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A hiperinflação húngara de 1945-1946

The Hungarian 1945-1946 hyperinflation

RESUMO

Este artigo fornece uma descrição da hiperinflação húngara no período imediatamente após a Segunda Guerra Mundial. Mostra-se que o processo inflacionário começou com a necessidade de financiar os altos custos do esforço de guerra. Após a guerra, a redução da capacidade de produção, os pagamentos de reparações e o grande déficit governamental forneceram os fatores para o rápido crescimento da taxa de inflação. É feita referência ao esforço frustrado de introdução de uma moeda indexada. O processo de estabilização é visto como resultado de um planejamento cuidadoso e de uma redistribuição de renda muito dura entre as diversas classes sociais.

PALAVRAS-CHAVE:
Inflação; hiperinflação húngara; história econômica da Hungria

ABSTRACT

This paper provides a description of the Hungarian hyper-inflation in the period immediately after World War II. It is shown that the inflationary process started with the necessity of financing the high costs of the war effort. After the war, the reduction of production capacity, reparation payments, and the large government deficit provided the factors for the rapid growth of the rate of inflation. Reference is made to the unsuccessful effort to introduce an indexed currency. The stabilization process is seen as a result of careful planning and a very harsh redistribution of income among the various social classes.

KEYWORDS:
Inflation; Hungarian hyperinflation; economic history of Hungary

Costuma-se definir hiperinflação como o processo inflacionário que resulta em aumentos do índice geral de preços em níveis superiores a cinquenta por cento ao mês. A “Nova República” está travando uma dura batalha contra a inflação sem quaisquer indícios de uma possível vitória. Pelo contrário, em setembro de 1985, tudo indica que a curto prazo teremos uma nova aceleração do processo inflacionário no Brasil. Ao mesmo tempo, o processo inflacionário está atingindo níveis muito acima do limiar de hiperinflação na Bolívia, e a Argentina está empenhada numa verdadeira guerra contra uma inflação que ameaçava chegar à hiperinflação a curto prazo. Parece oportuno, neste momento, examinar e evolução e o fim da maior hiperinflação de todos os tempos: a húngara, de 1945-1946.

Desde o início do século foram registrados apenas seis casos de hiperinflação (Tabela 1), sem qualquer sombra de dúvida, o título de campeão pertence à Hungria. Este país passou por um processo de hiperinflação duas vezes num período de apenas um quarto de século.

Tabela 1
Hiperinflações1 1 “Hyperinflation and monetary reform”, Economic and Financial Prospects, Zurique, Swiss Bank Corporation, n. 1/1985, fevereiro-março, p. 5

Enquanto os primeiros três países sofreram um processo de hiperinflação durante a primeira Guerra Mundial e nos anos de pós-guerra, a China passou por uma superinflação durante a Segunda Guerra Mundial e nos anos seguintes. A Hungria foi o único país que passou pelo processo duas vezes. Pela primeira vez, no período de 1914 a 1924, e vinte e um anos mais tarde, no período de 1945 a 1946. Conseguiu, desta forma, a dúbia honra de repetir duas hiperinflações dentro de um período de pouco mais de vinte anos.

Das duas hiperinflações húngaras destaca-se a segunda, por suas características especiais. As principais características que diferenciam a segunda hiperinflação húngara de outras foram as seguintes:

  1. evolução extremamente rápida. Enquanto as outras levaram de oito a doze anos para a sua evolução completa, a segunda hiperinflação húngara começou em 1945, terminando em 31 de julho de 1946;

  2. foi a maior hiperinflação de todos os tempos. A taxa de conversão da nova moeda para a antiga foi de 1: (828x1^27) enquanto na hiperinflação alemã de 1914-1923 a taxa chegou a “apenas” 1 : (1x10^12);

  3. a velocidade-renda da moeda chegou a 310,71x10^9, enquanto a segunda maior velocidade-renda, observada na China, não passou de 347,68;2 2 Idem, p. 5.

  4. a evolução da segunda hiperinflação húngara ocorreu num período de grande conflito político no país. O Partido Comunista da Hungria iniciou sua luta pelo poder logo nos primeiros meses do pós-guerra. Diante das firmes tradições burguesas do país, esta luta alongou-se até 1948. O processo da hiperinflação coloca-se, portanto, no meio desse período de luta e transição política;

  5. sete meses antes da estabilização da moeda, o governo tentou a introdução de uma nova unidade monetária indexada, em função da elevação do custo de vida. Esta nova unidade foi denominada de ado-pengo (Pengo era o nome da moeda comum, e a palavra ado significa tributo, em húngaro);

  6. a estabilização foi conseguida de forma bem diferente dos métodos adotados em outros países.

