspéro 2ª ed. 1976 e o livro de coautoria com Mathias L ‘Etat sur developpé, ed. Maspéro, 1983. . Ele conduz a uma internacionalização crescente destas economias.

O desenvolvimento da produção de bens duráveis e de equipamento conduz a importações maciças de bens de equipamento cuja sofisticação torna difícil, senão impossível, a produção local.

Como a elasticidade da demanda para estes produtos é superior à oferta local, o déficit é coberto, ao mesmo tempo, por um crescimento das exportações de produtos manufaturados, de novos produtos agrícolas e por empréstimos crescentes. A internacionalização destas economias se acentua. E o mesmo ocorre com seu endividamento.

A política econômica adotada favorece o apelo a financiamentos externos de duas maneiras. Ela conduz, algumas vezes e durante certos períodos, à fixação de taxas de juros ligeiramente superiores às observadas nos mercados internacionais de capital. Ela se caracteriza sobretudo por medidas que visam a uma supervalorização das moedas11 11 Ver o relatório de Cline op. cit. pg. 26 a 29; a tese de Martner; “O ensaio neoliberal chileno de reinserção econômica internacional”, Univ. de Paris 10, 1983; a tese de Paniagua: “Endettement et accumulation au Mexique”, Univ. de Picardie 1984. . Sua cotação ou é sistematicamente atrelada ao dólar enquanto a inflação é mais elevada do que a dos EUA ou é insuficientemente “mini desvalorizada”. Esta supervalorização relativa constitui uma medida estimuladora de empréstimos em dólar, pois este custa menos do que custaria sem esta política. O objetivo desta política é duplo: de um lado, ela permite que haja taxas de investimento superiores à capacidade local de poupança12 12 Estas taxas de investimento suscitaram uma alta da taxa de poupança. Para os dez países mais endividados, a taxa de poupança passou de 20,6% em 1965-1973 para 21,9% em 1974-1979, sendo que a taxa de investimento passou de 20,4% a 22,6% entre estas mesmas datas. , permite também, em certos países que se desenvolvam grandes projetos industriais; que seja possível, num primeiro momento, um crescimento elevado. Por outro lado, esta política permite financiar, em parte, a dívida externa. Os empréstimos em dólar são de fato realizados contra títulos públicos cuja cotação é atrelada à do dólar (pseudo-dólar), pois são utilizados pelo Banco Central para pagar a dívida13 13 Ver a entrevista de F. de Oliveira, vice-presidente da Bolsa do Rio, na revista Senhor (31-3-1983). ou até mesmo para aumentar as reservas14 14 Ver os comentários sobre o estudo de Artus de Bourguinat em “Le Système Monétaire International face aux déséquilibres”, Ed. Econômica 1982. .

É esse processo que explica a ligação observada entre endividamento externo e endividamento interno. Compreende-se, igualmente, que as empresas públicas, as mais sensíveis a esta política dos poderes públicos, sejam as mais endividadas neste período, ultrapassando as firmas multinacionais. Compreende-se, enfim, que, em função destes fatos, os passivos destas empresas sejam profundamente dolarizados e que sua fragilidade tenha, igualmente, se agudizado.

Esta política econômica pode ser observada, certamente, em graus diversos, na maioria das economias latino-americanas. Pode, igualmente, ser observada no México. Desde 1974, o México experimenta uma transição. A principal característica do regime de acumulação se modifica. Seu dinamismo repousa, cada vez mais, sobre a produção de derivados de petróleo. Esta produção tem um duplo efeito: de um lado, ela conduz a importações maciças; de outro, ela enfraquece relativamente a rentabilidade da produção de manufaturados. A modernização das condições de produção destes produtos é abandonada, sua competitividade diminui e, em vez de serem exportados em maior quantidade (como no Brasil), eles são importados em maior quantidade. O peso crescente das indústrias petroquímicas conduz a um déficit crescente, apesar da alta dos rendimentos com o petróleo, déficit que só pode ser coberto pelo endividamento. Este endividamento se acentua tanto mais quanto se aprofunda em seus fatores estruturais - a política econômica descrita acima.

A origem do endividamento se situa no funcionamento dos regimes de acumulação e das políticas econômicas adotadas. Cada um destes elementos, com suas particularidades, é causador de déficit, com diferentes intensidades. Esta ligação permite colocar em evidência a responsabilidade arrasadora dos que, hoje, se fazem passar por defensores de uma política de austeridade em nome de uma impossibilidade de se livrar das obrigações internacionais, justificando sua política pela cotação do dólar e pela elevação das taxas de juro.

A economia de endividamento “com liquidez” é a pré-condição deste endividamento passivo. A passagem para uma economia de endividamento “sem liquidez” vai ser a causa principal da autonomia crescente da dívida em relação ao sistema produtivo.

