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O problema da dívida e as opções para sua redução* * Este artigo foi preparado durante a visita à EPGE, Fundação Getúlio Vargas. Foi baseado num trabalho conjunto com Stanley Fischer. Agradeço a Eliana Cardoso e a Mário Henrique Simonsen pelas discussões úteis.

The debt problem and options for its reduction

RESUMO

Problemas de dívida externa, como guerras, são ocorrências comuns em uma perspectiva histórica mais ampla. Eles ocorrem a cada trinta ou cinquenta anos, quase sempre nas mesmas circunstâncias. E quando ocorrem, colocam em desacordo o detentor do título e o devedor e deixam marcas fundamentais na história, embora talvez não, de forma duradoura, na memória dos credores. A filosofia de substituição de importações da Alemanha de Hitler ou da América Latina foi o resultado da última crise da dívida mundial. Hoje a América Latina está mais uma vez em crise de dívida e o debate coloca em confronto aqueles que pedem ação dramática, inclusive de repúdio, e outros que sugerem que o problema é menor e que pode ser resolvido com tempo, ajuste e algumas digitações. sobre finanças - a confusão através da estratégia.

PALAVRAS-CHAVE:
Crise da dívida; dívida externa; história econômica do Brasil; estabilização

ABSTRACT

External debt problems, like wars, are common occurrences in a broader historical perspective. They occur every thirty or fifty years, much in the same circumstances. And when they do occur, they put at odds the bondholder and the debtor and leave fundamental imprints on history, though perhaps not, in any lasting fashion, on the memories of lenders. Hitler’s Germany or Latin America’s import substitution philosophy was the outgrowth of the last world debt crisis. Today Latin America is once again in a debt crisis and the debate puts in confrontation those who call for dramatic action, including even repudiation, and others who suggest the problem is minor and that it can be solved by time, adjustment, and some typing-over finance - the muddling through strategy.

KEYWORDS:
Debt crisis; external debt; economic history of Brazil; stabilization

Os problemas da dívida externa, como as guerras, são ocorrências comuns numa perspectiva histórica mais ampla. Ocorrem a cada trinta ou cinquenta anos, quase nas mesmas circunstâncias. E quando ocorrem, tais problemas colocam em desigualdade o portador de obrigações e o devedor, e deixam marcas fundamentais na história, embora de maneira não duradoura, na memória dos emprestadores. A Alemanha de Hitler ou a filosofia de substituição das importações na América Latina são consequências da crise de dívida mundial. Hoje, a América Latina está novamente numa crise de dívida e o debate coloca em confronto aqueles que pedem uma ação dramática, incluindo até mesmo o não reconhecimento da dívida, e outros que sugerem que o problema é menor e que pode ser resolvido com o tempo, com ajustamento e com algum financiamento condicionado - a estratégia de alcançar o objetivo de qualquer jeito. Mas, na realidade, não mudou muito da crise de dívida de 1930: agora o FMI assume o papel do Comitê Financeiro da Liga das Nações, o Comitê de Direção do Banco substitui o Conselho de Proteção dos Debenturistas Estrangeiros e Bill Rhodes assume a função do Senhor Otto Niemeyer.

O PROBLEMA DA DÍVIDA DA AMÉRICA LATINA EM PERSPECTIVA HISTÓRICA

“A experiência de empréstimos para a América do Sul tem sido marcada, desde o início, por numerosos desastres ... Ondas de intenso otimismo, durante as quais quase todo certificado adequadamente carimbado que poderia ver vendido a um alto preço, alterna-se com ondas de profundo pessimismo onde a exportação de capital cessa completamente. Cada estado Sul-americano incorreu em inadimplência pelo menos duas vezes e ainda tem sido possível a estes estados, com maior ou menor prazo, conseguir recursos” (American Economic Review, Março, 1985).

“A história do investimento na América do Sul, durante todo o último século, tem sido o da confiança seguida da desilusão, de ciclos de empréstimos seguido de amplas inadimplências, e de uma série de rejeições e reconhecimentos alternados de dívidas externas ... A habilidade da maioria dos governos merecedores de crédito, para evitar a inadimplência, deve necessariamente ser prejudicada, se qualquer parte considerável do valor nominal dos empréstimos tomados não for, na realidade, aplicada conforme pretendido” Royal Institute of International Affairs, 1937).

“Quando os grandes países credores reduzem suas exportações de capital ... todos os seus devedores devem atender às suas obrigações, em bens ou em ouro, e não por novos empréstimos tomados. Antes que esta situação extraordinária tenha se desenvolvido completamente, entretanto, uma verificação adicional era imposta sobre a capacidade dos países devedores para pagar suas obrigações externas. Os maiores superávits de exportações que eles impunham sobre os mercados mundiais, causavam preocupação aos países credores importadores, que por isso impunham tarifas mais altas e as suplementavam com restrições adicionais sobre as importações. Isto provocou uma enorme diminuição no comércio mundial, e a consequência lógica desta redução tem sido uma série de moratórias, suspensões de pagamentos, e acordos de interrupção. Como resultado disso, o crédito de muitos países devedores foi gravemente prejudicado” (Liga das Nações, World Economic Survey, 1932).

Uma ampla frente de opinião tem solicitado alguma mudança na estratégia de “dar um jeito”. Dois pontos de vista influentes são os de Martin Feldstein, o presidente anterior do Conselho de Consultores Econômicos de Reagan, e Lord Lever. Feldstein pediu uma nova abordagem nos seguintes termos1 1 Feldstein “International Debt Policy. The Next Steps”, Remarks Befores the Council of Americas, Washington D.C., May 1984. :

“Mas, certamente o tempo se adiantou à crise de gerenciamento de alto risco. As nações devedoras precisam de um novo sistema de financiamento de prazo mais longo que incorpore explícitas salvaguardas contra mudanças desestabilizadoras nos mercados financeiros mundiais. Dentro de tal estrutura financeira, as nações devedoras e seus parceiros comerciais industrializados podem dar os passos necessários para promover o aumento de exportações, que possam fornecer a base para o crescimento de longo prazo e independência financeira.”

Lord Lever foi adiante ao argumentar2 2 Lord H. Lever “Begin to write down world debt”, Wall Street Journal, 7 de junho de 1984. :

“ ... não devemos tentar manter a pretensão de que um empréstimo puramente comercial é adequado para os nossos propósitos. Isto falha no sentido de que requer tentativas prematuras para obter superávits do balanço de pagamento, pelos países devedores não compatíveis com os nossos interesses políticos e os deles. As transferências líquidas recentes de recursos dos devedores têm sido realizadas às custas de recessão econômica e grave risco de estabilidade política. São pequenas demais para recuperar a confiança, mas suficientemente grandes para causar sérios danos às sociedades e economias devedoras: ambos os casos não são desejáveis nem sustentáveis.”

Este artigo coloca o problema da dívida primeiro em termos de fatos: quem são os devedores e os credores; qual o tamanho da dívida e de onde veio? Numa segunda parte, identificamos o “problema” da dívida, as dificuldades encontradas no seu pagamento. A terceira parte considera a perspectiva macroeconômica e as implicações para a carga do serviço da dívida. Na parte 4, fazemos a revisão de vários esquemas para a redução da dívida. A parte 5, para concluir, oferece algumas observações específicas sobre o problema brasileiro de estabilização e dívida externa.

Os fatos

Iniciamos a discussão dos fatos com a observação de alguns dados para estabelecer dois pontos: primeiro, que o problema da dívida é fundamentalmente um problema Latino-americano e não um problema dos países menos desenvolvidos (PMDs) da África ou da Ásia. Segundo, que é um problema bancário e principalmente um problema do “grande banco”.

A Tabela 1 mostra os dados sobre as dívidas dos PMDs, tanto em dólares correntes como constantes, bem como a relação entre a dívida e as exportações. A Tabela mostra que a dívida cresce para cada uma das regiões, mas que a da América Latina sobressai pelo volume e pela grande relação entre a dívida e as exportações. Sem dúvida, a dívida da América Latina tem grande analogia com a da Ásia em termos absolutos, mas pequena em relação às exportações ou ao PIB.

