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Microeletrônica e automação: a nova fase da indústria automobilística brasileira

Microelectronic and automation: the new phase of the Brazilian automotive industry

RESUMO

Este artigo trata das implicações socioeconômicas da base técnica na indústria automobilística brasileira, decorrente da difusão de equipamentos automatizados microeletrônicos. Mostra-se que esta indústria entrou em uma nova fase de maior integração com a indústria em nível mundial, tanto em termos técnicos quanto econômicos. A automação baseada em microeletrônica está sendo usada para suportar padrões de produção de maior eficiência. As ultrapassadas relações capital-trabalho na indústria podem começar a evoluir de acordo com o novo desenvolvimento político em direção à democratização do país.

PALAVRAS-CHAVE:
Indústria automobilística; auto; automação; microeletrônica

ABSTRACT

This paper deals with the socio-economic implications of the technical basis in the Brazilian automobile industry, due to the diffusion of microelectronics automated equipment. It is shown that this industry has entered a new phase of greater integration with the industry at the world level, both in technical and economic terms. Automation based on microelectronics is being used to support patterns of production of increased efficiency. Outdated capital-labour relations in the industry may begin to evolve accordingly with the new political development toward democratization of the country.

KEYWORDS:
Brazil; automobile industry; auto; automation; microelectronics

A introdução recente de alguns robôs, praticamente os primeiros, na produção industrial brasileira despertou, talvez por seu charme, grande interesse sobre os rumos e as consequências de uma nova onda de automação da produção material. Os robôs, todavia, devem ser vistos apenas como a ponta de um iceberg formado pelo conjunto de transformações que a base técnica da produção contemporânea - e particularmente interessa-nos a maquinofatureira - sofre a partir da absorção e difusão de princípios e mecanismos microeletrônicos. Compõem também a nova base técnica as máquinas-ferramentas com controle numérico (MFCN), os controladores programáveis (PC), os equipamentos de CAD/CAM - projeto e manufatura auxiliados por computador -, e demais sistemas flexíveis de manufatura com base na microeletrônica (ME).

No Brasil, a instalação dos primeiros robôs em algum - mas ainda pequeno - nível de significação deu-se na indústria automobilística, justamente aquela que liderou o processo de industrialização intensificada ao longo dos últimos trinta anos no país. Este fato não é trivial, no mínimo indica (ou sinaliza) importantes transformações no contexto socioeconômico do país, cuja dinâmica deve ser analisada e compreendida. Neste trabalho, procuraremos caracterizar o estágio atual de transformação da base técnica dessa indústria, argumentando que ela parece estar entrando numa terceira fase de seu desenvolvimento, de maior integração com a indústria automobilística internacional, tanto em termos de mercado (caracterizado pelo lançamento no Brasil dos carros mundiais) como em termos do processo de produção (o mesmo modelo no mercado internacional pressupõe cada vez mais semelhança das tecnologias com que são produzidas suas partes em países diferentes).

Trataremos tanto do setor terminal montador de automóveis (e utilitários) e caminhões (e ônibus) quanto do setor produtor de autopeças, que, por definição, devem funcionar integrados, mas cujos interesses e motivações quanto à utilização de equipamentos específicos de automação com base na ME nem sempre são coincidentes.

Procuraremos ainda avaliar algumas das principais implicações que decorrem da nova onda de automatização para o trabalho industrial no Brasil, bem como para o restante da economia e da sociedade como um todo.

AUTOMAÇÃO NAS MONTADORAS

Após mais de duas décadas de intensificação (e por vezes descrito como selvagem) do processo de industrialização, liderado pela indústria automobilística, a economia brasileira viu-se, a partir de 1980, pela primeira vez, diante de altas taxas de desemprego industrial. A grave crise que a acometeu não deixou de afetar, naturalmente, a indústria automobilística. De 1980 para 1981, a produção local de veículos caiu de 1.165.000 unidades para 781.000 (isto é, reduziu-se 33%). Em 1981, a indústria desempregou 110.000 trabalhadores (81.000 no setor de autopeças e 29.000 nas montadoras), chegando ao final do ano com um total de 302.000 empregados (contra 412.000 ao final de 1980).1 1 Dados anuais da ANFAVEA e do SINDIPEÇAS.

