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As transformações do capitalismo contemporâneo e sua natureza na análise de Marx* * Os autores agradecem ao consultor financeiro Paulo Possas pela leitura e comentários a uma primeira versão do trabalho e à professora Maria da Conceição Tavares pela sugestão da inclusão dos itens 2 e 3 nesta análise. As traduções de publicações em outros idiomas foram livremente feitas pelos autores.

Transformations of the contemporaneous capitalism and its nature in Marx’s analyses

RESUMO

Este artigo trata de cinco pontos da dinâmica do capitalismo contemporâneo: 1) a forma e a operação do mercado financeiro mundial que funciona 24 horas por dia; 2) transformações nas relações monetárias, especificamente a relação entre dinheiro e poder; 3) a influência da operação de blocos de capital sobre territórios; 4) a exaustão dos limites da extração excedente por meio da exploração do trabalho assalariado, aumentando a degradação das condições de coesão social e fraturando o regime de acumulação; 5) as novas referências que sustentam e regulam o equivalente geral, ou seja, a base das equivalências nomeadas em dinheiro. Termina exigindo um novo contrato social global, em nível nacional e internacional.

PALAVRAS-CHAVE:
Capitalismo; neoliberalismo; globalização; marxismo

ABSTRACT

This paper deals with five points of contemporary capitalism dynamics: 1) the form and operation for the world financial market that functions 24 hours a day; 2) transformations in monetary relations, specifically the relation between money and power; 3) the influence of the operation of capital blocks over territories; 4) the exhaustion of the limits of surplus extraction by means of wage labour exploitation, increasing degradation of the conditions of social cohesion, and fracturing the accumulation regime; 5) the new references that sustain and regulate the general equivalent, i.e. the foundation of the equivalencies nominated in money. It ends by demanding a new global social contract, at national and international levels.

KEYWORDS:
Capitalism; neoliberalism; globalization; Marxism

Marx is far too important to be left to the socialists…

John Kenneth Galbraith1 1 Em palestra proferida no Congresso Anual da American Economic Association, no Hilton Hotel em New York, 1977/8.

A eterna insatisfação da humanidade com seu modo de vida fez a história das transformações da sociedade até os nossos dias. Ela foi descrita por Marx e Engels como um processo de unidade e contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas, levado adiante justamente para aplacar as crescentes necessidades humanas e as relações de produção que põem em movimento essas forças produtivas. No texto do manifesto comunista, Marx e Engels (1848MARX, K. & ENGELS, F. (1848). Manifeste du parti comuniste. Paris: Aubier-Montaigne, 1971.) chamavam a atenção para o fato de que, se em outros períodos da história mudanças mais profundas na vida material só se realizavam através da transformação das relações de produção, no capitalismo a situação se modificou, pois são as próprias relações de produção burguesas que incessantemente revolucionam sua base técnica e o modo de vida das pessoas. Em seus estudos sobre o capitalismo, Marx chegou a perceber que essas transformações obedeciam a um comportamento cíclico, algo que foi incorporado à ciência econômica do século XX através de um sem número de contribuições, referenciadas ou não em sua obra.

Estamos vivendo uma fase de grande intensidade de trans formações desde o começo dos anos 80, como as anteriores, acompanhada de mudanças políticas e de comportamento, exigindo que nossas ferramentas científicas sejam adequadas às novas necessidades de análise. Um outro momento de intensas modificações do capitalismo, do final do século passado até os anos 20, impulsionou um grande avanço científico através das teorias sobre o imperialismo, o capital financeiro, a demanda efetiva e a concorrência imperfeita. Enfrentar um debate como este requer a reavaliação das interpretações aceitas até então, cotejado-as com os elementos mais importantes das mudanças em curso.

Mesmo sendo um sistema social em constante transformação, algumas características do capitalismo mantém-se constantes, a ponto de podermos continuar chamando-o de capitalismo. Em nossa maneira de ver, muitas dessas relações internas e tendências do modo de produção capitalista foram reveladas pelo trabalho de Marx. Como tentaremos demonstrar ao longo deste texto, muitas das mudanças contemporâneas na vida econômica e social seguem o rumo do que Marx pensou ser mesmo o comportamento mais específico do capitalismo. De qualquer forma, para tratar adequadamente dessas novidades, é necessário alguma atualização da teoria marxista.

Neste texto vamos abordar cinco dos aspectos que estão transformando o capitalismo neste fim de século e discutir até que ponto a natureza do modo de produção tal qual foi desvendada por Marx está sendo alterada. No centro dessas transformações, estão as mudanças no processo de trabalho resultante da adoção de novas tecnologias e as mudanças na forma da moeda em função do predomínio do crédito e da esfera da circulação sobre a vida econômica.

1. O INCHAÇO DO CAPITAL FINANCEIRO

Um dos mais visíveis desses aspectos são as transformações acontecidas no circuito do capital dinheiro. O processo iniciou-se com a internacionalização bancária do final dos anos 60, que foi a seguir impulsionada pelos eurodólares, depois pelos petrodólares e pelo endividamento do Terceiro Mundo na segunda metade dos anos 70, recebendo uma sanção política através das iniciativas de desregulamentação comandadas por Thatcher e Reagan. Seu escopo foi enormemente ampliado com o desenvolvimento das novas tecnologias de informação, as quais possibilitaram um grau tão grande de interligação entre os mercados financeiros e bolsas de valores que estes passaram a operar quase como um contínuo e a tempo real, funcionando 24 horas por dia e com movimentos que reverberam em uníssono.

A exata compreensão desse fenômeno pode ser construída a partir da análise do processo de circulação do valor feita há mais de cem anos por Marx. Embora não crie valor, como acreditavam os economistas que ele chamava vulgares, a circulação é um momento necessário do processo de produção, pois é através dela que o valor se realiza na troca por dinheiro. Mais ainda, na medida que o excedente no capitalismo só pode ser apropriado na forma dinheiro, os custos do processo de circulação são uma dedução da mais-valia apropriada pelo capitalista - e o maior desses custos é o tempo de circulação. Tais custos somam-se ao tempo de produção para perfazer o tempo total de rotação do capital, em relação ao qual a taxa de lucro é uma função inversa. Numa antevisão do que assistimos hoje, já em 1857, Marx escreveu nos Grundrisse:

“Quanto mais a produção depende do valor de troca, portanto da troca, tanto mais importantes tornam-se as condições materiais da troca - os meios de transporte e circulação - para os custos de circulação. O capital, por sua natureza, supera todas as barreiras espaciais. Então, a criação das condições materiais da troca - dos meios de transporte e comunicação - a supressão do espaço pelo tempo - torna-se uma necessidade extraordinária” (Marx, 1857MARX, K. (1857). Grundrisse: foudations of the critique of political economy. Harmondsworth: Penguin, 1973., p. 524).

As novas tecnologias da informação (NTI) e os novos meios de transporte quase alcançam esse limite e conseguem, frequentemente, minimizar até um nível desprezível a barreira que o tempo de circulação representa para a produtividade do trabalho (Marx, 1857MARX, K. (1857). Grundrisse: foudations of the critique of political economy. Harmondsworth: Penguin, 1973., p. 539). As necessidades de tempo de circulação ficaram circunscritas ao capital que se encontra na forma mercadoria pois, para o capital na forma dinheiro, a tecnologia hoje disponível fez, em muitas instâncias, o tempo de circulação desaparecer. O capital permanece na forma dinheiro não por necessidade de circulação, mas unicamente quando busca remunerar-se através de juros, os quais Marx analisou como renda do capital de empréstimo ou fictício.

Marx lembra nos Grundrisse que circulação sem tempo de circulação (circulation without circulation time) é um determinante fundamental do crédito, na medida em que antecipa a metamorfose necessária à reprodução do capital. Entretanto, o crédito é tanto capital fictício, uma alavanca ao processo de acumulação, como um poderoso elemento de concentração nas mãos de que tem acesso a ele.

A permanência do capital na forma dinheiro tem sido um fenômeno crescente desde os anos 70, verificável pelo enorme incremento das aplicações financeiras internacionalizadas. Se, por um lado, este fenômeno tem a ver com as mudanças tecnológicas que lhe deram uma agilidade inimaginável, por outro lado decorre, fundamentalmente, da dinâmica econômica associada à fase do ciclo de acumulação em curso. Em diversas passagens de sua obra, mas especialmente no livro II de O capital, Marx desenvolveu uma concepção da dinâmica capitalista baseada nos circuitos de acumulação do capital. Por exemplo, partindo-se do capital dinheiro, as sucessivas metamorfoses do capital no caminho da valorização, podem ser delineadas de acordo com a conhecida fórmula:

M > ( F T , M P ) ... P ... C > M . 2 2 O capital dinheiro (M), compra as mercadorias especiais (C) - força de trabalho (FT) e meios de produção (MP) - que interagem no processo produtivo (P) e do qual resulta o capital mercadoria (C’) com um valor maior que o inicial (M’) que só se realiza quando a mercadoria produzida é vendida. Os circuitos têm, assim, três figuras correspondentes às formas que o capital pode assumir: a forma do capital dinheiro, a do capital produtivo e a do capital mercadoria. Cada uma destas representa o ponto de partida de um percurso de transformações do capital até o retorno à forma inicial com um plus de valorização, a mais­valia; compreende um processo em que necessariamente o capital precisa se metamorfosear nessas três formas para que o circuito se complete. Um ciclo completo de reprodução ampliada implica, então, no entrelaçamento desses três circuitos.

Evidentemente, a produção de valor excedente torna-se real apenas após o “sal­ to mortal” que faz com que o capital produtivo realize seu valor (ampliado) na troca por dinheiro (M’), forma em que retorna às mãos do capitalista que fizera o investimento inicial. Esse processo “never runs smooth”, pois a necessária metamorfose na forma moeda (o capitalismo é uma “economia monetária” como diria mais tarde Keynes na Teoria geral, capítulo XXI, item I) e as propriedades que esta tem de representar o valor em estado abstrato e poder preservá-lo3 3 Keynes, no terceiro parágrafo do cap. XXI, argumenta que”... a importância do dinheiro surge essencialmente do fato de ser uma ligação entre o presente e o futuro”. , fazem com que, diante de qualquer dificuldade da reprodução4 4 Para Marx, muitas destas dificuldades de reprodução deviam-se a razões endógenas ao sistema, tais como a tendência à queda da taxa de lucro ou a superprodução de capital. os donos do capital reajam refugiando-se na forma moeda (Keynes chamou preferência pela liquidez). Agindo assim, aumentam as dificuldades de realização (insuficiência de demanda efetiva) e provocam uma crise.