Somente as suas características excepcionais já justificariam um estudo mais detalhado da hiperinflação húngara. Mas existe um motivo mais imediato. Configura-se neste momento, no Brasil, uma ameaça de aceleração do processo inflacionário. Examinaremos então a hiperinflação húngara com ênfase nos métodos utilizados na estabilização da moeda. Avaliaremos os métodos empregados na estabilização, que pôs fim à hiperinflação, tentando buscar alguma indicação prática para a tomada de medidas que eventualmente poderiam resultar numa desaceleração da inflação brasileira.

Existe pouca documentação disponível a respeito da hiperinflação húngara, fora da Hungria. Para a maioria dos pesquisadores, o desconhecimento da língua húngara forma uma barreira difícil de ser transposta. Este trabalho foi baseado, principalmente, numa tese de doutorado apresentada por Sándor Ausch em 1957, na Universidade de Budapeste.

AS CAUSAS INICIAIS DA HIPERINFLAÇÃO HÚNGARA DE 1945-1946

Para que possamos entender a evolução da hiperinflação húngara, devemos, em primeiro lugar, examinar de forma sumária as suas causas. Ausch define inflação da seguinte maneira:

“Chamamos de inflação o processo de aumento de volume de circulação de papel-moeda desnecessário, que resulta em queda do valor da moeda e numa redistribuição da renda nacional em forma prejudicial para a classe dos trabalhadores”.3 3 Sándor Ausch, “As 1945-1946 évi inflácio és estabilizácio”, Budapeste, Kossuth Konyvkiadó, 1958, p. 14.

As causas iniciais da hiperinflação de 1945-1946 remontam a alguns anos, até 1938, quando se iniciou um processo lento de inflação. O processo inflacionário teve seu início em função das necessidades de financiamento ocasionadas pelo início da Segunda Guerra Mundial. Para financiar seus gastos extraordinários, o governo recorreu à emissão de dinheiro. Com a evolução da guerra, os gastos governamentais aumentavam de tal forma que o volume de meios de pagamento em 1944 era quatorze vezes maior do que em 1939.

Um fator agravante desta situação foi a exigência do governo da Alemanha quanto à contribuição de seus aliados ao esforço de guerra. Assim, mais de 25% dos custos incorridos pela Alemanha foram cobertos por contribuições de países sob o domínio alemão.

Um outro problema grave teve seu início nessa época. Devido a um esforço grande de maximização da fabricação de produtos militares, a reposição do parque industrial começa a ser relegada a um segundo plano. Enquanto a capacidade de produção permanece praticamente constante, a fabricação de produtos para uso da população é fortemente reduzida. Contudo, nessa época, a inflação ainda permanece sob controle. Existem duas razões principais para isto.

Em primeiro lugar, a população ainda deposita confiança na moeda e aumenta seu entesouramento em função das grandes incertezas ocasionadas pela guerra. Em segundo lugar, devido a um sistema rigoroso de racionamento, que se estende a todos os produtos de consumo, a população é obrigada a praticar uma poupança forçada pela falta total de oportunidade de trocar dinheiro por mercadorias.

Todo o dinheiro entesourado durante a guerra chegou ao mercado assim que o racionamento por cupons foi suspenso. Isto ocorreu no momento em que a guerra terminou.

O DESENVOLVIMENTO DA INFLAÇÃO EM 1945

Toda capacidade produtiva do país foi seriamente danificada durante a guerra. O Produto Nacional em 1945 chegava apenas a 45% do Produto Nacional de 1939. A queda da capacidade produtiva foi parcialmente causada pela destruição dos ativos empregados na produção. Uma outra causa da redução da capacidade produtiva foi a falta de mão-de-obra qualificada e de matérias-primas.

Em 1945, as despesas do governo estavam entre quatro e cinco milhões de dólares por mês. Para fazer frente a essas despesas, o governo não podia contar com mais de sete por cento do total, na forma de impostos arrecadados. É importante lembrar que 50% das despesas governamentais destinavam-se a gastos extraordinários, como reparações de guerra, reconstrução das empresas estatais, manutenção do exército soviético e alguns programas subsidiados de ajuda de emergência à população em geral. Para cobrir seu déficit, o governo tinha uma única alternativa: emitir cada vez mais dinheiro.