Tabela 1
Visão geral das dívidas dos pmds (em bilhões de dólares)

Na Tabela 2 continuamos a examinar o problema da dívida em termos do serviço da dívida (juros mais amortização) e do pagamento de juros em relação às exportações e ao PIB. Estes são indicadores da carga da dívida. É bastante claro que a América Latina tem um aumento bem maior nas cargas da dívida e em seus valores absolutos. A razão é dupla. Por um lado, a dívida mostra maior parcela de exportações ou do PIB. Por outro lado, a América Latina paga taxas de juros efetivas bem maiores do que os tomadores asiáticos ou africanos. Isto acontece porque apenas uma pequena parte da dívida é oficial, onde as taxas de juros são fixas, baixas ou subsidiadas. A maior parte das dívidas Latino-americanas são dívidas bancárias com o serviço (da dívida) amarrado ao libor mais “spreads” (taxa de risco). Em 1983, por exemplo, a taxa de juros efetiva paga pelos tomadores latino-americanos era de 10,8% enquanto era apenas de 3,7% para os países de baixa renda cuja dívida está principalmente vinculada aos emprestadores oficiais e não aos bancos.

Tabela 2
A carga da dívida

É essencial reconhecer a diferença entre as cargas da dívida da América Latina e dos países pobres. É esta diferença que nos leva a argumentar que o problema da dívida hoje é especificamente dos maiores tomadores, e particularmente da América Latina - países de renda média superior. Não é um problema da maioria dos PMDs, e certamente não dos PMDs “pobres”.

O segundo ponto a ser discutido é que do lado do emprestador o problema da dívida é o dos grandes bancos. A Tabela 3 mostra as dívidas latino-americanas e a parte que é devida aos bancos em geral e aos bancos dos Estados Unidos em particular. Para o sistema bancário dos Estados Unidos como um todo, as dívidas latino-americanas não apresentam um problema especial, uma vez que elas não chegam a 5% do total dos ativos. Mas o problema é crítico para os grandes bancos, onde essas dívidas representam, em alguns casos, mais do que 200% do capital. Realmente, quatro bancos possuem mais do que um terço dessas dívidas e menos que vinte bancos respondem por quase 80% dos empréstimos. Então, o problema da dívida é muito mais um problema de um grande banco.

Tabela 3
As dívidas latino-americanas (bilhões de dólares, junho/83)

Voltemos agora para as fontes de acumulação da dívida. Aqui é importante enfatizar que existem duas fontes principais: uma é a extraordinariamente baixa performance da política macroeconômica no período 1979/82 em quase todo país latino-americano: a mudança de Pinochet para uma taxa de câmbio fixa apesar da contínua inflação e da indexação; a “tablita” de Martinez de Hoz que levou a uma gigantesca superavaliação e fuga de capital; o esbanjamento da receita do petróleo de Portillo Lopez e a desadministração do crescimento, da inflação e do equilíbrio externo de Delfim Netto. Os relatos não são exatamente os mesmos, mas possuem elementos comuns: “déficits” orçamentários excessivos; sobrevalorização da taxa de câmbio; fuga de capital ou fuga para os importáveis ou falha em se ajustar aos preços mundiais em mudança.

A Tabela 4 apresenta o México como um exemplo. O déficit orçamentário em 1981/82, quando a administração Portillo Lopez chega ao fim, transforma-se em um imenso “déficit” e a taxa de câmbio se valoriza em termos reais. Como resultado, a fuga de capital ocorre em larga escala e a conta corrente se deteriora sob o impacto de importações recordes. Os gastos excessivos e a exportação de capital são financiados por empréstimos tomados de bancos estrangeiros para sustentar a taxa de câmbio. Assim, a dívida externa mais do que dobra entre 1979 e 1982.

Tabela 4
Indicadores macroeconômicos mexicanos

Existem diferenças entre países quanto ao papel relativo da fuga de capital e déficits comerciais: na Argentina a fuga de capital foi a contrapartida predominante do aumento da dívida externa (bruta). Isto tem uma curiosa implicação de que a posição da dívida externa da Argentina é difícil apenas quando se observa a dívida do governo, esquecendo-se dos consideráveis volumes de depósitos particulares, títulos e imóveis de residentes argentinos, no exterior. O mesmo se aplica ao México, onde os depósitos particulares no exterior aumentaram em 4 bilhões de dólares entre 1980 e 1982, não considerando qualquer outra forma de fuga de capital. No Chile e no Brasil, em contraste, as saídas de capital foram de menor importância, assumindo o déficit comercial o papel principal. No Chile, por exemplo, o déficit comercial de 1981 era quase 3 vezes maior do que qualquer outro déficit dos últimos 30 anos, refletindo quase o dobro dos níveis anteriores de importação de bens de consumo duráveis.

A outra fonte de acumulação da dívida é o choque externo de 1980/82 sob a forma de valorização do dólar, acentuado aumento das taxas de juros reais, e diminuição dos preços das mercadorias e da demanda de manufaturados para exportações. Esta deterioração no comércio mundial e no ambiente macroeconômico é, naturalmente, devida à estabilização da inflação nos Estados Unidos, bem como à subsequente e contínua fraca combinação de políticas de aperto monetário e política fiscal super frouxa. Este choque tem sido particularmente nocivo para a América Latina porque as dívidas são grandes, levando, portanto, a grandes aumentos nas contas de juros. O efeito é adicionalmente reforçado porque as taxas de juros são flutuantes e não fixas.

Qual foi a contribuição do ambiente macroeconômico, em contraste com as políticas domésticas? Uma maneira de responder a essa questão é observar a deterioração na relação déficit em conta corrente sem juros e medir o papel relativo de três fatores naquela deterioração:

  • déficit em conta corrente se juros;

  • taxas de juros (incluindo taxas e “spreads”) no mercado de capital mundial, e

  • crescimento nos ganhos de exportação.

A teoria da dinâmica da dívida mostra que a relação dívida/exportações aumenta com o tempo, se um país opera com déficits em conta corrente sem juros, ou se a taxa de juros efetiva excede a taxa de crescimento do lucro das exportações3 3 Veja M. H. Simonsen “The developing country debt problem” em G. Smith & J. Cuddington (eds.), International debt and the development countries. The World Bank, Washington D. C., no prelo, para um desenvolvimento desta ideia. . Se a taxa de juros excede a taxa de crescimento do lucro das exportações, tomando empréstimos para financiar os pagamentos de juros, faz com que o crescimento da dívida seja maior do que a receita das exportações. Portanto, a relação dívida/exportações cresce com o tempo. Períodos de altas taxas de juros e um colapso do comércio mundial seriam os casos, portanto, onde os choques externos precipitam uma crise de dívida.

A Figura 1 mostra os fatos relevantes. A Figura 1-A mostra, para os PMDs não produtores de petróleo, a relação: (1+“prime-rate”) (1+crescimento da receita de exportação). Então se tal relação for igual à unidade, a relação dívida/exportações permanece constante com o crescimento da exportação compensando o crescimento da dívida nominal, devido ao financiamento das cargas de juros. Qualquer deterioração da relação dívida/exportações é, então, devido a déficits sem juros. Os fatos são bastante claros: exceto em 1981/83 não tem havido ocasião, nos últimos 30 anos, em que o crescimento das exportações ficou abaixo das taxas de juros durante qualquer período de tempo.

Figura 1

A Figura 1-B conduz a um exercício hipotético: suponha que um país tenha começado em 1969 com uma relação dívida/exportação de 150 e tenha, até 1983, operado uma conta corrente sem juros equilibrada. A dívida seria financiada à taxa real da “prime rate”, e os lucros da exportação tenham crescido à taxa dos PMDs não produtores de petróleo, realmente experimentada no período. Onde estaria a relação dívida/exportação hoje? A Figura mostra que neste cenário hipotético a relação dívida/exportação teria declinado para menos do que 100. Até 1980, o crescimento das exportações foi bem acima das taxas de juros, em média, melhorando, então, dramaticamente as posições da dívida externa. Portanto, um país que mostra uma posição deterioração da dívida é levado a isto pelos déficits do balanço de conta corrente sem os juros.

A Figura 1 trata de todos PMDs não produtores de petróleo. O exercício é prontamente realizado para a América Latina e podemos também concentrar no período turbulento de 1980/82. O aumento hipotético na relação dívida/exportação para a região teria sido de 24%, mas o aumento real foi de 38%. Portanto, um terço da deterioração é devido a fatores que não são taxas de juros e crescimento da exportação. Aqui os déficits de conta corrente sem juros entram e deixam espaço para políticas internas pobres como uma explicação das dificuldades da dívida externa.