A situação se modifica ao longo dos anos 79-80. Pode-se encontrar a origem desta inversão na modificação monetária dos EUA (o FED decide não mais levar em conta os reflexos sobre as taxas de juro provocadas por um controle da massa monetária), no estado de superendividamento já atingido pelos países subdesenvolvidos e pelos países do Leste, tendo em vista o seu PIB e a sua capacidade de exportação. As taxas de juro se elevam e, como simultaneamente o índice geral dos preços cresce mais lentamente do que antes, as taxas de juro real tornam-se altamente positivas. A política econômica seguida pelos EUA, longe de reduzir o déficit orçamentário, acentua esse déficit. Este último é coberto pela compra de bônus do Tesouro por bancos estrangeiros, atraídos pela alta das taxas de juro. A reorientação dos fluxos de capital para os EUA conduz a uma forte e contínua pressão sobre o dólar. Sua cotação se eleva fortemente e, desta forma, acentua o déficit comercial, o qual foi coberto até 198215 15 Os erros e omissões da balança de pagamento americana cresceram fortemente nestes últimos dois anos (+ de 40 bilhões de dólares em 1982). Graças a isso, em 1982, houve excedente na conta corrente corrigida. Sobre este ponto, ver The Economist de 6-8-83, as pesquisas do CEPII e a revista da OFCE: “L’Embellie s’étend à l’Europe”, Abril 1984. pelo afluxo de capitais a longo prazo nos EUA e pelo saldo da conta de serviços.

A característica principal deste período não é mais uma forte concentração da oferta relativamente à procura. A oferta é um pouco menos concentrada em razão da evolução do preço do barril de petróleo. A procura, ao contrário, toma-se muito concentrada. Os países industrializados investem cada vez mais nos EUA. Os bancos internacionais e, particularmente, os bancos americanos, tentam retirar seus investimentos dos países subdesenvolvidos e reorientar suas atividades em direção aos EUA16 16 A tal ponto que, hoje, os banqueiros começam a considerar que o risco de um abalo no sistema financeiro internacional poderia decorrer de um endividamento do próprio EUA. Ver: “A new awaking, a survey of international banking”. The Economist 24-30 março de 1983. .

Taxas de juro elevadas, cotação do dólar em alta, vão modificar completamente as condições de reembolso dos empréstimos dos países subdesenvolvidos mais endividados. O limite atingido pelo nível de endividamento, a reorientação dos capitais em favor dos EUA, vão conduzir a uma modificação substancial da situação. Ontem tomadores, os países subdesenvolvidos e, particularmente os semi-industrializados, transferem, hoje, uma parte crescente de seus recursos para os países capitalistas desenvolvidos.

Segundo o Banco Mundial, a transferência de recursos17 17 Trata-se, aqui, do saldo dos fluxos de capital que entram e do serviço da dívida a médio e a longo prazos. decresce sensivelmente em 1982 e torna-se negativa em 1983 (- 11 bilhões de dólares). Este movimento se acentua se considerarmos o caso dos países endividados18 18 Banco Mundial, op. cit., p. 10. Os países citados são: Argélia, Argentina, Brasil, Chile, Egito, Índia, Indonésia, Israel, Coréia, México, Turquia, Venezuela e Iugoslávia. . As transferências líquidas baixam 23 bilhões em 1982, 15 bilhões em 1983 e tornam-se negativas desde o fim de 1981. Em termos nominais, os países capitalistas desenvolvidos se beneficiam de uma transferência líquida de mais de 20 bilhões de dólares em 1983 e de quase 25 bilhões de dólares em termos reais (deflacionado pelo índice de preço de importação) como mostra o gráfico 2.

Gráfico 1

Gráfico 2
Transferência de capitais a médio e longo prazos dos principais devedores

“The Economist” dá uma cifra comparável para os países latino-americanos - 20 e 30 bilhões de dólares em 1972 e 1983 - sublinhando, por outro lado, que mais a América Latina paga, mais seu crescimento diminui e mais ela deve (ver gráfico 1). Segundo o Morgan Bank, os países subdesenvolvidos vão, cada vez mais, alimentar com recursos financeiros os países desenvolvidos (ver gráfico 3). Neste estudo, o Morgan não leva em conta o reembolso do principal. Apesar desta hipótese, constata-se que a distância entre o fluxo líquido de capitais e o pagamento líquido apenas dos juros torna-se negativa desde 1983 e prevê-se que esta distância deverá acentuar-se fortemente até 1987-88.

Gráfico 3
Transferência de liquidez para os 21 maiores devedores

Estamos, pois, diante de uma grande virada. Os países subdesenvolvidos tornam-se fornecedores de capital aos países capitalistas desenvolvidos e apesar disso sua dívida cresce. Esta nova “drenagem financeira” resulta, ao mesmo tempo, de um aumento da dívida pelo jogo de sua autonomia crescente, de uma relativa retração dos bancos destas regiões de risco e de uma reorientação de suas atividades. Se esta drenagem não é superior ao nível já atingido é porque os países reescalonam o principal. É por isso que seu endividamento continua a se elevar.