Até esse momento, podemos dizer que a evolução da inflação húngara não foi muito diferente da evolução de outros processos inflacionários. Uma tentativa, por parte do governo, de introduzir uma nova unidade monetária indexada mudou o curso da inflação a partir de 1º. de janeiro de 1946.

O PENGO INDEXADO

Em fins de 1945, a inflação já estava atingindo níveis insuportáveis. Entretanto, não existiam ainda as condições mínimas necessárias para uma estabilização da moeda. Como solução temporária, introduz-se, em 1º. de janeiro de 1946, o ado-pengo (pengo indexado). O público podia adquirir o ado-pengo contra pagamento em pengo comum, a uma taxa de câmbio calculada diariamente, conforme a elevação do índice do custo de vida. Inicialmente, o ado-pengo serviria apenas para recolhimento de impostos. Esta limitação, no entanto, foi logo abandonada e, depois do lançamento em circulação das notas de ado-pengo, o pengo simples foi rapidamente substituído na maioria dos casos.

Durante os três primeiros meses de 1946, o ado-pengo conseguiu manter um valor relativamente constante em relação ao índice de custo de vida. Como resultado, houve um certo aumento nos depósitos bancários (em ado-pengo), e a nova unidade monetária substituiu parte dos dólares e parte do ouro que serviam para a liquidação de transações comerciais.

Sob o ponto de vista da arrecadação de tributos, a introdução do ado-pengo teve resultados insignificantes. A partir de abril de 1946, quando a valorização da nova moeda começou a distanciar-se desfavoravelmente da elevação do índice de custo de vida, seu valor como meio circulante começou a perder importância.

A partir de março de 1946 o governo passou a arrecadar seus tributos semanalmente. Mesmo assim, decorriam pelo menos dez dias entre a arrecadação e a utilização dos valores arrecadados. Com inflação semanal de 100%, a erosão da receita tributária tornava-se insustentável. A arrecadação tributária no interior do país ficava abaixo dos gastos de manutenção da estrutura necessária para a efetivação da coleta de tributos. A erosão da receita tributária fica evidente na Tabela 2.

Tabela 2
Despesa e receita em 19464 4 Sándor Ausch, op, cit, p. 96. (bilhões de ado-pengo)

Tabela 3
A composição das despesas governamentals5 5 Idem, p. 97.

A introdução de uma moeda indexada num momento em que ainda não havia condições de adequar a receita governamental às despesas, naturalmente estava fadada ao insucesso. Mas as três causa imediatas deste insucesso foram as seguintes:

  1. os índices de custo de vida eram calculados diariamente, mas, devido as limitações técnicas no cálculo, foi inevitável que o poder de compra do ado-pengo diminuísse entre o momento do estabelecimento dos novos índices e sua entrada em vigor;

  2. a partir do mês de abril de 1946, o Ministério da: Fazenda começou a reajustar o valor do ado-pengo abaixo da elevação do índice de custo de vida. Isto porque, enquanto a arrecadação dos tributos teve aumentos insignificantes em função da moeda indexada, as despesas governamentais indexadas tiveram aumento substancial;

  3. a partir de junho de 1946 o ado-pengo, originalmente planejado para o recolhimento de tributos, passou a ter circulação ampla, preenchendo as funções de papel-moeda comum. O governo viu-se obrigado então, a emitir volumes crescentes de ado-pengo para cobrir o seu déficit. A partir de 23 de Junho de 1946, todas as despesas governamentais eram pagas na nova moeda.

A introdução do ado-pengo trazia consigo uma aceleração do processo inflacionário por razões claramente evidenciadas por Bomberger e Makinen.6 6 William A. Bomberger e Gail E. Makinen, “The Hungarian hiperinflation and stabilization of 1945- 1946”, Journal of Polítical Economy, vol. 91, n. 5, 1983, p. 810. De fato, como sabemos, a inflação resulta numa desvalorização das obrigações governamentais representadas pelo papel-moeda em circulação. Esta desvalorização representa, na realidade, uma receita tributária para o governo. A introdução de uma moeda indexada, isto é, protegida contra os efeitos inflacionários, anulou em grande parte a receita governamental decorrente da desvalorização do papel-moeda.