O Problema da Dívida

Ao avaliar os problemas da dívida é importante perguntar se estamos tratando de problemas de liquidez, solvência ou questões patrimoniais. Os problemas de liquidez incluem uma incapacidade para pagar juros e amortizar as dívidas agora com base no cronograma inicialmente contratado. O problema aqui é de liquidez. Os problemas patrimoniais incluem a questão de intensidade da carga, aumentos não antecipados nos custos do serviço da dívida que deveriam ser suportados, tanto pelos empregadores como pelos tomadores. Finalmente, a solvência inclui a questão de se saber se o valor dos passivos de um país excede a capacidade de pagamento algum dia. Porém, a capacidade de pagamento é, em grande medida, uma questão política envolvendo a extensão em que a atividade econômica e os padrões de vida podem ser degradados, a fim de gerar receitas cambiais com as quais se paga a dívida externa.

A DÍVIDA BRASILEIRA EM PERSPECTIVA HISTÓRICA

“É triste, Sr. Presidente, reconhecer que entre nós há homens públicos que pensam ainda que o governo tenha outra fonte de recursos a não ser a do imposto, ignorando que um empréstimo é simplesmente um adiamento de impostos que têm de ser cobrados para pagamentos de seus juros e de sua amortização” - Joaquim Murtinho, 1901.

“O Brasil nunca pagou seus empréstimos com seus próprios recursos. Fez sempre novos empréstimos para manter os antigos” - Osvaldo Aranha, 1931.

“A dívida não se paga, a dívida se rola” - Delfim Netto, 1981.

A atual estratégia de “dar um jeito” está-se tornando cada vez mais duvidosa à medida que as altas taxas de juros mundiais forçam volumosas transferências adicionais, dos devedores para os credores, à custa de profunda recessão nos países em ajustamento. Existe muita polêmica se a crise de dívida é uma crise de liquidez ou um problema de solvência. Mas, a definição de solvência para uma nação não é clara como a de uma sociedade por ações: dado o volume de dívidas existentes, os padrões de vida nos países devedores poderiam ser diminuídos para níveis tão baixos de modo a tornar possível pagar o juro e ainda amortizar as dívidas. A questão real é saber se os sistemas políticos e os cidadãos podem e devem ser submetidos a esta pressão.

A Figura 2 mostra os custos econômicos da dramática mudança de rolar as dívidas para realmente pagá-las. O crescimento “per capita” que tinha sido de 2 a 3 por cento para a América Latina tornou-se negativo em 1981. Cumulativamente, a renda “per capita” da América Latina tem declinado de aproximadamente 8 a 9 por cento nos últimos quatro anos, com um declínio ainda maior em algumas regiões. O declínio na renda “per capita” foi amplamente induzido politicamente: os programas de estabilização sob os auspícios do FMI exigiram excessivos cortes nos orçamentos e aperto monetário para melhorar o equilíbrio externo e criar poupanças cambiais para executar, pelo menos, o pagamento parcial do serviço da dívida.

Figura 2

A principal dificuldade do ajustamento na América Latina hoje e a origem do problema da dívida é que a região tem sido uma importadora estrutural de capital. Os déficits na conta corrente sem juros foram a contrapartida, pelo menos até o final de 1970, de uma estratégia de desenvolvimento que usou recursos externos para complementar a poupança doméstica para financiar o investimento e o crescimento. Pelo fato de esses países terem sido importadores estruturais de capital, o esforço para gerar rapidamente superávits externos tornou-se bastante custoso. Num país onde os déficits das contas externas são devidos a uma correção de excessivos gastos transitórios é fácil. Tudo o que é necessário é parar o excesso de gasto e, sem muito efeito no emprego, as contas externas voltam ao equilíbrio. Mas, quando o desenvolvimento tem sido centrado num mercado doméstico em crescimento, um rápido retorno aos equilíbrios externos defronta com obstáculos estruturais de curto prazo que inevitavelmente torna o desemprego o principal meio de gerar excedentes.

Este processo é particularmente óbvio no caso do Brasil. A Figura 3 mostra a conta corrente sem juros, bem como os pagamentos líquidos de juros. Nos anos setenta o país foi importador líquido de recursos, de modo que a cada ano a dívida cresceu, não apenas com uma consequência dos juros dos empréstimos tomados, mas também por causa dos déficits sem juros. Aquele processo durou até 1982. De um ano para o próximo, pelo menos parte do serviço da dívida foi necessária e, como consequência, a conta corrente sem juros precisou transformar-se em superávit. Enquanto o racionamento da importação em si, juntamente com uma maior competitividade externa e com o crescimento mundial poderia ter realizado a maior parte da tarefa que as regras do jogo exigiram: um programa do FMI de austeridade monetária e fiscal doméstica cuja extensão não mantinha nenhuma relação com a necessidade de gerar receitas de dólares. Como consequência, a produção industrial em 1984, de acordo com as estimativas mais recentes, está ainda no nível de 1979, tendo caído mais do que 10% em termos “per capita”.

Figura 3

Uma primeira dificuldade então é que o ajustamento ao racionamento de capital externo não tem sido perseguido de um modo ótimo, por causa de uma indesculpável confusão, por parte do FMI, dos problemas de inflação e de equilíbrio externo. Este problema tem sido reforçado pelo fato de que os cortes do orçamento provocaram grandes reduções nos salários reais, deixando menos espaço para uma melhoria na competitividade externa; com respeito a esta última consideração, há, entretanto, diferenças importantes entre países. O México certamente tem sido capaz de realizar um ganho na competitividade, outros, pelo menos, têm sido capazes de reverter a valorização real do início dos anos 80.

Uma segunda dificuldade com relação ao serviço da dívida é que grande parte do esforço de ajustamento cai sobre o trabalho, cujo salário real é reduzido para atingir a competitividade externa. Mas, a acumulação da dívida, em muitos casos, reflete fundamentalmente os benefícios que fluíram, não para o trabalhador, mas sim, para a classe média alta que especulou com a fuga de capital, ou a classe média que esbanjou com importados supérfluos. Portanto, na Argentina, Chile e México o ajustamento para pagar o serviço da dívida envolve uma injustiça dramática. No Brasil é muito menos óbvio, uma vez que os déficits que criaram a dívida refletiram-se no investimento dos setores de petróleo e público, que também beneficiou a classe trabalhadora.

A terceira questão é o problema da solvência de longo prazo. Podem os países latino-americanos pagar os serviços de suas dívidas no médio e longo prazo como contratado e ao mesmo tempo desfrutar o crescimento nas rendas “per capita”, tendo compensado a maioria das perdas de 1981/84? Esta é a questão central hoje e está amplamente aberta. Em parte, ela depende das políticas internas e do escopo para a efetiva mobilização dos recursos nas áreas de substituição de importação e promoção das exportações. Mas, claramente, depende também do ambiente externo de longo prazo. Se as taxas de juros reais mundiais rapidamente retornarem aos baixos níveis, o crescimento do comércio mundial for forte e sustentado, e o protecionismo não for um problema, então, os problemas da dívida podem ser resolvidos por alguma repartição das cargas de curto prazo.

Não há segurança de que as tendências de longo prazo sejam favoráveis, mas não existe também razão particular para acreditar que numa perspectiva de 5 a 15 anos as condições sejam fortemente adversas. O problema da solvência de longo prazo é, portanto, muito desinteressante. É superado por duas outras questões. Uma é a crescente urgência para considerar os problemas de curto prazo causadores pelas taxas de juros crescentes de um problema patrimonial. A segunda é o reconhecimento de que a América Latina, na próxima década e nas seguintes, deverá amortizar as dívidas, ao invés de tomar emprestado; em média, acima e abaixo da conta de juros, a América Latina terá que estar ganhando exportações líquidas para atender o serviço da dívida e liquidá-la. Esta é uma implicação do fato de que os bancos comerciais estão procurando reduzir seu risco em termos reais e que nenhuma outra fonte maior de financiamento para desenvolvimento acha-se disponível. Esta é uma mudança extraordinária para o sistema financeiro internacional, indo contra o bom-senso e a boa economia. Esta implicação do problema da dívida de longo prazo tem sido ofuscada pelos aspectos cíclicos de curto prazo, mas merece atenção adicional.

