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Reflexões Pós-Cepalinas sobre Inflação e Crise Externa1 1 Texto revisto de apresentação na Sessão Especial Anpec/Cepal sobre Vulnerabilidade Externa da América Latina do XXX Encontro Nacional de Economia da Anpec. Nova Friburgo, 10-13 de dezembro de 2002. Uma versão abreviada, com o título “O fim da trilogia monetária/Em busca de um mercado equilibrado”, foi publicada no Valor/Eu&Fim de Semana, 3(126), 3-5 janeiro 2003. Sem comprometê-los com os resultados, agradeço os comentários de Persio Arida, Ricardo Ffrench-Davis, Daniel Heyman e Marcio Garcia.

Post-Cepaline Reflections on Inflation and External Crisis

RESUMO

O Manifesto da ONU / CEPAL 1949 centrava-se na inflação e no balanço de pagamentos como questões críticas sobre o desenvolvimento da América Latina. Cinquenta anos depois, a América Latina conseguiu conceitualmente e na prática superar a síndrome da inflação alta. Não é assim o estrangulamento externo, que ainda está muito presente na região. Depois de revisar os avanços conceituais recentes no entendimento do problema da “restrição do dólar”, o artigo discute a proposta de Persio Arida para uma moeda flutuante totalmente conversível como meio de construir um mercado financeiro doméstico de longo prazo.

PALAVRAS-CHAVE:
América Latina; balanço de pagamentos; Cepal; dois hiatos; inércia; inflação

ABSTRACT

The UN/ECLA 1949 Manifesto centered on inflation and balance of payments as critical issues on Latin America’s development. Fifty years afterwards, Latin America succeeded both conceptually and in practice to overcome the high inflation syndrome. Not so the external strangulation, which is still very much present in the region. After reviewing recent conceptual advances in understanding the “dollar constraint” problem, the paper discusses Persio Arida’s proposal for a fully convertible floating currency as a means of building a domestic long-term financial market.

KEYWORDS:
Latin America; balance of payments; Cepal, two gaps; inertia; inflation

INTRODUÇÃO

É hoje de domínio público o dito de Mario Henrique Simonsen, segundo o qual “a inflação machuca, mas o balanço de pagamentos mata”. Além da gravidade do mal, talvez o grande mestre também quisesse se referir à dificuldade de tratamento da doença. De fato, apesar do atual soluço inflacionário, feita a transição política mantém-se integral o apoio ao regime monetário de inflation targetting inaugurado há quatro anos com a flutuação cambial. Persistem, entretanto, acesos debates sobre a forma adequada de tratamento da “fragilidade externa”: de um lado, com apelos à abdicação da soberania monetária e a adoção do dólar como moeda; de outro, com propostas de controle cambial e substituição protegida de importações.

Utilizando como ponto de partida o chamado “manifesto latino-americano” da Cepal de 1949, após um breve histórico sobre a questão da inflação propõe-se uma releitura da problemática da crise externa, sugerindo-se caminhos alternativos para sua superação, de forma a completar-se a construção monetária idealizada pelo Plano Real.

SOBRE A INFLAÇÃO

No final dos anos 40, a Cepal de Raul Prebisch apresentou interpretações novas sobre dois graves problemas da economia latino-americana: a inflação e o déficit externo.3 3 Cf. Raul Prebisch, “O desenvolvimento econômico da América Latina e seus principais problemas”, Revista Brasileira de Economia, setembro 1949. Em ambos casos, a crítica cepalina se dirigia à análise tradicional desses fenômenos, como sendo reflexos do excesso de gasto doméstico sobre a renda nacional.

A interpretação cepalina da inflação privilegiava os chamados fatores estruturais - tais como a rigidez da oferta agrícola e a insuficiência da capacidade para importar -, que geravam altas dos preços dos alimentos e produtos importados, à medida que a economia se industrializava. Tais pressões inflacionárias estruturais se generalizavam então pela economia, através dos mecanismos de propagação de preços e salários, em mercados de produtos e mão-de-obra operando em regime de concorrência imperfeita.

Ao longo do tempo, a visão original cepalina ganhou formatação analítica através da teoria inercialista da inflação, segundo a qual os preços se formam pela aplicação de um mark-up sobre os custos primários - câmbio e salários. Estes, por sua vez, reajustam-se em função dos preços passados e de choques de oferta - traduções mais atualizadas dos mecanismos de propagação e das rigidezes estruturais do esquema cepalino original.

