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Déficit, dívida e ajustamento: uma nota sobre o caso brasileiro

Deficit, debt and adjustment: a note on the Brazilian case

RESUMO

A partir da restrição orçamentária consolidada do governo é possível iluminar uma série de questões relativas à atual situação econômica do Brasil. As principais conclusões que emergem da análise são que o desequilíbrio fiscal exigirá um aumento substancial da dívida do governo em termos reais e que o impacto desse aumento nas taxas de juros pode ter consequências intertemporais explosivas e perversas. Em seguida, discutimos e descartamos a solução do “dinheiro novo (externo)” para o problema, argumentando que o Brasil não enfrenta um problema cambial, mas um problema orçamentário interno. A transferência do serviço da dívida está sendo feita, mas não pelo devedor principal, o governo. O setor privado paga a conta externa do governo e se torna o credor do governo internamente. No longo prazo, para obter equilíbrio externo e interno simultâneo, o Brasil terá de resolver o problema orçamentário interno.

PALAVRAS-CHAVE:
Déficit; dívida pública; ajuste

ABSTRACT

Starting from the consolidated government budget constraint it is possible to illuminate a number of issues concerning Brazil’s current economic situation. The main conclusions that emerge from the analysis are that the fiscal imbalance will require a substantial increase in the government’s debt in real terms and that the impact of this increase on interest rates may have perverse explosive intertemporal consequences. We then discuss and dismiss the “new (external) money” solution for the problem, arguing that Brazil does not face a foreign exchange problem, but a domestic budgetary problem. The debt-service transfer is being made, but not by the principal debtor, the government. The private sector pays the external bill for the government and becomes the government’s creditor domestically. In the long run, to obtain simultaneous external and internal balance Brazil will have to solve the internal budgetary problem.

KEYWORDS:
Deficit; public debt; adjustment

CONCEITUAÇÃO DO DÉFICIT PÚBLICO

O déficit público tornou-se o ponto central da atual discussão econômica. O debate em torno do tema tem sido, entretanto, obscurecido por dois fatores de caráter distinto. Por um lado, a desorganização das finanças públicas dificulta a própria tentativa de avaliar o déficit. Por outro lado, a carga ideológica suscitada, tanto pela questão do papel do setor público no ajustamento macroeconômico à crise atual, como na questão maior da função do Estado na economia, favorece a tomada radical de posições, que se antecipam à avaliação objetiva dos fatos.

O primeiro obstáculo com que se defronta a análise da extensão do desequilíbrio orçamentário do setor público é a proliferação de definições conceituais. São várias as definições de déficit público, na maioria das vezes utilizadas sem o perfeito entendimento de suas bases conceituais e de suas interrelações. No início de 1983 o Fundo Monetário Internacional fez as primeiras estimativas do déficit público consolidado para a economia brasileira. Até então, a estimativa divulgada limitava-se aos números do orçamento do Tesouro, que, por excluir todas as despesas indiretas e outras tantas desordenadamente agrupadas no que se convencionou chamar de Orçamento Monetário, eram desprovidos de significado econômico.

O déficit público, na definição do FMI, procura englobar todas as despesas e receitas, diretas e indiretas, das três esferas de governo, assim como das empresas estatais. Busca-se uma estimativa do déficit consolidado do setor público. A chamada NFSP - Necessidade de Financiamento do Setor Público (Public Sector Borrowing Requirement) é a definição com que trabalha o FMI. O déficit público. consolidado, de acordo com essa definição, foi estimado em aproximadamente 18% do PIB em 1982. Tal definição, estimando as necessidades globais de financiamento do setor público, considera como despesa toda a correção monetária ou cambial que incide sobre o estoque da dívida pública. É evidente que o déficit público assim definido se torna altamente sensível às correções monetária e cambial e, portanto, à vigente taxa de inflação. É trivial observar que, ainda que sejam significativos a redução de despesas e o aumento de receitas do setor público, se por qualquer razão a taxa de inflação se tiver elevado, o aumento do componente de correção monetária sobre o estoque da dívida pública poderá implicar o aumento do déficit medido pelo conceito de NFSP com proporção do PIB. Foi justamente o reconhecimento desse fato, no contexto de aceleração da inflação após a maxidesvalorização do início de 1983, que levou o FMI a incluir uma nova definição de déficit público nas discussões com o governo: o déficit operacional do setor público - DOSP. Este deveria representar o déficit consolidado do setor público estimado pela NFSP, excluindo-se o componente de correção monetária que incide sobre o estoque da dívida pública. O DOSP foi estimado em 8% do PIB para 1982. Sempre de acordo com o acompanhamento do Fundo Monetário Internacional, tal déficit reduziu-se para 3,5% do PIB em 1983 e foi praticamente eliminado em 1984. Após o anúncio das estimativas oficiais para o déficit, no ano de 1985, esse número foi revisto para 2,5% do PIB.

