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A epistemologia da transformação: uma crítica ao neo-Ricardianismo* * Agradeço os comentários de Ednaldo Araquem da Silva.

The epistemology of transformation: a criticism of the neoricardianism

RESUMO

Na solução do “problema da transformação”, Marx errou ao acreditar que a taxa de lucro determinada no sistema de valores era a mediação entre valores e preços de produção. Este erro invalida o “postulado duplo” de Marx, segundo o qual a soma dos valores é igual à soma dos preços e a soma da mais-valia é igual à soma dos lucros. Usando um operador linear do sistema de valor, é possível determinar completamente a taxa média de lucro e o sistema de preços de produção. Dessa forma, podemos preservar o postulado epistemológico fundamental de Marx, segundo o qual o reino da essência (valores) determina o reino da realidade transparente (preços).

PALAVRAS-CHAVE:
Problema da transformação; teoria do valor; preços

ABSTRACT

In the solution of the “transformation problem”, Marx erred in believing that the profit rate determined in the value system was the mediation between values and production prices. This error invalidates Marx’s “doble postulate”, according to which the sum of values equals the sum of prices and the sum of surplus value equals the sum of profits. By using a linear operator from the value system, it is possible to fully determine the average profit rate and the system of production prices. ln this way, we can preserve Marx’s fundamental epistemological postulate, according to which the realm of essence (values) determines the realm of transparent reality (prices).

KEYWORDS:
Transformation problem; value theory; prices

O “PROBLEMA DA TRANSFORMAÇÃO” ANTES DE MARX

O “problema da transformação” de valores em preços de produção é anterior a Marx, remontando a Adam Smith, onde podem encontrar-se duas teorias do valor. Segundo a primeira, o valor de troca das mercadorias reduz-se à quantidade de trabalho demandado para a sua produção; de acordo com a segunda, o valor de troca determina-se pela quantidade de força de trabalho que, a partir da venda da mercadoria, pode ser obtida no mercado (pela quantidade de trabalho comandado). Esta última formulação implica que o valor de troca se resolve na soma dos salários, lucros e renda de terra. O problema estaria, pois, na resolução desta contradição entre estas duas teorias do valor, contradição esta que constituiria, segundo Marx, o encanto da obra smithiana.

Diante dessa contradição, só restaria à Economia Política pós-smithiana resolvê-la, quer pela supressão de um dos princípios contrapostos, quer pela descoberta de formas de mediação que permitissem demonstrar como as duas teorias se compatibilizavam entre si. Na realidade, o ideal consistia na construção de um sistema de proposições logicamente articuladas e consistentes, constituindo-se num todo sistemático em cujo topo estaria o “princípio elementar”, do qual os outros seriam desdobramentos enriquecedores. Desde que esse todo teórico estivesse de acordo com a realidade, permitindo a construção de previsões empiricamente verificáveis, então estava garantido seu estatuto científico.

A primeira tentativa de resolver a contradição entre as duas formulações da teoria do valor que se encontravam em A Riqueza das Nações foi ensaiada por Ricardo, que inicia seus Princípios procurando reafirmar a validade da teoria do valor-trabalho, descartando a vinculação entre o valor da troca e os salários, tal como se encontra em Smith. Nas suas palavras, “o valor de um bem, ou seja, a quantidade de qualquer outro bem com o qual se possa trocar, depende da quantidade relativa de trabalho necessário para o produzir e não da maior ou menor remuneração auferida por esse trabalho” (Ricardo, 1975RICARDO, D. (1975) Princípios de economia política e de tributação. Lisboa, Calouste Gulbenkian. , p. 31).

Contudo, essa firme disposição em adotar apenas um princípio único para explicar o valor de troca é relaxada logo a seguir, quando Ricardo defronta-se com as dificuldades criadas pelas diferenças observadas entre o grau de duração do capital fixo e a variedade das proporções entre capital fixo e capital circulante nas diversas esferas da produção. Devido a estas diferenças, as mudanças da taxa de salário resultam em modificações nas relações de troca entre as mercadorias. Assim, Ricardo vê-se obrigado a modificar o princípio inicial, juntando-lhe uma causa segunda, a taxa de salários. Ao fazê-lo, cai em contradição com sua postulação anterior a respeito da independência do valor de troca em relação às modificações dos salários.

A solução ricardiana para a contradição observada foi então designar a primeira causa como mais importante do que a segunda: “ao avaliar as causas das alterações do valor dos bens, embora seja incorreto omitir pura e simplesmente a consideração do efeito produzido por uma subida ou descida dos salários, seria igualmente incorreto dar-lhe muita importância; consequentemente, no resto deste trabalho, embora ocasionalmente me possa referir a essa causa de variação, considerarei que todas as grandes alterações que se verificam no valor relativo dos bens são causadas pela maior ou menor quantidade de trabalho necessária para produzir em períodos diferentes” (Ricardo, op. cit. p. 57).

Ao examinar a influência das modificações da velocidade do desgaste dos bens de capital e do período de rotação do capital fixo sobre o valor de troca, mais uma vez Ricardo defronta-se com a necessidade de causas adicionais, as quais retiram grande parte da validade da sua teoria do valor-trabalho, comprometendo seriamente, inclusive, sua crítica a Smith.

Em resumo, Ricardo tenta construir um sistema teórico dentro do qual a compatibilização entre a teoria do valor-trabalho e a determinação dos “preços naturais” dá-se através de uma justaposição, segundo a qual cada causa adicional modifica a causa primeira, incorporando um desvio sistemático do valor de troca em relação à quantidade de trabalho incorporado.

Na realidade, o problema da resolução da contradição entre as duas teorias do valor de Smith é o mesmo problema de Ricardo em compatibilizar a teoria do valor trabalho com as observações concernentes ao comportamento dos seus “preços naturais”, reaparecendo na problemática marxista da transformação de valores em preços de produção. Na forma particular de Marx resolver esse problema reside uma das manifestações mais marcantes da diferença entre o seu método dialético e o método das diferentes escolas de inspiração empirista, que lançam mão das categorias próprias da lógica formal (entendimento).1 1 A distinção entre entendimento e razão dialética crucial para se entender Marx. O entendimento resolve uma contradição através da supressão de um de seus termos, ou de sua modificação por influência do outro: a razão dialética procede determinando os termos médios que compatibilizam os termos contrapostos.

O objetivo deste ensaio é examinar o estatuto epistemológico do “problema da transformação”, procurando ressaltar que a crítica neo-ricardiana à teoria do valor trabalho, inspirada na obra de Sraff a Produção de Mercadorias por Meio de Mercadorias passa por alto por importantes questões metodológicas, cuja compreensão é indispensável para se aquilatarem dimensões relevantes da teoria marxista, a qual continua, mesmo depois de Sraffa, a colocar importantes questões não respondidas por outras escolas do pensamento econômico.

O “PROBLEMA DA TRANSFORMAÇÃO” EM MARX

A solução marxista da aporia colocada por Smith consistiu numa profunda mudança com relação à postura metodológica assumida por seus antecessores. Fiel à dialética hegeliana, da qual procurou resgatar o conteúdo racional, evitando o viés idealista, Marx procuraria, em lugar de rejeitar a contradição entre as duas teorias do valor em favor de uma delas, ou de adicioná-las uma à outra como fez Ricardo, localizar os elos de ligação que permitiriam articulá-las num todo sistemático. Cumpriria, dessa forma, o desiderato da razão dialética que, segundo Hegel, resolve as contradições do entendimento formal, através das mediações que nascem do universal, em seu movimento de englobar o particular.2 2 A dialética do método científico encontra-se em: Hegel, 1968; 1974.

Destarte, o pensamento marxiano arranca da teoria do valor-trabalho, desta feita inteiramente reformulada, de modo que se abandona o tratamento ricardiano, centrado em descobrir as causas das variações dos valores de troca entre as mercadorias, a favor de uma abordagem que procura desvelar as próprias razões da existência do valor de troca. A finalidade deste enfoque é construir uma teoria do capitalismo que não possua pressupostos não demonstrados e que dê conta da racionalidade do processo de desenvolvimento deste modo de produção.3 3 Para um exame da dialética marxista, veja-se: Rosdolsky, 1978, e Zeleny, 1974.