Tanto na interpretação cepalina, como na versão inercialista, a oferta de moeda é endógena, mas os mecanismos dessa endogenia pelo menos no Brasil só se tornaram explícitos com a paulatina introdução da moeda indexada, ou seja, dos depósitos à vista remunerados pela inflação, com a base monetária evoluindo de acordo com a demanda através do redesconto automático.

Numa economia onde a inflação é puramente inercial, a chave do sucesso de um programa de estabilização reside em desindexar a economia. O grande obstáculo para isso é a falta de sincronização dos reajustes automáticos pela inflação passada. A hiperinflação produz essa sincronização. A supressão abrupta dos mecanismos de correção monetária através de um congelamento geral de preços e salários requer o elemento surpresa; além disso, entrar num congelamento é fácil, difícil é sair dele. A solução criativa veio através do chamado plano Larida,4 com a instituição de um indexador diário universal - a URV -, servindo inicialmente como unidade de conta, para ser posteriormente transformado no novo meio de troca desindexado do país.

Muitas décadas se passaram desde a formulação da inflação estrutural. Após muitos percalços e transmutações, na forma do Plano Real talvez ela se tenha tornado praticamente irreconhecível, tanto aos olhos de seus formuladores originais, quanto das novas gerações de economistas. Mas o fato é que a especificidade da inflação entre nós não só foi entendida, como resolvida aparenta estar.

SOBRE O ESTRANGULAMENTO EXTERNO

Conclusão similar infelizmente não se aplica ao segundo grande problema identificado em 1949 pela Cepal, o estrangulamento externo. Este continua muito presente entre nós. Na versão cepalina original, elaborada num mundo sem mobilidade de capitais, o estrangulamento externo estava ligado à chamada deterioração secular dos termos de intercâmbio dos produtos primários, aliada às supostas inelasticidades-preço tanto da oferta de produtos exportados como da demanda de produtos importados.

Assim como a inflação estrutural virou a teoria inercialista, o estrangulamento externo se transformou no modelo de dois hiatos. Neste, o investimento e portanto o crescimento podem estar restritos não só por um “hiato” de poupança, mas também por um “hiato” de divisas. Se o modelo de dois hiatos, por um lado, serviu para justificar a substituição de importações, por outro, também privilegiou a promoção de exportações.4 4 Cf. Persio Arida e André Lara Resende, “Inflação inercial e reforma monetária”, em Persio Arida (org.), Inflação Zero. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986.

Na visão tradicional, o déficit externo é mero reflexo de um excesso do investimento sobre a poupança nacional. Neste sentido, há uma relação inversa entre investimento e exportação, que se expressa pelo mecanismo do “crowding out”: quanto mais se investe, menos sobra para exportar. Não é assim no modelo de dois hiatos quando prevalece a restrição externa, pois o investimento está limitado pela disponibilidade de divisas, que é dada pela soma das exportações com a entrada líquida de capitais. A relação entre investimento e exportação é, assim, positiva, até o limite da capacidade de poupar inaproveitada no país.

Dois pontos a notar: em primeiro lugar, trata-se de uma restrição talvez relevante para a exportação de produtos agropecuários, com demanda externa inelástica, mas difícil de aceitar, no médio prazo, para exportações industriais competitivas, as quais em princípio têm mercado externo para expandir, enquanto houver capacidade ociosa interna. Em segundo lugar, trata-se de uma restrição “física” ao investimento, que se inviabiliza pela falta de bens de capital ou intermediários importados, sem substitutos na produção doméstica.

Embora plausíveis nas etapas iniciais do processo de substituição de importações, os supostos do modelo dois hiatos tradicional são inadequados à situação atual.5 5 Cf. Edmar Bacha, “Crescimento com oferta limitada de divisas: uma reavaliação do modelo de dois hiatos”, Pesquisa e Planejamento Econômico, 12(2), agosto 1982: 285-310. Em primeiro lugar, porque as exportações são razoavelmente diversificadas, tanto em termos de produtos quanto de mercados. Ademais, a idéia de uma restrição “física” ao investimento parece pouco aplicável a economias mais complexas e com recurso a financiamento externo. O problema do estrangulamento externo, hoje, não é de natureza física, mas sim financeira. Não se trata de uma restrição à capacidade para importar bens de capital, mas sim à capacidade de financiar o investimento.