Já em meados do ano passado, levantaram-se suspeitas de que os números divulgados do déficit público não estavam corretos. Omissões graves, como o déficit da Previdência, do Sistema Financeiro da Habitação, dos bancos estaduais, entre outras, aliadas a manipulações estatísticas, encobririam um déficit ainda mais expressivo. A clareza do debate foi outra vez prejudicada pela proliferação de definições e de conceitos nas estimativas.

A tese de que o déficit real é o economicamente relevante continuou sendo motivo de controvérsia, apesar de sua inclusão no acompanhamento do FMI. Este deveria, entretanto, ser ponto pacífico. O déficit público economicamente relevante é dado pelo crescimento real do estoque de dívida global do setor público. Num contexto de 200% ao ano de inflação, o equilíbrio orçamentário, representado pela eliminação das NFSP, exigiria logicamente a redução do estoque da dívida do setor público a um terço do seu valor em termos reais. A viabilidade e a conveniência de tal objetivo no curto espaço de um ano são questionáveis, mas é óbvio que, se concretizado, teríamos presenciado um período de espetacular superávit e não de simples equilíbrio no orçamento do setor público.

A mudança de governo e o adiamento do novo acordo com o FMI deixaram em segundo plano as discussões em torno da veracidade e da relevância dos números para as definições de NFSP e de DOSP; O déficit público manteve-se, contudo, no centro das atenções. Novas estimativas do déficit foram feitas. Inicialmente estimado em Cr$ 53 trilhões e logo revisto para Cr$ 89 trilhões, o significado de tais cifras continua a escapar à absoluta maioria dos interessados. Ao estimar em cruzeiros um fluxo, como o déficit público, torna-se obrigatório explicitar ao menos a taxa de inflação utilizada no cômputo da estimativa. Apesar do inegável esforço de organização na apresentação dos números do déficit público, feito pelo ministro da Fazenda no Congresso, pouco mais é permitido inferir daquele documento, além do fato de que existe um problema nas finanças públicas. Quais as causas desse problema? Como se chegou a esse estado de coisas? Qual o resultado do esforço de ajustamento dos últimos dois anos, sob a tutela do FMI? Como se explica que o DOSP, acompanhado pelo FMI, tenha sido divulgado como tendo-se reduzido de 8% do PIB a praticamente zero nesse período? Sem as respostas a perguntas dessa ordem será impossível traçar a estratégia viável de reequilíbrio do orçamento público.

DÍVIDA PÚBLICA E DÉFICIT: O ORÇAMENTO DO GOVERNO

A complexidade, a falta de acesso e a baixa credibilidade dos dados do setor público brasileiro tornam ociosa a tentativa de chegar a mais uma estimativa do déficit público, a partir dos orçamentos das diversas áreas do setor público. Se o objetivo é compreender as causas e a extensão do desequilíbrio do setor público consolidado, a equação orçamentária macroeconômica do setor público é o ponto de partida adequado.

Considere-se a seguinte equação:

G - T + i * E D - 1 G + i B - 1 P = E D G - D - 1 G + B P - B - 1 P + + M - M - 1 (1)

onde G são todas as despesas diretas e indiretas não-financeiras do setor público consolidado, inclusive as empresas estatais; T são todas as receitas consolidadas; i* é a taxa de juros em dólares incidente sobre a dívida externa; E é a taxa de câmbio Cr$ por US$; DG -1 é o estoque da dívida externa do setor público, no final do ano anterior, expresso em dólares; i é a taxa de juros nominal, que incide sobre a dívida interna do setor público (em poder do público), BP; M é a base monetária.

Do lado esquerdo da equação (1), tem-se, portanto, o déficit não-financeiro do setor público (G - T), ao qual se somam o serviço da dívida externa sob responsabilidade do setor público (i* E DG -1) e o serviço da dívida interna do setor público (i BP -1), obtendo-se assim o déficit nominal do setor público, ou o NFSP, na nomenclatura do FMI. Do lado direito da equação, estão representadas as três formas não mutuamente exclusivas de financiamento do setor público: aumento da dívida externa (E (DG - DG -1)), aumento da dívida interna (BP - BP -1) e emissão monetária através do aumento da base (M - M-1).