O sistema teórico de Marx inicia-se pela mercadoria, tomada como universal concreto, ou seja, como o princípio elementar do qual deve partir a explicação sistemática (ou exposição, Darstellung) da totalidade que representa o capitalismo.4 4 A dialética consiste num método de exposição dos resultados da pesquisa, portanto, de construção do sistema científico de explicação da realidade. Partindo da forma mais simples do valor de troca, Marx estabelece a diferença entre valor e valor de troca, constrói sua explicação do dinheiro e desemboca na teoria do fetichismo, demonstrando que numa economia mercantil as relações sociais assumem a forma de relações entre coisas. Mas nesta trajetória teórica explica-se a acumulação de dinheiro como processo indefinido, que nasce da contradição entre o fato de o dinheiro, como representante da riqueza em geral da sociedade capitalista, possuir uma dimensão qualitativa infinita e, enquanto quantidade concreta, possuir uma limitação finita. A estrutura lógica deste processo obedece ao esquema hegeliano do mau infinito.5 5 Veja-se Marx, vol. I, p. 211.

O passo seguinte da análise marxista nasce da constatação de que o processo de acumulação de dinheiro tem pressupostos externos, não colocado por ele próprio, uma vez que pressupõe o lançamento contínuo de mercadorias à circulação e a retenção do dinheiro assim obtido. Desse modo, para completar o ciclo do dinheiro, torna-se necessário que a retirada do dinheiro da circulação não seja mero entesouramento, mas seja capaz de gerar mais dinheiro. Isso, contudo, somente torna-se possível quando, por razões históricas dadas, existe a mercadoria força de trabalho, com a capacidade de produzir valor. Neste caso, entretanto, a produção de valores de troca torna-se capitalista.

Como se pode verificar, a construção teórica marxista que se principia pelo desdobramento das determinações germinais da mercadoria possui um caráter simultaneamente progressivo e regressivo. Progressivo porque se trata de um método em que se observa um avanço incessante na compreensão do objeto estudado, a qual se torna cada vez mais concreta, abrangendo todas as duas dimensões relevantes. Regressivo, porque o pensamento procura interiorizar-se no objeto estudado, em busca do fundamento de sua lógica, explicando os pressupostos iniciais que, num momento seguinte, passam a ser postos pela própria teoria.

Inicialmente, o desdobramento categorial progride através da busca dos primeiros pressupostos, constituindo-se no movimento de explicitação da essência do objeto. Uma vez exaurida a análise da essência, num momento seguinte, o progresso da exposição científica consiste em, partindo-se da essência, explicar o objeto como fenômeno. Assim, a totalidade do objeto é enfocada como tendo duas dimensões, sendo uma essencial e a outra fenomênica. Novamente, é um conceito hegeliano (de realidade efetiva, Wirklichkeit) que permite a Marx realizar o trânsito da essência ao fenômeno.6 6 O conceito de fenômeno abrange mais do que o de aparência, implicando a aparição da essência na esfera da exterioridade (significa a sua forma concreta de existir nessa esfera). Daí não se reduzir à ilusão, como traz implícito o conceito de aparência.

Observe-se que o conceito de realidade efetiva, ou efetividade, permite a Marx visualizar a “ordem fenomênica” não somente como aparência, mas também possuindo uma dimensão própria, não redutível à essência. Ou seja, no nível da realidade efetiva prevalecem relações causais que são inerentes à superfície fenomênica do objeto. A articulação que existe com a ordem da essência consiste em que as determinações essenciais (ou substanciais) governam as relações de causa e efeito observáveis na realidade efetiva. Portanto, a essência unifica o tecido de relações de causa e efeito que constituem os fenômenos num processo único, cujas leis de movimento estão dadas pelas determinações essenciais.

É esta estrutura lógica que se encontra subjacente à “solução” marxista da questão da compatibilização entre a teoria do valor-trabalho e as razões efetivas de troca entre as mercadorias. A teoria do valor de Marx realiza a exposição da essência do capitalismo, como modo de produção que se assenta sobre uma contradição fundamental entre valor e valor de uso ou, na sua dimensão principal, entre capital e trabalho. Com base nessa teoria, realiza-se a análise qualitativa do capitalismo, assim como determinam-se suas leis de movimento. Contudo, para que a teoria marxista do valor não fosse “metafísica”, seria necessário que ela desse conta da realidade efetiva, inclusive das leis que regulam os preços de produção.

O problema da transformação consiste, pois, em explicitar como a essência do capitalismo, captada através da categoria valor, governa a realidade efetiva dos preços de produção, que prevalecem na superfície fenomênica dessa sociedade. Aliás, cumpre observar que é com base nesse enfoque metodológico, e tendo em mente a sua “solução” para o problema, que Marx critica Smith e Ricardo. Assim, Marx afirma que “o próprio Smith se move com grande ingenuidade em contradição contínua. Ora investiga as conexões causais das categorias econômicas ou a estrutura oculta do sistema econômico burguês. Ora junta a essa pesquisa as conexões tais como se exteriorizam na aparência dos fenômenos da concorrência, se manifestam, portanto, ao observador não científico e, do mesmo modo, ao que na prática está preso e interessado no processo de produção burguesa (Marx, 1983MARX, K. (1983) Teorias da mais-valia. História crítica do pensamento econômico. São Paulo, Difel. , v. 1, pp. 597-8).

Quanto a Ricardo, Marx considera que seu método “parte da determinação da magnitude do valor da mercadoria pelo tempo de trabalho e investiga se as demais condições e categorias econômicas contradizem essa determinação ou até onde a modificam. ( ... ) A insuficiência se revela no modo de apresentação (meramente formal) e, ademais, leva a resultados errôneos, porque omite os necessários elos intermediários e procura de imediato provar a congruência entre as categorias econômicas” (Marx, 1983MARX, K. (1983) Teorias da mais-valia. História crítica do pensamento econômico. São Paulo, Difel. , p. 597).

A SOLUÇÃO DE MARX

A solução de Marx para o problema da transformação possui uma dimensão qualitativa e outra quantitativa.7 7 Quem primeiro salientou esse aspecto da questão foi Engels, .no Prefácio do livro III de O Capital, em 1894. Mais tarde, Hilferding retomou essa interpretação na sua crítica e Böhm-Bawerk. Mas coube a Sweezy introduzi-la ao público de língua inglesa, através do seu livro Teoria do Desenvolvimento Capitalista. Na qualitativa, Marx procura mostrar como as relações sociais se transformam em relações entre coisas (teoria do fetichismo), assim como o valor da força de trabalho se transmuta em salário como pagamento do próprio trabalho e a mais-valia (produto do trabalho) se traveste em lucro (produto do capital).

Quantitativamente, Marx propõe um algoritmo de transformação de valores em preços de produção, que, segundo ele, igualaria: 1. a soma dos valores com a soma dos preços; 2. o total da mais-valia com o total dos lucros. Por outro lado, Marx acreditava que para se determinar os preços de produção, seria necessária a determinação prévia da taxa de lucro, o que seria realizado por sua teoria do valor. Assim, essa teoria do valor teria uma função crítica adicional, servindo para demonstrar a incapacidade da teoria da formação de preços, a partir dos custos de produção (salários + lucros + renda da terra), de explicá-los totalmente.8 8 Para uma visão moderna do tratamento marxista quantitativo do problema da transformação, sua crítica e solução, veja-se o Apêndice no final deste ensaio. Esse Apêndice foi construído tendo-se como base Pasinetti, 1977, pp. 122-50.

O DEBATE NO PERÍODO ENTRE MARX E SRAFFA

A primeira crítica mais desenvolvida sobre o tratamento marxista da questão da transformação foi formulada por Böhm-Bawerk, em 1896 (1978, pp. 29-127).9 9 Para examinar-se, sucintamente, as críticas anteriores a Böhm-Bawerk, e a apreciação de Engels sobre elas, veja-se Engels, s.d., vol. 3, pp. 1-19, e vol. 4, pp. 3-24. Este autor identificou uma contradição entre a teoria marxiana do valor, exposta no livro I de O Capital, e a teoria dos preços de produção, desenvolvida no livro III. Segundo ele, “a teoria da taxa média de lucro e dos preços de produção não é compatível com a teoria do valor” (Böhm-Bawerk, 1978BÖHM-BAWERK, E. von. (1978) “La conclusión del sistema de Marx.” In: SWEEZY, P. ed. Economia burguesa y economia marxista. México, PYP, p. 29-127. , p. 49). Para resolvê-la propunha a supressão da primeira, em favor da teoria do valor-utilidade.