Assim como os inercialistas não dispuseram por um bom tempo de um mecanismo monetário crível, os doishiatistas (com o perdão da palavra) até recentemente não dispunham de um mecanismo creditício para dar contemporaneidade a seus modelos. Entretanto, após as inúmeras crises recentes da dívida externa nos países emergentes, o que hoje não faltam na literatura são mecanismos de restrição creditícia, como indutores de tais crises. Tais mecanismos se fundamentam nos avanços da economia da informação assimétrica e imperfeita, e de sua adoção no campo das finanças corporativas, que tornaram possível uma análise teórica mais formal das imperfeições nos mercados de crédito.

Em contraponto à teoria neoclássica do investimento, em que este procede até que se iguale a produtividade marginal do capital à taxa real de juros, num mundo com restrições creditícias o investimento está limitado pela capacidade dos investidores de dispor de colaterais capazes de alavancar os financiamentos - de forma que, mesmo em equilíbrio, subsiste um prêmio positivo na forma de uma taxa de retorno do capital maior do que a taxa de juros dos empréstimos.6 6 Cf. B. Bernanke, M. Gertler, S. Gilchrist, “The financial accelerator in a quantitative business cycle framework”, em J. Taylor e M. Woodford (orgs.), Handbook of Macroeconomics, vol. 1C. North-Holand, 1999.

A essa idéia de restrições creditícias no nível da empresa, a nova literatura sobre crises financeiras em países emergentes agrega o conceito de restrições creditícias no nível do país.7 7 A literatura sobre crises financeiras internacionais tem sido convencionalmente dividida em três “gerações” (até agora). A primeira foi inaugurada pelo clássico texto de 1979 de Paul Krugman, enfatizando a incompatibilidade de déficits orçamentários com uma taxa de câmbio fixa, num contexto de especulação com expectativas racionais (Cf. Paul Krugman, “A model of balance of payments crises”, Journal of Money, Credit and Banking (11), 1979: 311-25). A segunda geração, iniciada por Maurice Obstfeld em 1984, após a desvalorização da libra esterlina em 1982, focava um modelo de equilíbrios múltiplos no qual especuladores racionais exploram o “trade off” do governo entre inflação e desemprego para provocar um abandono da taxa fixa de câmbio (Cf. Maurice Obstfeld, “Balance of payments crises and devaluation”, Journal of Money, Credit and Banking, May 1984). A terceira geração explodiu depois da queda da Ásia em 1997, enfocando crises provocadas pela dolarização dos passivos do setor privado, especialmente bancos. Numa formatação que se popularizou com a crise asiática, tratase de uma versão do clássico problema da transferência.8 8 Cf., por ex., Paul Krugman, “Balance sheets, the transfer problem, and financial crises”, em P. Isard, A. Razin e A. Rose (orgs.), International Finance and Financial Crises: Essays in Honor of Robert P. Flood Jr. Washington, DC: FMI, 1999. Ele se origina do fato de que a “moeda” em que a firma local toma o empréstimo (dólares ou bens comerciáveis) é distinta da “moeda” que ela gera em pagamento (pesos ou bens nãocomerciáveis). Em condições de uma “parada súbita” do crédito externo, impõe-se uma desvalorização real para que a transferência se efetue, a qual, dada a dolarização dos passivos, tende a agravar a crise financeira inicial.

SOBRE A ESPECIFICIDADE BRASILEIRA

Os modelos evocados pelas crises financeiras asiáticas aplicam-se a países com importante dolarização de passivos de empresas e bancos, como a Argentina ou o Uruguai. São, entretanto, menos relevantes para o Brasil, onde o governo desenvolveu amplos mecanismos de proteção cambial para os passivos dolarizados do setor privado.

Uma analogia com a problemática da inflação é pertinente. Na Argentina, onde os ativos financeiros do setor privado eram amplamente dolarizados, o fim da inflação passou pela criação de um currency board. No Brasil, onde o instituto da correção monetária permitiu que os ativos financeiros se mantivessem predominantemente denominados em moeda local, a saída da inflação passou por uma reforma monetária onde o dólar foi (ou deveria ter sido) uma referência apenas transitória.

No contexto da crise externa, os passivos financeiros do setor privado também são dolarizados na Argentina - por isso persiste nesse país tão forte a idéia de uma solução da crise financeira através de uma dolarização integral da economia, como ocorreu no Equador. No Brasil, os passivos externos do setor privado estão grosso modo protegidos da desvalorização cambial por instrumentos de dívida indexados ao dólar emitidos pelo governo brasileiro. Isto sugere a possibilidade de uma solução da crise externa que envolva um aprofundamento do instrumento monetário interno, dando-lhe a condição de uma legítima reserva de valor, como discutiremos nas conclusões.