Alguns números permitem delimitar o processo de autonomia da dívida em relação ao sistema produtivo. Enquanto a taxa de crescimento da dívida líquida é de 20% em 1980 para os países subdesenvolvidos (sempre com exceção da OPEP), de 28% em 1981 e de 22% em 1982, a taxa de crescimento do pagamento líquido dos juros passa de 46% em 1980 a 42% em 1981 para diminuir em 1982: 28%19 19 OCDE (não estão incluídos os débitos a curto prazo). e lembremos que é preciso somente uma taxa de 10% para dobrar em 7 anos e meio.

As taxas de juro aumentam; para cada elevação de um ponto desta taxa, a elevação do juro é avaliada sobre um ano, em 1983, a 1,86 bilhões de dólares (dos quais 1,35 bilhões para o Brasil, México e Argentina)20 20 The Economist. 31 março de 1983. . A cotação do dólar se eleva acentuadamente. Esta alta é particularmente sentida pelos países mais endividados. Com efeito, a dívida destes países é sobretudo de tipo bancário; 90% desta dívida é expressa em dólar e com taxas flutuantes. A situação financeira agravou-se profundamente. Estes países fizeram empréstimos com taxas de juros baixas, mas flutuantes e com cotação baixa do dólar. O dólar subiu e as taxas de juro também, enquanto a taxa de inflação disparava. Como as condições financeiras se agravaram, a dívida cresceu em parte em razão de um jogo financeiro que estes países não podiam controlar. A determinação das regras novas do jogo tendo sido feita sem eles e em outros países, restava aos seus governos ou recusar-se a aplicá-las - o que não fizeram - ou obrigar seus povos a arcar com seu peso.

O preço foi alto. E o será cada vez mais. Se compararmos a “ratio service” da dívida sobre exportação com a mesma, mas deflacionada do índice de preços, percebe-se que a erosão da dívida pela inflação vai pesar cada vez menos e que a evolução das taxas de juros e da cotação do dólar vão pesar cada vez mais. Em 1980 estes dois índices eram, respectivamente, 17,6 e 4,9; em 1981 eram 23,9 e 22,3, para o conjunto dos países subdesenvolvidos fora a OPEP. Para estes mesmos países, o montante nominal da dívida foi multiplicado por cinco de 1973 a 1982, por 2,1 em termos reais, para o conjunto destes países; foi multiplicado por 5,9 para a Argentina, por 9,5 para o México e 6,4 para o Brasil. O crescimento da dívida, em termos reais, foi 2 vezes mais elevado, em média anual, sobre este período todo do que o PNB para o conjunto dos países (8,7% e 4,5%). Compreende-se que, ao longo desses dez anos, o movimento tenha acelerado e que ele se relacione, sobretudo, com as economias semi-industrializadas. A dívida se torna, assim, cada vez mais autônoma do sistema produtivo que a provocou; ela se torna cada vez menos controlável e seu custo financeiro e social cada vez mais elevado. A alta das taxas de juro, a alta do dólar, e a queda da taxa de inflação aumentam sensivelmente o serviço da dívida. Este serviço passou de 36% do valor das exportações em 1972 no Brasil para 87% em 1982; de 21% para 103% na Argentina e de 25% para 58% no México (contra 16% para 24% para o conjunto dos países subdesenvolvidos fora a OPEP)21 21 Para todos os números: Cline, op. cit., pp. 15 e 17. . A evolução da crise mundial, a disparada da taxa de crescimento do comércio mundial e depois a redução absoluta deste comércio tornam cada vez mais difícil o serviço de uma dívida que se torna autônoma.

Vimos anteriormente que os diferentes regimes de acumulação haviam conduzido a uma internacionalização crescente destas economias, a um endividamento cada vez mais elevado: a redução da taxa de crescimento do comércio mundial, depois sua inversão, o nível atingido pelo endividamento, tornam impossível a manutenção destes regimes de acumulação excludente e difícil o serviço desta dívida. A taxa de crescimento dos bens e serviços exportados foi de 29,3% em 1980, 15,7% em 1981 e -13,9% em 1982 para o Brasil. Estes números se elevam a 13%, 5,1% e 15,7% para a Argentina e 32,2%, 2,6% e -2,8% para o Chile. Paralelamente, a taxa de juro (estimada a LIBOR mais 1%) passa de 15 ,4% a 17, 1 %.22 22 Cline, op. cit, p. 19. Se corrigirmos a taxa de juro real pela variação dos termos de câmbio para o conjunto dos países subdesenvolvidos fora a OPEP, perceberemos que esta taxa de juro passou de -3,5% em 1977 a 9,1% em 1979, 20,3% em 1980, 31,4% em 1981 e 22,1% em 1982.23 23 Aglietta, op. cit., pp. 219 e 220. Se, enfim, compararmos a taxa de juro à taxa do PNB, constatamos que a distância era, em média, de 5 a 6 pontos de 1971 a 1979, em favor da taxa de crescimento e que ela passa a 4,1 em 1980, 16,5 em 1981 e 14% em 1982, em favor das taxas de juro.