Apesar do sucesso com que esta crítica foi acolhida pelos economistas não-marxistas, cumpre observar seu caráter insatisfatório, uma vez que Böhm-Bawerk não apontou, concretamente, onde estaria o erro de Marx em determinar a taxa média de lucro a partir da teoria do valor trabalho, condição necessária (embora não suficiente) para demonstrar a incompatibilidade da lei do valor com a teoria dos preços de produção (segundo Marx, essa determinação representaria o elo intermediário entre ambas). Que Böhm-Bawerk tenha apresentado outra teoria do valor (baseada na utilidade), não invalida o procedimento metodológico de Marx. Assim, do ponto de vista lógico, a crítica de Böhm-Bawerk é improcedente.

Na verdade, a abordagem de Böhm-Bawerk, ao comparar, sem qualquer mediação, a lei do valor com a teoria dos preços de produção, representa um claro retrocesso da discussão da questão em relação a Marx, cujo tratamento Böhm-Bawerk ignora, por considerá-lo inadequado a priori.

Coube a Bortkiewicz, em 1907 (1978, pp. 191-213), o mérito de identificar uma contradição real nos exemplos numéricos de Marx e propor uma alternativa concreta de solução. Na realidade, apesar das indicações de Marx do caráter provisório da “solução” contida nos seus exemplos, Bortkiewicz mostrou o inconveniente dela, baseada na superposição da identidade entre a taxa de lucro prevalecente no sistema de preços (r) e a que seria determinada no sistema de valores (b), Bortkiewicz propôs um modelo de economia em reprodução simples, representada por três equações, cada uma das quais representando um setor de produção (setor I de meios de produção, Setor II de bens-salário e Setor III de bens de luxo) para determinar quatro incógnitas (a taxa de lucro r e os três fatores de conversão de valores em preços de produção x, y e z, respectivamente). Para determinar seu sistema, Bortkiewicz tomou o coeficiente de transformação do setor de bens de luxo (z) como igual à unidade, o que permitiu igualar o número de incógnitas ao de equações e, portanto, determinar r, x e y. Contudo, sua solução mostrou que a· soma dos valores se equivale à dos preços de produção se a composição orgânica do capital, no setor de produção da mercadoria de fator de conversão unitário, assumir dado valor específico. Em segundo lugar, a taxa de lucro não depende das condições de produção prevalecentes em todos os setores, mas, apenas, nos setores de meios de produção e de bens-salário.

Winternitz, em 1948, levantou a restrição da reprodução simples, mostrando que era possível abandonar a distribuição dos produtores entre os setores de produção, sem prejudicar o sistema de equações de Bortkiewicz. Além disto, Winternitz substituiu a suposição de que a razão de conversão z do setor de bens de luxo fosse igual à unidade, pela restrição de que o total dos valores fosse igual ao total dos preços. O resultado foi que no sistema de Winternitz mantém-se a conclusão de que a taxa de lucro independe das condições de produção do setor de bens de luxo, e que, embora a soma dos valores equivale-se à dos preços de produção (por hipótese), o lucro total diverge da mais-valia total. Como afirmam Morishima e Catephores, “a solução de Winternitz leva à mesma dificuldade que a de Bortkiewicz: pode-se ter o preço total igual ao valor total ou o lucro total igual à mais-valia total, mas não se pode ter ambos ao mesmo tempo” (Morishima e Catephores, 1980MORISHIMA, M.; CATEPHORES, G. (1980) “O problema de transformação: um processo de Markov”. In: Valor, exploração e crescimento. Marx à luz da teoria econômica moderna. Rio de Janeiro, Zahar , p. 163-95. , p. 170).

Finalmente, Seton, em 1957, tentou levantar outra restrição do modelo de Bortkiewicz e mantida por Winternitz, mostrando que o problema da transformação poderia ser resolvido para um modelo geral de n, e não apenas três setores. Para tanto, embora conservasse a separação da economia em três setores (setor I de meios de produção, II de bens-salário e III de bens de luxo), Seton trabalhou com o sistema de n equações de valores, que foram agrupados nesses setores.

De acordo com Seton, tanto o sistema de equações de preços como o de valores são um sistema de n equações simultâneas, e o primeiro possui n equações de n + 1 incógnitas (n preços e a taxa de lucro r). Dividindo-se as equações desse sistema por Pn, onde n é um índice que indica a mercadoria tomada como dinheiro (ou numeraire), tem-se um sistema de n equações de n incógnitas (n - 1 preços e a taxa de lucro r): o sistema, pois, está determinado. Assim, a determinação da taxa de lucro no sistema de valores, como queria Marx, e sua substituição no sistema de equações de preços de produção conduziria à entre-determinação desse último.

Portanto, a taxa de lucro do sistema de preços geralmente difere da taxa de lucro do sistema de valores, o que significa que (1) ou a soma dos preços difere da soma dos valores, ou (2), o total da mais-valia difere do total do lucro, a não ser que se estabeleçam restrições adicionais. E estas condições restritivas, segundo Seton, seriam excessivas, de modo que o “lema de Marx”, pode-se concluir, estaria invalidado.10 10 Contudo, segundo Morishima e Catephores (1980, p. 173), pelo modelo de Seton pode-se obter o “Teorema Marxista Fundamental”, que estabelece que “a condição necessária e suficiente para uma taxa de lucro de equilíbrio positiva é que a taxa de exploração seja positiva”.

O PROBLEMA DA TRANSFORMAÇÃO “AFTER SRAFFA”

O problema da transformação assumiu nova forma com a publicação da obra de Sraffa Produção de Mercadorias por Meio de Mercadorias (1960), a qual permitiu o tratamento genérico da questão em seus múltiplos aspectos. Com base no sistema sraffiano, pôde-se verificar que:

  • 1. conforme já tinha demonstrado Bortkiewicz, o setor de bens de luxo é redundante para a determinação da taxa de lucro.

De fato, Sraffa desenvolve o conceito de mercadoria-básica para designar aquela mercadoria que entra na produção, direta ou indiretamente, de todas as outras. Ora, como, por definição, a força de trabalho é uma “mercadoria básica”, os produtos que entram na cesta de consumo dos trabalhadores são básicos, assim como os seus insumos, os insumos de seus insumos etc. Por contraposição, os meios de consumo que não entram no consumo operário, (bens de luxo), assim como os meios de produção exclusivos destes bens, não são mercadorias básicas. A importância do conceito reside no fato de que a taxa de lucro r do sistema de preços depende apenas das condições de produção do “sistema básico”; constituído pelas k mercadorias que são básicas. Ademais, enquanto, para Marx, a taxa de lucro b depende de distribuição da produção entre os vários setores, a taxa de lucro r do sistema sraffiano é independente dela.11 11 Veja-se Monza, 1979, p. 87.

  • 2. da mesma forma, como se pode concluir do sistema de Seton, a taxa de lucro no sistema de valores difere, em geral, da do sistema de preços. De igual modo, diferem: a) a soma dos valores da soma dos preços; b) a mais-valia total do lucro total.

  • 3. o sistema sraffiano permitiu satisfazer o “lema de Marx” desde que fossem respeitadas as restrições de considerar apenas o sistema básico (abandonando-se pois o setor de bens de luxo e de seus insumos exclusivos) e a de adotar o “sistema-padrão” de Sraffa como numeraire das equações de preços de produção.12 12 Para um estudo da “mercadoria-padrão” e do “sistema-padrão”, veja-se Pasinetti, 1977, pp. 95-121, e Monza, 1979, pp. 21-48. Para um exame do caso especial de transformação com base no “sistema-padrão”, veja-se Pasinetti, 1977, pp. 130-34. No entanto, como se conclui, as condições são por demais restritivas, para que o sistema assim “padronizado” tenha relevância empírica.

  • 4. a obra de Sraffa favoreceu a construção das mediações entre o sistema de valores e o de preços, uma vez que a mediação proposta por Marx - a identidade quantitativa entre as taxas de lucro nos dois sistemas - mostrou-se inconsistente.13 13 Veja-se o Apêndice, ao final.