A Perspectiva Externa: 1984/86

Os modelos de dinâmica da dívida, como vimos anteriormente, enfatizaram três fatores: a conta corrente sem juros, a taxa efetiva de juros pagos sobre a dívida e a taxa de crescimento dos ganhos de exportação, em dólares. A viabilidade do processo corrente de “dar um jeito” depende grandemente de como estas variáveis se desenvolvem no futuro próximo. Dois cenários possíveis podem ser imaginados. O primeiro se assemelha ao período 1970/73 com taxas de juros baixas, inflação elevada nos mercados mundiais, rápido crescimento nos países industrializados e o dólar em queda (ver Tabela 4). Este é um paraíso do devedor, pois as dívidas são facilmente pagas e, com taxas de juros reais negativas, mesmo em queda. Em contraste, 1979/82 mostra altas taxas de juros, baixa inflação no comércio mundial, pequeno crescimento e uma rápida valorização do dólar. Este é o cenário que conduziu a crise da dívida atual.

Tabela 4
Dois episódios da economia mundial (taxas percentuais médias anuais)

É importante saber qual o cenário a esperar por que uma repetição de 1979/82, mesmo em uma escala mais modesta, implicaria um dramático aumento nos custos do serviço da dívida. As taxas de juros seriam maiores, juntamente com os “spreads” (taxa de risco), significaria maiores custos de juros. Os ganhos da exportação seriam mais difíceis por causa do baixo crescimento e dos aumentos moderados nos preços mundiais. O problema é agravado pela espiral viciosa entre as taxas de juros, as taxas dos certificados de depósitos (CDS) dos bancos comerciais e as taxas cobradas sobre a dívida do PMD: à medida que aumentam as taxas de juros, as dificuldades da dívida do PMD aumentam, elevando a probabilidade de inadimplência e, portanto, deteriora a qualidade dos CDs bancários. Nesse sentido, o mercado cobra dos bancos um maior “spread” sobre o CD em relação aos títulos do governo. Os bancos repassam aqueles custos maiores dos recursos através de um aumento na “prime” ou Libor, que por sua vez agrava ainda mais o círculo vicioso.4 4 Veja D. Dantas “Risco de Inadimplência, taxas bancárias do CD e Libor: O círculo vicioso”, EPGE, Fundação Getúlio Vargas, manuscrito em preparação, agosto de 1984.

Atualmente, existem amplas concordâncias que a forte recuperação dos EUA e, em menor intensidade, da Europa e do Japão, já está desacelerando significativamente e pode chegar a uma encruzilhada no final de 1985. O motivo disto pode ser observado no crescente conflito entre uma política fiscal frouxa e um aperto monetário nos EUA. Atualmente o Federal Reserve está limitado pelas instabilidades políticas de um ano eleitoral: Volker simplesmente não pode admitir Reagan não reeleito, em outras palavras, o “Fed” não pode se dar ao luxo de permitir uma escalada dramática das taxas de juros antes da eleição. Mas, à medida que a recuperação se acelera ainda mais e os EUA atingem o pleno emprego, o que certamente está à vista, o aumento da inflação torna-se uma ameaça crescente. O “Fed” já anunciou uma redução nos objetivos de crescimento monetário para 1985, e estes objetivos de crescimento, com uma inflação de 5 a 6% certamente não deixaram espaço para o crescimento de 2 a 3% sem um aumento significativo nas taxas de juros. Além disso, se a inflação se acelera, a política monetária certamente se apertará a fim de não sacrificar os ganhos dos 4 anos de luta contra a inflação.

A Tabela 5 sumariza a principal previsão da “Data Resources, Inc.” (DRI), para a economia dos Estados Unidos. Este cenário básico coloca grande ênfase nos aumentos da taxa de juros que diminui a taxa de expansão da economia. Ao cenário é atribuída uma probabilidade de 60%. Dos três cenários restantes, dois envolvem um crescimento ainda menos otimista e perspectivas de taxa de juro chegando a uma probabilidade de 25%. A perspectiva otimista, a que resta, simplesmente evita uma total queda abaixo do crescimento de tendência.

Tabela 5
DRI, Inc. perspectiva para a economia dos EUA (taxas de percentagens anuais, previsão de agosto/84)

A previsão mostra apenas as médias anuais para as variáveis chaves. Mas, o padrão trimestral mostrado na Tabela 6 é talvez de mais interesse ainda. Essa tabela revela que a grande expansão da economia dos EUA já passou e que as taxas de juro daqui para frente estarão bem acima do atual nível da “prime-rate” de 13%.

Tabela 6
Dados previstos trimestrais, EUA (Taxas anuais médias trimestrais)

Em 1983, a média da “prime-rate” foi inferior a 11 por cento; hoje é de 13% e espera-se aumentar para 14,5% e talvez mais. Isto representa uma significativa deterioração na situação dos grandes devedores. Supondo que observamos o Brasil como 100 bilhões de dólares de dívida da qual 80% estão amarradas às taxas flutuantes, o aumento nas taxas implica um aumento do serviço da dívida de aproximadamente 3 bilhões de dólares, ou 12% das receitas de exportação. Esta é uma carga de ajustamento extra, absolutamente não prevista quando os programas foram estabelecidos em 1982/83. Agora ela aumenta significativamente a injustiça da estratégia de “dar um jeito” quando é vista em combinação com uma desaceleração da economia mundial e um dólar que ainda permanece forte.

Considere agora, em particular, quais as implicações destas previsões macroeconômicas para um país tomador de empréstimo. Suponha, especificamente, que o crescimento é limitado pela disponibilidade de importações. O nível de importação disponível é determinado pela receita de exportação mais “dinheiro novo” dos bancos, menos pagamento de juros:

(1) D i s p o n i b i l i d a d e d e i m p o r t a ç õ e s = R e c e i t a d e e x p o r t a ç ã o + D i n h e i r o n o v o - P a g a m e n t o d e j u r o s

Suponha que os bancos estão querendo manter constante, em termos reais, seus empréstimos aos PMDs a fim de que o dinheiro novo seja igual à taxa de inflação mundial vezes a dívida inicial. Suponha, também, uma taxa de inflação mundial de 6%. Sob estas hipóteses, a Tabela 7 revela a taxa de crescimento das importações sob diferentes cenários de taxas de juros efetivas e taxas de crescimento real da exportação.

Tabela 7
Crescimento das exportações sob hipóteses alternativas

Os números no corpo da Tabela 7 revelam as taxas de crescimento médio das importações reais no período 1984/86 resultante da equação (1) e as combinações do crescimento especificado e taxa de juro.

As compensações são altamente significativas: um ponto extra na taxa de juro ou uma queda de 1% no crescimento da exportação custará de 1,1 a 1,5 por cento do crescimento médio da importação. A interessante combinação, naturalmente, é uma mudança a partir de uma taxa de juro estável e cenário de crescimento no canto direito superior para altas taxas de juros e menor crescimento das exportações. Aqui o custo é mais do que 6 pontos percentuais da redução do crescimento da importação.

O passo final é considerar os efeitos das diferentes taxas de crescimento da importação sobre o crescimento do PIB dos países em desenvolvimento. O FMI (1984, p. 221) estima que uma redução forçada de 2 pontos percentuais no crescimento da importação reduz o PIB dos países em desenvolvimento de 1 ponto percentual. Portanto, a inferida faixa de crescimento da relação para a nosso devedor hipotético é de 1% a 4,3% ao ano5 5 Veja International Monetary Fund, World Economic Outlook, Occasional Paper n. 27, Washington DC, 1984. .

Uma taxa de crescimento da produção de 4,3% tem probabilidade de tornar possível, ao nosso devedor hipotético, o atendimento dos seus objetivos de balanço de pagamentos sem reduzir os padrões de vida que forçaria uma mudança na política. Mas, uma taxa de crescimento do PIB de 1% ao ano não será sustentável. Para os países onde as importações já estão deprimidas em relação à produção, e onde o desemprego é alto, uma taxa de crescimento tão baixa não deixa espaço para a recuperação. Certamente, não haveria espaço para absorver uma força de trabalho fortemente crescente. Alguma coisa teria que ser feita.

O cenário de baixa importação e de crescimento real torna-se mais plausível quanto mais aumentarem as taxas de juros mundiais e quanto maior for a demora na correção fiscal dos EUA. Falhando as correções fiscais dos EUA, existem dois caminhos. Um é o esforço extra que os países devedores podem fazer para alcançar o crescimento dentro dos parâmetros externos estabelecidos pela economia mundial. O outro é procurar a redução da dívida. O restante deste artigo chama atenção para estas questões.

Antes de deixarmos esta seção, são necessárias três observações. Primeiro, não considerarmos os cenários otimistas - crescimento real da exportação com média sustentada de 8% e uma taxa de juros efetiva de 5%. Se o mundo toma aquela alternativa, não há problema de dívida. Mas, as previsões macroeconômicas disponíveis não dão evidência de que tal perspectiva seja plausível.