O repentino e significativo aumento da capacidade ociosa da indústria automobilística e o consequente acirramento da concorrência no enfraquecido mercado interno forçou as empresas montadoras a adotarem novas estratégias que indicam estar esta indústria entrando numa terceira fase de seu desenvolvimento,2 2 As duas primeiras fases, segundo E. A. Guimarães, teriam sido a da implantação da indústria, que teria ido até 1966-1967 quando a Ford e a GM passaram a produzir automóveis, e quando as principais montadoras de capital nacional foram absorvidas por concorrentes internacionais; e a segunda fase a partir de então. Ver Acumulação e Crescimento da Firma, Rio de Janeiro, Zahar, 1981. de integração mais estreita com a indústria automobilística que opera em nível internacional. Esta integração dá-se não somente em termos de lançamento de modelos similares para atingir os mesmos mercados, como também pela adoção de técnicas e organizações da produção semelhantes, na medida do possível e do viável economicamente.

Assim, nos últimos três anos as quatro grandes montadoras de automóveis instaladas no país lançaram seus “carros mundiais” (conceito que uma das montadoras alega não ser preciso nem tão novo assim). Além do mais, duas das três montadoras que fabricam exclusivamente caminhões (e ônibus) também utilizam o conceito de veículo mundial.

No que concerne ao processo de produção em si e à sua organização, as empresas montadoras partiram decididamente em busca de um aumento de eficiência, aumento este vinculado à introdução e difusão de técnicas e equipamentos de automação com base na ME. Em busca de mais eficiência, praticamente todas as montadoras têm implementado internamente em suas fábricas formas de organização da produção do tipo just in time production (Kambam).

Verifica-se, então, que o lançamento de novos modelos propicia uma excelente oportunidade para a modernização das linhas de produção (que eventualmente absorvem, pelo menos parcialmente, a produção de antigos modelos). Geralmente não vale a pena para as montadoras fazerem modernizações substanciais de linhas de fabricação de veículos anteriormente já produzidos por métodos convencionais (inclusive pelos altos custos de depreciação de equipamentos envolvidos nessa decisão). Na ferramentaria, todavia, cuja organização não é propriamente a de uma linha seriada, ocorre eventualmente a introdução de MFCN independente do lançamento de um novo modelo.3 3 Mesmo assim esta decisão não é trivial. Um gerente de produção disse-nos que gostaria de substituir cem máquinas-ferramentas convencionais da ferramentaria por vinte MFCN. Mas, “o que fazer com cem máquinas desativadas?”, perguntou ele. “ ... mesmo que eu ofereça a preço de banana, ninguém quer comprar”, continuou. Além dos robôs, introduzidos na soldagem, fundição, pintura e teste das linhas de fabricação de três dos quatro “carros mundiais” recentemente lançados no Brasil, também outros equipamentos e sistemas automatizados micro eletronicamente (em muitos casos através de controladores programáveis - PC) começam a ser utilizados nos mais diversos locais de produção de quase todas as montadoras. Apenas como exemplos, podemos mencionar:

- sistemas flexíveis de máquinas transfer (cerca de 130 PC controlam a produção dos motores - em diversas versões - de um dos carros mundiais. Mais de 80% da produção é exportado);

  • sistema de soldagem múltipla (onde mais de duzentos pontos de solda são aplicados em modelos diferentes em menos de vinte segundos);

  • sistemas de transporte por trolleys magnéticos (que circulam com veículos-fantasmas pela fábrica, sobre circuitos-guia embutidos no chão);

  • sistemas de transporte em linha aérea (que permitem melhorar o lay-out das linhas e as posições de trabalho de montagem sob a carroceria);

  • sistemas de testes finais dos veículos, seus subconjuntos e componentes (parte elétrica, motor, alinhamento de rodas, etc.).

  • sistemas de controle em real time dos fluxos de produção (harmonizando eficientemente a produção, na mesma linha de montagem, de diversos modelos básicos);

  • sistemas de controle de estoques intermediários (otimizando a manutenção de estoques intermediários e criando bolsões de amortecimento - buffer - em caso de emergência por acentuadas e imprevistas variações de necessidade).

A Tabela 1 indica a quantidade de robôs e MFCN em utilização pelas montadoras de veículos no Brasil.

Tabela 1
Robõs e MFCN em uso nas montadoras

Como se vê, a introdução de equipamentos de automação com base na ME na indústria automobilística brasileira ainda está em seus estágios iniciais. Porém, praticamente todas as montadoras têm hoje departamentos, ou seções, encarregados de analisar as possibilidades de utilizar equipamentos automatizados com base na ME e planejar sua introdução. Quase todas elas também são incisivas ao afirmar que é necessário começar já a utilizar tais equipamentos, mesmo que ainda não intensamente, para que haja um processo de aprendizado que prepare transformações mais radicais no futuro.