O que precisa ser pensado é: até que ponto a bolha de especulação financeira que se vivência neste fim de século é apenas uma repetição, sem novidades, de outras ocorridas em momentos anteriores da história do capitalismo? Pensamos que a virtual anulação do tempo de circulação na forma dinheiro, resultante das NTI, traz novas características ao próprio modo de existência do capitalismo a ponto de levar a uma mudança qualitativa deste modo de produção. Sendo assim, faz-se necessária a incorporação de novos insights teóricos ao corpo da análise marxista.

Uma primeira novidade é a concretização da vocação universal desse sistema econômico, já apontada por Marx, mas que alcança hoje patamar impensável. “A tendência à criação do mercado mundial está diretamente inscrita no próprio conceito de capital. Cada limite aparece como uma barreira a ser superada” (Marx, 1857MARX, K. (1857). Grundrisse: foudations of the critique of political economy. Harmondsworth: Penguin, 1973., p. 408). A desregulamentação dos mercados e o desenvolvimento das NTI fazem com que as fronteiras nacionais sejam ultrapassadas e se estabeleça um só mercado mundial - num primeiro momento de títulos e valores, mas que caminha célere no sentido de incluir as mercadorias reais. Neste cenário que se descortina, tudo funciona a um só tempo, pois os movimentos de expansão e retração dos subsistemas nacionais e regionais são cada vez mais convergentes. Ao mesmo tempo, configura-se um único espaço sócio-econômico, que é um contínuo de economias nacionais com limites cada vez mais tênues, os quais são “sobrepassados” pelos circuitos de valorização operando em escala mundial. Um segundo aspecto é a mudança da natureza da moeda. Sem ter mais valor intrínseco, por ser desvinculada de uma mercadoria dinheiro, a nova natureza da moeda permitiu, num primeiro momento (até os anos 60), um grau muito grande de liberdade para a política macroeconômica. Essa autonomia foi limitada logo em seguida pela reação inflacionária dos agentes de mercado, instabilizando o valor da moeda que passou a ser medido na forma de paridade do poder de compra internacional, em função da livre circulação dos capitais. Isto conduziu a uma hegemonia da taxa de câmbio, a qual passou a ser determinada pelo nível das taxas de juros - e não mais em função do poder de compra relativo - sobrepondo-se, assim, a todas as demais cotações econômicas Este é um fato sem precedente desde os tempos do mercantilismo e suas moedas privadas.

A ductilidade do dinheiro, seu distanciamento do lado real da economia, e a fusão, a sincronia e a interdependência crescente dos mercados financeiros amplificaram sobremaneira a inerente instabilidade do capitalismo. Os movimentos desses mercados são cada vez mais independentes do que acontece com o emprego e a produtividade. A crescente vinculação entre dinheiro e poder, que se assiste desde os anos 80, tampouco reduziu a irracionalidade dos mercados em favor de sua “politização”, pois mesmo a adoção de políticas econômicas conservadoras não representa um seguro contra a especulação, como mostra a crise russa no segundo governo de Yeltsin. A obediência ao receituário de ajustes de órgãos internacionais, como o FMI ou o Banco Mundial, garante aos países apenas o direito de se sentar à mesa do jogo financeiro globalizado, mas, em hipótese alguma, garante-se que se vá ganhar. Esta lição foi duramente aprendida pelo Brasil em meio a uma corrida contra o real iniciada em agosto de 1998.

A instabilidade parece ser a marca do predomínio do circuito do capital dinheiro neste final de século, uma marca esperada na visão que Marx tinha - e que foi depois compartilhada por Keynes - pois, como afirmou na Teoria da Mais-Valia, “A possibilidade geral da crise é a metamorfose formal do capital, a separação, no tempo e no espaço, da compra e da venda” (Marx, 1863MARX, K. (1863). Theories of surplus-value. Moscou: Progress Publishers, 1978., p. 515). Esta separação só é possível porque a troca é mediada pala moeda. A forma moeda do valor é a possibilidade formal da crise. A crise instala-se quando o valor é retido excessivamente na forma moeda e se interrompe o ciclo da reprodução. A valorização real deixa de acontecer. Tal efeito, porém, não é percebido de imediato, pois a acumulação na forma financeira permanece, como resultado do processo especulativo de valorização dos títulos do capital fictício.

O desenvolvimento do crédito amplia sobremaneira esta possibilidade devido à sua função nos processos de concentração e de centralização, um ponto aliás já enunciado por Marx, de maneira densa, também nos Grundrisse: “O crédito apenas surge como um novo elemento da concentração, da destruição dos capitais pelo capital [individual, dessa forma] centralizando os capitais” (Marx, 1857MARX, K. (1857). Grundrisse: foudations of the critique of political economy. Harmondsworth: Penguin, 1973.). Neste caso, o capital fictício do crédito promove a destruição do capital real, produtivo, na medida em que leva ao desaparecimento de unidades de produção inteiras, desvalorizando seu capital e desempregando sua força de trabalho. Exacerbando a tendência à crise, o capital fictício volta-se contra o capital real.

2. DINHEIRO E PODER

As transformações da relação monetária são o segundo ponto que queremos tratar e é, das novas características do capitalismo contemporâneo, a de mais difícil interpretação e a mais complexa. Do ponto de vista teórico, a discussão da relação entre capital monetário e capital real e o conceito de capital fictício, que Marx desenvolveu na seção V do livro III de O capital, fornece a base de um caminho interpretativo que achamos o mais profícuo de seguir. Antes disso, entretanto, é preciso tratar de um fenômeno ainda pouco visível para Marx em sua época, a completa separação entre dinheiro e mercadoria.

Quase cem anos depois de Marx, e diferentemente dele, Karl Polanyi (1957POLANYI, K. (1957). A grande transformação: as origens da nossa época. Rio de Janeiro: Campus, 1980.) tratou o dinheiro como uma mercadoria fictícia, governada por uma norma diferente da equivalência trabalho, algo impensável para Marx, que acreditava que o dinheiro só podia desempenhar seu papel por ser antes uma mercadoria como as outras, um produto do trabalho. Acreditamos que apenas superando a concepção de Marx do dinheiro mercadoria é possível resgatar sua análise do capital fictício para compreender esse fenômeno contemporâneo que alguns autores chamam de financeirização da riqueza. Um primeiro passo neste sentido foi dado pela teorização a respeito da moeda­crédito (Aglietta, 1976AGLIETTA, M. (1976). Regulación y crisis del capitalismo. México: Sigla XXI, 1986.; Lipietz, 1983LIPIETZ, A. (1983). Le monde enchanté: de la valeur a l ‘envol inflationiste. Paris: La Découverte/Maspero.) através das noções de antevalidação e pseudovalidação. O fim do padrão ouro trouxe a completa desmaterialização da moeda e um predomínio do dinheiro de crédito na oferta de meios de pagamento. Tal circunstância absolutizou a natureza fiduciária da moeda na medida em que esta deixou de ter referência em uma mercadoria padrão e passou a representar um crédito genérico contra o produto nacional. Tornou-se a moeda um mero símbolo do trabalho produtivo incorporado nas mercadorias que compõem o PIB, sem ela ter, em si mesma, uma unidade sequer de trabalho incorporado.5 5 Na verdade, há uma pequena (ou mesmo ínfima) quantidade de trabalho necessária à produção das cédulas que, todavia, não é objetivada, pois trata-se de um trabalho improdutivo de funcionários públicos que não gera valor. Por outro lado, o predomínio da moeda bancária na circulação criou uma nova relação entre produção e realização, na medida em que os rendimentos relativos ao valor ainda em processo podem circular antes que a mercadoria dê o “salto mortal” que lhe confirma o valor. Em outras palavras, experimentam uma antevalidação pelo crédito. Os valores antevalidados, por seu turno, são pseudovalidados, em razão de o Banco Central atuar como emprestador de última instância, garantindo soundness ao crédito bancário pelo mecanismo do redesconto. O ajuste entre circulação monetária e circulação real vai ser realizado pela inflação quando esta fixar o poder de compra dos rendimentos monetários em circulação em relação às mercadorias reais.

A moeda-crédito alarga o raio de ação do capital fictício, na medida em que o próprio dinheiro passa a ter um valor fictício. Marx, no entanto, definiu o capital fictício como uma contrapartida do capital dinheiro, o qual, lembremos, no contexto do padrão ouro, era um estoque acumulado de mercadorias com valor dado pelo tempo de trabalho necessário à sua produção. Ele colocou a questão da seguinte forma:

“Para examinar a questão em pauta em limites mais estreitos: títulos estatais, assim como ações e outros títulos de todas as espécies, são esferas de investimento para capital emprestável, para capital destinado a ser portador de juros. São formas de emprestá-lo. Mas não são, eles mesmo, o capital de empréstimo que é investido neles” (Marx, 1890MARX, K. (1890). O capital, livro III, tomo 2. São Paulo: Abril Cultural, 1984., pp. 20-21).

Quer dizer, a emissão de títulos cria uma segunda esfera de circulação de valor paralela à esfera real a partir da qual esta emissão acontece, mas que ganha uma autonomia em relação à mesma, chegando até a uma aparente independência em fases de auge cíclico dos negócios. Essa foi a análise que Marx fez das crises comercias e financeiras de sua época. O conceito de capital fictício foi retomado por Hilferding quando construiu a teoria do capital financeiro. Sua definição é a que se segue:

“A ação é, pois, um título de renda, um título de crédito sobre a produção futura, um direito sobre os rendimentos. Capitalizando estes rendimentos e constituindo esta capitalização, o preço da ação, parece existir um segundo capital nesses preços de ações. Isto é puramente fictício” (Hilferding, 1909HILFERDING, R. (1909). El capital financiero. Madrid: Editorial Tecnos, 1973., p. 113).