Estes poucos números revelam a amplitude da dívida, a dificuldade de pagar o serviço. Compreende-se que, nestas condições, o país não possa assegurar o pagamento da totalidade do principal; o que eles pagam ultrapassa o que recebem e a dívida continua a crescer.

II.

As consequências deste endividamento maciço já são dramáticas, não é possível analisá-las em toda a sua extensão. Limitaremos nossa exposição a duas delas: uma diz respeito à dolarização das economias (A); a outra, ao desenvolvimento da penúria alimentar, principalmente nas cidades e em numerosos países (B).

(A) - A moeda local deixa de ser universal. O uso da moeda assemelha-se, cada vez mais, ao que predomina nos países do Leste.24 24 Ver Duchênes: “L’Economíe non officielle: une interprétation théorique” in Archanbault et Greffe L’Economie non officielle, ed. La découverte 1984, que escreve: “Se quisermos conservar a ficção monetária, existem dois tipos de moeda em circulação, a moeda normal e aquela que se poderia chamar de moeda ‘privilegiada’.” O dólar torna-se mais do que uma moeda de reserva (objeto de garantia contra sua própria moeda) e parece ter um novo status. Algumas transações são operadas em moedas locais, outras em dólares, outras em pseudo-dólares25 25 O valor de uma transação a prazo depende do valor da moeda em dólar. . Expulsando a moeda local de alguns de seus mercados, ele se torna meio de circulação, se não for mesmo unidade contábil. Ultrapassando sua função de reserva, o dólar obriga os poderes públicos a definir sua própria política monetária, retirando-lhes, em parte, sua soberania monetária. Trata-se de um fato novo desde a industrialização destas economias. As consequências tanto práticas quanto teóricas a nível do status da moeda internacional, da legitimidade dos governos, são importantes.26 26 Lembremos qual foi a sorte reservada ao ministro das finanças de Israel quando ele propôs substituir o dólar pela moeda nacional.

Forçando um pouco as coisas, pode-se definir dois indicadores desta dolarização; um diz respeito à importância do agravamento do grau de exploração; o outro ao empobrecimento de camadas cada vez maiores da população.

Sem entrar na discussão teórica da determinação das taxas de câmbio e sempre evitando reduzi-la ao que seria decorrente da teoria da paridade dos poderes de compra27 27 Ver o artigo de Mario Dehove em “Critiques de l’Economie Politique n. 28. , sabe-se que durante a fase de endividamento internacional “sem liquidez”, a diferença entre as taxas de inflação dos países endividados e os EUA é superior à diferença entre as taxas de câmbio. Pode-se, portanto, deduzir que estes países conheciam um processo de supervalorização de suas respectivas moedas, sem que se pudesse assegurar exatamente a quanto se elevava.

Tal situação não poderia durar com um endividamento crescente. Ela estava prenhe de um processo especulativo e sabe-se que as moedas foram altamente desvalorizadas. A diferença se inverteu. Pode-se considerar que para os países subdesenvolvidos, a taxa de câmbio passa a ser, profundamente e provavelmente por muito tempo, subvalorizada. O nível atingido nem reflete a evolução comparada das produtividades nem está em medida de suscitar um inchaço das exportações proporcional à taxa de desvalorizações (rigidez estrutural, crise mundial).

A distância entre a taxa supervalorizada e a taxa subvalorizada constitui um indicador do crescimento atual e futuro do grau de exploração28 28 Por outro lado, tudo se mantém igual. No quadro da presente situação política, da atual inserção destes países na divisão internacional do trabalho, da manutenção das relações financeiras... .

A subvalorização durável das moedas é, com efeito, o produto da dolarização dessas economias. Mais as empresas fazem empréstimo no exterior, mais seus passivos se tornam dolarizados, mais a moeda local se desvaloriza, mais as cargas financeiras em moeda local destas empresas se elevam, mais a pressão inflacionária se acentua, mais os preços se elevam, mais o mecanismo de especulação e de depreciação da moeda se consolida. Por outro lado, mais o valor da moeda se enfraquece, mais o reembolso da dívida pública interior atrelado ao curso do dólar pesa sobre o orçamento do Estado e mais se encontram reduzidos os outros meios de intervenção do Estado, no momento em que as despesas públicas são comprimidas pelas políticas de austeridade impostas pelo FMI. Tendo as empresas depositado uma parte do produto de seus empréstimos em divisa no Tesouro Público contra bônus atrelados à cotação do dólar, estas conhecem uma dolarização de uma parte de seus ativos. Mas a dolarização destes ativos é inferior à dos passivos. Os encargos financeiros líquidos encontram-se estreitamente ligados ao crescimento do endividamento do país em divisas e à queda do valor da moeda local. Estes encargos financeiros constituem desvio de uma parte crescente da mais-valia. Os lucros dos bancos crescem, os das empresas ou são reduzidos maciçamente ou são negativos. Chega-se, assim, a uma situação aparentemente paradoxal, onde empresas modernas, eficazes, veem-se profundamente enfraquecidas.