O foco da discussão sobre a crise externa brasileira não passa, pois, pela questão dos passivos dolarizados do setor privado. Quando muito, passaria pela questão da dívida pública dolarizada. No longo prazo, entretanto, o valor total da dívida pública importa mais do que sua estrutura.

Neste contexto, uma característica recorrente dos modelos recentes de crises cambiais - a qual nos interessa registrar para a discussão a seguir - é a de gerarem equilíbrios múltiplos, dependendo do estado das expectativas.

Por exemplo, num trabalho recente intitulado “Uma Crise de Dívida Brasileira”, Assaf Razin e Efraim Sadka9 9 Assaf Razin e Efraim Sadka, “A Brazilian Debt-Crisis”. Cambridge, MA: NBER Working Paper 9160, Setembro 2002. modelam o suposto caso brasileiro da seguinte forma. De um lado tem-se que o crescimento do PIB depende das decisões de investimento de firmas privadas que tomam emprestado no exterior, pagando taxas de juros que estão sujeitas a um prêmio de risco país. Quanto maior o prêmio de risco, menor o investimento e, portanto, menor o crescimento do PIB. O prêmio de risco, por sua vez, depende negativamente da taxa de crescimento do PIB e positivamente do déficit público total. No equilíbrio “bom”, o prêmio de risco é baixo, o investimento é alto e o déficit público é em conseqüência pequeno. Como o déficit é pequeno e o investimento é elevado, o baixo prêmio de risco é validado. No equilíbrio “ruim”, o prêmio de risco é alto, o investimento portanto é baixo e o déficit público é alto. Esses dois últimos fatores validam, em conseqüência, o risco elevado.

Sugerem então os autores que tal país pode mudar abruptamente de um equilíbrio “bom” para um “ruim” se fatores políticos - como a expectativa da eleição de um governo de esquerda que iria repudiar a dívida - servirem para coordenar e redirecionar as expectativas. Essa nova crença de que o país é de alto risco é portanto autojustificada, pois em função dela o financiamento externo desaparece e o investimento se reduz, aumentando o déficit público e portanto validando o maior risco.

Um outro modelo, com tonalidades brasileiras, foi apresentado ainda mais recentemente por Guillermo Calvo.10 10 Guillermo Calvo, “Explaining sudden stop, growth collapse and bop crisis: the case of distortionary output taxes”. Washington, DC: IMF Third Annual Research Conference, 7 novembro 2002. Neste, a taxa de investimento privado depende da rentabilidade do capital líquida dos impostos à produção. A alíquota de tais impostos varia positivamente com o serviço da dívida do governo e negativamente com a taxa de crescimento do PIB, que é função do investimento privado. Um aumento do prêmio de risco onera as contas do governo, gerando a necessidade de uma alíquota de impostos mais alta, o que pode causar um colapso do investimento, produzindo um equilíbrio de baixo crescimento. A melhoria das instituições fiscais seria importante para assegurar um equilíbrio de alto crescimento nesse modelo.

À GUISA DE CONCLUSÃO

Vamos, então, tratar de recolher as peças, caminhando para uma conclusão. Partimos do modelo cepalino, em que o estrangulamento externo está expresso por uma limitada capacidade para importar. Passamos por uma versão atualizada do modelo de dois hiatos, onde o acesso ao financiamento externo, que condiciona o investimento, está restrito pela capacidade de exportar - na medida em que a exportação expressaria a disponibilidade de colaterais aceitáveis por parte dos financiadores externos. Daí a ênfase no conceito de “exportabilidade” como uma saída para a crise externa, em meu recente texto sobre o dissenso de Cambridge.11 11 Edmar Bacha, “Do Consenso de Washington ao Dissenso de Cambridge”. Rio de Janeiro: Seminário do BNDES sobre Novos Rumos do Desenvolvimento, 13 setembro 2002. Revista de Economia Política, 22 (2) abril 2003.

Mas, assim como na história da inflação inercial, antes do capítulo final aparece a questão fiscal. No caso da inflação, a questão fiscal emergiu a partir da percepção de que, embora o governo pouco arrecadasse com o imposto inflacionário (devido à preponderância da moeda remunerada), a inflação era importante para eliminar ex-post (por via da erosão inflacionária das despesas) o déficit público inscrito no orçamento.12 12 Edmar Bacha, “O fisco e a inflação: uma interpretação do caso brasileiro”, Revista de Economia Política, nº 53 (1), janeiro 1994: 5-17. Uma parada crível da inflação, pois, demandava a eliminação do déficit orçamentário ex ante, o que se conseguiu com a aprovação da emenda constitucional que criou o Fundo Social de Emergência e a subseqüente votação de um orçamento (quase) equilibrado para 1994.