A CRÍTICA NEO-RICARDIANA

A identificação de um erro formal em Marx na sua tentativa de transformar os valores em preços de produção levou muitos teóricos a rejeitar os termos da própria problemática, assim como a teoria marxista do valor. Assim, Garegnani (1979GAREGNANI et alii. (1979) Debate sobre la teoria marxista del valor. México, PYP , 1979, ) admite que a função essencial da lei do valor em Marx é determinar de forma não circular a taxa de lucro, que representa a base da análise da acumulação de capital e, portanto, da compreensão do funcionamento do capitalismo. Como não se pode determinar a taxa de lucro pela teoria do valor, Garegnani propõe o abandono dessa última. Para ele, isso não implicaria eliminar a noção do caráter transitório do capitalismo, nem a concepção de que os lucros resultam da exploração do trabalho (para tanto seria suficiente o conceito de excedente) e muito menos os outros aspectos centrais da teoria marxista, que continuaria propiciando o tratamento mais avançado do capitalismo, mesmo descartando-se a teoria do valor.14 14 Veja-se Garegnani, 1979, pp. 30-64 e 177-90. Uma crítica relevante de Garegnani encontra-se em Oliveira, 1983.

Outro autor que propôs a rejeição da lei do valor foi Napoleoni (1979NAPOLEONI, C. (El enigma del valor. ln: GAREGNANI, op. cit. p. 15-29. ). Contudo, ao contrário de Garegnani, Napoleoni propõe reservar à teoria do valor-trabalho a função de realizar a determinação “filosófica” do capitalismo, na qual teria sentido a teoria do valor como teoria da alienação, independente de uma análise “econômica”, na qual a lei valor seria totalmente dispensável, por ser “metafísica”.15 15 Veja-se Napoleoni, 1979, pp. 15-29. Para uma visualização do problema da transformação segundo Napoleoni, veja-se Napoleoni, 1980, pp. 32-100.

Outra posição pôde ser encontrada em Steedman (1977STEEDMAN, I. (1977) Marx after Sraffa. Oxford, NLB. ), de acordo com o qual as principais conclusões que Marx retira da sua teoria do valor (inclusive o conceito de exploração) podem sustentar-se sem se recorrer a essa última. Embora assuma, deste modo, uma posição semelhante a Samuelson, quanto à irrelevância da lei do valor, e bem próxima a Garegnani, quanto à possibilidade de se manter a análise marxista sem a teoria do valor-trabalho, Steedman desenvolve sua análise procurando demonstrar que grande parte das proposições de Marx podem ser deduzidas a partir do desdobramento da análise sraffiana.16 16 Veja-se Steedman, 1977.

Um substrato comum a estes três autores consiste em admitir a inexistência do problema da transformação, uma vez que se pode determinar, completamente, o sistema de preços de produção (inclusive a taxa de lucro), sem necessidade da lei do valor. No âmbito epistemológico, uma interpretação possível deste fato seria admitir a existência de um abismo intransponível entre a esfera das essencialidades e o nível da realidade efetiva, de tal modo que a racionalidade dessa última estaria contida nela mesma. Isto equivale a dizer que o comportamento fenomênico se explicaria por leis próprias desta esfera do domínio do empírico, dispensando qualquer aporte de leis não observadas diretamente na superfície. Portanto, a tentativa de desvendar leis essenciais não diretamente verificáveis, como no caso da lei do valor, só poderia ser resultado de um enfoque metafísico estéril, capaz de construir modelos perfeitos em racionalidade, mas totalmente incapazes de explicar a realidade efetiva.

Esquematicamente, pode-se resumir a crítica metodológica neo-ricardiana, através do esquema de Steedman, segundo o qual a análise marxista obedeceria ao seguinte esquema: para Marx os parâmetros técnicos (os coeficientes de insumo-produto) e a cesta de consumo dos trabalhadores (Bloco 1) determinariam o sistema de valores (Bloco 2), o qual, por sua vez, determinaria o sistema de preços (Bloco 3). Contudo, através da análise sraffiana, verifica-se que os parâmetros técnicos e salariais determinam, simultaneamente, o sistema de valores e o de preços, que não estão vinculados entre si, devido ao fato de que a taxa de lucro do primeiro não coincide com a do segundo.

A FALÁCIA DA CRÍTICA NEO-RICARDIANA E O ESTATUTO EPISTEMOLÓGICO DA TRANSFORMAÇÃO MARXISTA

Para se avaliar corretamente a proposta marxista de transformação, torna-se necessário qualificar o erro de Marx. Embora tenha ficado a meio do caminho, não realizando a transformação dos insumos e do capital variável, Marx apontou corretamente o algoritmo da transformação, indicando o caráter provisório de sua “solução”.17 17 Morishima e Catephores, seguindo o algoritmo de Marx, puderam chegar à conclusão satisfatória do processo de transformação. Veja-se Morishima e Catephores, 1980. Ao fazê-lo, acreditava que o sistema de preços de produção permaneceria indeterminado, se não fosse determinada previamente a taxa de lucro. Daí sua postulação da identidade entre as taxas de lucro nos dois sistemas e, por extensão, da igualdade entre a soma dos valores e dos preços e entre o total da mais-valia e dos lucros.

Na realidade, um dos méritos de Sraffa foi ter fornecido os elementos que permitiram demonstrar que, em se utilizando o correto numeraire dos dois sistemas (a sua “mercadoria padrão”), a soma dos valores iguala-se à dos preços de produção, qualquer que seja a divergência entre as taxas de lucro dos dois sistemas. Assim, tornou-se claro que a inconsistência entre preço total e valor total resulta da escolha de um numeraire que não se preserva invariante durante o processo de transformação. De mais a mais, este resultado possibilitou confirmar a tese marxista de que a formação da taxa média de lucro por efeito da concorrência entre capitais significa somente um processo de transferência de valor entre os diversos setores.

Uma vez elucidada a questão da identidade entre a soma dos valores e dos preços, resta examinar os problemas correlatos da divergência entre as taxas de lucro dos dois sistemas e entre o total da mais-valia e dos lucros.

Ao contrário do que poderia parecer à primeira vista, a divergência entre a taxa de lucro do sistema de valores e a taxa de lucro do sistema de preços não compromete decisivamente a formulação marxista. Isto porque, em primeiro lugar, embora a mediação entre os dois sistemas não seja feita através da taxa de lucro, conforme pensava Marx, existem mediações quantitativas sistemáticas entre ambos os sistemas, sendo, deste modo, possível identificar, a partir dos elementos constitutivos do sistema de valores, a lei do desvio sistemático dos preços em relação aos valores. Esta é a proposição epistemológica marxista fundamental. Muito embora este assunto encontre-se ainda insuficientemente explorado, a existência de “operadores” da transformação, como o identificado por Pasinetti, resolve a questão das relações quantitativas entre os dois sistemas. Aliás, foi esta a ideia subjacente às diversas tentativas de resolver a “contradição” marxista, iniciadas por Bortkiewicz.

Em segundo lugar, apesar da ausência de identidade entre a taxa de lucro do sistema de valores e a taxa de lucro do sistema de preços, tanto para os preços de produção quanto a taxa efetiva de lucro deste último (Bloco 3) são determináveis pelas variáveis do primeiro (Bloco 2). Portanto, o sistema de valores é suficiente para a determinação completa do sistema de preços de produção. Assim, a própria taxa de lucro do sistema de preços é determinada pelo sistema de valores, embora não prevaleça a identidade entre as taxas de lucro nos dois sistemas. Pode-se manter, destarte, o esquema metodológico marxista, segundo o qual tem-se a seguinte ordem de determinação: Bloco 1 ~ Bloco 2 ~ Bloco 3, embora a mediação entre os dois últimos Blocos não seja feita pela taxa de lucro, mas por determinado operador. A rigor, para Marx, não existe uma separação entre os Blocos 1 e 2, de modo que o primeiro se encontra “embutido” no segundo.

Quanto à ausência de identidade entre mais-valia total e lucro total, alguns neo-ricardianos veem nessa divergência o resultado da inconsistência da lei do valor, enquanto teoria da exploração. Inversamente, argumenta-se que a última pode prescindir da primeira.