A alta da taxa de exploração, através de uma queda do salário, serve, então, de válvula para compensar este desvio da mais-valia, este peso dos encargos financeiros. Mais a taxa de depreciação da moeda é significativa, mais os encargos financeiros se elevam, mais imperativa se torna a redução dos salários29 29 Estamos muito longe do famoso teorema das elasticidades críticas e compreendemos quanto é falaciosa a solução preconizada por numerosos peritos de desvalorizar ainda mais as moedas. . As quedas recentes dos salários traduzem, ao mesmo tempo, esta necessidade e a capacidade de renúncia dos trabalhadores. É por isso que a distância entre o ponto máximo e o ponto mínimo das taxas de câmbio constitui um indicador da queda dos salários, necessário do ponto de vista microeconômico dos capitalistas e um indicador do caminho que resta a percorrer, a partir do ponto de vista destes.

(B) - O segundo indicador diz respeito à importância do empobrecimento. Ele se define pela comparação do valor das exportações ao das importações, antes e depois da transferência líquida de capital. O financiamento da transferência de capitais dos países subdesenvolvidos para os desenvolvidos os obriga a procurar um saldo comercial positivo cada vez mais significativo. Este saldo é obtido jogando com as exportações ou com as importações.

O valor das importações experimenta uma queda drástica (Gráfico 4), a qual torna cada vez mais difícil a disponibilidade de alguns produtos alimentícios importados. As importações de produtos alimentícios baixaram de 61% entre 1981 e 1982 no México. Esta queda não pode ser compensada por um aumento da produção agrícola, pois na mesma época esta baixava em 10%. Ela se traduziu, então, por uma desnutrição crescente das camadas mais desfavorecidas e por um custo elevado para as outras.

Gráfico 4

A queda das importações, em razão de sua amplitude, não se refere apenas aos produtos alimentícios, mas também a uma série de insumos necessários à fabricação. Os estoques caem. Alguns produtos não podem mais ser produzidos localmente e os trabalhadores são dispensados. Como a dispensa não implica uma indenização significativa, o desemprego conduz ao empobrecimento crescente, à busca de atividades de sobrevivência, a novas formas de violência coletiva (pilhagem de supermercados, de cantinas escolares).

O saldo positivo da balança comercial é obtido através de uma política econômica que visa elevar o valor dos produtos exportados. Esta política acentua o empobrecimento. Os mecanismos são aparentemente simples. Os produtos exportados são desviados do mercado interno e a disponibilidade interna diminui na mesma proporção. Sem ser falso, este raciocínio é, no entanto, insuficiente. Ele fica na superfície dos fenômenos. Para compreender a importância e a gravidade da relação endividamento-empobrecimento, é necessário analisar mais de perto os mecanismos e mostrar em que o aumento das exportações, hoje, acentua os efeitos negativos de um certo tipo de modernização da agricultura30 30 Esta política diz respeito sobretudo aos produtos agrícolas e mineiros. Limitamos nossa análise aos primeiros. Mas é preciso evitar generalizações. Não se observa esta evolução em um país muito endividado como a Coréia. É verdade que ele se caracterizava pelo desenvolvimento de um outro regime de acumulação. .

Sem pretender generalizar, pode-se dizer que frequentemente o subdesenvolvimento conduz a uma dupla dependência alimentar. A primeira diz respeito ao tipo de produto fabricado e à penetração do capitalismo na agricultura. A segunda dificuldade se refere à intensificação dos processos de produção no momento em que o mimetismo de consumação se acentua.

Os mecanismos que conduzem ao primeiro tipo de dependência alimentar são hoje relativamente conhecidos. Nós os retomaremos brevemente.