Observando-se que i=P^+r1+P^, isto é, que a taxa de juros nominal sobre a dívida interna pode ser expressa em função da taxa de juros real (r) e da correção monetária P^, e fazendo-se algumas manipulações algébricas, obtém-se:1 1 Estamos supondo que a correção monetária é igual à inflação, no período, ignorando, portanto, as peculiaridades da nova fórmula de correção.

G - T + i * E D - 1 G + r 1 + P ^ B - 1 P = E D G - D - 1 G + B P - 1 + P ^ B - 1 P + + M = M - 1 (2)

Supondo-se que a taxa de desvalorização cambial (Ê) seja igual à correção monetária2 2 Caso a desvalorização cambial supere a inflação, surge uma fonte adicional de despesa em cruzeiros para o governo que pressiona, ceteris paribus, a base monetária. P^ e denotando-se pela letra minúscula o valor deflacionado da variável nominal expressa pela maiúscula, tem-se:

g - t + i * d - 1 G + r b - 1 P = d G - d - 1 G + b P - b - 1 P + M ^ m - 1 / 1 + P ^ (3)

Do lado esquerdo da equação (3) tem-se, portanto, o déficit operacional do setor público (pois estão excluídos os componentes de correção monetária e cambial das dívidas interna e externa) expresso em termos reais. Do lado direito da equação (3), têm-se as três fontes de financiamento do déficit operacional real, a saber, aumento real da dívida pública externa (dG - DG -1), aumento real da dívida pública interna (bP - BP -1) e o chamado “imposto inflacionário” M^m-1/1+P^; cuja “alíquota” é função crescente da taxa de crescimento da base monetária M^, decrescente da taxa de inflação P^ e que incide sobre a base monetária real do início do período (m-1).

A partir da equação (3), já é possível obter algumas estimativas do desequilíbrio do setor público. As variáveis da equação (3) foram deflacionadas pelo índice doméstico de preços. Supondo-se que a desvalorização cambial, em relação ao dólar, acompanhe esse índice, pode-se utilizar valores em dólares para tais variáveis. Ganha-se um conteúdo intuitivo ao falar em dólares, em vez de ORTN, por exemplo. A taxa de juros externa i*, que inclui a taxa básica mais spreads e outros encargos, pode ser estimada em 10% a.a. para 1985. O estoque da dívida externa, sob responsabilidade do setor público, inclusive os depósitos em moeda estrangeira no Banco Central, é de aproximadamente US$ 75 bilhões. Tem-se, assim, uma estimativa do pagamento de juros da dívida externa do setor público da ordem de US$ 7,5 bilhões.

A taxa de juros real média sobre a dívida interna (r) pode ser estimada em 12% a.a. Observe-se que o Tesouro paga atualmente taxas reais em torno de 19% a.a. sobre a dívida mobiliária em ORTN, que vende através de suas operações de mercado aberto. A dívida interna do setor público, expressa por b, entretanto, não inclui apenas a dívida mobiliária da União, dos estados e municípios, mas também as dívidas das estatais junto ao setor financeiro doméstico, atrasos de pagamentos devidos etc. Pode-se assumir, conservadoramente, que em média a taxa de juros reais não excede 12% a.a. A estimativa de b não é simples. A dívida mobiliária das três esferas do governo, fora do setor público, isto é, descontando-se títulos em poder do Banco Central e de outras entidades e empresas públicas, era de US$ 16,5 bilhões no final de 1984. Não existe, entretanto, estatística da dívida interna consolidada do setor público. Estimativas conservadoras chegam a US$ 25 bilhões. Utilizemos tal número, na falta de outro. Obtemos assim o valor de US$ 3 bilhões de pagamento de juros reais sobre a dívida pública interna.

Supondo-se que a taxa de crescimento da base monetária ficará em 150% e que a inflação será de 200% este ano, conforme as metas oficiais, e observando-se que a base monetária era de aproximadamente US$ 4 bilhões no início do ano, obtém-se estimativa do financiamento do setor público através de “imposto inflacionário” de ordem de US$ 2 bilhões. Substituindo-se tais estimativas na equação (3), obtém-se:

g - t + U S $ 8 , 5 = d G - d - 1 G + b P - b - 1 P (4)

Devido às duplas contagens e complexos sistemas de classificação, não é possível obter estimativas para as despesas não financeiras consolidadas do setor público. Para as receitas consolidadas, estimativas oficiais chegam a US$ 21 bilhões. Pode-se então examinar algumas hipóteses. Suponha-se que a dívida externa do setor público seja integralmente rolada, mas que não haja possibilidade de aumentá-la. Tal hipótese significa que não há dinheiro novo dos credores externos e que a totalidade dos juros da dívida externa devem ser pagos. Neste caso tem-se (DG - DG -1) = 0. Suponha-se ainda que as receitas do setor público sejam capazes de cobrir as despesas não financeiras, isto é, que (g - t) = 0.