Segundo, temos observado o caso em que os bancos estão querendo financiar uma dívida real constante. Mas, o que aconteceria se, para o caso dos países com problemas de dívida severos (México, Brasil etc.), os bancos procurassem uma redução na dívida real? Como esclarece a equação (1), a perspectiva para o crescimento da importação seria muito mais restrita desde que as importações atuais devem ser comprimidas para reduzir a dívida em termos reais. Um ajustamento adicional pelos devedores, ou redução da dívida e maior liberdade de mercado, tornaria ainda mais urgente.

Terceiro, o otimismo do cenário básico de 1983, revisto acima, é de difícil sustentação, tanto em termos das hipóteses feitas então, e ainda mais em termos do comportamento seguinte das taxas de juros. Existe uma séria possibilidade de que os grandes devedores serão incapazes de continuar a pagar sua dívida sem concessões adicionais.

Redução da dívida e outras propostas

Uma variedade de propostas tem sido oferecida nos últimos dezoito meses para a solução do problema da dívida. Estas propostas diferem amplamente de grandiosas até superficiais. Elas também diferem quanto à proposição de aliviar as cargas do serviço da dívida sobre os países em desenvolvimento à custa dos bancos ou do contribuinte, enquanto outras estão simplesmente preocupadas em assegurar, com maior certeza, que as dívidas serão, no final, totalmente pagas. Revisaremos algumas destas propostas brevemente para questionar se elas próprias podem contribuir significativamente para resolver o problema da dívida. Não estamos, então, questionando a desejabilidade.

Não gastaremos qualquer tempo em programas ou planos grandiosos. Parece uma conclusão passada de que os países industrializados não têm qualquer inclinação para criar instituições que assumam o serviço das dívidas dos países em desenvolvimento, por inúmeras razões. Primeiro, os dólares de impostos são considerados como particularmente escassos, escassos demais para serem dados aos países em desenvolvimento ou aos bancos. Mas há o argumento adicional de que a união dos países em desenvolvimento devedores enviaria os sinais errados. Enviaria a mensagem de que o excesso de empréstimo tomado pode ser recompensado. Mesmo as propostas tão modestas, como fornecer 2,5 bilhões de dólares extra de créditos comerciais do EximBank ou o aumento da quota do FMI, foram aceitas com muita dificuldade.

A avaliação dos méritos das propostas alternativas é, naturalmente, essencial para saber se elas resolverão os aspectos patrimonial, de liquidez ou de solvência do problema da dívida. A distinção é essencial como mostra um simples exemplo. A recomendação comum é resolver os problemas de dívida através da venda de ativos reais ao exterior como, por exemplo, bancos ou usinas de aço. Mas, como Simonsen (1984) destacou, aquilo reduz o futuro fluxo de exportações de bens e serviços porque os estrangeiros agora comandam os ganhos dos ativos. Então, na melhor das hipóteses, a medida fornece liquidez de curto prazo para fazer ponte a um período transitório de racionamento de capital, ou seja, sua contribuição ao problema da solvência é nula. A perspectiva patrimonial é totalmente controvertida, uma vez que envolve a transferência do controle econômico, sob condições de liquidação ao exterior. Portanto, mesmo alguém que favoreça mais o investimento direto estrangeiro poderia objetar a venda forçada.

Algumas Propostas: Tendo dado uma definição operacional ao problema da dívida, podemos agora considerar as propostas alternativas. Algumas propostas de dívida são insignificantes quanto ao seu envolvimento de pequenos pontos da administração da dívida que não levam em conta o problema do serviço da dívida de multi-bilhões de dólares dos países em desenvolvimento. Exemplos específicos são a diversificação da espécie de moeda das novas dívidas para evitar a concentração de dólares norte-americanos que até agora tem caracterizado os empréstimos tomados e tem provado ser um erro oneroso na valorização do dólar no período 1979/83. Uma outra proposta ao longo da mesma linha chama atenção para os “swaps” da taxa de juro que permitiriam a saída dos países em desenvolvimento das taxas flutuantes. Naturalmente, os “swaps” serão realizados implicitamente às taxas futuras antecipadas e, portanto, não escapam do principal problema, ou seja, que as taxas de juros estão altas e espera-se que subam. Contudo, outra proposta chama atenção para as dificuldades de se reprogramarem as dívidas, sugerindo que os pequenos bancos sejam comprados. Espera-se que com menos e maiores bancos envolvidos na reprogramação haja mais campo para diferenciação entre os tomadores de empréstimos e, em particular, mais espaço para usar “a vara e a cenoura” (NT6 6 Expressão usual em inglês para designar um objetivo que nunca será alcançado, embora haja motivação constante e ilusória para alcançá-lo. ).

Três propostas específicas merecem atenção. A primeira delas é uma nova alocação dos Direitos Especiais de Saque (DES) proposta há algum tempo pelo Grupo dos Vinte e Quatro e mais recentemente por John Williamson (1984). O caso para uma nova alocação do DES se baseia no fato de que as reservas internacionais são baixas em relação ao comércio mundial e que, portanto, a percepção da escassez de reserva leva a políticas restritivas desnecessárias. O caso é reforçado quando as reservas não são medidas, como é hábito, em relação ao comércio mundial de títulos de propriedade, mas sim em relação ao comércio mundial de bens e serviços. Por esta medida mais apropriada, a inadequação das reservas é muito mais pronunciada. O caso é reforçado quando se considera o efeito do aumento da variabilidade do valor do comércio de bens e serviços. Uma nova alocação do DES é claramente uma medida desejável. Mas deve estar claro, também, que não é uma solução ao problema da dívida nem para os grandes nem para os pequenos devedores. Se os DES são usados para liquidar as dívidas, o problema da inadequação da reserva permanece. Se os DES não são usados, o problema da dívida permanece. Contudo, este é um momento oportuno para apresentar um caso que claramente possui o seu próprio mérito.

Uma proposta quantitativamente mais importante é ampliar bastante a função do Banco Mundial. A capacidade do Banco Mundial de tomar empréstimos nos mercados mundiais seria aumentada. O Banco Mundial usaria maiores recursos para fornecer aos países em desenvolvimento, com alavancagem nos empréstimos tomados. A boa experiência com os empréstimos do Banco Mundial, a este respeito, faz deste um dos passos importantes de longo prazo.

A terceira medida é uma solicitação de vantagens na taxa de juros do FMI (ver Dornbusch, 19837 7 Dornbusch, R. “The IMF and the prospects for adjustment in Brazil: Comment” em J. Williamson (ed.) Prospects for Adjustment, Institute for International Economics, Washington DC, 1983. ). Atualmente, o FMI fornece adiantamento financeiro aos países que experimentam uma queda temporária nos ganhos de exportação. É natural ampliar esta vantagem amortecedora de choque dos aumentos da taxa de juros, onde outro tanto do choque externo para alguns países devedores, como são as flutuações dos preços das mercadorias, para os exportadores de mercadorias primárias. Organizado como um fundo rotativo, tal vantagem assumiria um papel importante no auxílio aos países devedores, resistindo aos choques da taxa de juros.

Até onde pode ir tal vantagem na taxa de juros (VTJ) na luta contra as dificuldades do serviço da dívida? Presentemente, um aumento de 1% nas taxas de juros aumenta o serviço da dívida de todos os países em desenvolvimento de aproximadamente 5 bilhões de dólares. Mas os aumentos, nos últimos seis meses, têm sido maiores do que 1,5% e a expectativa é de que dure mais dois ou mesmo três anos. Como um amortecedor de choque, a vantagem pode, então, na melhor das hipóteses, lutar com parte dos problemas de liquidez atribuídos à escalada da taxa de juros, a menos que o recurso seja da ordem de 10 bilhões de dólares, ou mais ainda. Qualquer que seja a contribuição que a VTJ possa ter, não há dúvida de que, por razões analíticas, tal vantagem tem a mesma justificativa e mérito como vantagem compensatória para as flutuações de exportações.