Quanto à montagem de caminhões (cujo mercado passa por uma crise ainda mais acirrada que a de automóveis), cabem algumas observações. É claro que as escalas menores de produção de caminhões (e ônibus) podem afetar diferentemente os critérios para introdução dos novos equipamentos automatizados. Mas tais critérios parecem ser bastante diferentes para as três empresas que montam exclusivamente caminhões. Duas destas já adotam o conceito de veículo mundial, mas uma delas não tem sequer um microprocessador em sua fábrica, enquanto a outra já utiliza MFCN há quase dez anos. Já a terceira, apesar de aparentemente não utilizar esse conceito e produzir um modelo básico de caminhões mais defasado em relação aos produzidos pela matriz, também começou (recentemente) a utilizar MFCN na ferramentaria.

Cabe também uma breve observação sobre a montadora de jipes, que é a única subsidiária japonesa operando no país. Curiosamente, em contraste com sua matriz, não há nenhuma atividade automatizada por ME em suas instalações fabris, apesar de possuir uma organização da produção bastante eficiente (utilizam o Kambam intensamente). Argumentam seus representantes que ainda há muito a caminhar para aumentar esta eficiência sem automatizar e que os esforços de exportação para o mercado mundial estão concentrados em sua matriz.

Segundo as montadoras (as quatro de automóveis e uma de caminhões) as principais razões que objetivam a introdução de equipamentos automatizados com base na ME nos diversos setores da produção são:

  1. aumento da flexibilidade na usinagem, manipulação e transporte de materiais, fundição/forjaria, estamparia, montagem e soldagem (ponto a ponto e contínua);

  2. melhor qualidade (e maior controle da qualidade) na usinagem, fundição/forjaria, controles em geral e soldagem (ponto a ponto e contínua);

  3. aumento do controle dos fluxos de produção na manipulação e transporte de materiais, fundição/forjaria e solda a ponto;

  4. melhores condições de trabalho (incluindo segurança) na alimentação de máquinas, manipulação e transporte de materiais, fundição/forjaria e soldagem (ambos os tipos);

  5. aumento no ritmo de produção (produtividade) na usinagem, manipulação e transporte de materiais, estamparia, controles em geral e soldagem (ambos os tipos).

Aqui duas observações relevantes, sob o ponto de vista do trabalho, devem ser feitas. Aparentemente a escassez de qualificações, como motivação para introduzir estas novas tecnologias, só tem alguma importância no caso da solda contínua e dos controles da produção em geral. Talvez mais importante ainda seja o fato de que a economia direta de mão-de-obra parece não desempenhar qualquer papel na decisão de automatizar com ME. Caulliraux·e Valle fizeram uma estimativa primária de que o período de pagamento (pay off period) de robôs na soldagem e na pintura, considerando apenas custos de mão-de-obra direta economizada, na indústria automobilística brasileira, são de aproximadamente dez a 32 anos, respectivamente.4 4 Ver H. Caulliraux e R. Valle, Período de Pagamento de um Robô, UFRJ, 1983, mimeo.

Apesar dos valores altos, estes números não são de se estranhar diante dos baixos níveis salariais vigentes no Brasil, principalmente se comparados com os dos outros países chamados desenvolvidos. De acordo com as informações fornecidas pelas montadoras, o salários médio de um trabalhador na produção, na indústria automobilística brasileira, representa aproximadamente entre 24% e 14% daqueles pagos na Europa, entre 33% e 28% dos pagos no Japão e menos de 15% dos equivalentes nos EUA. É interessante notar que para nenhuma das montadoras no Brasil o custo de mão-de-obra direta representa mais do que 5% do custo total de seus veículos.

Passemos agora a ver como esse processo está ocorrendo no setor de autopeças.

O SETOR DE AUTOPEÇAS

Como dissemos anteriormente, apesar da necessidade de funcionarem integrados, nem sempre os interesses do setor montador final e do setor produtor de autopeças são coincidentes. Em primeiro lugar, este último é um setor de características· bastante heterogêneas. É composto por pequenas, médias e grandes empresas, cujos diversos produtos e processos de produção variam bastante em termos de complexidade tecnológica. São cerca de 1.600 empresas, das quais mais de 600 associadas ao Sindipeças. Em geral estas são as maiores, e fornecem prioritariamente direto para as montadoras. A Tabela 2 mostra a distribuição da produção do setor pelos diversos tipos de mercado. É um setor que se diferencia também pela origem da propriedade do capital. Há aí envolvido um significativo conjunto de interesses do capital nacional, que, por sinal, sofre bastante com a crise. Teme-se a desnacionalização do setor pela aquisição de empresas nacionais por outras, estrangeiras, já instaladas no país. Por outro lado, as empresas subsidiárias de capitais estrangeiros têm, de um modo geral, maior acesso ao mercado mundial e tendem a estar mais atualizadas tecnologicamente que as nacionais, principalmente as menores. Para estas, a tendência ao desbalanceamento é ainda maior visto que, por suas frágeis ou inexistentes conexões internacionais, não podem sequer se beneficiar dos programas BEFIEX por não ser possível garantir níveis de exportações regulares por longos períodos. Além do mais, o setor como um todo sente-se ameaçado pelos movimentos de verticalização das estruturas produtivas das montadoras, fazendo ressurgir a questão do grau de nacionalização dos veículos produzidos no Brasil. Este índice, que, logo após a implantação da indústria no início da década de 60, chegou a mais de 90%, caiu para 85% na década de 70. Pela vontade das montadoras, com o lançamento de seus “carros mundiais”, que se baseiam na troca internacional intrafirma de partes e subconjuntos complexos, o índice de nacionalização baixaria, ainda mais, para 75%. Evidentemente, isto é uma ameaça para o setor produtor de autopeças no Brasil, que tem procurado firmemente sustar essa intenção.