O efeito da introdução de notas de ado-pengo foi o mesmo que seria uma redução da base tributária. Para manter a receita tributária igual ao período anterior à introdução de notas de ado-pengo, teria sido necessário aumentar ainda mais a emissão do pengo comum, agravando o processo inflacionário ainda mais. Assim, a emissão das novas notas contribuiu para a aceleração da inflação através de uma redução da base tributária.

Um efeito adicional, como apontam Bomberger e Makinen, foi o recolhimento de grandes quantidades de pengo comum na forma de depósitos bancários indexados. Estes depósitos naturalmente serviram para aumentar a taxa de criação de depósitos à vista.

O FIM DAS HIPERINFLAÇÕES

Para uma compreensão do fim das hiperinflações devemos lembrar, em primeiro lugar, dos fatores causais que resultam em processos hiperinflacionários. Num modelo econômico bastante simplificado, podemos dizer que o preço da produção é igual a salários mais lucros, e o único custo é o salário sobre o qual se calcula a margem de lucro. Neste caso, a variação de preços ou taxa de inflação, p, dependerá da variação na taxa de salários, w, deduzido o aumento da produtividade, q, e/ou da variação da margem de lucro, m (lucro sobre custo direto)7 7 Luiz Bresser-Pereira e Yoshiaki Nakano, “Fatores aceleradores, mantenedores e sancionadores da inflação”, in Bresser-Pereira e Nakano, Inflação e Recessão, São Paulo, Brasiliense, 1984, p. 59. .

p ˙ = w ˙ - q ˙ + m ˙

Em uma economia moderna, o pressuposto simplificador mais plausível é o de que trabalhadores, capitalistas-empresários e capitalistas-rentistas dispõem de instrumentos para defender e eventualmente aumentar sua participação na renda.8 8 Idem, p. 51.

No modelo simplificado apresentado acima, vemos que a inflação implica sempre um conflito distributivo. O aumento das margens de lucro e/ou dos salários reais acima da produtividade pode ser causado alternativa ou simultaneamente por quatro fatores, como mostram Bresser-Pereira e Nakano:9 9 Idem, p. 60.

  1. excesso generalizado da demanda agregada em relação à oferta, em circunstância de pleno emprego e esgotamento de capacidade ociosa (inflação keynesiana);

  2. estrangulamentos setoriais na oferta (inflação estrutural);

  3. aumentos autônomos de preços ou salários devido ao poder de monopólio das empresas ou dos sindicatos (inflação administrativa);

  4. redução na produtividade do trabalho (inflação de custos).

Os quatro fatores acima mencionados podem ser chamados de fatores aceleradores da inflação. Isto quer dizer que a ocorrência de qualquer um dos fatores, isoladamente ou em conjugação com outro, resulta em aceleração do processo inflacionário.

Para que a inflação se mantenha em determinado nível, é necessário que haja fatores mantenedores e fatores sancionadores do patamar da inflação.

O fator mantenedor mais importante do patamar de inflação é o conflito distributivo, resultante do fato de que os diversos agentes econômicos dispõem de instrumentos econômicos e/ou políticos para manterem sua participação relativa na renda. Denomina-se a inflação resultante do conflito distributivo de inflação autônoma ou inflação inercial.

Segundo Arida,10 10 Pérsio Arida e André Lara Resende, Inertial inflation and monetary reform in Brazil, Rio de Janeiro, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 1985, p. 8. a inflação torna-se inercial quando contratos contêm cláusulas de indexação que restabelecem seus valores reais depois de decorrer de intervalos determinados de tempo. É claro que neste caso a indexação faz com que cada agente econômico automaticamente mantenha sua participação relativa na renda. Quanto maior a taxa corrente de inflação, tanto menores serão os períodos de indexação.

A rigor, segundo Bresser-Pereira e Nakano,11 11 Luiz Bresser-Pereira e Yoshiaki Nakano, op. cit. p. 57. existe apenas um grande fator sancionador da inflação: o aumento da quantidade de moeda.

Arida12 12 Pérsio Arida e André Lara Resende, op. cit, p. 9. mostra que uma condição essencial para anular o processo inercial de inflação é zerar a memória do sistema de correções. De fato, essa condição crucial é satisfeita durante as hiperinflações. Um dos segredos bem guardados das estabilizações de hiperinflações é que, durante o processo hiperinflacionário, a conveniência de longos períodos de indexação é superada pela necessidade de revisão quase contínua dos preços. A inércia da inflação, pela qual eventos que ocorrem seis meses antes determinam as correções presentes, desaparece. Hiperinflações contêm as sementes de sua própria destruição, uma vez que obrigam os agentes a reduzirem cada vez mais os períodos de indexação.