Esta ficção, entretanto, é tratada como se o próprio capital, de um mero registro contábil, tornasse objeto transacionável, como uma mercadoria real, cuja procura é aumentada pela expectativa de desempenho favorável dos negócios dessas empresas. A especulação nas bolsas segue, então, o ciclo da economia em seu movimento de valorização e desvalorização do capital produtivo.

Não só de ações se compõem os fluxos de capital fictício, mas também de debêntures, títulos cambiais, títulos de securitização, “futuros” de mercadorias, dívida pública e o que mais for. Quanto mais distantes de uma relação direta com estoques de capital ou mercadorias reais, mais autônomos os seus movimentos, pois seus ciclos de valorização e desvalorização deixam de ser referenciados no ritmo de emprego do trabalho produtivo (variação do produto). Tornam-se objeto de pura especulação, em larga medida baseada em acontecimentos que não têm relação objetiva com a vida econômica. Vejamos como Hilferding interpretou este fato:

“Se na ação industrial se facilita ainda esta ilusão, ao existir o capital industrial realmente ativo, o caráter fictício, puramente contábil, deste capital não apresenta dúvida diante de outros títulos. Os títulos públicos não precisam representar nenhum capital existente. O dinheiro emprestado na época pelos credores do Estado pode já ter-se dissolvido em fumaça de pólvora. Não são mais do que o preço por participar de uma parte do produto dos impostos anuais” (Hilferding, 1909HILFERDING, R. (1909). El capital financiero. Madrid: Editorial Tecnos, 1973., p. 113).

Ora, numa economia de moeda crédito em que o próprio dinheiro não tem valor em si, mas meramente como uma contrapartida do produto nacional, pois seu valor só é conhecido ao ser medido como poder de compra, todo o capital na forma dinheiro é capital fictício.6 6 Em uma situação inflacionária como a brasileira recente, a instabilidade do valor da moeda deu origem à circunstância rara da moeda pagando rendimentos na forma de juros sobre depósitos à vista. A diferença entre moeda e títulos do capital fictício, que só são procurados pelos rendimentos a que dão direito, havia se desfeito completamente. Como lembra a citação, no entanto, a renda auferida pelos proprietários desses títulos necessariamenteé criada na esfera da produção e ao mecanismo de emissão de cada um desses títulos corresponde um mecanismo de transferência do valor criado pelo trabalho produtivo. O funcionamento desses mecanismos é que se tornou absolutamente obscuro no capitalismo de hoje, a ponto de reforçar a crença numa criação de valor independente do trabalho produtivo, como postulado pela teoria neoclássica.

Entretanto, como aparece na citação acima, quando se trata de títulos de empresas, é da mais-valia por elas apropriada que vêm os rendimentos pagos aos detentores dos papéis. De maneira similar, quando se trata de títulos públicos, é a mais-valia apropriada como imposto que precisa ser suficiente para pagar a remuneração das obrigações do Tesouro Nacional circulando no mercado. Os ganhos e perdas obtidos através da compra e venda dos papéis resultantes da variação especulativa de seu valor representam uma disputa pelos direitos de auferir essas rendas, vinculadas aos papéis. São movimentos de estoques e não de fluxos; mas são transferências de riquezas (de patrimônios e de capital acumulado etc.).

Se as análises de Marx e Hilferding esclarecem este ponto, mostrando a origem do valor apropriado nesses movimentos especulativos, não são entretanto suficientes para lidar com o grau de autonomia que a esfera financeira adquiriu e que faz as determinações de seu movimento se descolarem do nível de utilização do capital produtivo e da força de trabalho. O potencial de crescimento desses fluxos financeiros foi por décadas contido por medidas regulatórias eficientes. Desde o começo dos anos 80, no entanto, a desregulamentação dos mercados financeiros imposta pelas coalizões políticas conservadoras que chegaram ao poder, primeiro na Inglaterra e EUA, depois na Europa continental e também na América Latina, que abandonou o desenvolvimentismo, criou um ambiente em que os movimentos autônomos da esfera financeira ora alcançam o paroxismo.

Essa autonomia só é possível pela incerteza do valor da moeda que resultou do fim da conversibilidade e, principalmente, do fim das paridades cambiais fixas. Sem base no lastro material do ouro, foi o poder de controlar as cotações do câmbio que permitiu às autoridades monetárias no período dos acordos de Bretton Woods dar à moeda fiduciária a capacidade de cumprir as funções de dinheiro: padrão de preços, meio de pagamento e de circulação e reserva de valor. As operações cambiais de troca por divisas passaram a fazer as vezes da convertibilidade dos tempos do padrão ouro. Com a desregulamentação e a adoção do câmbio flutuante, os bancos centrais, à exceção dos EUA,7 7 Exceção porque, embora não tenham tido formalmente poder sobre o valor do dólar, através do monopólio estatal do câmbio, pela condição de emissor da moeda padrão internacional, os EUA mantêm na prática este poder através da liberdade de ação que preservam em sua política monetária (Tavares e Fiori, 1997). perderam o poder de fixar o valor da moeda entregando-o à operação dos mercados de câmbio. Assim, a cotação das moedas passou a ser objeto de especulação nos mercados financeiros e propiciou a emissão de títulos de capital fictício, como títulos de derivativos e dívidas internacionais. Muito rapidamente, os volumes dessas operações superaram a capacidade de intervenção propiciada pelos estoques de divisas dos bancos centrais, os quais já tinham que lidar com volumes de dívida pública que por si só representavam um peso sobre a estabilidade das moedas nacionais.

As crises manifestas com corrida contra moedas nacionais específicas passaram a cumprir o papel que outrora tivera o fenômeno da drenagem do ouro, analisado por Marx como “um mero fenômeno da crise, mas não sua causa” (Marx, 1890MARX, K. (1890). O capital, livro III, tomo 2. São Paulo: Abril Cultural, 1984., p. 30). A diferença é que, se a fuga para a liquidez na forma ouro era reação a um fenômeno real de desvalorização das mercadorias e do capital produtivo, hoje essas crise chegam a acontecer como resultado de pura especulação ou reação a fatos de natureza política.

Por essa razão, os padrões de política econômica deixam de ser decididos em função das convicções do governo e dos anseios de suas bases eleitorais, mas respondem à necessidade imperiosa de agradar aos donos desse capital fictício8 8 Na verdade, não são mais nem os donos do capital que têm essa influência sobre a política econômica, mas seus prepostos yuppies que administram os fundos de pensão ou têm posições elevadas na burocracia privada e pública. , com finalidade de evitar ataques especulativos contra a moeda nacional. Não é por acaso que a deflação passou a ser a prioridade máxima da política econômica em todo o mundo e que uma redução do desemprego seja vista como negativa, por seu possível efeito sobre o nível geral de preços: uma variação dos preços, por menor que seja, desvaloriza a riqueza de propriedade dessa nova plutocracia. Da mesma forma, a manutenção das taxas de juros reais em níveis elevadíssimos, sob a capa de “sound economic policy”, cumpre o objetivo menos confessável de aumentar os gastos dos tesouros nacionais com os serviços de suas dívidas e, assim, transferir mais renda para esses donos do capital fictício, num volume e velocidade que não têm comparação com os lucros auferidos diretamente pelo circuito do capital produtivo.

Esses movimentos do capital financeiro são, no curto prazo, resultado das jogadas especulativas as mais irracionais, que limitam as opções da política econômica em torno do receituário neoliberal. A longo prazo, entretanto, a coerência entre especulação e movimentos do capital real, da produtividade, do emprego e dos salários reais, necessariamente será cobrada na forma de crises de desvalorização dos títulos que representam apostas sem base material. A valorização dos estoques de capital precisa ser sancionada pelos fluxos de renda oriundos da produção.

Tais circunstâncias aproximaram mais ainda os donos do dinheiro aos donos do poder político, evocando o período absolutista da história europeia em que o capital ainda não adentrara a esfera da produção. Naquela época, o ingresso em um “domicílio oculto” no qual se realizam os negócios entre dinheiro e poder revelava:

“... o segredo da obtenção dos grandes e sistemáticos lucros que permitiram ao capitalismo prosperar e se expandir ‘indefinidamente’ nos últimos quinhentos ou seiscentos anos, antes e depois de suas incursões nos domicílios da produção” (Arrighi, 1994ARRIGHI, G. (1994). O longo século XX, dinheiro, poder e as origens do nosso tempo. São Paulo: Contraponto/UNESP, 1996., p. 25).

O dinheiro financiava a expansão do poder territorial e político dos Estados, ampliando assim suas bases de apropriação de sobre-trabalho - através da pilhagem ou dos impostos - e retornava na forma de juros aos prestamistas do príncipe.

Nos dias atuais, as dívidas públicas que remuneram com juros os donos do dinheiro têm origem nas políticas de sustentação da expansão produtiva e da utilização de capital e de trabalho. Tais políticas antecederam e foram aprofundadas durante a crise do começo dos anos 70 e estão na origem da relativa debilidade dos estados dos dias atuais pois, outra vez, com a exceção dos EUA, essas dívidas não se acumularam em proveito da expansão de seu poder político/militar. Foram, em larga medida e supostamente, criadas a partir da intervenção do estado na vida econômica, fomentando a produção, sustentando a reprodução da força de trabalho, financiando o crescimento e/ou mitigando a crise. Aqui chegamos ao terceiro ponto, a relação entre a acumulação e o espaço.

3. O ESPAÇO DO CAPITAL

Marx via o mercado internacional como o lugar por excelência do capital, como o destino do desenvolvimento das relações de produção capitalistas e, também, como um resultado delas. O Manifesto traz a seguinte afirmação: “A grande indústria criou o mercado mundial, preparado pelo descobrimento da América” (Marx e Engels, 1848MARX, K. & ENGELS, F. (1848). Manifeste du parti comuniste. Paris: Aubier-Montaigne, 1971., p. 79). A convicção de que o desenvolvimento do capitalismo modifica a relação da sociedade com o espaço é o ponto de partida para a compreensão das mudanças contemporâneas que se traduzem nos fenômenos da globalização e da integração econômica9 9 Relembramos a passagem dos Grundrisse, citada anteriormente, onde Marx afirma que “The tendency to crate the world market is directly given in the concept of capital itself. Every limit appears as a barrier to be overcome”; “A tendência à criação do mercado mundial está diretamente inscrita no conceito mesmo de capital. Cada limite aparece como uma barreira a ser superada” (Marx, 1857, p. 408). .