Tabela 2
Vendas de autopeças por tipo de mercado

Caberia ainda mencionar que movimentos para a integração mais eficiente entre ambos os setores através da adoção de sistemas de just in time production (Kambam) entre montadoras e fornecedoras de autopeças, ainda é dificultada pelo fato de estas fornecerem em geral para mais de uma montadora (ou mesmo para outros segmentos industriais). De certo modo, as montadoras temem que ao apoiar a implantação de tais sistemas, suas concorrentes acabem por se beneficiar desta iniciativa. Apesar disso, já existem planos para que em breve os pedidos de algumas montadoras para certas fornecedoras sejam emitidos diretamente de computador para computador. O fato é que o aumento da eficiência da indústria como um todo passe por uma maior integração entre seus setores em termos de redução generalizada de estoques. Nos tempos áureos da indústria as previsões de fornecimento eram feitas com seis meses de antecedência e confirmadas a um mês da entrega. Hoje em dia, estes prazos reduziram-se para um mês e uma semana respectivamente, não sendo incomum chegar a 24 horas. Não é difícil deduzir daí a existência de um certo caos entre os fornecedores, que, naturalmente, reclamam bastante deste estado de coisas. Esses fatos, a nosso ver, caracterizam um momento de transição que, apesar de tumultuado, acabará por desembarcar numa estrutura industrial mais moderna, versátil, flexível, eficiente e consequentemente competitiva, mesmo em padrões internacionais. Evidentemente, os menos capazes não sobreviverão.

Esta nova estrutura industrial, mais vinculada ao mercado internacional, terá, tanto no caso das montadoras como no caso que agora tratamos das produtoras de autopeças, uma base técnica fortemente impregnada pela ME. Uma demonstração clara disso é que, num conjunto pesquisado de 14 empresas do setor (nove com mais de 500 empregados, quatro com mais de cem e menos de 500, e uma com menos de cem empregados) que já utilizam MFCN (71 ao todo, das quais 62% eram tornos e 17% centros de usinagem), as exportações já ocupam 25% de sua produção (em comparação com 4% para o setor como um todo no ano de 1982, conforme Tabela 2).5 5 Ver J. R. Tauile, “Employment Effect of Micro-electronic Equipment in the Brazilian Automobile Industry”, working paper, Intemational Labour Organization, Genebra, 1984. Mais do que isso, das dez maiores empresas do setor e das dez mais eficientes (segundo a revista Exame), oito e sete respectivamente são usuárias de MFCN.6 6 As maiores e mais eficientes foram assim classificadas segundo a revista Exame, “Melhores e Maiores de 1983”, número especial, set. 1983.

No setor como um todo, em 1983, cerca de 50 utilizavam por volta de 150 MFCN.7 7 Ver J. R. Tauile, op. cit. Metade dessas empresas eram subsidiárias de firmas estrangeiras e mais 16% tinham alguma participação de capital estrangeiro. Verificamos que, mais do que nas4 montadoras, as MFCN vinham sendo utilizadas como máquinas de produção (e não máquinas universais na ferramentaria), eventualmente em sistemas flexíveis bastante engenhosos. As fornecedoras exclusivas de caminhões tinham ainda uma razão adicional para isso: os baixos volumes dos lotes encomendados e produzidos. Todas as empresas que pesquisamos pretendem comprar mais MFCN (metade delas ainda no ano de 1984), apesar de que 50% delas não haviam realizado nenhum estudo econômico a posteriori para confirmar se tinha valido a pena introduzir as MFCN.