Uma outra direção na qual a mudança institucional seria pressionada muito urgentemente diz respeito aos ativos externos dos países devedores. É um fato bem estabelecido que uma parte significativa da dívida externa do México ou Argentina, por exemplo, tem uma contrapartida de posse de ativos pelos cidadãos desses países no mundo industrializado. Estes ativos podem ser móveis, títulos ou contas bancárias. O fato de que elas não estão disponíveis para ajudar a financiar o serviço da dívida agrava seriamente os problemas de ajustamento fiscal e externo. É natural partir disso para recomendar que os países industrializados ofereçam assistência aos países em desenvolvimento obtendo informação sobre esses ativos e sobre as rendas que produzem. Este é um procedimento rotineiro entre os Serviços de Receita de muitos países industrializados e é inteiramente adequado que fosse estendido aos países em desenvolvimento devedores. Visto nesta perspectiva, a recente suspensão dos impostos retidos na fonte dos não residentes parece um convite aberto para mais fuga de capital dos países em desenvolvimento devedores, do que um passo na direção de apoiar aqueles países ordenando equitativamente os recursos para pagar suas dívidas.

O Limite Superior (Cap): A proposta central na luta contra os problemas de liquidez e patrimonial atribuídos pelos atuais níveis de taxas de juros é a ideia de um limite superior para a taxa de juro. A ideia do limite superior possui três variantes. Um limite superior com concessão em subsídio total (con-cap) estabeleceria um teto, digamos, em 7% e perdoa qualquer excesso sobre as taxas de juro de mercado, indefinidamente, acima daquele teto. Uma segunda forma, no outro extremo, também estabeleceria um teto, mais do que perdoar a diferença entre as taxas de mercado e o teto, seria acrescentada ao principal da dívida. Este é um limite superior de liquidez, uma vez que luta principalmente com os problemas de liquidez atribuídos aos aumentos da taxa de juros. O terceiro tipo, que advogamos e desenvolvemos abaixo em maior detalhe, envolve tanto os aspectos concessionais como a liquidez e, portanto, é uma variante intermediária.

A “con-cap” atinge a uma dramática reconsideração das dívidas que implica uma grande perda para os bancos. Tomando-se apenas os empréstimos aos países em desenvolvimento pelas instituições financeiras e supondo que para os próximos sete anos as taxas de juros diminuam do nível de 14% para 7% do limite superior, a redução total, a valor presente, dessas dívidas seria de aproximadamente 100 bilhões de dólares, ou próximo a 30%. Se a perda não fosse absorvida pelos contribuintes de impostos isto implicaria a falência dos maiores bancos nos EUA e em outros países. Pelo fato de a proposta ir além, levando perdas e quase certa falência de alguns dos principais bancos dos EUA, é irrazoável assumir que os bancos optariam em aceitar uma proposta ou que os governos a consideraria atraente para legalizá-la. Esta é a questão básica que envolve a redistribuição dos credores a muitos países que experimentam dificuldades no serviço da dívida que não são de modo algum extremos.

Como resultado de uma negociação, um limite superior de 7% parece improvável. Mas, evidentemente, se os devedores fossem bem-organizados, isto poderia mostrar uma proposta unilateral que algum grupo particular poderia avançar. Como tal não está fora de cogitação. Muitos têm argumentado que qualquer mudança unilateral de alteração das cláusulas contratuais da dívida teria profundas implicações para o futuro acesso daquele país aos empréstimos bancários. Mas, os novos empréstimos de mais do que uma parte dos juros é em todo caso improvável durante os próximos anos. Os bancos estão reduzindo o risco ou a proposta relativa dos débitos dos países em desenvolvimento em seus portfólios e, portanto, a perspectiva de grande financiamento futuro como uma contrapartida do serviço da dívida corrente não é de nenhum modo assegurada.

No outro extremo do “con-cap” está a proposta do limite superior da liquidez. Esta proposta considera o aumento dos prazos de vencimentos e a capitalização de todos os pagamentos de juros acima de um limite superior, de digamos 10%. Tal proposta parte do reconhecimento realístico de que o empréstimo tomado pelo país em desenvolvimento no passado foi baseado na pressuposição da rolagem do principal e capitalização dos juros pelos novos empréstimos. O racionamento de crédito que tem ocorrido desde 1982/83 tem mudado essas regras, mas com o devido ajustamento realizado e/ou iniciado, agora deve voltar a este padrão anterior. Portanto, argumenta-se que o componente de amortização do serviço da dívida deveria ser reprogramado automaticamente em termos de longo prazo. As dívidas vincendas agora seriam renovadas para o prazo adicional de dez anos. Esta primeira parte da proposta enfrenta o problema de uma concentração temporal do serviço da dívida, ou seja, um volume do serviço da dívida resultante do simultâneo pagamento dos altos juros e da amortização.

A proposta vai além ao sustentar que, em razão de serem as taxas de juros reais transitoriamente altas, haveria um arranjo que enfrenta o resultante problema da liquidez. Do que forçar os devedores a uma profunda e irrazoável depressão econômica para arranjar os dólares do serviço da dívida, parte do aumento dos juros seria automaticamente emprestado e incorporado ao principal. Para os bancos, a proposta interessa porque elimina os problemas de liquidez dos devedores como uma fonte potencial de tentativa de não pagamento da dívida. Tem a vantagem adicional que impede o problema do banco oportunista no processo de reprogramação. Atualmente, quando os empréstimos são reprogramados, alguns bancos não tomam parte, o que implica a redução de seu risco ao país devedor, com outros bancos tendo que aumentar correspondentemente os seus riscos. Se o limite superior de liquidez fosse automático com respeito à amortização e juros, todos os emprestadores estariam participando na capitalização do limite superior de juros mencionados e no aumento dos prazos de vencimento.

Do ponto de vista do devedor, a proposta do limite superior de liquidez oferece pouca atração além do processo atual de reprogramação. O processo de reprogramação tornaria mais automático e algumas características da crise seriam eliminadas, mas não haveria ganhos reais. Especificamente, o juro não pago hoje seria pago com juro amanhã ou depois de amanhã. É fundamentalmente uma proposta para tornar o cartel dos credores mais operacional. O problema para os países devedores é compreensível quando observamos um período de juros elevados. Suponha, como discutido acima, que nos próximos três anos a taxa de juros efetiva seja em média 13% e o crescimento dos ganhos da exportação seja apenas 10%. Num período de três anos, com uma conta corrente sem juros equilibrada, a relação dívida/exportação aumentaria de 8,4%. O problema de liquidez seria resolvido, mas a carga da dívida aumentaria. O limite superior de liquidez equivale, então, a dar um cartão de crédito aos devedores dos países em desenvolvimento, não uma redução da dívida.

Nossa própria proposta trata da reprogramação do principal e com os problemas atribuídos às atualmente elevadas taxas de juros. Com relação ao problema colocado por um volume de amortização, vemos uma necessidade de um aumento automático (dos prazos) das dívidas para um maior prazo de vencimento, pelo menos dez anos. O fato de que os devedores incorreram em um problema não previsto das taxas de juros recordes e fraco ganho de exportação não deveria levar a uma carga extra de amortização das dívidas, que normalmente teriam sido roladas automaticamente. Por outro lado, a carga extra dos devedores precisa ser evitada, solicitando que os emprestadores mantenham o seu risco com relação ao principal.

Mas existe também a necessidade de ser um arranjo para lutar contra as dificuldades temporárias das altas taxas de juros, colocadas por alguns países. Recomendamos um teto de 9 a 10% nas taxas de juros, a diferença entre as taxas de mercado e o teto, totalmente perdoado (do que capitalizado), durante um período de carência de 3 anos. Sem dúvida, este limite superior equivale a uma transferência dos bancos credores para os países em desenvolvimento devedores. A perda de capital sobre os empréstimos pendentes seria de 9 a 11 %. A perda é significativa, mas evita criar condições para falência.

Entretanto, não acreditamos que o teto de juros deveria estar disponível incondicionalmente a todos os devedores, devedores de países em desenvolvimento, devedores de países em desenvolvimento não produtores de petróleo ou qualquer grupo amplamente definido. Mais propriamente, acreditamos que deveria ser pensado para aqueles países realmente com necessidade e com ajustamento em andamento. Por estas razões recomendamos que o acesso ao limite superior seja limitado aos países que estão aceitando um acordo “stand by” do FMI. Especificamente, recomendamos que para tornar a proposta diretamente operacional e transferi-la ao arbítrio dos bancos, os países-membros deveriam instruir o FMI a não assinar acordos, a menos que tenha sido assegurado um acordo com limite superior, “a priori”, por parte dos bancos. Este procedimento força o FMI a mudar os seus procedimentos em dois aspectos. O FMI terá que solicitar uma diminuição limitada da dívida do que simplesmente controlar a característica de liquidez da dívida. Segundo, o FMI terá que dar muito mais ênfase em fazer com que os países, no médio prazo, olhem para o futuro crescimento e atendimento do serviço da dívida. Isto representa uma mudança importante da atual concentração sobre a inflação e corte orçamentário.