Para se responder a essa objeção, basta recordar que, embora quantitativamente a mais-valia total e o lucro total diferem, ambos coincidem em termos físicos, representando o mesmo vetor de produtos “excedentes”. Se o sistema de valores qualifica o sistema técnico-físico (como se verá mais adiante), a extração do excedente na esfera dos fenômenos significa extorsão de mais-valia na esfera de essência. Tanto assim que uma condição necessária para que a taxa de lucro seja positiva é que a taxa de exploração também o seja. De fato, a pergunta que deve ser feita a nível da essência é sobre quanto custa esse excedente físico para os trabalhadores. Evidentemente, o único custo para os operários é o dispêndio em trabalho, e este está medido através da mais-valia. Já a pergunta que se faz a nível fenomênico é outra e admite outra resposta, pois a este nível o custo do excedente coincide com o dispêndio dos capitalistas em termos de insumos e de força de trabalho. Desse modo, não há coincidência quantitativa entre mais-valia e lucro porque ambos estão medidos e significam coisas diferentes (porque retratam a mesma coisa em esferas diferentes).

Outra crítica neo-ricardiana consiste em que, mesmo admitindo-se a suficiência do sistema de valores para a determinação da taxa de lucro e dos preços de produção, isto não garante a sua necessidade. Como se verificou antes, segundo os neo-ricardianos, uma vez que se pode passar diretamente do sistema de coeficientes técnicos e da cesta de consumo dos trabalhadores para o sistema de preços, sem a mediação do sistema de valores, o sistema de valores é irrelevante.

Este argumento, contudo, é tautológico. De fato, dado que as próprias variáveis do Bloco 2 determinam-se a partir das variáveis do Bloco 1, seria de se esperar que as variáveis do Bloco 3 (inclusive a taxa efetiva de lucro), também fossem determináveis pelas variáveis do Bloco 1. Isto seria verdadeiro mesmo aceitando-se a proposição epistemológica marxista fundamental e a identidade postulada por Marx entre as taxas de lucro dos dois sistemas.18 18 Veja-se a demonstração no Apêndice.

Na realidade, a necessidade da mediação do sistema de valores para se chegar ao sistema de preços de produção não se constitui na mera determinação quantitativa das relações efetivas de troca e da taxa de lucro, mas possui muitas outras dimensões. Em primeiro lugar, o sistema de valores desempenha uma função qualitativa, qualificando, em termos de relações sociais, as relações técnicas subjacentes à matriz de coeficientes de produção e às relações de troca que imperam numa economia onde os produtos do trabalho assumem a forma mercantil. Que a produção não assume naturalmente a forma de “produção de mercadorias por meio de mercadorias” é uma conclusão que se retira da análise histórica. Trata-se, pois, não apenas de se explicar a gênese dessa sociedade, mas também o caráter específico da “sociabilidade” nela prevalecente. Conclui-se que não se pode aceitar o caráter mercantil da sociedade moderna como um pressuposto não demonstrado, pois se trata de um fenômeno socioeconômico de primeira ordem, que pertence ao âmbito da Economia Política. De mais a mais, uma vez explicado o caráter mercantil da sociedade, torna-se imprescindível examinar a natureza das relações sociais que se estabelecem no seu seio.

Em segundo lugar, não se pode conceber a realidade efetiva (que representa o nível onde prevalece o sistema de preços de produção), a não ser como um processo articulado, composto por um tecido de relações de causa e efeito, unificado através de determinadas leis de movimento. A crítica marxista a todas as formas de empirismo reside, exatamente, em denunciar a incapacidade das diversas escolas empiristas em articular uma explicação global - sem pressupostos exógenos, que são simplesmente aceitos sem serem analisados - da realidade efetiva como processo. Na verdade, embora seja possível estabelecer uma série de relações causais a nível dos fenômenos, torna-se problemático unificá-las num processo, sem se recorrer a uma construção teórica que, embora parta da realidade empírica, não é diretamente observável, mas que exige uma série de mediações. Ora, uma das funções primordiais do sistema marxista de valores, examinado nos livros I e III de O Capital, consiste exatamente em fornecer os elementos indispensáveis sem os quais a compreensão da realidade efetiva fica seriamente comprometida, reduzindo-se a uma série de “modelos” justapostos (muitos, inclusive, incompatíveis entre si), que podem retratar determinado conjunto de relações causais (isto é, podem ser “operacionais”), mas são incapazes de dar conta das tendências gerais do sistema e de suas leis de movimento. Em outras palavras, o empirismo encontra grandes obstáculos para construir o sistema científico da realidade econômica.

Por outro lado, a questão da transformação possui uma dimensão insuspeitada pelos neo-ricardianos. Como já se afirmou antes, o processo marxista de transformação de valores em preços de produção representa uma tentativa de se achar um fundamento do valor de troca que não tenha pressupostos não demonstráveis. Assim, ainda que se possa determinar os preços de produção através dos coeficientes técnicos de produção e da cesta de consumo dos trabalhadores, resta explicar por que os produtos vão a mercado e se trocam nessas proporções determinadas. As mercadorias são trocadas em dadas proporções para que se reponham os seus custos de produção e os capitalistas obtenham determinada taxa média de lucro. Isto implica que os capitalistas conseguem se apropriar do lucro médio, e o fazem porque são os proprietários dos meios de produção. Implícita na forma preço, pois, encontra-se como natural uma forma histórica (portanto não natural), de direito de propriedade (o direito de apropriação do produto excedente, obtido através do concurso de meios de produção e de força de trabalho, a partir da propriedade dos próprios meios de produção, isto é, do montante do capital imobilizado). Subjacente, portanto, encontra-se o direito capitalista de apropriação.

Ora, constitui uma exigência da própria razão burguesa não aceitar uma contingência histórica apenas pelo seu acontecer, de modo que, em geral, concorda-se que um acontecimento histórico não cria um direito, o qual deve basear-se no princípio da identidade formal entre todos, princípio que decorre necessariamente do caráter mercantil da sociedade burguesa. Isto significa que o direito burguês de propriedade deve basear-se num princípio universal, aceito por todos os membros da sociedade burguesa, e não apenas pelos capitalistas. Daí o direito capitalista de apropriação basear-se num princípio aceito também pelos trabalhadores: o direito de propriedade dos produtos do próprio trabalho. Caso os trabalhadores reconhecessem que os capitalistas desrespeitam este princípio, estaria inaugurada uma contradição entre consciência operária e sua existência empírica, cujo desenlace seria a revolução.19 19 Não se pretende desenvolver aqui qualquer “teoria da revolução”, mas apenas ressaltar que a coesão da sociedade capitalista se mantém pelo respeito ao direito e que, caso os trabalhadores tivessem consciência de que o direito de apropriação capitalista não se justifica, a coesão social somente poderia ser mantida pela força física, cujos limites são relativamente estreitos.

Destarte, uma das dimensões mais relevantes da questão da transformação reside em desvendar como o direito sobre o produto do próprio trabalho se transforma em princípio de apropriação capitalista do lucro. Essa tarefa deve ser efetuada por qualquer teoria que queira explicar os preços de produção, sob pena de se constituir numa teoria incompleta, por pressupor esta transmutação. Em outras palavras, subjacente ao sistema de preços está um princípio jurídico que não pode ser aceito como um dado exógeno, e que se constitui na própria base de existência do mesmo. A construção marxista do sistema de preços a partir do esquema de valores responde também a esse desiderato, pois a lei do valor representa uma teoria que explica as razões de troca entre as mercadorias diretamente com base no direito de propriedade dos produtos do próprio trabalho, direito esse que, embora tenha sido forjado historicamente, é inerente a toda sociedade mercantil, como a capitalista.

CONCLUSÕES

A conclusão que se pode retirar da discussão precedente é que o processo de transformação de valores em preços de produção proposto por Marx é um trânsito necessário para a plena compreensão da realidade efetiva dos preços de produção, inseridos numa dinâmica processual.

O fundamento do erro de Marx consistiu, basicamente, em crer que a mediação quantitativa entre as duas esferas estivesse constituída pela identidade entre a taxa global de lucro do esquema de valores e a taxa média de lucro do sistema de preços. A correção desse erro invalida o “lema de Marx”, segundo o qual a mais-valia total iguala-se ao total dos lucros. Essa identidade somente se realiza em condições extremamente restritivas.

Contudo, através da escolha correta do numeraire, confirma-se a proposição marxista de que a soma dos valores se iguala à soma dos preços. De mais· a mais, a partir do sistema de valores, pela utilização de um operador adequado, determina-se, de forma completa, o sistema de preços, inclusive a taxa média de lucro.

Finalmente, verifica-se que o erro de Marx não invalida sua teoria da exploração, assim como as consequências básicas da sua “lei do valor”.