As principais motivações apresentadas para que essas empresas utilizassem as MFCN foram, pela ordem (mas sobrepondo-se umas às outras e com intensidades bastante próximas): melhoria de qualidade dos produtos, aumento da flexibilidade da produção, busca de maior competitividade, tipo de produtos a serem produzidos, redução de custo unitário e maior controle do processo de produção.

Como dissemos anteriormente, pelo menos até agora, as montadoras não têm desempenhado qualquer papel direto nas decisões dessas firmas de automatizarem com ME. Já os principais obstáculos apontados para essa decisão têm sido, pela ordem: o alto custo dos equipamentos (todas mencionaram), a crise econômica e os baixos custos do fator trabalho no Brasil (nas empresas do setor que pesquisamos, o custo da mão-de-obra direta representava entre 5% e 25% do custo total do produto). Creditamos que haja uma tendência à aproximação dos custos dos equipamentos automatizados com base na ME, disponíveis no mercado brasileiro em relação aos disponíveis no mercado internacional, mas essa tendência depende do sucesso na produção local deste tipo de equipamento, que por sua vez depende de se poder alcançar escalas mais elevadas de produção, e isto depende, é óbvio, da recuperação da economia como um todo.

Por outro lado, o baixo custo do fator trabalho desestimula fortemente, por exemplo (juntamente com o tipo de aplicação a que se prestam), a introdução de robôs no setor. Até o momento não é do nosso conhecimento que empresa alguma do setor utilize robôs ou tenha planos de utilizá-los no futuro próximo.

Ainda assim, é muito claro que tais empresas, objetivando aumentar sua competitividade, buscam poder atender rapidamente aos pedidos mais variados (em quantidade e tipo) sem comprometer os padrões de qualidade (especificações, tolerâncias etc.) exigidos. Para isso, outros equipamentos ME são importantes. É o caso, novamente, dos controladores programáveis (PC) que estão sendo cada vez mais usados não só para controlar processos, mas também para substituir os gabinetes convencionais de controle eletromecânicos das máquinas-ferramentas.

Em outro nível, no âmbito da concepção dos produtos, equipamentos de CAD/CAM já começam a ser introduzidos no setor, principalmente para empresas mais vinculadas ao mercado internacional. É claro que funciona como um instrumento de dois gumes. Dependendo de quem os use e com que fim, podem servir efetivamente como importantes elementos no auxílio de projetos concebidos internamente no país, como podem perpetuar relações de subordinação entre matriz e filial onde a transferência de tecnologia continua limitada e bloqueada.

Para concluir esta seção cabe mencionar uma observação de um antigo empresário do setor que bem demonstra a mudança qualitativa e radical porque alguns de seus segmentos passam atualmente. Antigamente não importava o custo, mas sim conseguir produzir. Hoje a primeira coisa é saber quanto o produto custa no mercado internacional, e o desafio (uma espécie de barreira à entrada) é fazê-lo custar menos, entregar a tempo e dentro das especificações exigidas.

O IMPACTO SOBRE O TRABALHO

É muito difícil avaliar concreta e precisamente os impactos que as novas tecnologias com base ME na indústria automobilística brasileira têm produzido no âmbito do trabalho. Os dados eventualmente existentes a respeito não são tornados públicos, seja para entidades governamentais (além do que não há um aparelho estatístico oficial preparado para acompanhar o assunto), seja para os trabalhadores e muito menos para pesquisadores.8 8 Ao contrário, a disponibilidade de dados no Japão deixa o pesquisador tupiniquim com água na boca. Por exemplo, lá o Ministério do Trabalho dispõe do número de horas trabalhadas por veículo produzido discriminadas pelas diversas atividades do processo de produção (conformação de metais, usinagem, montagem de carroceria e montagem final) e das atividades de suporte (transporte e estocagem), manutenção de ferramentas, manutenção, energia e teste. Vale a pena mencionar alguns exemplos deste fato.

Quando dos trabalhos da Comissão Especial de Automação da Manufatura (CEAM), pela Secretaria Especial de Informática (SEI), as montadoras que participaram de uma das subcomissões negaram-se a revelar suas informações sobre o assunto por considerarem-nas estratégicas e, logo, como segredo da empresa. Somente uma das montadoras respondeu (cuidadosamente, por sinal) um questionário sobre automação distribuído pela SEI. Este questionário foi tomado como representativo de todas as outras montadoras, pela ANFAVEA, que o assumiu ipsis litteris. Evidentemente isto não contribui muito para revelar a percepção que a indústria como um todo tem sobre o assunto.