Além desta mudança da relação com o espaço, outro aspecto importante, e que não foi desenvolvido por Marx, é que o desenvolvimento da sociedade capitalista também implicou, desde sempre, uma transformação de sua relação com o tempo. David Harvey (1989HARVEY, D. (1989). Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1992.) descreve essa experiência como um “ciclo de compressão do espaço­ tempo”, fenômeno que periodicamente se repete na história social. Ele é percebido pela superação das barreiras da distância geográfica - todos os recantos do mundo parecem mais acessíveis - e pela inusitada realidade de estarmos vivenciando o tempo de forma sincrônica - os acontecimentos em qualquer parte do globo são transmitidos instantaneamente por todo lado. Milton Santos (1994SANTOS, M. (1994). Técnica, espaço e tempo: globalização e meio técnico-cientifico informacional. São Paulo: Hucitec, 3ª ed., 1997.) descreve esse fenômeno com o conceito de aceleração.

Para compreender essas mudanças, podemos encontrar um referencial teórico em Arrighi (1994ARRIGHI, G. (1994). O longo século XX, dinheiro, poder e as origens do nosso tempo. São Paulo: Contraponto/UNESP, 1996.), que desenvolve uma tese já enunciada por Braudel (1979BRAUDEL, F. (1979). Civilização material, economia e capitalismo: séculos XV-XVIII. São Paulo: Martins Fontes, 1996.), sobre a relação entre o desenvolvimento econômico do capitalismo, a expansão territorial do mercado e a aceleração do tempo histórico de seus sucessivos ciclos de acumulação de capital. Nesta tese, a instituição do mercado vai passar por um processo de desenvolvimento em sucessivas etapas e rupturas desde os mercados locais dos burgos medievais, passando pelos mercados regionais das províncias articulando várias cidades, até que, numa ruptura profunda, criam-se os mercados nacionais pela ação dos estados, que estabelecem a moeda e as normas da concorrência.

A relação mercantil na história humana sempre apresentou uma dimensão espacial. Desde seus primórdios, o ato da troca resultou do encontro de homens que vinham de lugares diferentes e proporcionou-lhes a possibilidade de ter acesso a valores de uso produzidos além de seu espaço econômico próprio. Nesse sentido, a troca foi sempre uma ampliação do espaço econômico, cuja dimensão possível esteve necessariamente condicionada pelo desenvolvimento dos meios de transporte e comunicação.

Antes do advento do capitalismo, entretanto, o espaço da troca era dado pelos processos de deslocamento e expansão territorial das sociedades. A ampliação do espaço estava então sujeita a uma lógica de acumulação de poder proporcionada pela conquista de mais território, como mostra Arrighi. A própria noção de geografia econômica não fazia sentido mais que descritivo do espaço das atividades produtivas, pois os limites geográficos eram as fronteiras do poder político e a expansão econômica - a acumulação de riquezas - surgia como resultante da expansão territorial. O capitalismo modifica essa situação; sob sua égide, a ampliação do espaço vai ser resultado do desenvolvimento do mercado, de seu crescimento.

O crescimento da interdependência econômica no plano internacional recebeu um impulso de origem tecnológica com o recente salto no desenvolvimento dos meios de transporte e comunicação; um impulso econômico com o crescimento do comércio, dos fluxos financeiros e da internacionalízação de cadeias produtivas; e um impulso político com a desregulamentação, a redução de barreiras e a uniformização liberalizante das políticas econômicas. Esses processos estão por trás da transformação da experiência do espaço e do tempo em nossos dias. O crescimento da interdependência faz com que o tempo em todos os lugares adquira uma sincronicidade sem precedentes, rompendo os limites dos diversos fusos horários do planeta, e faz com que todas as economias nacionais se encontrem cada vez mais reunidas em um espaço que, quanto mais se amplia para abarcar todo o globo, parece mais próximo e contínuo. Aqui poderíamos lembrar não apenas a referência sobre a vocação expansionista do modo de produção capitalista, lembrada por Marx em muitas ocasiões, mas também uma visão que ele acalentou desde seus escritos juvenis e que se explicita claramente no Manifesto de 1848, na qual a mudança social surge de uma multideterminação em que concorrem elementos econômicos, tecnológicos e políticos.

O processo de integração econômica e de formação de blocos regionais, que se acelerou recentemente, é um dos aspectos constitutivos desses movimentos. Talvez esteja a indicar que a instituição do mercado está mais uma vez no centro da transformação da experiência do espaço, na medida em que se confirma a hipótese de os mercados nacionais, locus privilegiado da acumulação de capital desde o advento do capitalismo industrial, não serem mais suficientes para comportar o processo de reprodução e valorização do capital. Se, desde a Revolução Industrial, o capitalismo desenvolveu-se primordialmente para dentro do mercado interno, num impulso originado pelo movimento da industrialização, pela urbanização e pela monetarização da reprodução social, a partir de agora precisaria de mais espaço, tanto em função da escala dos negócios alcançada pela flexibilização da estrutura produtiva e empresarial, como em razão da aparente secundarização do papel do consumo de massa no circuito reprodutivo da acumulação de capital10 10 Não estamos negligenciando a importância do mercado internacional desde os tempos do capitalismo mercantil e a continuidade dessa importância mesmo após a Revolução Industrial. Afinal, o imperialismo foi um resultado da expansão industrial no século XIX. Entretanto, a dinâmica econômica dos países industrializados foi predominantemente dependente do mercado interno até os dias atuais. . A União Europeia é o exemplo mais avançado desse processo, o qual lá recebeu um impulso precoce, tendo se iniciado ainda no período do pós-guerra,11 11 As razões dessa precocidade encontram-se, seja no plano da política, pela necessidade de encerrar o sangrento ciclo das guerras europeias, seja porque boa parte das nações do Velho Continente tinham mercados internos relativamente exíguos para a escala dos investimentos exigida pela base técnica fordista. e que vem se desdobrando na comunidade da Ásia do Pacífico, no NAFTA ou no Mercosul.

Num artigo de 1853 sobre o domínio britânico na Índia, Marx apresentou uma visão da expansão mundial do capitalismo que foi objeto de muita controvérsia. Sua ideia era de que a violência que destruía as estruturas sociais tradicionais, por mais dolorosa que fosse, cumpria um papel progressista de fazer ruir essas formas arcaicas de dominação e abrir passo à modernização dessas sociedades. Chegou a representar suas ideias com os versos de Goethe: “Quem lamenta os estragos, se os frutos são prazeres?”. Foi a primeira geração de seus adeptos que, através das teorias sobre o imperialismo, formulou uma concepção da articulação espacial dos modos de produção. Estes clássicos do começo deste século constataram a capacidade que o capitalismo desenvolveu de combinar-se com estruturas sociais tradicionais e tirar proveito disso.

O marxismo clássico representava a relação do capital com o espaço através da tese do desenvolvimento desigual e combinado, desenvolvida por Lênin e Trotsky ao longo dos debates sobre o imperialismo nas primeiras décadas deste século. Nesse debate, a intervenção de Rosa Luxemburgo sobre o papel das “terceiras pessoas” era uma tentativa de teorizar essa faceta expansionista do modo de produção; e as contribuições de Hilferding e Bukharin, entre outros, ajudaram a situar esse caráter expansivo do capitalismo, não no rol de suas fraquezas mas, ao contrário, como um movimento da reprodução ampliada do sistema.

Após a interrupção dessa discussão pela Segunda Guerra, o tema foi retomado pelas teorias do subdesenvolvimento e da dependência. Esse debate, entretanto, esteve em larga medida circunscrito à tentativa de compreender o lugar da periferia no sistema econômico mundial. Mais recentemente Braudel, Wallerstein e Arrighi, entre outros, puseram o enfoque dessa temática na perspectiva da compreensão do capitalismo como sistema mundial que tem uma relação muito particular com a dimensão espacial.

A ordem mundial instituída sob a hegemonia dos EUA desde os anos 40 patrocinou o ambiente em que cada economia nacional constituía sua modalidade de adesão ao regime internacional seguindo os padrões de paridades cambiais fixas, elevado grau de proteção no comércio exterior, controle de organismos internacionais (FMI, BIRD) sobre fluxos de capital financeiro - fundamentalmente estatais - e sobre o equilíbrio dos balanços de pagamentos. Esse arranjo internacional reforçou o caráter nacional dos sistemas econômicos. Todo esse arranjo começa a ruir desde o começo dos anos 70, quando a crise econômica e a desestruturação da ordem mundial marcam o início do declínio do fordismo.

No mundo do pós-fordismo, é perceptível um sentido no movimento de transformação desse estado de coisas. Um cluster de inovações tecnológicas (microeletrônica, novos materiais, novas formas de organizar o processo produtivo) e um vertiginoso movimento de mudanças políticas (fim da URSS, crise do Welfare State) dão lugar a um novo ciclo de compressão do espaço-tempo de Harvey.

Para o que interessa aqui, dois desdobramentos são significativos. O primeiro deles é o aprofundamento de uma tendência que já vinha se manifestando no fordismo, de aumento da interdependência econômica regional, que está a indicar um processo de crescente extroversão dos regimes de acumulação nacionais, o qual talvez sinalize para uma característica provável do novo regime, a perda de importância do mercado de massa estável para a reprodução do sistema (Becker, 1997BECKER, J. (1997). “Integración y regulación: una comparación entre la Unión Europea y el Mercosur”. Indicadores Econômicos FEE, Porto Alegre, v. 24, n. 4.). Até que ponto essa tendência vai se desenvolver no sentido da construção de regimes de acumulação de base supranacional, transformando definitivamente a dimensão espacial dos sistemas econômicos, ainda é uma questão em aberto. Sua resposta depende do próprio avanço dos processos de integração em marcha, da pioneira União Europeia até o bloco do Pacífico, passando inclusive pelo Mercosul, bem como do próprio avanço das transformações no mundo do trabalho e da produção que chegam a construir um novo sistema produtivo (Musacchio, 1997MUSACCHIO, A. (1997). “Hacia un sistema productivo europeu? tiempo y espacio del mayor esfuerzo de integración contemporaneo”, Indicadores Econômicos FEE, Porto Alegre, v. 24, n. 4.).