Devemos lembrar que uma reforma monetária eliminará somente o componente inercial da inflação. Se ela tiver outros fatores aceleradores ou mantenedores, além da inércia, uma reforma monetária será completamente inócua.

Ao examinar as origens da hiperinflação húngara, podemos observar que estavam presentes praticamente todas as causas aceleradoras, mantenedoras e sancionadoras examinadas.

De fato, havia um excesso generalizado da demanda agregada em relação à oferta, sem qualquer capacidade ociosa. De um lado, a demanda agregada estava em níveis muito elevados devido não só à necessidade de pagamento de reparações de guerra, mas também devido à presença de um numeroso exército de ocupação, cuja manutenção drenava os recursos do país ocupado. Por outro lado, a oferta agregada estava em níveis muito inferiores aos níveis existentes antes da guerra. Isto, em consequência da destruição de parte do parque industrial e da morte e aprisionamento de grandes contingentes de trabalhadores.

Os estrangulamentos setoriais existiam devido à destruição maior ou menor dos vários setores industriais e agrícolas do país.

Depois da guerra, a Hungria estava vivendo um grande momento de transformação social e luta pelo poder. É evidente que o poder político dos sindicatos dos trabalhadores, dos agricultores e dos industriais estava numa luta permanente para a manutenção da participação na renda.

A inflação de custos estava presente devido a uma grande redução da produtividade do trabalho e ao encarecimento de insumos importados.

Com o crescimento da taxa inflacionária, a indexação da moeda tornou-se inevitável. Os períodos de indexação foram decrescendo, conforme o crescimento das taxas inflacionárias, contribuindo assim com um componente inercial à inflação.

Devido ao próprio fenômeno da inflação, as receitas do governo ficavam cada vez menores em relação às suas despesas. Para fazer frente às suas obrigações, o governo foi obrigado a emitir cada vez mais papel-moeda, contribuindo desta forma com um importante fator sancionador da inflação.

A PREPARAÇÃO DA ESTABILIZAÇÃO DE 1946

Na primavera de 1946, a moeda húngara já tinha perdido todas as suas funções. Estava ficando praticamente impossível garantir as despesas do governo através da emissão de moeda. Ao mesmo tempo, começaram a surgir as condições fundamentais para uma estabilização, antes inviável.

Como resultado das reconstrução rápida do parque industrial na maioria das indústrias, a produção estava aproximando-se de um nível normal. Uma vez que, nos últimos meses da inflação, muitas indústrias preferiam estocar seus produtos em vez de comercializá-los, havia grandes estoques de reserva de produtos industriais. A partir de setembro de 1946 estaria à disposição do governo a nova safra agrícola, substancialmente mais elevada que a anterior. Os meios de transporte estavam operando praticamente em seus níveis de antes da guerra.

Percebendo a gravidade dos problemas econômicos e sociais causados pela inflação galopante, os dirigentes do Partido Comunista da Hungria (PCH) determinaram como meta prioritária a estabilização da moeda. A influência do PCH nos órgãos econômicos do governo nesta época já era predominante. Assim, os planos de estabilização foram elaborados sob a orientação predominante dos planejadores econômicos do PCH.

O caminho da estabilização é relativamente simples, como provam os fins abruptos das hiperinflações da década de 1920. Uma vez equacionada uma garantia para a manutenção de uma taxa cambial fixa, desaparece a necessidade de indexação, e consequentemente fica eliminado o fator inercial da inflação. Efetivada a reforma monetária, o governo recaptura sua base de arrecadação tributária, conseguindo equilibrar suas despesas com suas receitas. Quando necessário, foram ainda realizadas grandes reduções orçamentárias, como no caso da Áustria, onde 85.000 funcionários públicos foram demitidos. Equilibrado o orçamento, desaparece a necessidade de emitir papel-moeda, e assim é eliminado o fator sancionador da inflação.

O equacionamento da oferta agregada com a demanda agregada acontece normalmente sob o efeito das forças de mercado, resultando eventualmente em desajustes setoriais, criando altas taxas de desemprego em alguns setores como também grande número de falências. Surge neste momento uma redistribuição da renda impulsionada pelas forças de mercado.