Quanto aos trabalhadores, procuramos ouvi-los através de seus órgãos de representação coletiva. Constatamos que têm crescido suas preocupações em relação às implicações sociais de introdução de equipamentos automatizados com base na ME. Vale mencionar, todavia, que estas preocupações têm sido menos priorizadas diante dos avassaladores efeitos da crise (como perda de poder aquisitivo salarial pela alta inflação) e do movimento para (re)construir uma estrutura sindical mais democrática que proteja efetivamente os direitos sociais dos trabalhadores. Assim é que, numa pesquisa do DIEESE realizada em 1983 em Santo André, como preparação das pautas de reivindicações das campanhas salariais, a preocupação com o controle sobre a mecanização e a robotização foi o menos apontado entre seis itens. Dentre os trabalhadores de cinco empresas de autopeças, e cujas respostas tiveram acesso, este item mereceu apenas 3,75% das respostas. Os quesitos mais importantes, segundo eles, seriam: estabilidade no emprego (31,76%), representação sindical nas fábricas (26,2%) e comissões de trabalhadores nas fábricas (19,33%).

Tivemos contato com vários comissões de fábricas das montadoras, e elas revelaram-se todas bastante interessadas em entender melhor as dimensões das questões relativas à evolução tecnológica e às novas formas de automação. Quase todas não sabiam, entretanto, como fazer para isso ou como se posicionar diante de uma tendência à automação considerada irreversível. Apenas uma das comissões que contatamos já tinha tomado alguma iniciativa a respeito, tentando propor à empresa respectiva reconstituir formalmente as atividades do processo de trabalho de um modelo de automóvel que saíra de linha, para compará-lo com as atividades da linha, muito mais moderna, do modelo que o substituiu. A direção da empresa, todavia, negou-se a colaborar, considerando a iniciativa como beligerante e contra o bom relacionamento entre empregados e patrões.

O fato é que a implícita ameaça de desemprego levantada pelos primeiros robôs na indústria automobilística tornou o tema extremamente delicado para as montadoras. Mais do que isso, os trabalhadores parecem estar quase que totalmente despreparados para tratá-lo, pois a implantação e desenvolvimento da indústria deu-se, em sua maior parte, durante a existência de um regime autoritário, criando graves distorções na estrutura sindical, incapaz então de vivenciar e internalizar a resolução de certos problemas como os trazidos pelo avanço da tecnologia. Adicionalmente, o fato de a indústria crescer sistematicamente desde a sua implantação até a crise de 1980-1981 impediu que emergisse antes a questão do desemprego estrutural/conjuntural. Hoje, com a indústria constituída, a crise trouxe à tona esse tipo de problema, que tende a ser agravado pela mudança da base técnica. Por sua vez, neste momento da chegada da ME, os trabalhadores sentem-se desorientados, pois não vivenciaram, pelos motivos expostos acima, essa problemática mesmo no âmbito da base técnica eletromecânica.

Em todos os outros países (em geral, os chamados desenvolvidos) onde os níveis de difusão de equipamentos automatizados com base na ME é maior do que no Brasil, há um conjunto de leis sociais de proteção ao trabalhador contra os efeitos indesejáveis da automação que precede a chegada da ME nas fábricas. Essa chegada encontrou os trabalhadores mais preparados para lidar com tais problemas, agora renovados. Mesmo assim, em todos esses países são crescentes as preocupações (primordialmente com o desemprego) com os efeitos da nova onda de automação em todos os ramos da atividade econômica (e não apenas na indústria).

No relatório da subcomissão da CEAM encarregada de tratar dos aspectos socioeconômicos, foi proposta uma série de medidas para atenuar os efeitos negativos da automação, que, na verdade, é uma compilação das medidas já adotadas em outros países. Daí até a sua adoção no Brasil, entretanto, a distância é muito grande. Há uma inércia por parte dos agentes envolvidos, habituados a longos anos de autoritarismo, que sempre protegeu os privilégios das empresas, muito difícil de ser rompido. Não há entre empresário (nem entre trabalhadores) o hábito de negociar e muito menos de ceder seus privilégios (no caso dos trabalhadores, de identificar e reivindicar seus reais direitos). Acreditamos que a resolução deste impasse somente possa caminhar à medida que a sociedade como um todo discuta estas questões livremente (afinal, a ela dizem respeito, pois afetarão, mais cedo ou mais tarde, quase todos os seus segmentos). Em outras palavras, somente quando os elementos de democracia tiverem suficientemente impregnado o meio social como um todo, criar-se-á um caldo social propício ao equacionamento e resolução destas questões que cada vez mais tornam-se estruturais.