O segundo desdobramento dá-se no plano da regulação e foi caracterizado por Becker (1997BECKER, J. (1997). “Integración y regulación: una comparación entre la Unión Europea y el Mercosur”. Indicadores Econômicos FEE, Porto Alegre, v. 24, n. 4.) como deslocamento dos níveis da regulação, na medida em que, seja através da criação de organismos supranacionais, como no caso da Europa, seja pela pressão internacional, o modo de regulação passa a ser instituído desde fora do espaço nacional. Esse processo está ocorrendo em conjunto com um reordenamento hierárquico das formas institucionais da estrutura, sendo talvez aí perceptível uma distância maior em relação ao fordismo. Os modos de regulação nacionais típicos desse modo de desenvolvimento conformaram a tecitura de sua rede de instituições sob urna ordem hierárquica que foi determinada pela trajetória das lutas e conflitos sociais de cada país independentemente. Neste contexto, a cena internacional teria atuado unicamente como um dado de restrição, com a intensidade correspondente à posição de cada país na ordem internacional. Para alguns a relação salarial ocupou o lugar central do modo de regulação (EUA), para outros foi a forma do estado (França) e, para outros mais, a adesão ao regime internacional (periferia exportadora).

A integração econômica que se configura nos blocos regionais faz surgir a necessidade da criação de formas institucionais também no nível regional, sendo a União Europeia o exemplo até agora mais avançado. A mobilidade dos capitais cobra uma forma da concorrência uniforme; a relação salarial precisa adaptar-se às necessidades de redistribuição geográfica dos postos de trabalho; a forma do estado tem de se adaptar às necessidades de uniformidade tributária, de regulamentação e de gasto; a adesão ao regime internacional passa a ser mediada pela nova unidade geográfica; e, por fim, a restrição monetária precisa ser capaz de viabilizar a ação da lei do valor no novo espaço construído, propiciando a formação de um sistema de preços unificado através de uma moeda supranacional.

Um problema de dificil solução coloca-se, no entanto, decorrente da dialética capitalismo/territorialismo de que fala Arrighi. O processo de acumulação de poder pelos governantes nas democracias representativas, ligado ao espaço da nação e dependente dos pactos sociais que dão origem às formas institucionais, está em contradição com a necessária redução de soberania do Estado nacional que esse deslocamento dos níveis de regulação exige.

O que se tem revelado, por enquanto, são as novas formas de regulação supranacionais em gestação, e o exemplo da Europa é novamente significativo. Tais formas de regulação têm sido constituídas com vistas a contemplar quase que exclusivamente os interesses dos donos do dinheiro, que são quem, ao longo da história do capitalismo, tem liberdade de movimentos no plano internacional. A representação dos interesses dos demais grupos sociais custou sempre mais a se fazer presente todas as vezes em que a referência do espaço se reorganizou numa escala maior. É por isso que a mudança de hierarquia entre as formas institucionais tem tido o sentido de tornar predominante a moeda.

A estabilidade política de um modo de regulação excludente dessa forma é duvidosa, pelo menos nos marcos da democracia representativa. Como já mostrara Polanyi, o capitalismo, para ser viável historicamente, não prescindiu de que se instituíssem sistemas de proteção social no sentido de impedir a ação dos mecanismos auto­destrutivos do mercado sobre a sociedade. Parafraseando o Marx da Crítica ao Programa de Gotha, o capitalismo foi “rudemente educado pelo povo”.

Globalização e financeirização, dois nomes da moda, não seriam mais do que as caras atuais de um momento da existência do capitalismo que significa, antes do que seu triunfo, a eclosão de suas mais arraigadas contradições e reafirmação de seus mais profundos desígnios, a acumulação da riqueza abstrata. Nas diversas oportunidades em que tratou das crises comercias e financeiras que assistiu em seu tempo, Marx chamava a atenção para sua natureza de epifenômeno, de exacerbação especulativa e de concentração das contradições do modo de produção capitalista. Essas contradições, no entanto, tinham origem na oposição entre produção social e apropriação privada inscrita nas relações sociais fundamentais, no mundo do trabalho e da produção. Agente da lei do valor, instauradora da relação mercantil, fetiche supremo da acumulação de riqueza, como já mostrara Marx, a moeda é o fim e o começo do capital.

4. A CONTRADIÇÃO RECOLOCADA

Neste quarto item de nossa análise interessa-nos enfocar especificamente a articulação da esfera da produção, locus da geração do excedente econômico, com a esfera da circulação, onde o excedente é realizado. A difusão das novas tecnologias de informação (NTI) - particularmente aquelas utilizadas nos dispositivos de controle, nos instrumentos de comunicação e nos equipamentos de automação flexível - levam a extremos as antigas e inerentes tendências do capitalismo produtivo de negação do trabalho vivo. Uma nova onda de incorporação do saber trabalhador em equipamentos, que tem a forma social de capital fixo, avança sobre meandros, tanto do trabalho manual qualificado como do trabalho intelectual, anteriormente inacessíveis devido às limitações técnicas. Eliminam-se e/ou transformam-se, como consequência, postos de trabalho qualificado não só na produção como outros dedicados a tarefas de projeto, supervisão e controle.

A tendência, insistimos, não é nova. Há quase um século e meio, ainda em pleno processo de constituição da base técnica eletromecânica, Marx constatava, “visionariamente”, que o trabalho deixava de ser o elemento de comando do processo de produção. Em suas próprias palavras, “O processo de produção deixou de ser um processo de trabalho, no sentido de um processo dominado pelo trabalho, como sua unidade de comando” (Marx, 1973MARX, K. (1857). Grundrisse: foudations of the critique of political economy. Harmondsworth: Penguin, 1973., p. 693).

A esta constatação da crescente perda de importância da atividade trabalhadora para comandar o processo de produção, soma-se uma outra, feita logo a seguir, na mesma passagem dos Grundrisse, relativa à tendência à indiferenciação das várias atividades no interior do processo de trabalho: “A atividade dos trabalhadores, reduzida a uma mera abstração de atividade, é determinada e regulada em todos os aspectos pelo movimento da máquina, e não o contrário” (ibid, grifo nosso). Vemos assim que estavam configuradas, já àquela época, as primeiras manifestações do que poderíamos chamar de crise da centralidade do trabalho concreto.

Quase um século e meio depois de estas passagens terem sido escritas, quando descemos à especificidade das formas de trabalho associadas à base técnica microeletrônica que tem se difundido com o capitalismo contemporâneo, também vemos reaparecer a expressão material desta crise, só que profundamente agudizada e levada mesmo ao paroxismo. Para um crescente contingente da força de trabalho nas economias capitalistas desenvolvidas (ou nos segmentos desenvolvidos das economias capitalistas mais atrasadas), as qualificações necessárias à sua atividade profissional estão cada vez mais indiferenciadas entre si. É o caso, por exemplo, quando se trata de atividades que consistem em lidar/operar com tecnologias construídas com base na lógica digital, ainda que tais atividades estejam localizadas em segmentos da economia (ou da sociedade) tradicionalmente bastante distantes entre si.

A caixa de um supermercado e a recepcionista de uma biblioteca, ou ainda o controlador de um almoxarife, utilizam todos uma caneta ótica para leitura do código de barras. O controlador da distribuição de energia elétrica para o sudeste do Brasil, sentado em uma sala fechada no Rio de Janeiro, e o supervisor de campo de uma montadora automobilística alemã, localizado num gabinete envidraçado e elevado, dentro da fábrica, se estiverem utilizando tecnologia atualizada, terão diante de si paineis de controle e instrumentos de ação semelhantes. O piloto de avião e o operador de máquinas de ferramentas com controle numérico também têm que agir (e reagir) sobre teclados e alavancas, de modo similar, em função dos símbolos e figuras que aparecerão nas telas diante de si. Em outras palavras, com a convergência tecnológica abrangendo segmentos da atividade econômica os mais diversos, a diferenciação profissional no interior do mercado de trabalho está se tornando significativamente mais tênue e as fronteiras entre as qualificações básicas necessárias ao exercício de muitas (e antes diferentes) profissões, sendo diluídas como nunca.

Substantivamente, este é o resultado do fato que, de um lado, muitas destas atividades tomaram-se uma mera abstração de um trabalho concreto e, por outro lado, as qualificações que implicam a concretude de cada uma destas atividades dependem crescentemente de um mesmo tipo de capacidade de abstração dos trabalhadores que as executam. E, para além desta constatação, dado que os processos de trabalho passam a não mais depender de uma concretude específica que faria peso na balança das barganhas com os detentores do capital, os processos de produção passam a depender de um fator (também abstrato) que representa a identificação do trabalhador com os objetivos do empreendimento. Esta identificação, traduzida em formas de lealdade para com seus empregadores, atribui ao trabalho uma “qualidade” que é refletida com o pagamento de uma espécie de “salário confiança” (Tauile, 1984TAUILE, J.R. (1984). Microelectronics, automation and economic development, PhD Dissertation, New School for Social Research, mimeo.). Este ângulo da crise teria, assim, origem num processo de “abstratificação” do trabalho concreto.

Ainda que se deva ressaltar que, a rigor, para o conjunto de trabalhadores, há uma mudança no perfil de qualificações, deve-se reconhecer também uma inerente e incessante tendência à desqualificação do trabalho, como Marx imaginava, visto os equipamentos incorporarem tantos e crescentes conhecimentos e habilidades específicas. Paradoxalmente, tanto parece haver maior qualificação formal (medida, por exemplo, em anos de escolaridade) como, em termos de skills, sem dúvida há uma simplificação das atividades manuais que resulta, objetivamente, na banalização do trabalho concreto. Já em termos do trabalho intelectual, há uma crescente utilização daquele do tipo “execução de rotina pré-programada”, que é marcadamente “imbecilizante” e tem características robotizadas.