A ESTABILIZAÇÃO DE 1946

Os planejadores do PCH determinaram um caminho diferente. A preparação da estabilização estender-se-ia a todos os níveis da vida econômica do país. Os níveis de preços e salários seriam estabelecidos independentemente dos valores altamente distorcidos durante a inflação. No estabelecimento de preços e salários seriam levados em conta não apenas as· capacidades produtivas dos vários ramos da indústria, mas também os interesses nacionais de níveis de produção e os níveis de salário socialmente desejáveis. A redistribuição da renda entre as várias classes sociais não seria delegada às forças de mercado. Antes, seria realizada de acordo com as prioridades determinadas pelos planejadores do PCH.

Uma das principais alterações efetuadas para garantir o sucesso da estabilização foi uma reforma tributária. Percebendo a necessidade de garantir a arrecadação de tributos a partir dos primeiros dias da estabilização, a carga tributária foi deslocada dos tributos diretos para os tributos indiretos. Para chegar a esta modificação, foi levado em conta que os impostos baseados em lucros de pessoas jurídicas ou na renda de pessoas físicas exigem um prazo relativamente longo entre a ocorrência do fato gerador e o recolhimento dos tributos.

O resultado da arrecadação de impostos incidentes sobre a circulação de mercadorias, por outro lado, pode ser recolhido aos cofres do governo muito mais rapidamente. Esta modificação do sistema tributário foi um dos fatores mais importantes no sucesso da estabilização.

Em 1946, a Renda Nacional estava quarenta por cento abaixo da Renda Nacional de 1938. Havia grande falta de muitos produtos de consumo, assim como de produtos alimentícios. Uma parte importante da Renda Nacional destinava-se a atender obrigações internacionais inadiáveis. Por estas razões, tornou-se inevitável o estabelecimento criterioso de preços e salários para evitar o surgimento de poder de compra em excesso, que fatalmente levaria a um novo processo inflacionário.

Uma vez que a Renda Nacional em 1946 representava apenas sessenta por cento da Renda Nacional de 1938, foi decidido que os preços e salários seriam fixados de tal forma que o salário real de 1946 representaria cinquenta por cento do salário real de 1938. No estabelecimento dos preços de produtos agrícolas, levou-se em conta que na época era a produção agrícola que mais se aproximava dos níveis de 1938.

A fixação dos preços, em relação aos preços vigentes em 1938, ocorreu sempre levando-se em conta a disponibilidade relativa de cada produto. Tomando-se como base os preços de 1938, foram estabelecidos multiplicadores ponderados para a determinação de preços estabilizados. Alguns dos multiplicadores adotados para produtos agropecuários foram os seguintes:13 13 Sándor Ausch, op. cit. p. 151.

  • Trigo 2,1

  • Produtos de origem vegetal em geral 2,7

  • Produtos de origem animal em geral 4,2

  • Produtos suínos 4,3

  • Produtos bovinos 6.0

Como resultado da fixação de preços de produtos de origem animal bem acima dos outros índices, surgiu um crescimento muito rápido do estoque de animais de todas as espécies.

Os aluguéis residenciais foram fixados num nível que correspondia a 40% dos níveis de aluguéis de 1938. Ao mesmo tempo, a renda proveniente de aluguéis de imóveis foi tributada em 80%.

Uma vez fixados os preços de aproximadamente 80% dos produtos e serviços necessários para a vida, procedeu-se à fixação dos salários. O princípio básico adotado foi que, a nível de produção de 75% da produção de 1938, o salário real seria aproximadamente igual a 50% do salário real de 1938. (Antes da estabilização a produção já estava atingindo o nível de 70% em relação ao ano de 1938.)

Na fixação de salários procurou-se eliminar as grandes diferenças existentes em 1938 entre o salário de um servente e o salário de um operário especializado. Em 1938, a proporção entre estes salários era de um para dez. Em 1938, a proporção entre as categorias extremas de salários foi reduzida de tal forma que o maior salário superava o menor em apenas quatro vezes.

No caso dos funcionários públicos, houve uma redução substancial de salários, ficando estes, em média, equivalentes a 25% dos salários reais de 1938.

Os salários de empregados mais graduados, não abrangidos pelos contratos coletivos de trabalho, foram substancialmente reduzidos através da introdução de um imposto progressivo sobre a renda.