Neste caso ter-se-ia:

B P - B - 1 P = U S $ 8 , 5 bilhões

ou seja, a dívida pública interna deveria crescer US$ 8,5 bilhões este ano. Tal número representa mais de 4% do PIB e implica um crescimento real da dívida da ordem de 35%. Não é preciso ir longe para concluir que nesse ritmo o endividamento interno encontra-se em trajetória explosiva.

Suponha-se alternativamente que se deseje manter estável o atual nível de endividamento interno (hoje, em torno de 150/o do PIB), isto é, que (bP - bP -1) = 0. Neste caso (g - t) = US$ 8,5 bilhões. O superávit não financeiro do setor público deveria atingir mais de 4% do PIB. Via aumento de receita, tal superávit exigiria um aumento de 40% na receita consolidada do setor público. Tais metas são obviamente inatingíveis. Alguma combinação de aumento do endividamento interno, aumento da receita e alguma redução de despesa deverão vigorar este ano. Dada a impossibilidade de aumentar drasticamente a receita e dada a aparente inflexibilidade política das despesas, apesar de toda a retórica de austeridade, tudo indica que apenas o rigor monetário do Banco Central será mantido. O aumento do endividamento interno será, consequentemente, a principal fonte de financiamento público. Para se lograr a colocação· da dívida pública nesta magnitude, será necessário aceitar taxas de juros internos reais extremamente elevadas. É óbvia a conclusão de que isso agrava o desequilíbrio público numa perspectiva intertemporal.

A RESTRIÇÃO EXTERNA

A equação (4) ilumina as componentes do desequilíbrio do orçamento do setor público. Tendo acumulado uma dívida interna e externa da ordem de US$ 100 bilhões, ou seja, de cerca de 50% do PIB, a taxas de juros reais extraordinariamente elevadas, os juros dessa dívida transformaram-se no principal componente do déficit público. Reconhecendo-se realisticamente que, dada a magnitude desses compromissos, não é possível reequilibrar o orçamento público a curto prazo através do aumento de receitas fiscais e de cortes das despesas não-financeiras, impõe-se a necessidade de financiar o déficit público no período de transição através de aumento das dívidas interna e externa. Considerando-se que o aumento requerido do endividamento interno, na hipótese de estabilidade da dívida externa do setor público, tem consequências dramáticas sobre a taxa de juros doméstica, pode-se concluir - apressadamente - que será necessário novo financiamento externo para o setor público. Embora do ponto de vista do balanço de pagamentos, isto é, do fluxo de pagamentos externos, seja provavelmente possível prescindir de novos créditos externos, poder-se-ia argumentar que, do ponto de vista de financiamento interno do setor público, tais créditos são imprescindíveis. Esta vinculação entre a obtenção de novos créditos externos e a solução do financiamento público é, entretanto, precipitada. Para compreender melhor a natureza do problema, cumpre especificar com cuidado o processo de emissão monetária.

Do balanço do Banco Central tem-se:

R + B - B P = M (5)

onde R são as reservas internacionais, B o estoque de dívida pública interna emitida e BP o estoque de dívida pública interna colocada junto ao setor privado. Em termos de acréscimos tem-se:

M - M - 1 = R - R - 1 = B - B - 1 - B P - B - 1 P (6)

Do balanço de pagamentos tem-se que as variações nas reservas internacionais são dadas por:

R - R - 1 = E X - N - i * E D - 1 + E D - D - 1 (7)

onde X são as exportações e N as importações de bens e serviços exclusive juros, e D é a dívida externa total, do setor público e do setor privado, isto é, D = DG + DP.

A restrição orçamentária do governo pode ser reescrita como:

B - B - 1 = G - T + i * E D - 1 G + i B - 1 P - E D G - D - 1 G (8)

Observe-se que, o governo não emite diretamente e deve necessariamente financiar-se via expansão da dívida externa ou da dívida interna. O acréscimo da dívida interna é comprado pelo Banco Central, que decide financiar-se vendendo títulos ao público (BP) ou expandindo a base monetária (M) e monetizando, portanto, o déficit público.