Conclui-se, pois, que a transformação dos valores em preços de produção contínua, mesmo depois de Sraffa, a representar um elo importante dentro da crítica da realidade efetiva do capitalismo.

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  • ZELENY, J. (1974) La estructura lógica de “El Capital”. Barcelona, Grijalbo.
  • 1
    A distinção entre entendimento e razão dialética crucial para se entender Marx. O entendimento resolve uma contradição através da supressão de um de seus termos, ou de sua modificação por influência do outro: a razão dialética procede determinando os termos médios que compatibilizam os termos contrapostos.
  • 2
    A dialética do método científico encontra-se em: Hegel, 1968HEGEL, G. W. F. (1968) Ciencia de la lógica. Buenos Aires, Solar/Hachette, ; 1974HEGEL, G. W. F (1974) “Filosofia de la lógica”. ln: Filosofia de la lógica y de la natureza. (Enciclopedia de las Ciencias Filosóficas). Buenos Aires, Claridad..
  • 3
    Para um exame da dialética marxista, veja-se: Rosdolsky, 1978ROSDOLSKY, R. (1978) Genesis y estructura de “El capital” de Marx. México, Siglo XXI . , e Zeleny, 1974ZELENY, J. (1974) La estructura lógica de “El Capital”. Barcelona, Grijalbo. .
  • 4
    A dialética consiste num método de exposição dos resultados da pesquisa, portanto, de construção do sistema científico de explicação da realidade.
  • 5
    Veja-se MarxMARX, K. O Capital. Crítica da Economia Política. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira , s.d., 6. v, , vol. I, p. 211.
  • 6
    O conceito de fenômeno abrange mais do que o de aparência, implicando a aparição da essência na esfera da exterioridade (significa a sua forma concreta de existir nessa esfera). Daí não se reduzir à ilusão, como traz implícito o conceito de aparência.
  • 7
    Quem primeiro salientou esse aspecto da questão foi Engels, .no Prefácio do livro III de O Capital, em 1894. Mais tarde, Hilferding retomou essa interpretação na sua crítica e Böhm-Bawerk. Mas coube a Sweezy introduzi-la ao público de língua inglesa, através do seu livro Teoria do Desenvolvimento Capitalista.
  • 8
    Para uma visão moderna do tratamento marxista quantitativo do problema da transformação, sua crítica e solução, veja-se o Apêndice no final deste ensaio. Esse Apêndice foi construído tendo-se como base Pasinetti, 1977PASINETTI, L. L. (1977) “Marx’s problem of the “transformation of values into prices of productions”, In: Lectures on the theory of production. New York, Columbia Univ. Press, p. 122-50. , pp. 122-50.
  • 9
    Para examinar-se, sucintamente, as críticas anteriores a Böhm-Bawerk, e a apreciação de Engels sobre elas, veja-se EngelsENGELS, F. Prefácio. In: MARX, op. cit., livro 3, v: 4. p. 3-24. , s.d., vol. 3, pp. 1-19, e vol. 4, pp. 3-24.
  • 10
    Contudo, segundo Morishima e Catephores (1980MORISHIMA, M.; CATEPHORES, G. (1980) “O problema de transformação: um processo de Markov”. In: Valor, exploração e crescimento. Marx à luz da teoria econômica moderna. Rio de Janeiro, Zahar , p. 163-95. , p. 173), pelo modelo de Seton pode-se obter o “Teorema Marxista Fundamental”, que estabelece que “a condição necessária e suficiente para uma taxa de lucro de equilíbrio positiva é que a taxa de exploração seja positiva”.
  • 11
    Veja-se Monza, 1979MONZA, A. (1979) Sraffa e sus usos. México, UNAM (Mimeografado). , p. 87.
  • 12
    Para um estudo da “mercadoria-padrão” e do “sistema-padrão”, veja-se Pasinetti, 1977PASINETTI, L. L. (1977) “Marx’s problem of the “transformation of values into prices of productions”, In: Lectures on the theory of production. New York, Columbia Univ. Press, p. 122-50. , pp. 95-121, e Monza, 1979MONZA, A. (1979) Sraffa e sus usos. México, UNAM (Mimeografado). , pp. 21-48. Para um exame do caso especial de transformação com base no “sistema-padrão”, veja-se Pasinetti, 1977PASINETTI, L. L. (1977) “Marx’s problem of the “transformation of values into prices of productions”, In: Lectures on the theory of production. New York, Columbia Univ. Press, p. 122-50. , pp. 130-34.
  • 13
    Veja-se o Apêndice APÊNDICE: A MATEMÁTICA DA TRANSFORMAÇÃO Em termos quantitativos, a solução marxista para o problema da transformação é a que se segue (veja-se Pasinetti, 1977, pp. 122-50). Suponha-se uma economia com n setores produtivos onde não há produção conjunta, nem capital fixo, onde o trabalho é homogêneo e prevalecem retornos constantes de escala. Seja A a matriz (nxn) dos coeficientes interindustriais; a o vetor linha (lxn) de coeficientes de trabalho; d o vetor coluna (nxl) que representa a cesta de consumo da classe trabalhadora, onde h elementos são não nulos (h < n); s a taxa de mais-valia; v o vetor-coluna (lxn) dos valores e O o vetor-coluna (nxl) das quantidades produzidas. Tem-se o esquema marxista de valores unitários: v A + v d a + s v d a = v (1) onde vA é a “matriz dos capitais constantes” dos n setores (em termos unitários), vda a “matriz do capital variável” e svda a “matriz da mais valia”. Estas matrizes trariam embutidas as determinações quantitativas essenciais do capitalismo. Por outro lado, o sistema de preços de produção efetivamente observado apresentará o seguinte formato: p = 1 + r p A + w a (2) onde p é o valor-linha (lxn) dos preços de produção, r a taxa média de lucro e w a taxa de salários da economia. Observe-se que a taxa de salários depende da cesta de consumo dos trabalhadores e de sua valorização através dos preços de produção: w = p d (3) O problema da transformação reside em, partindo-se do sistema (1), determinar-se o sistema (2). A este respeito cumpre-se observar que Marx acreditava que no sistema (2) haveriam mais incógnitas que equações, de modo que ele seria indeterminado. Como este último sistema representa o sistema de preços efetivos no capitalismo, Marx cria que seu sistema de valores (identidade 1) seria capaz de levantar esta determinação, através da determinação exógena da taxa lucro r. Com efeito, chamando b à taxa de lucro calculada a partir do sistema de valores, obtém-se: b = s v d a / v A + v d a (4) e supondo-se r = b (5) sistema de preços assumiria então a forma p = 1 + b p A + w a . (6) Na verdade, os exemplos de Marx sugerem outra solução, pois estes foram montados obedecendo-se à equação p = 1 + b v A + v d a (7) Contudo, Marx ressalva o caráter incompleto de seus exemplos, salientando que a fórmula correta deveria obedecer à identidade (6) e não à (7). A partir de sua solução, Marx acreditava que seriam verdadeiras duas equivalências adicionais entre o sistema de valores e o de preços de produção: v Q = p Q (8) s v d a Q = r p A + w a Q (9) Observe-se que as identidades (8) e (9) retratam o “lema de Marx”: (i) a soma dos preços equivale-se à dos valores de (ii) o total da mais-valia ao total dos lucros. O erro fundamental de Marx consiste em aceitar a identidade (5) e, portanto, a (6), como verdadeiras. De fato, substituindo o valor de w (identidade 3) no sistema de equações (2), obtém-se o sistema (2 ‘): p = 1 + r p A = p d a (2’) Dividindo-se as equações do sistema (2’) por pn, onde n é um índice que indica a mercadoria tomada como dinheiro (ou numeraire), tem-se um sistema de n equações e n incógnitas (n - 1) preços e a taxa de lucro r): o sistema, pois, está determinado, sendo (1 + r) a raiz característica da matriz tecnológica “aumentada” A+ = A+ da. Como A+ é uma matriz quadrada não-negativa e não nula, tem apenas um conjunto de soluções que satisfazem às equações (ver Teorema de Perron-Frobenius em Pasinetti, 1977, pp. 267-76). Assim, a determinação da taxa de lucro pelo sistema de valores (4), como queria Marx, e sua substituição no sistema de equações de preços de produção (2 ‘), levaria à sobredeterrninação desse último. Portanto, verifica-se que, em termos gerais: b ≠ r (10) e, ademais, tem-se: v Q ≠ p Q (11) s v d a Q ≠ r p A + p d a Q (12) Uma forma de determinar as mediações quantitativas entre o sistema de valores (identidade 1) e o sistema de preço (identidade 2’) consiste em tomar como numeraire do sistema de preços o produto líquido do sistema por trabalhador, dado pela identidade p d 1 + A = 1 (13) que é simétrica em relação a v d 1 + s = 1 (14) válida para o sistema de valores. Substituindo-se (13) na identidade (2’), vem: p = v I - A I - A 1 - - 1 1 + r 1 + s (15) Ou seja, pela identidade (15) obtém-se um vetor operador (q) que realiza a mediação quantitativa entre o sistema de valores e o de preços de produção: q = I - r A I - A - 1 - 1 1 + r 1 + s (16) Note-se que o operador depende da matriz dos coeficientes técnicos de produção A, da taxa de mais-valia s, determinada pelo sistema de valores, e da taxa de lucro r determinada pela raiz característica da matriz A+. Isso equivale dizer que, em termos de Sraffa, r depende das condições de produção do “sistema básico”. Para se demonstrar que em Marx pode-se deduzir a taxa de lucros do sistema de valores (b) sem recorrer-se a este último sistema (mas usando todos os seus elementos constitutivos), pode-se proceder como segue. Verifica-se que a partir da equação (1) do sistema de valores tem-se: v A + v d a 1 + s = v (17) Tomando-se como numeraire o total do valor novo criado pelo trabalho em dado ano (identidade 14), vem: v = a I - A - 1 (18) Como em Marx a taxa de lucro também pode ser escrita como b = v Q - v A + d a Q v A + d a Q (19) Substituindo (18) em (19) vem: b = a I + A - 1 Q - a I + A - 1 A + d a Q a I + A - 1 A + d a Q (20) Como se verifica pela identidade (20), mesmo em Marx, é possível determinar-se a taxa de lucro sem a mediação do sistema de valores, pois, para se determinar b basta ter os coeficientes técnicos de produção (dados pela matriz A e pelo vetor a), as quantidades produzidas em cada setor (vetor Q) e a cesta de consumo dos trabalhadores (vetor d). , ao final.