Sabe-se que o subdesenvolvimento não se define pelo grau de industrialização atingido, mas por sua gênese31 31 Ver a introdução metodológica do livro de Salama-Tissier: L ‘industrialisation dans te sous développement, ed. Maspéro 1982. . Ele se caracteriza por uma difusão rápida, brutal e caótica das relações mercantis e/ou capitalistas. A monetarização da agricultura dá lugar a processos variados e originais de mobilização-mobilidade da força de trabalho32 32 Ver a notável tese de C. M. Baumbeld: “Immobilisation et mobilité: la formation du travail dans les campagnes brésiliennes”. Paris 1, 1984. de assalariamento parcial33 33 Nós desenvolvemos estas questões em Mathias-Salama: L’Etat surdéveloppé, op. cit. . As mutações agrárias são acompanhadas de migrações do campo em direção às cidades34 34 A população urbana representa aproximadamente 70% da população total nos países subdesenvolvidos mais industrializados, isto é, exatamente a mesma porcentagem que representava a população rural há trinta anos. . A população das cidades cresce desmesuradamente. Ela é quase inteiramente monetizada. A reprodução da força de trabalho passa, assim, pela capacidade de amealhar uma certa soma de dinheiro e com ela comprar produtos alimentícios e não mais por processos de autoconsumo, a não ser marginalmente. A produção para o mercado deve, então, tornar-se suficiente para alimentar as cidades. A produtividade deve se elevar, o uso de adubos generalizar-se, e a penetração das relações mercantis acentuar-se.

A penetração cada vez maior das relações mercantis - do capitalismo - no campo conduz à modernização das estruturas agrárias, ao desenvolvimento do êxodo rural, a uma demanda crescente de produtos alimentícios. Este aumento da demanda revoluciona ainda mais a paisagem rural. O que se produz (o tipo do produto), porque se produz (valor de troca mais do que valor de uso), a maneira como se vai produzir (semi-assalariamento temporário) mudam ainda mais. A penetração das relações mercantis se auto mantém e se acentua, expulsa cada vez mais camponeses de suas terras. Este êxodo acentua os fenômenos já descritos.

A penúria alimentar pode ter duas origens. O crescimento urbano pode ser muito rápido. Existe, então, uma defasagem entre esse crescimento e o da produção agrícola, entre o êxodo e as mutações agrárias. A penúria alimentar pode diminuir se houver um incremento das importações e, portanto, um crescimento da dependência alimentar. Atualmente, esta última tornou-se mais difícil.

A segunda fonte de penúria alimentar é mais importante. Ela é provocada por aquilo que se decide produzir e por quem o produz. A produção para a exportação faz-se em detrimento da produção para o mercado interno, tanto a nível das áreas consagradas à produção quanto a nível das condições de crédito. Observa-se, geralmente, que o desenvolvimento da agricultura para a exportação é acompanhado de um crescimento da dependência alimentar. O caso do Marrocos é característico sob este ponto de vista. Como demonstram o Gráfico 1 e o Gráfico 5, a produção para o mercado interno cresce pouco no Brasil, chega mesmo a haver uma queda “per capita”; a produção para os mercados externos assiste a uma progressão inversa.

Gráfico 5
“As curvas da fome”

A dependência alimentar é produto, ao mesmo tempo, da brutalidade da penetração das relações mercantis no campo e da substituição das culturas. Suas raízes são, portanto, profundas. O nível atingido pelo endividamento, a política econômica que dele decorre, acentuam os efeitos negativos destes mecanismos. A resposta à presente situação conduz a privilegiar mais ainda as exportações, a praticar uma política de austeridade e a restringir, assim, as condições de acesso ao crédito para as produções destinadas ao mercado interno. A penúria alimentar cresce com todo o seu cortejo de desnutrição e de miséria.

Quadro 1

O segundo processo de dependência alimentar é talvez menos conhecido, mas não menos real35 35 Ver artigo notável de JP Bertrand, apresentado no Coliquio do GREITD: “Modernization agricole et restructuration alimentaire dans la crise internationale”, do qual tomamos emprestados os números que se seguem e o raciocínio. . As estruturas do consumo modificaram-se profundamente no último século nos países capitalistas desenvolvidos e, pela via do mimetismo, nos países subdesenvolvidos também. Esta evolução se explica, em parte, pela lei de Engels e, em parte, pelas modificações substanciais dos custos de produção dos diferentes produtos. Assim, em 1900 era preciso 1h15’para adquirir 1kg de pão e, em 1980, na França, só 1h; 6h e, depois, 3h para um kg de carne de boi; 12h e, depois, 40’ para um kg de carne de frango36 36 P. Cambris Les déterminants économiques de la consommation alimentaire (collectif) INRA 1982. Trata-se da quantidade de trabalho para comprar 1 kg de alimento, determinada a partir da remuneração horária assalariada mínima. .

As técnicas de produção intensificaram-se. Para um consumo total de 1.000kg de cereal “per capita” e por ano, nos EUA, 90% eram destinados ao consumo dito humano. Esta evolução das técnicas foi apenas iniciada nos países subdesenvolvidos, apesar de ter sido rápida para a produção de certos produtos. Assim, em 1971-74, para um consumo total de cereal de 140kg, “per capita” e por ano, o consumo humano atingia 76% na Argélia e 85% na Índia para um consumo de 160kg.