Nossa proposta parece muito limitada: temporária, limitada redução da dívida para um grupo escolhido de países com problemas suficientes para que necessitem procurar um acordo “stand by” com o FMI. Mas a proposta tem a vantagem de ser completamente operacional. Não há cobrança direta de impostos, não há necessidade de que os bancos concordem e nem há recomendação que implique inocentar os dez maiores bancos do mundo. A ênfase é manter os países em sérias dificuldades, protegidos do prejuízo que resulta das atuais taxas elevadas. Mas, a principal vantagem da proposta é livrar-se do atual beco sem saída entre bancos e devedores. Os governos de países industrializados têm aceitado uma visão de liquidez do problema, muito explicitamente. Eles têm, diretamente ou via FMI, suportado a totalidade das dívidas existentes às taxas de mercado mais outras taxas e “spreads”, através da criação de esquemas para rolar, fazer ponte e capitalizar. Chegou o momento de reconhecer que existe também uma questão patrimonial. Os governos, via instruções ao FMI, deveriam fazer valer o seu poder mais em direção aos tomadores de empréstimos, procurando uma redução da dívida limitada e responsável para os países particularmente carregados pelo serviço da dívida às taxas correntes.

Existe um aspecto valioso adicional a destacar. Nosso esquema para a redução da dívida invoca uma transferência dos bancos para os devedores. Envolve apenas uma participação indireta e limitada do contribuinte. Vemos isto como um aspecto essencial. A contribuição é limitada à redução no imposto sobre a renda, da pessoa jurídica e física, decorrente dos menores ganhos dos bancos. O fato de que a taxação do imposto é indireta e limitada, implica que não existe ameaça direta aos fluxos de recursos subsidiados para os países que não são beneficiários da redução da dívida, porque eles nunca contraíram dívida bancária significativa. Uma proposta que iria muito além do que a que adiantamos, inevitavelmente implicaria o recolhimento de dólares de impostos de um modo principal e aberto e, portanto, leva a alguma e talvez reduções ainda maiores de compensação nos empréstimos subsidiados, ou outras formas de recursos colocados à disposição para os países em desenvolvimento de baixa renda. Nossa proposta, então, reconhece que o problema da dívida não é um problema generalizado dos países em desenvolvimento e que uma solução imprudente piora a distribuição dentro daqueles países.

Uma palavra de precaução é necessária. Nossa proposta para uma limitada redução da dívida está baseada na hipótese de que os problemas da taxa de juros são estritamente temporários. Especificamente, supomos que num período de crescimento dos ganhos de exportação de dez anos tranquilamente excederá a taxa de juros efetiva. Tal proposta assume uma razoável combinação de política monetária-fiscal e crescimento dos países industrializados, e não supõe outras restrições nas exportações dos países devedores. Se cada hipótese for incorreta, os países devedores terão que encarar suas dívidas de maneira bem diferente.

Este ponto foi colocado por Simonsen (1984, p. 41) de um modo bastante enfático:

“Para manter os países devedores em desenvolvimento, cooperando com a comunidade financeira internacional, uma questão básica deveria ser abordada: sob que condições os formuladores de política racional, das nações devedoras, prefeririam a cooperação à retaliação? Embora seja difícil localizar os pontos de ruptura, um princípio geral continua válido: uma economia em crescimento com exportações em expansão dificilmente procuraria confrontação com os seus credores. Na mesma linha, uma solvência à custa de prolongada recessão pode ser politicamente insustentável.”

A Dívida Externa e a Estabilização Brasileira

A discussão precedente abordou o problema da dívida Latino-americana de um modo genérico. Voltamos, agora, especificamente ao caso do Brasil e observamos como as considerações do setor externo e, em particular, como a dívida influencia as opções para a estabilização macroeconômica.

O Brasil tem, hoje, quatro problemas macroeconômicos principais: o salário real, o desemprego e a baixa utilização da capacidade, inflação e a dívida externa. A política econômica, até agora, tem sido voltada principalmente para a rolagem da dívida e para a luta contra a inflação, através de políticas fiscais e monetárias apertadas. Como mostra a Tabela 8, a luta contra a inflação tem sido muito malsucedida. Um resultado que era de esperar, devido à forte indexação. A incapacidade do atual governo para lutar com o problema da inflação é adequadamente resumida pela declaração do Presidente Figueiredo sobre o assunto8 8 Citado em Veja, 28/dezembro/83, p. 6 :

“Se a inflação fosse um cavalo, eu já a teria domado.”

Tabela 8
Indicadores macroeconômicos do Brasil

Existem, principalmente, duas maneiras para se reduzir a inflação. Uma, é usar um segmento particular do complexo salário-preço para iniciar a desinflação: o salário, a taxa de câmbio ou os preços do setor público. Apenas o salário real já caiu muito, os preços do setor público precisam ser mantidos em linha com a taxa de câmbio e por razões orçamentárias, por causa das considerações sobre o equilíbrio externo. Sem dúvida, nenhuma dessas opções é possível, qualquer que seja a capacidade para encaminhá-las. A alternativa é um programa do Dia-D da desindexação preanunciada, combinada com um forte congelamento do salário-preço. Conceitualmente tal operação é viável e, de fato, correta. A única questão é se a inflação é uma prioridade política suficiente para concentrar nela todo o capital político. Por causa daquela total concentração, é necessário que seja bem-sucedida. Em adição, além da mecânica de estancar a inércia do processo inflacionário, os formuladores da política econômica teriam que abordar a questão de como substituir qualquer receita de imposto inflacionário sobre a moeda e a dívida pública. Dada a incerteza e a extrema dificuldade em lutar com a desinflação, o fato de que a inflação é onerosa, mas não tanto assim, o melhor conselho é deixar o combate à inflação para mais tarde.

Uma vez que o combate à inflação é colocado de lado, o crescimento se torna o problema de preocupação principal. Especificamente, a que fontes de crescimento se poderia confiar e quais taxas de crescimento são compatíveis com as restrições externas.

Uma visão simplista do assunto é argumentar que o crescimento da exportação e a substituição de importações estão em pleno andamento, muito além das expectativas, e que fornece um crescimento suficiente e compatível com os objetivos externos. Neste sentido, a política econômica deve fazer tudo para não impedir aquele processo, ao permitir que o crescimento do salário real deteriore o equilíbrio externo, ou a expansão inflacionária da demanda, para compensar os incentivos às exportações.

Sem dúvida, é verdade que o crescimento das exportações no período de janeiro a junho foi de 25%, em comparação com o mesmo período de 1983. O crescimento das exportações, por sua vez, é um dos principais componentes da forte recuperação de 5% na produção industrial. Se o crescimento das exportações continuasse a esta taxa durante dois ou mais anos, os problemas da dívida e do crescimento seriam menores. Mas, não é sensato supor um crescimento contínuo a estas super-taxas. Elas são, em parte, um reflexo do colapso do mercado interno e, como tal, seriam fortemente amortecidas por uma recuperação interna. Mas são, também, reflexos do supercrescimento das importações nos EUA. A partir do segundo trimestre de 1983, até o mesmo trimestre de 1984, as importações totais dos EUA cresceram de 29,4% e as importações dos produtos e suprimentos não derivados de petróleo, de 37,2%. Espera-se que o crescimento caia rapidamente para apenas 10%, aproximadamente. Existe, então, um vazio no recente desempenho das exportações que qualquer avaliação realista das perspectivas de exportação deve levar em conta. Um melhor desempenho das exportações, sem dúvida, teve o seu papel, mas o maior crescimento das importações nos EUA, a nível recorde, foi mais importante.

Poderia ser defendido que esta linha de argumento subestima o papel da competitividade das exportações. Especificamente, os salários em dólares no Brasil têm caído significativamente. Assim, o salário em dólares no Brasil caiu de 22%, enquanto nos EUA aumentou de 12%, no período de 1981/83. Sem dúvida, houve um ganho de competitividade em relação aos EUA. Mas o mesmo é verdade para a maioria dos países. O salário em dólar de cinco países competidores (México, Coréia, Formosa e Singapura) caiu de 26% durante o período e o salário em dólares, da Europa e do Japão, de 22%. Estas mudanças mundiais nos salários em dólar devem ser levadas em conta ao avaliar a extensão dos ganhos do Brasil e na competitividade externa.