Somente o trabalho de criação e/ou de projeto, seja ele manual ou intelectual, foge da tendência à indiferenciação ou à “abstratificação do trabalho concreto”. Formas contemporâneas de organização social da produção, de certo modo, contrapõem-se a esta tendência. Porém, o problema é que a quantidade relativa (e também absoluta) dos trabalhadores empregados nestes tipos de atividades (e bem pagos) é muito menor do que a quantidade (de trabalhadores) empregada (e mal paga) na produção dos produtos que serão consumidos em massa. E isto nos dá o gancho para nosso próximo e conclusivo ponto desta parte.

A face mais evidente da crise do trabalho nas economias contemporâneas tem a ver com a centralidade do trabalho abstrato. Resulta, na verdade, da crescente preponderância quantitativa do trabalho incorporado sobre o trabalho vivo necessário para operá-lo, ou seja, do incremento gigantesco da composição técnica (e também em valor) do capital. Estamos aqui diante das mais agudas manifestações das contradições provocadas pela tendência à queda da taxa de lucro. Esta pode ser entendida como exaustão do limite de extração do excedente gerado pela espoliação do trabalho assalariado, que resulta da incessante tendência à expulsão do trabalho (assalariado) do processo de produção.12 12 Sobre este ponto, ver Shaikh, “An introduction to the history of crisis theory”, US capitalism in crisis, URPE, 1978, e Weeks, J., Capital and exploitation, Princeton University Press, 1981. O ponto foi levantado por Marx no livro III de O capital, nos capítulos XIII a XV, em inúmeras oportunidades referido a seus interlocutores da época como sua mais importante descoberta. A atual revolução tecnológica acirra uma das contradições fundamentais do capitalismo contemporâneo: ainda que, por um lado, nas formas mais bem sucedidas de organização social da produção, o trabalho esteja se revelando um recurso fundamental da produção, por outro lado, a quantidade deste trabalho valorizado (e valorizável) é pequena (e insuficiente) em termos macroeconômicos.

Este fato confirma o prognóstico de Marx de que

“... uma massa sempre crescente de meios de produção, graças ao progresso da produtividade do trabalho social, pode ser colocada em movimento com um dispêndio progressivamente decrescente de força de trabalho humana (...) a população trabalhadora sempre cresce menos que as necessidades de valorização do capital”. (Marx, O capital, livro IMARX, K. (1867). O capital, livro 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983., t. 2, p. 209).

Como consequência, o sistema tem se revelado nos tempos recentes, e mais do que nunca, incapaz de gerar emprego suficiente para manter a dinâmica vigente de reprodução ampliada da acumulação, mesmo na maioria das economias capitalistas desenvolvidas. A flexibilidade material alcançada pelo capital produtivo, responsável pela adição de economias de escopo às tradicionais economias de escala, não tem sido fator suficientemente elástico para preencher as demandas de contínua expansão exigidas pela própria natureza da acumulação capitalista. Geram-se crises de superacumulação de capital (que não consegue funcionar como capital; não consegue realizar o excedente produzido), por razões constitutivas de seu funcionamento (note-se que não se trata aqui meramente de crise de subconsumo). Isto se traduz na degradação crescente das condições de coesão social anunciando, como consequência, a fratura do regime de acumulação.

A tendência à queda da taxa de lucro deve ser entendida como algo sempre presente, porém, não necessariamente se impondo sobre outras forças. É assim como a lei da gravidade: ela está sempre atuando mas isto não que dizer que o ser humano não saia do chão, não voe; não chegue à lua.

A existência destas contratendências não era novidade para Marx. A questão em disputa sempre foi em que medida a força destas contratendências eventualmente superariam a tendência original de queda da taxa de lucro, a ponto que não seria próprio mesmo caracterizar a existência de tal tendência. Acreditamos que à contínua pulsação desta disputa, soprepõe-se por vezes um sobressalto que corresponde a uma ruptura destes limites (vigentes e cadentes) para extração do excedente.

Tais rupturas resultam na criação de novos espaços de acumulação provenientes de novos parâmetros e possibilidades abertas, por exemplo, pela introdução de uma inovação radical, pela difusão de uma nova base técnica, pela mudança de paradigma ou pelo advento de uma revolução tecnológica, como se queira chamar. O fato é que há uma dramática mudança nas referências de produtividade que catapultam as taxas de lucro para novos patamares e abrem-se novos mercados para os produtos que daí serão derivados, ampliando assim também os espaços de realização deste lucro adicional pela “produção de novo consumo (...) produção de novas necessidades e a descoberta e criação de novos valores de uso” (Marx, op. cit., 1857MARX, K. (1857). Grundrisse: foudations of the critique of political economy. Harmondsworth: Penguin, 1973., p. 408).

Outro conjunto de rupturas, ou de válvulas de escape às tensões das contradições tendenciais que, mal resolvidas, geram entropia no sistema, advém de novas formas de organização social da produção. A introdução formal da mão visível do estado político na vida econômica, a partir dos anos 30, foi um destes episódios de ampliação das possibilidades de abrir novos espaços de acumulação de maneira concertada entre o governo dos EUA e sua elite empresarial e política, incluindo-se aí os sindicatos. Nos dias de hoje, uma nova grande concertação (nos níveis nacionais e supranacional) é cada vez mais eminente, sob risco de tempos extremamente turbulentos.

Dada a interpenetração de mercados, a crise dos países de uma região do mundo não é mais aí contida e, inevitável e instantaneamente, alastra-se por países geograficamente muito distantes. Os pregões tornam-se perigosos até para seus leiloeiros. No nível cotidiano, as grades, os vidros à prova de balas ou mesmo as distâncias são cada vez menos eficientes como proteção das agressões provenientes das desigualdades (dentre outras loucuras seculares), cada vez mais acirradas. Urge distensionar com medidas profundas mas sob regras que ainda não são claras. De todo modo, é preciso novas formas de garantir acesso ao mercado pois, como se disse acima, as vigentes não estão sendo nada satisfatórias, a ponto de sinalizar uma possível fratura do regime de acumulação social. Temos aqui o gancho para o próximo item.

Antes de seguir, porém, vale mencionar que, na busca de uma saída estrutural para a crise, a concretude do trabalho, por mais simples, indiferenciado e, por conseguin te, abstrato que seja, poderá dar-se em torno aos interesses consensuais sobre o que (e como) deve ser feito coletivamente. A era da informação pode muito bem ser também a era da negociação (afinal informação existe e, em grande medida, o acesso a ela também) de modo a construir um importante espaço de acumulação através da redução concreta das desigualdades sociais. Voltaremos a este ponto nas conclusões.

5. O TRABALHO NEGADO E O VALOR MISTIFICADO

O quinto tópico relaciona a tendência à negação do trabalho com as transformações da relação monetária. A crise da relação salarial, manifesta no desemprego, na flexibilização e na precarização do trabalho, combina-se com a ductilidade da moeda, com a incerteza que envolve seu valor diante das flutuações de câmbio e das variações dos preços relativos das mercadorias, num movimento predominantemente deflacionista. Como resultado, a lei do valor, cujo mecanismo já era apontado como obscuro por Marx, mesmo em uma época de relativa estabilidade monetária sob a vigência do padrão ouro, nas circunstâncias atuais, parece desaparecer como fundamento das equivalências denominadas em moeda. Ao mesmo tempo, o trabalho tem negada sua propriedade de único criador de valor numa época em que foi levada ao paroxismo a valorização fictícia do capital na órbita financeira e que, em grande medida, as rendas de monopólio (das mais diversas ordens) tornaram-se predominantes sobre o valor do trabalho.

Assim, de um lado, a fragilidade das moedas nacionais traduzida nas oscilações abruptas do câmbio esfumaça o princípio da equivalência. De outro lado, admitindo a proliferação desenfreada das relações mercantis num ambiente de escassez generalizada e acentuada de trabalho produtivo, também cresce o enigma de quais são as novas referências do equivalente geral.

Se o emprego é pouco, e dentro deste pouco a maioria crescente é de trabalho simples e indiferenciado (isto é, cada vez mais abstrato), cabem as importantes e correlatas indagações: o que dará direito a qualquer indivíduo (economia ou nação) de participar dos mercados? O que dará direito a uma pessoa comer, se vestir e morar, dentro de um determinado padrão de vida (seja de sobrevivência ou de opulência)? O que dará direito a uma economia ou uma nação ter um determinado padrão de bem­ estar social? O que determinará que o sucesso econômico signifique também uma melhoria da qualidade da vida para camadas crescentes da população que habita aquela nação ou região? E qual melhoria será essa, concretamente?13 13 A ampliação da chamada classe média pode ser uma expressão deste fenômeno como, aliás, já o foi no passado. Enfim, numa sociedade em que unicamente a inserção na estrutura produtiva dá direito à sobrevivência, como poderá ser preservado este direito se a oportunidade de emprego é cada vez mais negada e as instituições de proteção social são atacadas, sistematicamente, como ineficientes e dispendiosas?

Um elemento complicador adicional desta análise é o fato de as transações agora serem feitas cada vez mais efetuadas através do espaço virtual. O espaço é virtual, mas a acumulação é real. Os novos espaços de acumulação abertos pelas NTI superam os limites geográfico-materiais anteriormente estabelecidos (pela revolução industrial e pela base técnica eletro-mecânica). Pessoas em diversas partes do mundo operam em um mesmo mercado que trafega à velocidade da luz pelo éter econômico, criando, destruindo e movimentando valores, bens e haveres, materiais e imateriais. O espaço virtual, criado pelas NTI, viabiliza um mercado real que é qualitativamente novo e altamente dinâmico. Cabe então a pergunta: os direitos sobre os valores que trafegam pelas redes serão estabelecidos com referência a que bases?14 14 Evidentemente coloca-se neste caso também a dinâmica da vinculação entre capital e território. Que atributos constituem o poder de estabelecer estes direitos? Como lidar com uma economia onde valores são criados, desintegrados, reintegrados e/ou movimentados, à velocidade da luz através do espaço da virtualidade? São questões teóricas instigantes, verdadeiros desafios às teorias clássica e marxista do valor trabalho, que levam à indagação de se não seria o caso de discutir os fundamentos de uma espécie de teoria do valor da informação aplicada à dinâmica das economias contemporâneas.