  • 14
    Veja-se Garegnani, 1979GAREGNANI et alii. (1979) Debate sobre la teoria marxista del valor. México, PYP , 1979, , pp. 30-64 e 177-90. Uma crítica relevante de Garegnani encontra-se em Oliveira, 1983OLIVEIRA, F. A. (1983) “O valor em Marx e a falácia de Garegnani”. Revista de Economia Política. 3 (3): 55-69. .
  • 15
    Veja-se Napoleoni, 1979NAPOLEONI, C. (El enigma del valor. ln: GAREGNANI, op. cit. p. 15-29. , pp. 15-29. Para uma visualização do problema da transformação segundo Napoleoni, veja-se Napoleoni, 1980NAPOLEONI, C. (1980) “A taxa de lucro e os preços de produção.” In: O valor na teoria econômica. Lisboa, Presença/Martins Fontes, p. 82-100. , pp. 32-100.
  • 16
    Veja-se Steedman, 1977STEEDMAN, I. (1977) Marx after Sraffa. Oxford, NLB. .
  • 17
    Morishima e Catephores, seguindo o algoritmo de Marx, puderam chegar à conclusão satisfatória do processo de transformação. Veja-se Morishima e Catephores, 1980MORISHIMA, M.; CATEPHORES, G. (1980) “O problema de transformação: um processo de Markov”. In: Valor, exploração e crescimento. Marx à luz da teoria econômica moderna. Rio de Janeiro, Zahar , p. 163-95. .
  • 18
    Veja-se a demonstração no Apêndice APÊNDICE: A MATEMÁTICA DA TRANSFORMAÇÃO Em termos quantitativos, a solução marxista para o problema da transformação é a que se segue (veja-se Pasinetti, 1977, pp. 122-50). Suponha-se uma economia com n setores produtivos onde não há produção conjunta, nem capital fixo, onde o trabalho é homogêneo e prevalecem retornos constantes de escala. Seja A a matriz (nxn) dos coeficientes interindustriais; a o vetor linha (lxn) de coeficientes de trabalho; d o vetor coluna (nxl) que representa a cesta de consumo da classe trabalhadora, onde h elementos são não nulos (h < n); s a taxa de mais-valia; v o vetor-coluna (lxn) dos valores e O o vetor-coluna (nxl) das quantidades produzidas. Tem-se o esquema marxista de valores unitários: v A + v d a + s v d a = v (1) onde vA é a “matriz dos capitais constantes” dos n setores (em termos unitários), vda a “matriz do capital variável” e svda a “matriz da mais valia”. Estas matrizes trariam embutidas as determinações quantitativas essenciais do capitalismo. Por outro lado, o sistema de preços de produção efetivamente observado apresentará o seguinte formato: p = 1 + r p A + w a (2) onde p é o valor-linha (lxn) dos preços de produção, r a taxa média de lucro e w a taxa de salários da economia. Observe-se que a taxa de salários depende da cesta de consumo dos trabalhadores e de sua valorização através dos preços de produção: w = p d (3) O problema da transformação reside em, partindo-se do sistema (1), determinar-se o sistema (2). A este respeito cumpre-se observar que Marx acreditava que no sistema (2) haveriam mais incógnitas que equações, de modo que ele seria indeterminado. Como este último sistema representa o sistema de preços efetivos no capitalismo, Marx cria que seu sistema de valores (identidade 1) seria capaz de levantar esta determinação, através da determinação exógena da taxa lucro r. Com efeito, chamando b à taxa de lucro calculada a partir do sistema de valores, obtém-se: b = s v d a / v A + v d a (4) e supondo-se r = b (5) sistema de preços assumiria então a forma p = 1 + b p A + w a . (6) Na verdade, os exemplos de Marx sugerem outra solução, pois estes foram montados obedecendo-se à equação p = 1 + b v A + v d a (7) Contudo, Marx ressalva o caráter incompleto de seus exemplos, salientando que a fórmula correta deveria obedecer à identidade (6) e não à (7). A partir de sua solução, Marx acreditava que seriam verdadeiras duas equivalências adicionais entre o sistema de valores e o de preços de produção: v Q = p Q (8) s v d a Q = r p A + w a Q (9) Observe-se que as identidades (8) e (9) retratam o “lema de Marx”: (i) a soma dos preços equivale-se à dos valores de (ii) o total da mais-valia ao total dos lucros. O erro fundamental de Marx consiste em aceitar a identidade (5) e, portanto, a (6), como verdadeiras. De fato, substituindo o valor de w (identidade 3) no sistema de equações (2), obtém-se o sistema (2 ‘): p = 1 + r p A = p d a (2’) Dividindo-se as equações do sistema (2’) por pn, onde n é um índice que indica a mercadoria tomada como dinheiro (ou numeraire), tem-se um sistema de n equações e n incógnitas (n - 1) preços e a taxa de lucro r): o sistema, pois, está determinado, sendo (1 + r) a raiz característica da matriz tecnológica “aumentada” A+ = A+ da. Como A+ é uma matriz quadrada não-negativa e não nula, tem apenas um conjunto de soluções que satisfazem às equações (ver Teorema de Perron-Frobenius em Pasinetti, 1977, pp. 267-76). Assim, a determinação da taxa de lucro pelo sistema de valores (4), como queria Marx, e sua substituição no sistema de equações de preços de produção (2 ‘), levaria à sobredeterrninação desse último. Portanto, verifica-se que, em termos gerais: b ≠ r (10) e, ademais, tem-se: v Q ≠ p Q (11) s v d a Q ≠ r p A + p d a Q (12) Uma forma de determinar as mediações quantitativas entre o sistema de valores (identidade 1) e o sistema de preço (identidade 2’) consiste em tomar como numeraire do sistema de preços o produto líquido do sistema por trabalhador, dado pela identidade p d 1 + A = 1 (13) que é simétrica em relação a v d 1 + s = 1 (14) válida para o sistema de valores. Substituindo-se (13) na identidade (2’), vem: p = v I - A I - A 1 - - 1 1 + r 1 + s (15) Ou seja, pela identidade (15) obtém-se um vetor operador (q) que realiza a mediação quantitativa entre o sistema de valores e o de preços de produção: q = I - r A I - A - 1 - 1 1 + r 1 + s (16) Note-se que o operador depende da matriz dos coeficientes técnicos de produção A, da taxa de mais-valia s, determinada pelo sistema de valores, e da taxa de lucro r determinada pela raiz característica da matriz A+. Isso equivale dizer que, em termos de Sraffa, r depende das condições de produção do “sistema básico”. Para se demonstrar que em Marx pode-se deduzir a taxa de lucros do sistema de valores (b) sem recorrer-se a este último sistema (mas usando todos os seus elementos constitutivos), pode-se proceder como segue. Verifica-se que a partir da equação (1) do sistema de valores tem-se: v A + v d a 1 + s = v (17) Tomando-se como numeraire o total do valor novo criado pelo trabalho em dado ano (identidade 14), vem: v = a I - A - 1 (18) Como em Marx a taxa de lucro também pode ser escrita como b = v Q - v A + d a Q v A + d a Q (19) Substituindo (18) em (19) vem: b = a I + A - 1 Q - a I + A - 1 A + d a Q a I + A - 1 A + d a Q (20) Como se verifica pela identidade (20), mesmo em Marx, é possível determinar-se a taxa de lucro sem a mediação do sistema de valores, pois, para se determinar b basta ter os coeficientes técnicos de produção (dados pela matriz A e pelo vetor a), as quantidades produzidas em cada setor (vetor Q) e a cesta de consumo dos trabalhadores (vetor d). .
  • 19
    Não se pretende desenvolver aqui qualquer “teoria da revolução”, mas apenas ressaltar que a coesão da sociedade capitalista se mantém pelo respeito ao direito e que, caso os trabalhadores tivessem consciência de que o direito de apropriação capitalista não se justifica, a coesão social somente poderia ser mantida pela força física, cujos limites são relativamente estreitos.
  • *
    Agradeço os comentários de Ednaldo Araquem da Silva.
  • 21
    JEL Classification: D46; B51.