Do lado das importações, também existe incerteza. O Brasil realizou nos últimos quatro anos uma dramática redução nas importações. A Tabela 9 mostra que as importações totais caíram para a metade do nível de 1980 e as importações sem petróleo caíram ainda mais. Mas é difícil saber como as importações se comportariam na recuperação.

Tabela 9
Importações brasileiras (bilhões de dólares, janeiro a maio de cada ano)

A Figura 4 mostra a enorme dificuldade em se estabelecer uma relação quantitativa simples entre o volume de importações (com exceção do petróleo e do trigo) e o PIB real. Uma hipótese é que a substituição de importações dos anos 70 está se completando, não só na área do petróleo, mas mais amplamente na indústria e, portanto, realiza uma permanente redução no coeficiente de importação. Esta tendência seria reforçada pela extensiva capacidade ociosa na indústria e, sobretudo, no setor de bens de capital. Portanto, o crescimento poderia resumir-se em uma forte taxa sem incorrer nas restrições da disponibilidade de importações.

Figura 4
Importações sem petróleo e trigo.

Esta hipótese é muito atraente, não apenas por causa de suas implicações que podem ter o crescimento, sem a necessidade de mudanças polêmicas na dívida externa. É atraente, também, porque sugere, como em 1980/83, que as importações poderiam declinar de aproximadamente 50% com a produção caindo apenas 5%. A substituição de importações, neste contexto, tem sido tão eficaz na reposição de importados que não houve redução na produção por causa da falta de recursos importados: ao contrário, o efeito líquido do controle de importações poderia ter sido o de estimular a produção, e a completa recessão econômica deve-se às políticas do lado da demanda, e não da escassez do lado da oferta.

A dificuldade desta interpretação dos fatos é que não sabemos qual a parcela da redução das importações é devida à recessão que cortou a demanda para os estoques e para o investimento. De um modo pessimista, existe uma completa simetria entre crescimento e recessão: a drástica economia de importados de uma recessão seria substituída pela dramática necessidade de importações para sustentar o crescimento. Uma solução de compromisso mais razoável é supor que o crescimento, normalmente, tem um conteúdo de importações significativo. Mas boa parte daquele conteúdo de importações pode, potencialmente, ser produzido internamente. A depreciação real e o contínuo uso de controles de importações violentos e responsáveis assegurariam um baixo coeficiente de importação e, portanto, máximo crescimento. Além disso, tal política seria eficiente, dado que minimiza os custos de racionamento de capital externo que, em si, são um desvio da alocação de recursos internacionalmente eficiente.

Este modo de pensar é refletido nos programas que exigem uma imediata retomada do crescimento de 6% ao ano, sem exigir qualquer mudança decisiva na dívida externa. Devido às restrições nas importações não serem vistas como neutralizadoras do crescimento, é implicitamente aceito que a dívida será atendida como contratada, com negociações cobrindo reduções insignificantes nos “spreads” e capitalização liberal do juro.

A Tabela 7 mostrou as taxas de crescimento das importações sob hipóteses alternativas, sobre as taxas de juros efetivas e taxas de aumento na receita real de exportações. A extensão em que aquelas taxas de crescimento das importações se traduzem no crescimento da produção e emprego, depende da elasticidade de importação, estimada entre 0,8 até 2,0. Para o cenário otimista de 9% de juros efetivos e de crescimento real das exportações de 6%, resulta uma faixa de taxas de crescimento da produção entre 4,4 e 10,9 por cento. Sem dúvida, a faixa mais baixa seria inaceitável para um período de 3 anos porque implicaria um crescimento do desemprego ainda maior que os níveis atuais. É claro, também, que, nos restantes dois cenários mais otimistas. é necessário que as elasticidades de importação sejam próximas ou menores que a unidade, para atender às implicações de crescimento. Para o pessimista, mas de perspectiva não irrealista, mesmo a baixa elasticidade de 0,8 não pode fornecer crescimento suficiente. Então, mesmo nesta perspectiva que vincula um grande significado à substituição de importações, não significa que o problema da dívida já foi resolvido. Ao contrário, num cenário de taxas de juros crescentes e de crescimento das exportações em queda - que é o cenário macroeconômico realístico do mundo - mesmo a baixa elasticidade de importação de 0,8 não é suficiente para fazer com que o crescimento e o serviço da dívida sejam compatíveis. Além disso, se os requisitos de importações forem mais restritos, então, a estimativa inferior sugere que o crescimento é impossível, sem financiamento extra ou uma alteração nas cláusulas do contrato da dívida.

Retornemos ao problema do crescimento, supondo que ocorra o ajustamento necessário em termos de alteração das cláusulas contratuais e/ou o financiamento. Ficamos ainda com o problema de como alcançar o crescimento suficiente para, pelo menos, absorver a força de trabalho crescente no emprego ativo. Três opções são disponíveis: a primeira é um afrouxamento das políticas monetária e talvez fiscal, planejadas para estimular a demanda, a produção e o emprego numa frente ampla. A segunda, é assegurar um rápido aumento nos salários reais para recuperar o poder de compra e a demanda interna. A terceira, enfatiza a criação de empregos diretos através de obras públicas, especialmente construção. As três opções não são, naturalmente, mutuamente exclusivas, mas correspondem a diferentes percepções do problema.

A opção do estímulo monetário e talvez fiscal considera o combate à inflação como o principal problema, através do aperto monetário, levando a altas taxas de juros reais e, portanto, demanda agregada e emprego reduzidos, bem como dificuldades financeiras de firmas que forçam a falência e a perda de empregos. Enfatizando-se o estímulo monetário - ou mais corretamente, estrangulamento reduzido - a abordagem minimiza os aumentos dos déficits governamentais e a intervenção e, portanto, descreve mais de perto a filosofia de “livre mercado”. Tem a vantagem sobre os aumentos do salário real porque não gera conflito entre o crescimento da demanda interna e o custo de competitividade externa. Mas pode-se não ir muito longe ao estabelecer um crescimento rápido e seguro na produção e emprego dos setores mais duramente atingidos pela recessão. Por esta razão uma iniciativa transitória na área de obras públicas - um programa de emergência - parece quase certo ser indispensável.

Em resumo, uma redução nas taxas de juros reais, uma suspensão do corte orçamentário e um projeto transitório de obras públicas parece ser a correta combinação para retomar o crescimento. Se o ambiente econômico mundial mudar para melhor, então, justiça à parte, não há necessidade de se preocupar com a dívida externa. Mas é mais provável que a substituição de importações não mudará para dar todo espaço que se espera, o crescimento mundial será quase normal e as taxas de juros mundiais estarão aumentando. Neste caso, o crescimento e o serviço da dívida estão em conflito e um dos dois deve ceder.

  • *
    Este artigo foi preparado durante a visita à EPGE, Fundação Getúlio Vargas. Foi baseado num trabalho conjunto com Stanley Fischer. Agradeço a Eliana Cardoso e a Mário Henrique Simonsen pelas discussões úteis.
  • 1
    Feldstein “International Debt Policy. The Next Steps”, Remarks Befores the Council of Americas, Washington D.C., May 1984.
  • 2
    Lord H. Lever “Begin to write down world debt”, Wall Street Journal, 7 de junho de 1984.
  • 3
    Veja M. H. Simonsen “The developing country debt problem” em G. Smith & J. Cuddington (eds.), International debt and the development countries. The World Bank, Washington D. C., no prelo, para um desenvolvimento desta ideia.
  • 4
    Veja D. Dantas “Risco de Inadimplência, taxas bancárias do CD e Libor: O círculo vicioso”, EPGE, Fundação Getúlio Vargas, manuscrito em preparação, agosto de 1984.
  • 5
    Veja International Monetary Fund, World Economic Outlook, Occasional Paper n. 27, Washington DC, 1984.
  • 6
    Expressão usual em inglês para designar um objetivo que nunca será alcançado, embora haja motivação constante e ilusória para alcançá-lo.
  • 7
    Dornbusch, R. “The IMF and the prospects for adjustment in Brazil: Comment” em J. Williamson (ed.) Prospects for Adjustment, Institute for International Economics, Washington DC, 1983.
  • 8
    Citado em Veja, 28/dezembro/83, p. 6
  • JEL Classification: F34; N16; N26.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 1985
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