A crise de crescimento que se verifica em quase todo o mundo capitalista, desde os anos 70, as dramáticas oscilações conjunturais dos fluxos comerciais e financeiros e sua não resolução, estão lembrando a lição de Marx que o dinheiro só se transforma em capital produtivo quando compra a mercadoria especial cujo valor de uso é criar valor: o trabalho assalariado. E, mais além de seu papel no processo de valorização, este trabalho assalariado mostrou-se, no século XX, um vigoroso elemento para assegurar a reprodução social, particularmente como participante da demanda agregada. Daí manifesta-se uma crise aparentemente nova onde o volume do trabalho assalariado empregado é insuficiente para manter a coesão na chamada sociedade salarial. A crise da centralidade do trabalho abstrato tem este duplo significado, é crise do processo de valorização e ao mesmo tempo crise do processo de realização do valor. Não é por outra razão que uma quase estagnação tem dominado a cena econômica mundial desde o começo dos anos 70, apenas interrompida por episódios localizados e breves em que uma ou outra nação ou região encontram algum espaço para crescer no mercado internacional. Os últimos 25 anos da economia mundial podem ser descritos por baixas taxas de crescimento médio com bolhas de crescimento passageiras, como as de alguns países da América Latina ou dos tigres asiáticos.

Voltando à questão do valor, assim como o papel moeda, sem valor intrínseco, tornou-se um claim sobre o valor da produção, o capital fictício tornou-se um claim sobre o estoque de capital social. É apenas uma representação de um direito sobre o capital produtivo ou sobre as rendas do governo (ou ainda sobre patrimônios em geral). Quando se especula sobre o valor das ações está se especulando sobre a valorização do capital que elas representam, o qual é (ou deveria ser) uma função do rendimento que o capital aufere na produção. Da mesma forma, a especulação com títulos públicos está apostando na valorização do Tesouro Nacional, isto é, na sua capacidade de apropriar-se da renda nacional na forma de impostos ou o que seja. Em qualquer caso, é uma especulação sobre o potencial de apropriação de trabalho produtivo.

A especulação com o câmbio (que resulta na flutuação da paridade cambial) é uma especulação que diz respeito ao salário real e à produtividade do país, especialmente na medida em que mercados locais e regionais se interpenetram. Entretanto, na medida em que o mercado de câmbio tornou-se fortemente especulativo, desde a desregulamentação dos anos 80, o salário real é que passou a ser uma resultante, em função da importância do câmbio no custo de vida. Inverte-se a causalidade. Em razão desta proeminência, os cálculos da taxa real de câmbio multiplicam-se por inúmeras firmas de consultoria numa tentativa de se conhecer o verdadeiro poder de compra de cada moeda, o qual, não sendo conhecido consensualmente, acaba por tomar­se objeto de especulação.

As dificuldades de se estabelecer a paridade cambial insuflam a especulação, até porque este poder de compra só pode ser conhecido a posteriori, depois que a moeda foi trocada, em razão de sua natureza exclusivamente fiduciária, desmaterializada. Os regimes de âncora cambial que se multiplicaram na América Latina são uma tentativa de reduzir a incerteza quanto a este valor. O resultado dessas políticas apenas logra transferir a incerteza para a tentativa de saber por quanto tempo o regime cambial poderá ser sustentado em função do forte desequilíbrio no balanço de pagamentos que causa.

Embora os efeitos possam não ser tão aparentes quanto na crise de 29, até por conta das mediações institucionais criadas (por exemplo, do lado da produção, a garantia de renda para o trabalhador desempregado e o refinanciamento para capitais que se desvalorizam e, do lado financeiro, a suspensão automática do pregão quando a queda das bolsas atinge 10%), o potencial de crise aumenta tanto mais quanto aumenta a distância entre o que se passa na esfera da produção e na esfera da circulação. O descolamento do capital fictício, havido por conta da viabilidade de constituição de um mercado verdadeiramente mundial proporcionada pelos avanço das NTI, por sua vez, deixou um vazio de mediações institucionais que ainda não foram criadas para regular e amortecer os eventuais choques especulativos nestes mercados financeiros globalizados. Esta seria uma das explicações da recorrência das crises cambiais, dado que tais mercados globalizados não têm proteção alguma (fato que, como dissemos anteriormente, foi decorrente da desregulamentação deslanchada por Thacher e Reagan desde o início dos anos 80).

A noção de regulação, desenvolvida pela escola francesa que leva este nome, permite avançar na compreensão deste ponto. Regulação, de seu ponto de vista e diferentemente do sentido em que o termo é usual nos US, define-se como as “mediações que mantém as distorções produzidas pela acumulação de capital em limites compatíveis coma coesão social” (Aglietta, 1997AGLIETTA, M. (1997). Le capitalisme au tournant du siecle. La théorie de la régulation à l ‘epreuve de la crise. Paris: CEPII/Paris X Nanterre, mimeo., p. 4). O conceito é claramente uma atualização da ideia de superestrutura de Marx, que via as relações ideológicas, jurídicas e políticas como um instrumento de coesão social, de garantia da ordem constituída e de suas relações de exploração. Em sua visão, a sociedade não podia funcionar sem estas instâncias. Este é um ponto central da crise atual, e que vem sendo reconhecido cada vez mais mesmo pelos adeptos do consenso de Washington, que já se mostram preocupados com o excesso de desregulação.

Entretanto, está cada vez mais evidente que as iniciativas adotadas sob a inspiração neoliberal conduziram a um crescimento da instabilidade capitalista, as condições políticas para que uma alternativa se gere não estão reunidas. O renascimento da crença no livre mercado como solução mágica para a crise, que fora sepultada pelo crash de 29, tornou as elites mundiais cegas para o potencial de instabilidade inerente ao mecanismo de mercado. Novamente podemos lembrar uma lição de Marx quando disse: “A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos” (Marx, 1852MARX, K. (1852). “O Dezoito Brumário de Luiz Bonaparte”. Marx, K. & Engels, F. Textos. vol. III. São Paulo: Edições Sociais, 1976., p. 203).

Estas condições políticas estão impedidas por três razões. A primeira delas é que os US perderam a necessária coesão interna para exercer a liderança internacional da mesma forma eficiente com que lideraram o Ocidente durante a Guerra Fria. Houve um enorme recuo de sua diplomacia em direção a uma posição mesquinha de defenderem unicamente seus interesses nacionais. Em segundo lugar, os organismos reguladores (ONU, FMI, etc.) estão paralisados, seja pelo veto dos EUA, seja pela recusa em intervir por convicção ideológica de suas burocracias, ou seja, ainda, pela insuficiência de recursos materiais e políticos. Em terceiro lugar, os outros estados nacionais não têm o poder necessário para intervir no plano internacional e não foram capazes de constituir uma institucionalidade operativa no plano internacional, com exceção da Europa. Mas mesmo as instituições criadas pela União Europeia ainda não pesam decisivamente na cena mundial como elementos de estabilização.

6. CONCLUSÃO: MUDANÇAS ALÉM DA CRISE E DO NEOLIBERALISMO

Com a atual crise do sistema - que aparece em primeira instância como uma crise financeira - desenrolando-se nos dias em que escrevemos este texto, parece que estamos analisando e escrevendo em tempo real. O fracasso do neoliberalismo está cobrando uma mudança política que vá muito além da defesa do emprego e do crescimento internos, a plataforma política que possibilitou o retorno dos democratas americanos e de alguns socialistas europeus ao poder. Cobra-se uma mudança nas referências que constituem o modo de vida e a reprodução social dos seres humanos: um conjunto de referências coetâneo com a revolução tecnológica em curso que, se de um lado consegue, através da base técnica digital, ampliar a automação para limites impensáveis até recentemente, por outro lado consegue, através da codificação de ínfimos sinais que trafegam à velocidades da luz, multiplicar a quantidade de informações disponíveis sobre quase tudo e facilitar tecnicamente o acesso a elas. A mediação primeira deve ser dada por novas formas de organização social da produção contemporânea, dado que a maneira de produzir o excedente econômico já implica, em grande medida, a forma de apropriá-lo e distribuí-lo.

Os avanços tecnológicos serão, em si, espaços de acumulação a serem criados e ocupados pelos agentes econômicos. Criarão eles também outros espaços, em função não só do seu uso direto, como também indiretamente, na medida em que isto proporcione articulações eficazes entre agentes econômicos numa outra ordem de espaço (num hiperespaço da virtualidade, por exemplo). O fato é que, por exemplo, já se prevê para um futuro não muito distante, e desde que a humanidade não se destrua antes, a possibilidade de dobrar a expectativa de vida dos seres humanos. Chegar até aí, é uma trilha certa dos espaços de acumulação que se abrirão nos tempos vindouros.

Outra destas trilhas abre-se com a redução das desigualdades e distorções aberrantes nos padrões de distribuição de renda. Objetivamente, há uma indústria que cresce com vigor por todo o mundo, que é a indústria da segurança, com grandes contingentes de trabalhadores tanto formal com informalmente nela engajados que, em grande parte, resulta das desigualdades crescentes e insuportáveis criadas pelo ocaso do capitalismo moderno. Não é esta porém a indústria que atrai a grande maioria dos outros empreendedores. A ameaça fisica a estes empreendedores e a todos os cidadãos que a sofrerem é um importante elemento a mais para inviabilizar o curso atual de coisas e, particularmente no nosso caso que interessa, a reprodução (ampliada) do regime de acumulação.

A era da informação pode ser a era da negociação, repetimos. Os meios existem para se obter o conhecimento das coisas (em diversos graus), as informações estão crescentemente disponíveis e em tempo real. As comunicações audiovisuais (e, muito em breve também sensoriais) trafegam à velocidade da luz através de um espaço virtual, que assim se configura. Repetimos, outra vez: espaço virtual mas acumulação real. Por que não se buscar o que se quer e atribuir regras capitalistas (ou não estritamente capitalistas) mas que implique a absorção populacional pelo trabalho (social ou privado) envolvido na atividade de reprodução da sociedade (material, social e simbolicamente)?