Uma vez estabelecidos, em sua grande maioria, os preços e os salários, foi fixada arbitrariamente uma taxa de câmbio para a nova moeda a ser introduzida. Levou-se em conta nos cálculos o preço do ouro em relação à moeda antiga em 1938. Ficou então estabelecida uma paridade cambial de 11, 74 forints (Ft.) para um dólar.

Restou determinar a quantidade de nova moeda que deveria ser emitida para possibilitar perfeita circulação de mercadorias, sem, contudo, ocasionar um excesso de oferta de moeda. Naquele momento desconhecia-se totalmente qual seria a velocidade-renda da nova moeda. Previa-se uma Renda Nacional de onze bilhões de forints. Tomando como base uma velocidade-renda média entre o ano da estabilização anterior (1924) e a década dos anos trinta, limitou-se a emissão de meios circulantes a um bilhão de forints.

Foi importante, também, que a quantidade de dinheiro colocado em circulação nos primeiros meses depois da estabilização foi ligeiramente inferior à quantidade necessária. Criou-se, desta forma, uma falta de dinheiro, obrigando as pessoas a trocar suas reservas de divisas e ouro por forints, entregando estes valores ao próprio governo. Aumentou-se, assim, substancialmente, o saldo de reservas em ouro e divisas que servia de base para a manutenção do valor constante da nova moeda. Nos primeiros meses foram emitidos apenas 240 milhões de forints.

DINHEIRO E CRÉDITO NA ESTABILIZAÇÃO

No momento da estabilização, teve grande significado o fato de todo o meio circulante denominado em pengo comum ter perdido seu valor totalmente. O total de ado-pengo em circulação representava somente quatorze milhões de forints. O pengo comum já tinha perdido totalmente o seu poder de compra. Nos últimos dias da inflação, não teria sido possível a circulação de mercadorias sem a ajuda de dólares e ouro no valor de aproximadamente 200 milhões de florints. Em consequência da total perda de valor da moeda antiga, a emissão de dinheiro novo representava uma significativa fonte de crédito para o financiamento das despesas do governo.

Foram três os canais utilizados para a emissão do dinheiro novo:

  1. através da compra, pelo governo, dos estoques de ouro e dólares, em poder da população, que eram utilizados no período final da inflação como meio de troca. O governo proibiu, sob a aplicação de graves penas de prisão, a posse de ouro ou dólares;

  2. através da emissão de moeda, utilizada para cobrir o déficit do Tesouro Nacional;

  3. através da concessão de crédito para as empresas particulares.

Dentro de dois meses contados a partir de 1º. de agosto de 1946 (dia D da estabilização), a arrecadação tributária já era suficiente para cobrir todas as despesas do governo. O Banco Central ficou proibido de oferecer quaisquer empréstimos ao Tesouro Nacional.

O programa de estabilização foi realizado com extraordinário sucesso. Isto fica evidente quando lembramos que, no ano orçamentário de 1946-1947, o déficit governamental, comparado com os níveis de 1938, era menor do que em qualquer outro país europeu, com exceção da Dinamarca e da Suécia.

CONCLUSÃO

Quais as lições que poderíamos tirar da bem-sucedida estabilização realizada na Hungria, no final da maior hiperinflação de todos os tempos? Para uma comparação com a atual situação inflacionária no Brasil, devemos examinar as causas da hiperinflação húngara, as condições políticas existentes por ocasião da estabilização, o valor da moeda antiga no fim do processo inflacionário e os fatores causadores da inflação em 1º. de agosto de 1946.

  1. as principais causas da hiperinflação, como vimos, foram originárias de um esforço de guerra muito além da capacidade econômica do país.

  2. no momento da estabilização, existia uma poderosa força política em ascensão (o PCH) que detinha o controle de todos os órgãos de comando na área econômica. Consequentemente, todo o planejamento e execução da estabilização teve andamento tranquilo, sem ter que levar em conta quaisquer opiniões divergentes. Em consequência do grande poder político detido pelo governo, foi possível a eliminação dos fatores aceleradores da inflação, sem atentar para as reclamações de alguns agentes econômicos que foram certamente prejudicados quanto à sua participação na renda. Podemos dizer que o conflito distributivo, que não foi neutralizado pelo próprio processo inflacionário ou pelas medidas corretivas nos preços relativos, foi eliminado por decreto.