Os habitantes dos países subdesenvolvidos tendem a adotar, com a urbanização crescente, hábitos alimentares dos países capitalistas desenvolvidos, substituindo o uso de alguns produtos. Mas esta mudança na distribuição dos produtos não pode ser acompanhada sempre de mudanças na maneira de produzir. Mesmo no caso do Brasil, produtor de torta de soja, destinada à alimentação do gado, “a dimensão do mercado interno (isto é, as rendas distribuídas na sociedade) se mostra insuficiente para assegurar ao produto sua dinâmica própria e uma verdadeira endogenização: três quartos da torta de soja são negociados no mercado internacional. A torta de soja vai, então, alimentar os animais dos países europeus (e dos países do Leste) porque o poder de compra local ainda é insuficiente para aproveitar a queda do custo real que permite o tipo de criação intensiva no qual ele se inscreve”, sublinha JP Bertrand37 37 Op. cit. . Não é, pois, necessário espantar-se com um certo paralelismo existente entre a indústria e a agricultura. A introdução de certos procedimentos necessita uma dimensão mínima. A ausência de uma dimensão real do mercado e da distribuição por demais desigual das rendas pode tomar impossível tal introdução. Uma defasagem entre os novos produtos consumidos e a dificuldade para produzi-los a preços competitivos constituem a via pela qual as importações penetram. A dependência alimentar, então, pode crescer. A queda drástica das importações, em razão do endividamento, transforma esta dependência em penúria alimentar.

A formação da dívida e sua autonomia têm duas origens diferentes - uma é endógena e a outra exógena. O nível atingido pelo endividamento, a reorientação dos fluxos financeiros, a desindustrialização, a miséria crescente e o surgimento da fome urbana, intrigam os que se interessam pelo subdesenvolvimento.

  • a soberania monetária dos Estados é exercida, a autonomia relativa dos governos na definição de sua política econômica, monetária e industrial é reduzida. Quais são os limites de tal processo? Quais são as possibilidades de limitar estes mecanismos? Passariam eles pela constituição de Uniões alfandegárias novas e pela eliminação dos que são responsáveis por este estado?

  • a exploração recrudesceu e todo o resto a acompanhou - a miséria aumenta, a fome urbana se acentua. Quais são os limites de tal processo? A radicalização atual poderia fazer nascer novas formas de nacionalismo em face da intransigência do FMI? O que significam as novas formas de violência coletiva surgidas nas grandes cidades?

Estas questões fundamentais são as que o subdesenvolvimento coloca. O endividamento crescente lhes dá atualidade e as torna mais agudas.