Na crise externa brasileira, além da “exportabilidade” está em causa a solvência do setor público, pois os altos prêmios de risco pagos pelo governo restringem o acesso do setor privado ao crédito externo. Esse contingenciamento reduz a taxa de investimento e o crescimento do PIB, exigindo a introdução de impostos distorcedores da produção para continuar a honrar a dívida, o que confirma o colapso no crescimento.

Caso de fato prevaleça uma situação de equilíbrios múltiplos, uma saída possível para a atual situação de alto risco-país seria através de algum mecanismo de coordenação de decisões. Mas qual seria a URV que conseguiria fazer esse serviço?

Cabe lembrar que, antes da URV, os mecanismos de coordenação em planos anteriores de estabilização incluíram o congelamento de preços e salários (Cruzado, Bresser e Verão) ou de ativos financeiros (Collor). No nível externo, tais processos tiveram sua contrapartida na interrupção dos pagamentos da dívida externa em 1982 e na centralização cambial e moratória externa em 1987. Os altos custos que o país ainda paga por essas experiências reduzem seu atrativo nas circunstâncias atuais. Conforme a exitosa experiência do Plano Real, um mecanismo adequado de coordenação deveria emular as tendências do mercado - como fez a URV - e não suprimir tais tendências - como faria o controle de capitais.

Persio Arida13 13 Cf. Persio Arida, “Por uma moeda plenamente conversível”, Valor, 12 de novembro 2002. sugeriu recentemente que um programa de conversibilidade integral da moeda - mantida a flutuação cambial e a proibição do uso do dólar nas transações internas - serviria a tal propósito, pois sinalizaria com firmeza o desiderato da sociedade brasileira de incorporar-se à globalização. Por conversibilidade entende-se a liberdade de trocar reais por dólares, e vice-versa, à taxa de câmbio do dia, sem restrições governamentais (na forma em que hoje são conversíveis no dólar americano o peso mexicano ou o dólar canadense, por exemplo). Mais concretamente, junto com a flutuação, a conversibilidade seria uma forma de dar “exportabilidade” ao PIB como um todo, pois tornaria o dólar acessível mesmo às firmas voltadas para o mercado doméstico - e, nesse sentido, deveria aumentar o acesso do país ao financiamento internacional.

Como ressalta Persio Arida, a conversibilidade seria um programa preanunciado, a ser implantado em etapas, ao longo do tempo, como o foi o Plano Real.

Não seria uma medida abrupta, adotada sem precondições adequadas. Nesse sentido, a proposta não padeceria das deficiências de liberalizações prematuras da conta capital (freqüentemente executadas em condições de câmbio fixo ou administrado, e não de câmbio flutuante como no caso em tela) criticadas em clássico texto de Carlos F. Díaz-Alejandro.14 14 Cf. Carlos F. Díaz-Alejandro, “Good-bye financial repression, hello financial crash”, Journal of Development Economics, 19(1/2), 1985. Para uma discussão contemporânea, veja-se Sebastian Edwards, “Economic growth in Latin America: challenges for a new era”, apresentado no seminário do BNDES sobre Novos Rumos do Desenvolvimento, Rio de Janeiro, 13 de setembro de 2002. Entre as precondições a serem atendidas, deveria estar a percepção sobre a solvência do setor público, já que a conversibilidade por si só poderia agravar esse problema, na medida em que o governo visse reduzido o acesso privilegiado que hoje tem um mercado interno semicativo para rolar sua dívida.

Ao final desse percurso por vezes heterodoxo, a conclusão tem um sabor ortodoxo. Para coordenar as decisões de mercado na direção do bom equilíbrio, parece ser essencial atacar de frente as reformas fiscal, previdenciária e trabalhista - para dar solvência às contas públicas no longo prazo de uma forma consistente com a retomada do investimento privado. Por isso mesmo, no curto prazo, tais reformas serviriam para melhorar o humor dos investidores, criando, assim, um ambiente propício para a introdução do programa de conversibilidade plena proposto por Persio Arida.

Com a conversibilidade, completar-se-ia a trilogia monetária buscada pelo Plano Real. Além de unidade de conta e de meio de troca, a moeda própria do país, flutuante em relação ao dólar, passaria a ser uma legítima reserva de valor. Com base nela, poder-se-ia então construir um sistema financeiro interno com contratos de longo prazo, superando-se, assim, a condição de vulnerabilidade externa que persegue o país desde os primórdios da industrialização.