  3. o valor da moeda nos últimos dias da hiperinflação era praticamente igual a zero. O próprio ado-pengo tinha seu valor completamente corroído pela inflação. O volume total de ado-pengo em 1º. de agosto de 1946 valia apenas 14 milhões de forints. Em consequência, o período de indexação era medido em dias ou até horas, permitindo uma reforma monetária sem qualquer prejuízo para uma ou outra categoria econômica, resultante da desindexação.

  4. no momento da estabilização, as principais causas da hiperinflação já tinham sido eliminadas. A produção industrial estava aproximando-se dos níveis de 1938. O problema do déficit governamental havia sido equacionado através da redução brutal dos salários dos funcionários públicos, redução dos pagamentos e de reparações de guerra e restabelecimento da cobrança de tributos nos níveis para um orçamento balanceado.

O caso brasileiro é bem diferente. Os fatores aceleradores da inflação brasileira não podem ser eliminados por decreto governamental. O conflito distributivo resultante das grandes desigualdades sociais terá que ser equacionado com um longo e paciente trabalho político-social. A transferência de recursos para o exterior (muito semelhante às reparações de guerra) em função do serviço da dívida externa, representa um problema de difícil solução. É curioso notar que os países vencedores da guerra abriram mão do pagamento de reparações para contribuir para o reerguimento das economias dos países inimigos vencidos. Dificilmente podemos esperar semelhante perdão dos bancos detentores dos títulos da dívida brasileira.

As condições políticas brasileiras são totalmente diferentes das existentes na Hungria em 1946. Estamos caminhando para uma democracia participativa com uma pluralidade de opiniões quanto aos procedimentos a serem adotados com relação à inflação. Não existem condições políticas para uma determinação arbitrariamente planejada da distribuição de renda entre as várias classes sociais. A redução drástica da renda dos funcionários públicos parece totalmente impossível.

O nível da inflação brasileira ainda está em torno de 250% anuais, com reajustes periódicos dos salários de seis em seis meses. Uma vez que os reajustes salariais das várias classes de trabalhadores são concedidos em datas diferentes, a estabilização determinada numa única data resultaria em sérios problemas de redistribuição de renda a favor de algumas classes de trabalhadores, com prejuízo para outras categorias. A mesma distorção ocorreria também no caso dos preços relativos dos produtos. Não existia esse problema na Hungria, onde os preços e salários expressos em pengos nos últimos dias da inflação, careciam de qualquer significado.

Finalmente, devemos lembrar que as principais causas da inflação brasileira continuam presentes. O serviço da dívida externa, bem como a necessidade de recursos para cobrir o déficit governamental, continuam exercendo suas pressões inflacionárias.

Talvez a única e muito importante lição que poderia ser tirada do estudo da hiperinflação húngara é que a introdução de uma moeda indexada (ado-pengo) antes da eliminação dos fatores aceleradores da inflação, serve para exacerbar ainda mais o processo inflacionário. O fracasso do ado-pengo, introduzido seis meses antes de serem estabelecidas as condições fundamentais da estabilização, prova isso.

  • 1
    “Hyperinflation and monetary reform”, Economic and Financial Prospects, Zurique, Swiss Bank Corporation, n. 1/1985, fevereiro-março, p. 5
  • 2
    Idem, p. 5.
  • 3
    Sándor Ausch, “As 1945-1946 évi inflácio és estabilizácio”, Budapeste, Kossuth Konyvkiadó, 1958, p. 14.
  • 4
    Sándor Ausch, op, cit, p. 96.
  • 5
    Idem, p. 97.
  • 6
    William A. Bomberger e Gail E. Makinen, “The Hungarian hiperinflation and stabilization of 1945- 1946”, Journal of Polítical Economy, vol. 91, n. 5, 1983, p. 810.
  • 7
    Luiz Bresser-Pereira e Yoshiaki Nakano, “Fatores aceleradores, mantenedores e sancionadores da inflação”, in Bresser-Pereira e Nakano, Inflação e Recessão, São Paulo, Brasiliense, 1984, p. 59.
  • 8
    Idem, p. 51.
  • 9
    Idem, p. 60.
  • 10
    Pérsio Arida e André Lara Resende, Inertial inflation and monetary reform in Brazil, Rio de Janeiro, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 1985, p. 8.
  • 11
    Luiz Bresser-Pereira e Yoshiaki Nakano, op. cit. p. 57.
  • 12
    Pérsio Arida e André Lara Resende, op. cit, p. 9.
  • 13
    Sándor Ausch, op. cit. p. 151.
  • JEL Classification: E31; N14.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 1986
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