  • *
    Limitaremos nosso estudo ao caso das economias subdesenvolvidas semi-industrializadas.
  • 1
    W. Cline: International debt and the stability of the world economy. Ed, Institute for international economic. Washington 1983. p. 10.
  • 2
    O Banco Mundial avalia em 810 bilhões de dólares, incluindo a dívida a curto prazo em 1983. Ver Debt and developing world 1984.
  • 3
    The Economist, 31.03.84, pág. 77 e as figuras 1, 2, 3 no artigo.
  • 4
    Pelas razões que acabamos de indicar, pode-se considerar esta fase como muito heterogênea. Os números que damos a seguir são médias entre o período antes de 1974 e o que vem a seguir. Atenuam a importância de novos fenômenos que observamos a partir de 1974. Constituem, entretanto, os únicos números que dispomos para o conjunto dos países e foram retirados do estudo do CEPII, publicado em Economie Prospective Internationale: “Vers des limites financières de la croissance” Doc. Française n. 3 1980.
  • 5
    1 DTS valia, em 1971, 1,77 dólar. Todos os números citados vêm ao estudo do CEPII.
  • 6
    Trata-se do Canadá, dos países Alpinos, Escandinavos e da Europa Meridional.
  • 7
    Ver a esse respeito, M. Aglietta: As configurações da economia mundial, relatório do CEPII 1982 e “Les régimes monétaires de crise”. Critiques de l’Economie politique n. 26-27.
  • 8
    Assim, os bancos americanos encaminham para os circuitos internacionais 21,4 bilhões de DTS captados internamente.
  • 9
    Por exemplo, em “Endettement et disette urbaine” CEP Nº 25, 1983 e o livro de co-autoria com Tissier: L ‘industrialisation dans le sous développement. Ed. Maspéro, 1982.
  • 10
    Por economistas pós-cepalianos inspirados sobretudo pelos trabalhos de Kalecki e por nós mesmos. Ver Um procès de sous développement, ed. Maspéro 2ª ed. 1976 e o livro de coautoria com Mathias L ‘Etat sur developpé, ed. Maspéro, 1983.
  • 11
    Ver o relatório de Cline op. cit. pg. 26 a 29; a tese de Martner; “O ensaio neoliberal chileno de reinserção econômica internacional”, Univ. de Paris 10, 1983; a tese de Paniagua: “Endettement et accumulation au Mexique”, Univ. de Picardie 1984.
  • 12
    Estas taxas de investimento suscitaram uma alta da taxa de poupança. Para os dez países mais endividados, a taxa de poupança passou de 20,6% em 1965-1973 para 21,9% em 1974-1979, sendo que a taxa de investimento passou de 20,4% a 22,6% entre estas mesmas datas.
  • 13
    Ver a entrevista de F. de Oliveira, vice-presidente da Bolsa do Rio, na revista Senhor (31-3-1983).
  • 14
    Ver os comentários sobre o estudo de Artus de Bourguinat em “Le Système Monétaire International face aux déséquilibres”, Ed. Econômica 1982.
  • 15
    Os erros e omissões da balança de pagamento americana cresceram fortemente nestes últimos dois anos (+ de 40 bilhões de dólares em 1982). Graças a isso, em 1982, houve excedente na conta corrente corrigida. Sobre este ponto, ver The Economist de 6-8-83, as pesquisas do CEPII e a revista da OFCE: “L’Embellie s’étend à l’Europe”, Abril 1984.
  • 16
    A tal ponto que, hoje, os banqueiros começam a considerar que o risco de um abalo no sistema financeiro internacional poderia decorrer de um endividamento do próprio EUA. Ver: “A new awaking, a survey of international banking”. The Economist 24-30 março de 1983.
  • 17
    Trata-se, aqui, do saldo dos fluxos de capital que entram e do serviço da dívida a médio e a longo prazos.
  • 18
    Banco Mundial, op. cit., p. 10. Os países citados são: Argélia, Argentina, Brasil, Chile, Egito, Índia, Indonésia, Israel, Coréia, México, Turquia, Venezuela e Iugoslávia.
  • 19
    OCDE (não estão incluídos os débitos a curto prazo).
  • 20
    The Economist. 31 março de 1983.
  • 21
    Para todos os números: Cline, op. cit., pp. 15 e 17.
  • 22
    Cline, op. cit, p. 19.
  • 23
    Aglietta, op. cit., pp. 219 e 220.
  • 24
    Ver Duchênes: “L’Economíe non officielle: une interprétation théorique” in Archanbault et Greffe L’Economie non officielle, ed. La découverte 1984, que escreve: “Se quisermos conservar a ficção monetária, existem dois tipos de moeda em circulação, a moeda normal e aquela que se poderia chamar de moeda ‘privilegiada’.”
  • 25
    O valor de uma transação a prazo depende do valor da moeda em dólar.
  • 26
    Lembremos qual foi a sorte reservada ao ministro das finanças de Israel quando ele propôs substituir o dólar pela moeda nacional.
  • 27
    Ver o artigo de Mario Dehove em “Critiques de l’Economie Politique n. 28.
  • 28
    Por outro lado, tudo se mantém igual. No quadro da presente situação política, da atual inserção destes países na divisão internacional do trabalho, da manutenção das relações financeiras...
  • 29
    Estamos muito longe do famoso teorema das elasticidades críticas e compreendemos quanto é falaciosa a solução preconizada por numerosos peritos de desvalorizar ainda mais as moedas.
  • 30
    Esta política diz respeito sobretudo aos produtos agrícolas e mineiros. Limitamos nossa análise aos primeiros. Mas é preciso evitar generalizações. Não se observa esta evolução em um país muito endividado como a Coréia. É verdade que ele se caracterizava pelo desenvolvimento de um outro regime de acumulação.
  • 31
    Ver a introdução metodológica do livro de Salama-Tissier: L ‘industrialisation dans te sous développement, ed. Maspéro 1982.
  • 32
    Ver a notável tese de C. M. Baumbeld: “Immobilisation et mobilité: la formation du travail dans les campagnes brésiliennes”. Paris 1, 1984.
  • 33
    Nós desenvolvemos estas questões em Mathias-Salama: L’Etat surdéveloppé, op. cit.
  • 34
    A população urbana representa aproximadamente 70% da população total nos países subdesenvolvidos mais industrializados, isto é, exatamente a mesma porcentagem que representava a população rural há trinta anos.
  • 35
    Ver artigo notável de JP Bertrand, apresentado no Coliquio do GREITD: “Modernization agricole et restructuration alimentaire dans la crise internationale”, do qual tomamos emprestados os números que se seguem e o raciocínio.
  • 36
    P. Cambris Les déterminants économiques de la consommation alimentaire (collectif) INRA 1982. Trata-se da quantidade de trabalho para comprar 1 kg de alimento, determinada a partir da remuneração horária assalariada mínima.
  • 37
    Op. cit.
  • JEL Classification: F34; O15.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 1985
Centro de Economia Política Rua Araripina, 106, CEP 05603-030 São Paulo - SP, Tel. (55 11) 3816-6053 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: cecilia.heise@bjpe.org.br