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A revolução agrícola no Brasil: singularidade do desenvolvimento do capitalismo na agricultura brasileira, 1850-1930

The agricultural revolution in Brazil: the singularity of the development of capitalism in Brazilian agriculture, 1850-1930

RESUMO

Este artigo mostra que a lógica universal do capitalismo pode ser identificada na singularidade da mudança agrícola no Brasil durante o período inicial da industrialização (1889-1930), por meio da mediação de um padrão particular de transformação agrícola baseado no latifúndio. O desenvolvimento da agricultura foi marcado pelo processo de gradual transformação das grandes propriedades (lafifúndios) em modernas empresas capitalistas, de forma que o padrão brasileiro não poderia ser baseado em pequenas propriedades camponesas. Como resultado, o desenvolvimento das relações capitalistas de produção e das forças produtivas permaneceu fraco e limitado à indústria, enquanto a maioria da população não conseguiu melhorar suas condições de vida precárias.

PALAVRAS-CHAVE:
História econômica do Brasil; agricultura

ABSTRACT

This paper shows that the universal logic of capitalism can be identified within the singularity of agricultural change in Brazil during the initial period of industrialization (1889-1930), through the mediation of a particular pattern of agricultural transformation based on large estates. The development of agriculture was marked by the process of gradual transformation of the large estates (lafifundia) into modern capitalist enterprises, in such a way that the Brazilian pattern could not be based on small peasant properties. As a result, the development of capitalist relations of production and the productive forces remained weak and was limited to industry, while the majority of the population could not improve its poor living conditions.

KEYWORDS:
Economic history of Brazil; agriculture

O objetivo deste artigo consiste em examinar o processo de gênese e desenvolvimento do capitalismo na agricultura brasileira entre 1850 e 1930. Neste sentido, pretende contribuir para a questão, colocada por Cardoso de Mello, de pensar as particularidades do desenvolvimento do capitalismo no Brasil, evitando-se reduzi-lo ao desenvolvimento do capitalismo “em geral”, ou construir uma teoria econômica singular, exclusiva para o caso brasileiro.1 1 Mello, João Manuel Cardoso de, O Capitalismo Tardio, São Paulo, Brasiliense, 1982, 182 pp.

Metodologicamente, procura enfocar a questão, a partir da estrutura clássica do silogismo dialético,2 2 Segundo o silogismo dialético, o singular (universal concreto) resulta da particularização do universal. abordando a questão da singularidade do desenvolvimento da agricultura brasileira até 1930, como forma particular de desenvolvimento da lógica universal do capitalismo.

O resultado do estudo do complexo processo de desenvolvimento da agricultura no período considerado é que este obedeceu à via junker de expansão agrícola, que representa, pois, a mediação entre a lógica universal do desenvolvimento capitalista e a singularidade concreta do caso brasileiro.

DOMÍNIO LATIFUNDIÁRIO DA TRANSIÇÃO AO CAPITALISMO

A universalidade da lógica de expansão do capitalismo revelou-se no Brasil entre 1850 e 1930, através de um processo que, em linhas gerais, significava a generalização da produção mercantil. Este processo se dá com o aprofundamento da divisão social do trabalho; o desenvolvimento das relações capitalistas de produção, com a liberação das imposições extraeconômicas e a concentração dos meios de produção e de subsistência; a expansão das forças produtivas, com o surgimento da cooperação capitalista, a divisão técnica e a mecanização do trabalho; a separação da indústria da agricultura e a expansão da grande indústria urbana, com a liquidação do artesanato independente e da indústria doméstica rural; a desagregação da pequena produção camponesa e a transformação da grande exploração latifundiária; a especialização de certas regiões em determinados produtos agrícolas; a cisão da renda fundiária pré-capitalista em lucro e renda capitalista; a transformação das formas pré-capitalistas de exploração da terra e florescimento da grande exploração capitalista; e a industrialização progressiva da agricultura, com sua transformação em ramo específico da aplicação de capital. Com esse processo, tinha início o “declínio secular do setor agrícola”, com a migração campo-cidade e o crescimento da população urbana às expensas do campo, ao mesmo tempo que se revolucionam, completamente, as relações de produção e as forças produtivas, refundindo a estrutura produtiva preexistente.

No entanto, essa presença universal manifestava-se mediada pela particularidade da dominância da grande exploração latifundiária, que se transformava em grande exploração capitalista, com a substituição da escravidão pela parceria e pelo trabalho assalariado, com a predominância da primeira.