  • 1
    Texto revisto de apresentação na Sessão Especial Anpec/Cepal sobre Vulnerabilidade Externa da América Latina do XXX Encontro Nacional de Economia da Anpec. Nova Friburgo, 10-13 de dezembro de 2002. Uma versão abreviada, com o título “O fim da trilogia monetária/Em busca de um mercado equilibrado”, foi publicada no Valor/Eu&Fim de Semana, 3(126), 3-5 janeiro 2003. Sem comprometê-los com os resultados, agradeço os comentários de Persio Arida, Ricardo Ffrench-Davis, Daniel Heyman e Marcio Garcia.
  • 3
    Cf. Raul Prebisch, “O desenvolvimento econômico da América Latina e seus principais problemas”, Revista Brasileira de Economia, setembro 1949.
  • 4
    Cf. Persio Arida e André Lara Resende, “Inflação inercial e reforma monetária”, em Persio Arida (org.), Inflação Zero. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986.
  • 5
    Cf. Edmar Bacha, “Crescimento com oferta limitada de divisas: uma reavaliação do modelo de dois hiatos”, Pesquisa e Planejamento Econômico, 12(2), agosto 1982: 285-310.
  • 6
    Cf. B. Bernanke, M. Gertler, S. Gilchrist, “The financial accelerator in a quantitative business cycle framework”, em J. Taylor e M. Woodford (orgs.), Handbook of Macroeconomics, vol. 1C. North-Holand, 1999.
  • 7
    A literatura sobre crises financeiras internacionais tem sido convencionalmente dividida em três “gerações” (até agora). A primeira foi inaugurada pelo clássico texto de 1979 de Paul Krugman, enfatizando a incompatibilidade de déficits orçamentários com uma taxa de câmbio fixa, num contexto de especulação com expectativas racionais (Cf. Paul Krugman, “A model of balance of payments crises”, Journal of Money, Credit and Banking (11), 1979: 311-25). A segunda geração, iniciada por Maurice Obstfeld em 1984, após a desvalorização da libra esterlina em 1982, focava um modelo de equilíbrios múltiplos no qual especuladores racionais exploram o “trade off” do governo entre inflação e desemprego para provocar um abandono da taxa fixa de câmbio (Cf. Maurice Obstfeld, “Balance of payments crises and devaluation”, Journal of Money, Credit and Banking, May 1984). A terceira geração explodiu depois da queda da Ásia em 1997, enfocando crises provocadas pela dolarização dos passivos do setor privado, especialmente bancos.
  • 8
    Cf., por ex., Paul Krugman, “Balance sheets, the transfer problem, and financial crises”, em P. Isard, A. Razin e A. Rose (orgs.), International Finance and Financial Crises: Essays in Honor of Robert P. Flood Jr. Washington, DC: FMI, 1999.
  • 9
    Assaf Razin e Efraim Sadka, “A Brazilian Debt-Crisis”. Cambridge, MA: NBER Working Paper 9160, Setembro 2002.
  • 10
    Guillermo Calvo, “Explaining sudden stop, growth collapse and bop crisis: the case of distortionary output taxes”. Washington, DC: IMF Third Annual Research Conference, 7 novembro 2002.
  • 11
    Edmar Bacha, “Do Consenso de Washington ao Dissenso de Cambridge”. Rio de Janeiro: Seminário do BNDES sobre Novos Rumos do Desenvolvimento, 13 setembro 2002. Revista de Economia Política, 22 (2) abril 2003.
  • 12
    Edmar Bacha, “O fisco e a inflação: uma interpretação do caso brasileiro”, Revista de Economia Política, nº 53 (1), janeiro 1994: 5-17.
  • 13
    Cf. Persio Arida, “Por uma moeda plenamente conversível”, Valor, 12 de novembro 2002.
  • 14
    Cf. Carlos F. Díaz-Alejandro, “Good-bye financial repression, hello financial crash”, Journal of Development Economics, 19(1/2), 1985. Para uma discussão contemporânea, veja-se Sebastian Edwards, “Economic growth in Latin America: challenges for a new era”, apresentado no seminário do BNDES sobre Novos Rumos do Desenvolvimento, Rio de Janeiro, 13 de setembro de 2002.
  • 14
    JEL Classification: F32; F41; F43; O11; O54.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2003
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