A esse respeito, cabe dizer que, apesar de até agora o desemprego tecnológico causado pela automação da indústria automobilística no Brasil pela ME ser relativamente pequeno diante dos desempregos estrutural e conjuntural, se não for equacionado a tempo, aquele tornar-se-á estrutural na medida em que os novos equipamentos sejam difundidos e se tornem o padrão da base técnica adotada. Podemos fazer aqui uma estimativa bastante aproximada do efeito sobre o emprego das 190 MFCN utilizadas pela indústria, baseando-nos em um exercício feito em outro trabalho onde se dispôs de dados pormenorizados e mais amplos para o Brasil como um todo.9 9 Ver J. R. Tauile, “Microeletronics, Automation and Economic Development”, tese de PhD, New School for Social Research, Nova Iorque, 1984. Supõe-se, assim, que as condições de utilização dessas MFCN sejam semelhantes às utilizadas em todos os outros setores no Brasil (temos motivos para supor isso a partir de nossa amostra de 14 empresas), onde, por exemplo, são utilizadas em média por dois turnos e substituindo cerca de três a cinco máquinas-ferramentas convencionais. É possível estimar, então, que tenha havido um desemprego direto de entre 540 e 1200 postos de trabalho (já descontados os postos criados pelos novos equipamentos) de oficiais operadores de máquinas altamente qualificados. Por outro lado, sem a automação, um número talvez maior de empregos deixasse de existir pela perda de competitividade das empresas.

Como se vê, são números relativamente pequenos diante do desemprego gerado pela indústria automobilística nos últimos anos. É bom lembrar, entretanto, que as novas tecnologias em geral são introduzidas associadas a mudanças organizacionais, voltadas para diminuir o desperdício e aumentar a eficiência da estrutura produtiva. Aqui sim, provavelmente, está a principal origem desse desemprego. Registre-se que nos últimos dois anos a produção de veículos aumentou de 14,7% (em número de unidades), mas o emprego nas montadoras decresceu 10,6%. Apesar deste fato, as montadoras argumentam que o atual movimento de automação não criou desemprego, ao contrário, este teria sido maior caso não tivesse havido aumento de produtividade. Este, naturalmente, é um argumento algo contraditório. Porém, ainda segundo as montadoras, a tendência resultante de se dispor de uma base técnica mais flexível, é utilizar uma força de trabalho relativamente menor, porém mais estável.

OUTRAS CONSIDERAÇÕES GERAIS E CONCLUSÕES

Assim como a indústria automobilística desempenhou um papel importantíssimo no processo de desenvolvimento socioeconômico brasileiro e na constituição da respectiva base técnica, tudo leva a crer que ela, agora, volte a ter papel decisivo na mudança desta base técnica e nas condições gerais de produção social. Estímulos provenientes internamente na própria indústria automobilística local, bem como da atual fase de acirrada concorrência dessa indústria a nível internacional e de adoção de novas estratégias empresariais nesse âmbito, induzem à utilização cada vez mais intensa no Brasil de equipamentos automatizados com base na ME. As implicações decorrentes são certamente mais amplas e mais profundas do que tivemos oportunidade de abordar até aqui.

Repetimos que a indústria local está entrando em sua terceira fase de desenvolvimento, marcada pela integração com a indústria internacional seja em termos de mercado, seja em termos de aproximação de sua base técnica. Está emergindo uma indústria mais eficiente e moderna que, segundo os presidentes das maiores empresas americanas produtoras de veículos, será a única capaz de competir com a indústria japonesa. Porém, este desenvolvimento da indústria parece estar associado (casualmente ou não) a um importante movimento de transformação da própria sociedade brasileira. Acreditamos que um significativo aumento de produtividade, resultante de modificações da base técnica pelo uso da ME, acabaria sendo insustentável pelas próprias empresas, caso não fosse acompanhado de correspondente equacionamento das condições de participação do trabalho social na atividade econômica. Talvez por isso mesmo tenham sido as empresas automobilísticas as primeiras a desrespeitar o recente Decreto-Lei n. 2.065, que promovia o arrocho salarial no Brasil. Afinal, para essas empresas, o custo do fator trabalho é relativamente insignificante, e certamente elas serão mais beneficiadas se promoverem um processo de maior harmonia social (dentro e fora de suas fábricas).