De (6), (7) e (8) obtém-se:

M - M - 1 = G - T + E X - N - i * E D - 1 + E D - D - 1 - - B P - B - 1 P + i * E D - 1 G + i B - 1 P - E D G - D - 1 G (9)

Após observar que i=P^+r1+P^ e supondo-se que E^=P^, obtém-se após manipulações algébricas:

M ^ m - 1 / 1 + P ^ = g - t + x - n + r b - 1 P + i * d - 1 G - d - 1 - - d G - d - 1 G - b P - b - 1 P (10)

Como d = dG + dP, pode-se reescrever (10) como:

M ^ m - 1 / 1 + P ^ + b P - b - 1 P = g - t + x - n + r b - 1 P - i * d - 1 P + + d P - d - 1 P (11)

Observe-se que o aumento do endividamento externo do setor público não aparece na equação (11) e é, portanto, irrelevante do ponto de vista da emissão monetária ou do aumento da dívida pública interna. Tal conclusão contradiz a equação (3), segundo a qual, dado o déficit público, quanto maior for o aumento do endividamento externo do setor público, menor será a necessidade de recurso à emissão e ao aumento do endividamento interno. A contradição decorre do fato de que a equação (3) considera o déficit público não financiado por aumento da dívida pública interna ou externa como a única fonte de emissão monetária. Desconsidera, portanto, a emissão decorrente da compra de divisas estrangeiras pelo Banco Central num regime de conversibilidade obrigatória.

DÍVIDA PÚBLICA E O AJUSTAMENTO MACROECONÔMICO

Desde a crise de 1982 interrompeu-se completamente o fluxo espontâneo de recursos externos para os grandes devedores. O Brasil obteve através de negociações intermediadas pelo FMI com o conjunto de credores a rolagem das amortizações de sua dívida. A concessão de recursos adicionais aos necessários para financiar a rolagem das amortizações tem sido ponto de grande resistência por parte dos credores. Nos últimos dois anos o volume de tais recursos foi calculado como o mínimo absoluto para evitar colocar o país em situação de inadimplência, e condicionado à adoção de rigorosas medidas de ajustamento monitoradas pelo FMI.

O ajustamento externo obtido foi, sem dúvida, superior às expectativas. A inversão da situação do balanço comercial de um déficit crônico para os espetaculares superávits de US$ 6 e 13 bilhões obtidos em 1983 e 1984 não deixa margem a dúvida. Tal sucesso permitiu a recomposição parcial das reservas internacionais do país. Em consequência, os credores externos decidiram, com base em projeções igualmente favoráveis para o balanço comercial de 1985, limitar o financiamento deste ano à rolagem das amortizações. Não haverá, portanto, o que se convencionou chamar de dinheiro novo. Nestas circunstâncias, o pagamento de juros e encargos referentes a uma dívida de US$ 100 bilhões, com base nas excepcionalmente altas taxas atuais, significam transferência anual de recursos para o exterior quase igual a 6% do PIB. Tudo indica que o superávit comercial deste ano deverá aproximar-se do recorde absoluto obtido em 1984. É provável que ainda assim não seja possível eliminar completamente o déficit em conta corrente do balanço de pagamentos. Contudo, aceitando-se alguma perda de reservas deverá ser possível chegar ao final do ano sem necessidade de novos créditos privados. A manutenção desse equilíbrio a médio e longo prazos depende de inúmeros fatores, alguns deles como as taxas de juros internacionais e o dinamismo da economia americana, entre outros, que escapam ao controle do país.

A principal parcela dos recursos a serem transferidos para o exterior a cada ano recai sobre o setor público, visto que 75 por cento da dívida externa são de sua responsabilidade. Para o ano de 1985 tal parcela deverá atingir aproximadamente 4% do PIB. O setor público consolidado não será capaz de gerar superávit orçamentário dessa ordem de grandeza. Como do ponto de vista do fluxo de pagamentos externos tais recursos serão efetivamente transferidos através do superávit do balanço comercial, conclui-se que o setor privado brasileiro estará gerando poupança capaz de cobrir a parcela de juros da dívida externa sob sua responsabilidade e também a parcela dos juros da dívida externa sob responsabilidade do setor público. Consequentemente, o setor público passou a se endividar internamente, trocando assim dívida externa com os bancos internacionais por dívida interna junto ao setor privado nacional.