APÊNDICE: A MATEMÁTICA DA TRANSFORMAÇÃO

Em termos quantitativos, a solução marxista para o problema da transformação é a que se segue (veja-se Pasinetti, 1977PASINETTI, L. L. (1977) “Marx’s problem of the “transformation of values into prices of productions”, In: Lectures on the theory of production. New York, Columbia Univ. Press, p. 122-50. , pp. 122-50).

Suponha-se uma economia com n setores produtivos onde não há produção conjunta, nem capital fixo, onde o trabalho é homogêneo e prevalecem retornos constantes de escala. Seja A a matriz (nxn) dos coeficientes interindustriais; a o vetor linha (lxn) de coeficientes de trabalho; d o vetor coluna (nxl) que representa a cesta de consumo da classe trabalhadora, onde h elementos são não nulos (h < n); s a taxa de mais-valia; v o vetor-coluna (lxn) dos valores e O o vetor-coluna (nxl) das quantidades produzidas. Tem-se o esquema marxista de valores unitários:

v A + v d a + s v d a = v (1)

onde vA é a “matriz dos capitais constantes” dos n setores (em termos unitários), vda a “matriz do capital variável” e svda a “matriz da mais valia”. Estas matrizes trariam embutidas as determinações quantitativas essenciais do capitalismo.

Por outro lado, o sistema de preços de produção efetivamente observado apresentará o seguinte formato:

p = 1 + r p A + w a (2)

onde p é o valor-linha (lxn) dos preços de produção, r a taxa média de lucro e w a taxa de salários da economia. Observe-se que a taxa de salários depende da cesta de consumo dos trabalhadores e de sua valorização através dos preços de produção:

w = p d (3)

O problema da transformação reside em, partindo-se do sistema (1), determinar-se o sistema (2). A este respeito cumpre-se observar que Marx acreditava que no sistema (2) haveriam mais incógnitas que equações, de modo que ele seria indeterminado. Como este último sistema representa o sistema de preços efetivos no capitalismo, Marx cria que seu sistema de valores (identidade 1) seria capaz de levantar esta determinação, através da determinação exógena da taxa lucro r. Com efeito, chamando b à taxa de lucro calculada a partir do sistema de valores, obtém-se:

b = s v d a / v A + v d a (4)

e supondo-se

r = b (5)

sistema de preços assumiria então a forma

p = 1 + b p A + w a . (6)

Na verdade, os exemplos de Marx sugerem outra solução, pois estes foram montados obedecendo-se à equação

p = 1 + b v A + v d a (7)

Contudo, Marx ressalva o caráter incompleto de seus exemplos, salientando que a fórmula correta deveria obedecer à identidade (6) e não à (7).

A partir de sua solução, Marx acreditava que seriam verdadeiras duas equivalências adicionais entre o sistema de valores e o de preços de produção:

v Q = p Q (8)

s v d a Q = r p A + w a Q (9)

Observe-se que as identidades (8) e (9) retratam o “lema de Marx”: (i) a soma dos preços equivale-se à dos valores de (ii) o total da mais-valia ao total dos lucros.

O erro fundamental de Marx consiste em aceitar a identidade (5) e, portanto, a (6), como verdadeiras.

De fato, substituindo o valor de w (identidade 3) no sistema de equações (2), obtém-se o sistema (2 ‘):

p = 1 + r p A = p d a (2’)

Dividindo-se as equações do sistema (2’) por pn, onde n é um índice que indica a mercadoria tomada como dinheiro (ou numeraire), tem-se um sistema de n equações e n incógnitas (n - 1) preços e a taxa de lucro r): o sistema, pois, está determinado, sendo (1 + r) a raiz característica da matriz tecnológica “aumentada” A+ = A+ da. Como A+ é uma matriz quadrada não-negativa e não nula, tem apenas um conjunto de soluções que satisfazem às equações (ver Teorema de Perron-Frobenius em Pasinetti, 1977PASINETTI, L. L. (1977) “Marx’s problem of the “transformation of values into prices of productions”, In: Lectures on the theory of production. New York, Columbia Univ. Press, p. 122-50. , pp. 267-76). Assim, a determinação da taxa de lucro pelo sistema de valores (4), como queria Marx, e sua substituição no sistema de equações de preços de produção (2 ‘), levaria à sobredeterrninação desse último. Portanto, verifica-se que, em termos gerais:

b r (10)

e, ademais, tem-se:

v Q p Q (11)

s v d a Q r p A + p d a Q (12)

Uma forma de determinar as mediações quantitativas entre o sistema de valores (identidade 1) e o sistema de preço (identidade 2’) consiste em tomar como numeraire do sistema de preços o produto líquido do sistema por trabalhador, dado pela identidade

p d 1 + A = 1 (13)

que é simétrica em relação a

v d 1 + s = 1 (14)

válida para o sistema de valores.

Substituindo-se (13) na identidade (2’), vem:

p = v I - A I - A 1 - - 1 1 + r 1 + s (15)

Ou seja, pela identidade (15) obtém-se um vetor operador (q) que realiza a mediação quantitativa entre o sistema de valores e o de preços de produção:

q = I - r A I - A - 1 - 1 1 + r 1 + s (16)

Note-se que o operador depende da matriz dos coeficientes técnicos de produção A, da taxa de mais-valia s, determinada pelo sistema de valores, e da taxa de lucro r determinada pela raiz característica da matriz A+. Isso equivale dizer que, em termos de Sraffa, r depende das condições de produção do “sistema básico”.

Para se demonstrar que em Marx pode-se deduzir a taxa de lucros do sistema de valores (b) sem recorrer-se a este último sistema (mas usando todos os seus elementos constitutivos), pode-se proceder como segue.

Verifica-se que a partir da equação (1) do sistema de valores tem-se:

v A + v d a 1 + s = v (17)

Tomando-se como numeraire o total do valor novo criado pelo trabalho em dado ano (identidade 14), vem:

v = a I - A - 1 (18)

Como em Marx a taxa de lucro também pode ser escrita como

b = v Q - v A + d a Q v A + d a Q (19)

Substituindo (18) em (19) vem:

b = a I + A - 1 Q - a I + A - 1 A + d a Q a I + A - 1 A + d a Q (20)

Como se verifica pela identidade (20), mesmo em Marx, é possível determinar-se a taxa de lucro sem a mediação do sistema de valores, pois, para se determinar b basta ter os coeficientes técnicos de produção (dados pela matriz A e pelo vetor a), as quantidades produzidas em cada setor (vetor Q) e a cesta de consumo dos trabalhadores (vetor d).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 1989
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