Por que não buscar concertadamente uma sociedade mais justa e com melhor padrão médio de bem-estar, usando para isto regras negociadas de apropriação do excedente? Regras onde a ameaça fisica à reprodução da vida humana (a nossa e a dos outros) seja drasticamente reduzida. Regras que reconheçam que há espaço para se viver mais e melhor. Regras para um crescimento concertado onde todos ganhem; um jogo de soma não zero e positiva. Espaço para regulação concertada é o que não falta. Justamente, espaço virtual é também aquele que advém de possibilidades de articulação de potencialidades produtivas e se destina a mudar o curso da realidade social. É virtual porque (ainda) não existe mas é possível chegar lá; desde que, é claro, haja perspectivas econômicas e vontade política, de preferência com legitimidade social. É nosso argumento que a via atual do capitalismo neoliberal produziu uma realidade:

  • onde resultou praticamente um descolamento total dos valores financeiros, de uma base concreta real;

  • onde o mercado mundial tornou-se uma realidade para bens materiais e símbolos abstratos de poder;

  • onde ao mesmo tempo em que o trabalho produtivo (de excedente econômico) é mínimo, a formação orgânica de mercado consumidor (por consequência) é insuficiente para a realização do excedente.

Na medida em que caminha desastradamente em direção a um beco sem saída, o sistema econômico mundial exige uma mudança do contrato social global, por assim dizer.

Talvez falte um amadurecimento das condições objetivas para que uma mudança mais radical seja possível. Seu sentido, entretanto, pode ser vislumbrado na própria análise que fizemos das novas características do capitalismo contemporâneo à luz de Marx e que cobra três eixos de mudança.

O primeiro deles diz respeito às transformações de origem tecnológica em curso na esfera da produção. Seu conteúdo responde à necessidade de condicionar a adoção de inovações produtivas aos imperativo de: valorizar o trabalho vivo e colocá-lo a serviço da redução das desigualdades, através da melhoria do padrão de bem-estar social das economias globalizadas. As medidas para isso vão desde as tradicionais redução da jornada de trabalho, aumento da seguridade social e distribuição dos ganhos de produtividade, até a colocação de estímulos econômicos concretos no caminho do desenvolvimento tecnológico de modo a direcionar suas aplicações para a produção desta riqueza social que se almeja para o futuro.

Seu objetivo vai desde reverter a tendência à desqualificação do trabalho e substituir o atual processo de flexibilização por uma nova regulação do trabalho adequada aos novos métodos produtivos e eficiente na proteção do trabalhador, até direcionar os esforços de constituição de uma inteligência nacional na direção da construção deste futuro mais justo socialmente.

O segundo eixo de mudança deve ter como objetivo domesticar o circuito do capital dinheiro, subordinando-o às necessidades de reprodução do capital produtivo. Não há a menor possibilidade de o primeiro eixo ser construído com sucesso se o capital dinheiro continuar a comportar-se de maneira “selvagem”. Este objetivo será alcançado através de uma regulação que imponha a redução de seu valor através do confisco tributário, o qual poderá estender-se a atividades produtivas individuais (como serviço civil obrigatório) e ser direcionado a suprir carências da sociedade (ou da comunidade). Na prática trata-se de um paradoxo: usar uma economia de guerra numa época de tanto desemprego, justamente para acabar com esse desemprego (ou ao menos reduzi-lo drasticamente).

Ao mesmo tempo, que se crie um conjunto de restrições que reduzam a eficácia dos mecanismos de apropriação de valor pelos donos do capital dinheiro, entre as quais é imperiosa uma redução drástica e concertada da taxa de juros em todo o planeta. As bolsas de mercadorias e títulos tornaram-se planetárias. Mais do que nunca, um único cassino15 15 É de notar a hipocrisia social que envolve a instalação de cassinos em determinados países ou regiões, diante de “ cassinos” tão mais arriscados e funestos. , maior do que aqueles onde Keynes jogava e aprendeu a atuar. As pessoas comuns da rua não jogam, mas agem e pagam pelo jogo de outros. Providências devem ser tomadas para impedir que o jogo com papéis mexa com a vida das pessoas.

Não se trata, de forma alguma, de extinguir o mercado, mas criar mecanismos através dos quais os mercados financeiros paguem uma taxa que sirva para reparar os desníveis sociais que foram criados pelo neoliberalismo.

O terceiro eixo de mudança responde pela necessidade de condicionar a apropriação do espaço pelas relações de mercado ao princípio da equidade das oportunidades do desenvolvimento sócio-econômico para toda a humanidade. É disto que se trata: das mediações institucionais. De um novo contrato social global em torno da sobrevivência e aperfeiçoamento - físico e mental - da espécie (estes são importantes espaços de expansão para a acumulação capitalista). Este princípio requer a criação de mecanismos internacionais que regulem os fluxos de investimento direto estrangeiro e outras formas de movimentação de trabalho e capital entre as nações em favor das regiões mais atrasadas economicamente.

A evidente dificuldade de implementação de uma agenda como esta não se explica apenas pela hegemonia política neoliberal que corresponde a uma simbiose de interesses dos donos do dinheiro e seus prepostos com os donos do poder político. O vigor ainda demonstrado pelo pensamento único do livre mercado encontra explicação na dificuldade de concretização do que é realmente novo. Para citar pela última vez o velho pensador alemão falecido há 115 anos, lembramos sua lição no 18 Brumário sobre a dificuldade das revoluções proletárias completarem suas tarefas históricas, pois estas

“... recuam constantemente ante a magnitude infinita de seus próprios objetivos até que se cria uma situação que torna impossível qualquer retrocesso e na qual as próprias condições gritam: Hic Rhodus, hic salta!” (Marx, 1852MARX, K. (1852). “O Dezoito Brumário de Luiz Bonaparte”. Marx, K. & Engels, F. Textos. vol. III. São Paulo: Edições Sociais, 1976., p. 206).

Para animar a saída, vale ainda citar um trecho daquela antiga marchinha carnavalesca, mais atual do que nunca: “agora é que eu quero ver, quem é malandro não pode correr...”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • WEEKS, J. (1981). Capital and exploitation. Princeton: Princeton University Press.
  • 1
    Em palestra proferida no Congresso Anual da American Economic Association, no Hilton Hotel em New York, 1977/8.
  • 2
    O capital dinheiro (M), compra as mercadorias especiais (C) - força de trabalho (FT) e meios de produção (MP) - que interagem no processo produtivo (P) e do qual resulta o capital mercadoria (C’) com um valor maior que o inicial (M’) que só se realiza quando a mercadoria produzida é vendida. Os circuitos têm, assim, três figuras correspondentes às formas que o capital pode assumir: a forma do capital dinheiro, a do capital produtivo e a do capital mercadoria. Cada uma destas representa o ponto de partida de um percurso de transformações do capital até o retorno à forma inicial com um plus de valorização, a mais­valia; compreende um processo em que necessariamente o capital precisa se metamorfosear nessas três formas para que o circuito se complete. Um ciclo completo de reprodução ampliada implica, então, no entrelaçamento desses três circuitos.
  • 3
    Keynes, no terceiro parágrafo do cap. XXI, argumenta que”... a importância do dinheiro surge essencialmente do fato de ser uma ligação entre o presente e o futuro”.
  • 4
    Para Marx, muitas destas dificuldades de reprodução deviam-se a razões endógenas ao sistema, tais como a tendência à queda da taxa de lucro ou a superprodução de capital.
  • 5
    Na verdade, há uma pequena (ou mesmo ínfima) quantidade de trabalho necessária à produção das cédulas que, todavia, não é objetivada, pois trata-se de um trabalho improdutivo de funcionários públicos que não gera valor.
  • 6
    Em uma situação inflacionária como a brasileira recente, a instabilidade do valor da moeda deu origem à circunstância rara da moeda pagando rendimentos na forma de juros sobre depósitos à vista. A diferença entre moeda e títulos do capital fictício, que só são procurados pelos rendimentos a que dão direito, havia se desfeito completamente.
  • 7
    Exceção porque, embora não tenham tido formalmente poder sobre o valor do dólar, através do monopólio estatal do câmbio, pela condição de emissor da moeda padrão internacional, os EUA mantêm na prática este poder através da liberdade de ação que preservam em sua política monetária (Tavares e Fiori, 1997TAVARES, M.C. & FIORI, J. (orgs.) (1997). Poder e dinheiro: uma economia política da globalização. Petrópolis: Vozes.).
  • 8
    Na verdade, não são mais nem os donos do capital que têm essa influência sobre a política econômica, mas seus prepostos yuppies que administram os fundos de pensão ou têm posições elevadas na burocracia privada e pública.
  • 9
    Relembramos a passagem dos Grundrisse, citada anteriormente, onde Marx afirma que “The tendency to crate the world market is directly given in the concept of capital itself. Every limit appears as a barrier to be overcome”; “A tendência à criação do mercado mundial está diretamente inscrita no conceito mesmo de capital. Cada limite aparece como uma barreira a ser superada” (Marx, 1857MARX, K. (1857). Grundrisse: foudations of the critique of political economy. Harmondsworth: Penguin, 1973., p. 408).
  • 10
    Não estamos negligenciando a importância do mercado internacional desde os tempos do capitalismo mercantil e a continuidade dessa importância mesmo após a Revolução Industrial. Afinal, o imperialismo foi um resultado da expansão industrial no século XIX. Entretanto, a dinâmica econômica dos países industrializados foi predominantemente dependente do mercado interno até os dias atuais.
  • 11
    As razões dessa precocidade encontram-se, seja no plano da política, pela necessidade de encerrar o sangrento ciclo das guerras europeias, seja porque boa parte das nações do Velho Continente tinham mercados internos relativamente exíguos para a escala dos investimentos exigida pela base técnica fordista.
  • 12
    Sobre este ponto, ver Shaikh, “An introduction to the history of crisis theory”, US capitalism in crisis, URPE, 1978SHAIKH, A. (1978). “An introduction to the history of crisis theory”, US. capitalism in crisis, URPE, New York., e Weeks, J., Capital and exploitation, Princeton University Press, 1981WEEKS, J. (1981). Capital and exploitation. Princeton: Princeton University Press..
  • 13
    A ampliação da chamada classe média pode ser uma expressão deste fenômeno como, aliás, já o foi no passado.
  • 14
    Evidentemente coloca-se neste caso também a dinâmica da vinculação entre capital e território.
  • 15
    É de notar a hipocrisia social que envolve a instalação de cassinos em determinados países ou regiões, diante de “ cassinos” tão mais arriscados e funestos.
  • 17
    JEL Classification: B51; P11; P16.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 1999
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