Mantendo a hipótese de que o setor público obtém equilíbrio orçamentário se forem excluídas suas despesas financeiras, isto é, que (G - T) = 0, tem-se, de acordo com a equação (4), acréscimo da dívida pública interna de aproximadamente US$ 8,5 bilhões para este ano, já descontada a receita do imposto inflacionário.

Conforme observamos, isto significa crescimento real de 35 por cento da dívida interna para com o setor privado. A equação (11) nos diz que mantido o superávit comercial, ou seja, a transferência de recursos para o exterior, tal crescimento do endividamento interno não se reduziria caso o setor público viesse a obter novos créditos externos. A razão é simples: se o superávit orçamentário do setor privado continua inalterado, os novos créditos externos obtidos pelo setor público aumentarão as reservas internacionais do país, obrigando as autoridades monetárias a colocar mais dívida com o público para evitar sua monetização. Novos créditos externos só reduziriam as pressões sobre o mercado monetário interno se fossem acompanhados por redução do superávit comercial, isto é, se as dívidas assim obtidas fossem utilizadas para importar, reduzindo a transferência líquida de recursos para o exterior. Neste caso, os recursos externos obtidos não estariam apenas financiando o orçamento público interno, mas reduzindo a necessidade de transferência para o exterior.

A questão do ajustamento ao endividamento externo deve respeitar duas restrições: primeiro, a restrição de balanço de pagamentos, ou a questão de transferência de recursos para o exterior; segundo, a restrição orçamentária doméstica, ou a questão de como se distribui internamente entre setor público e setor privado a geração de poupança necessária para financiar a transferência para o exterior. A primeira restrição está sendo observada. Existe, entretanto, sério desequilíbrio referente à segunda. O principal devedor externo é o setor público, mas quem tornou-se superavitário foi o setor privado. Este reduziu seus investimentos e redirecionou-se para as exportações, gerando superávit comercial capaz de financiar tanto os juros da sua própria dívida externa quanto os juros da dívida externa do setor público. Dada a magnitude das dívidas públicas externa e interna e as altas taxas de juros pagas, o acúmulo de passivos financeiros do setor público junto ao setor privado cresce em ritmo que é insustentável a longo prazo.

O endividamento crescente do setor público junto ao setor privado gerou situação peculiar. Respeitando a sazonalidade de seus fluxos de caixa, empresas privadas podem se tornar tomadoras líquidas de recursos junto ao sistema financeiro por algum período, mas tornam-se a seguir aplicadoras líquidas em grande volume. Em média ao longo do ano, entretanto, a grande maioria das empresas privadas é hoje aplicadora líquida de recursos financeiros. Com seus investimentos em ativos permanentes drasticamente reduzidos, as empresas financiam o capital de giro com capital próprio e ainda têm recursos disponíveis para se beneficiarem das altas taxas de juros. Nestas circunstâncias explica-se o fenômeno temporário de elevadíssimas taxas de juros reais e recuperação da atividade industrial observado desde o início do ano passado. Como o setor privado é hoje poupador líquido, beneficia-se das altas taxas de juros pagas pelo grande devedor que é hoje o setor público. Sofre apenas o investimento de longo prazo, mas a atividade industrial corrente não é restringida pelas altas taxas de juros. Em contrapartida o crescimento do endividamento público acelera-se com os juros altos.

A conclusão de que os juros podem ser reduzidos através de uma política monetária mais frouxa, para evitar ou postergar a explosão do endividamento público, é discutível. A queda nos juros internos reestimularia o investimento privado, reduzindo a absorção de dívida pública interna. Dado um déficit público constante, o aumento do investimento privado implicaria queda do superávit comercial e o desrespeito à restrição externa. No curto prazo, o equilíbrio contábil se preserva através da perda de reservas. A médio e longo prazos, as restrições externa - de balanço de pagamentos - e interna - de orçamento - só podem ser simultaneamente respeitadas se o setor público for capaz de gerar o superávit interno equivalente à transferência de recursos requerida pelo pagamento de juros da dívida pública externa. A conclusão é, portanto, inequívoca: mantido o nível de transferência de recursos para o exterior exigido pela dívida externa, torna-se imperativo reduzir o déficit público para evitar a alta explosiva dos juros e da dívida interna.

  • 1
    Estamos supondo que a correção monetária é igual à inflação, no período, ignorando, portanto, as peculiaridades da nova fórmula de correção.
  • 2
    Caso a desvalorização cambial supere a inflação, surge uma fonte adicional de despesa em cruzeiros para o governo que pressiona, ceteris paribus, a base monetária.
  • JEL Classification: H62; H63.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 1985
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