Não queremos dizer que elas descuidem de seus custos (e o trabalho é um deles). Sua perspectiva é de longo prazo. O papel da sua produção no Brasil dentro das respectivas divisões internacionais do trabalho oferece a longo prazo amplas e crescentes possibilidades. Por estarem absolutamente conscientes desse fato começam a criar um caldo cultural tecnológico/profissional que permita as subsidiárias locais participar com cada vez mais relevância nas citadas divisões internacionais do trabalho. No mínimo, a automação será melhor justificada quando os custos salariais aumentarem como resultado do processo de redemocratização do país (que inevitavelmente redistribuirá melhor a renda). O ritmo de difusão dos equipamentos automatizados com base na ME dependerá também de sua disponibilidade no mercado local. Dependerá assim, consequentemente, da consolidação da capacidade local de produzir esses equipamentos. Surge então uma aparente contradição. Os usuários demandam acesso aos mais modernos equipamentos existentes no mercado mundial sob suposta pena de defasarem suas estruturas produtivas. Argumentam que a nascente produção local não consegue acompanhar o ritmo das inovações tecnológicas que são desenvolvidas em outros lugares. Por outro lado, a produção local deste tipo de equipamento influencia fortemente sua difusão (se com custo e qualidade semelhantes aos do mercado internacional) na medida em que o usuário possa contar com uma assistência técnica eficiente que evite paradas prolongadas por falhas do equipamento (que causam grandes prejuízos). A reserva de mercado que traz para o país a perspectiva de maior autossuficiência tecnológica é vista, então, sob aspectos conflitantes pelo usuário genérico: por um lado, cria uma base sólida com a qual poderá contar, mas, por outro lado, paira a mencionada ameaça do aumento da defasagem tecnológica.

A influência da reserva de mercado sobre o ritmo da nova onda de automação é ainda complicada pelo emperramento da máquina burocrática estatal e sua incapacidade de distinguir o que pode ou deve ser importado. Às vezes, grandes prejuízos são registrados por máquinas paradas devido à dificuldade de importar um componente ME que custa um dólar ou pouco mais do que isso.

Do ponto de vista do trabalho, não cremos que haja maiores dificuldades de formar um contingente efetivamente capaz de operar os equipamentos da nova base técnica ME, apesar da barreira existente em termos de cultura profissional que dificulta o retreinamento de operários mais antigos (deve-se dizer que muitos empresários, gerentes e pessoal técnico também se defrontam com uma barreira cultural para absorver a nova concepção gerencial implícita na adoção dos novos equipamentos). O maior obstáculo, todavia, é o da ameaça de agravamento do desemprego e do desrespeito aos direitos dos trabalhadores. Se os ganhos do aumento da produtividade forem repartidos devidamente entre capital e trabalho, melhorando a qualidade de vida quanto as atividades profissionais e trazendo beneficias sociais que contribuam direta ou indiretamente para o processo de redemocratização da sociedade brasileira, a nova base técnica será muito bem-vinda pelos trabalhadores. Para isso é preciso, é claro, que eles sintam que não estão, mais uma vez, sendo passados para trás.

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    Dados anuais da ANFAVEA e do SINDIPEÇAS.
  • 2
    As duas primeiras fases, segundo E. A. Guimarães, teriam sido a da implantação da indústria, que teria ido até 1966-1967 quando a Ford e a GM passaram a produzir automóveis, e quando as principais montadoras de capital nacional foram absorvidas por concorrentes internacionais; e a segunda fase a partir de então. Ver Acumulação e Crescimento da Firma, Rio de Janeiro, Zahar, 1981.
  • 3
    Mesmo assim esta decisão não é trivial. Um gerente de produção disse-nos que gostaria de substituir cem máquinas-ferramentas convencionais da ferramentaria por vinte MFCN. Mas, “o que fazer com cem máquinas desativadas?”, perguntou ele. “ ... mesmo que eu ofereça a preço de banana, ninguém quer comprar”, continuou.
  • 4
    Ver H. Caulliraux e R. Valle, Período de Pagamento de um Robô, UFRJ, 1983, mimeo.
  • 5
    Ver J. R. Tauile, “Employment Effect of Micro-electronic Equipment in the Brazilian Automobile Industry”, working paper, Intemational Labour Organization, Genebra, 1984.
  • 6
    As maiores e mais eficientes foram assim classificadas segundo a revista Exame, “Melhores e Maiores de 1983”, número especial, set. 1983.
  • 7
    Ver J. R. Tauile, op. cit.
  • 8
    Ao contrário, a disponibilidade de dados no Japão deixa o pesquisador tupiniquim com água na boca. Por exemplo, lá o Ministério do Trabalho dispõe do número de horas trabalhadas por veículo produzido discriminadas pelas diversas atividades do processo de produção (conformação de metais, usinagem, montagem de carroceria e montagem final) e das atividades de suporte (transporte e estocagem), manutenção de ferramentas, manutenção, energia e teste.
  • 9
    Ver J. R. Tauile, “Microeletronics, Automation and Economic Development”, tese de PhD, New School for Social Research, Nova Iorque, 1984.
  • 10
    JEL Classification: L62; L63; F10.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 1986
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