De fato, o Brasil conheceu, a partir da abolição do tráfico negreiro em 1850, uma transformação radical na sua agricultura, que culminaria com o desencadeamento do processo de industrialização. Essa transformação conheceu duas fases. Na primeira, que vai da supressão do tráfico em 1850 à liquidação definitiva da escravatura em 1888, a contínua expansão das forças produtivas entrou em choque com as relações escravistas de produção, criando uma tensão tal que solaparia, pouco a pouco, as bases do escravismo, representando o período de transição ao trabalho assalariado. Na segunda, que vai até o ocaso da República Velha, as novas relações de produção liberaram o desenvolvimento das forças produtivas, que se expandiram mais vigorosamente, embora enfrentando obstáculos sem conta.

O ponto de partida dessa “revolução” foi uma economia latifundiária, de bases escravistas, onde o nível de desenvolvimento das forças produtivas era extremamente baixo. E o momento histórico surgiu com o extraordinário crescimento dos mercados de exportação do Brasil, particularmente do café: a partir de 1850, a expansão cafeeira esbarraria com o problema da escassez de mão-de-obra, criado pelo término do tráfico negreiro, exigindo novas formas de aprovisionamento de força de trabalho. Em razão do nascimento do tráfico interprovincial de negros; do desabrochar de formas de trabalho livre; das experiências com a parceria, conjugadas com a expansão ferroviária; da melhoria dos métodos de produção do café, principalmente nos processos de beneficiamento do produto; e, por fim, do reaparelhamento do Estado e a crescente circulação mercantil e financeira, geraram-se tensões que resultaram num complexo processo, cujo destino final seria decidido quando a imigração estrangeira mostrou ser a solução objetiva do problema de escassez de mão-de-obra para a lavoura de exportação. A partir daí, estavam criadas as condições para o sucesso do movimento abolicionista, que poria termo à escravidão no Brasil em 1888, inaugurando o período de domínio do capitalismo no país.

Durante esse período de transição ao trabalho assalariado, o Brasil conheceu dois processos bem distintos de evolução agrícola: de um lado, a formação, em áreas restritas (Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e Espírito Santo), de uma dinâmica economia camponesa, assentada no trabalho familiar; de outro, a transformação lenta, mas sistemática, da grande exploração pré-capitalista em grande economia capitalista, de bases latifundiárias. Mesmo no seio do último processo, ocorreriam diferenças marcantes, com o surgimento de fazendas baseadas em formas determinadas de trabalho assalariado, como no caso dos estabelecimentos do Oeste Paulista, que adotavam o regime do colonato e do salariato, e de explorações alicerçadas na “troca de serviços”, como as fazendas de criação de gado e os grandes estabelecimentos que utilizavam o trabalho de agregados parceiros e de pequenos arrendatários.

Contudo, tanto em termos econômicos como políticos, a hegemonia pertenceria, indiscutivelmente, ao processo de transformação das grandes propriedades em grandes explorações capitalistas, com o domínio amplo e irrestrito dos fazendeiros sobre a economia e a vida política do país durante todo o Segundo Reinado. Aliás, foram os grandes fazendeiros que conduziram o processo de substituição da força de trabalho escrava pelos parceiros e trabalhadores assalariados, sem que se questionasse a grande propriedade. Deste modo, embora as relações de produção fossem sendo substituídas, no sentido do capitalismo, a grande propriedade pré-capitalista foi transformando-se lentamente em economia capitalista, baseada no trabalho assalariado e na parceria, sem perder o caráter latifundiário.

AS NOVAS RELAÇÕES DE PRODUÇÃO E A FORMAÇÃO DO MERCADO DE TRABALHO

A segunda fase dessa “revolução agrícola” do Brasil iniciou-se com a abolição do trabalho escravo e o advento da República, ocorridos no período 1888-1889. Com esses acontecimentos, romperam-se as amarras que inibiam o desenvolvimento das forças produtivas, que a partir de então puderam expandir-se com mais vigor.

Desse modo, em primeiro lugar, compôs-se um novo tecido de relações de produção, apresentando, por sinal, grande diversidade. Assim, a lavoura cafeeira do Oeste Paulista comportaria as relações de produção mais avançadas, onde o trabalho assalariado se conjugaria com o colonato, regime que representa um compromisso entre a economia camponesa e o trabalho assalariado, garantindo a rentabilidade ao fazendeiro do café e condições de vida relativamente favoráveis ao colono e sua família.

Por outro lado, no Vale do Paraíba as relações dominantes seriam a parceria, forma mais rudimentar de exploração do trabalho, que implicava precárias condições de vida e baixo nível de desenvolvimento das forças produtivas. Na verdade, essa forma seria dominante no Nordeste, conjuntamente com o sistema do “cambão”, o pequeno arrendamento, a “quarteação” - no caso da pecuária - e de outros modos de existir da “economia da troca de serviços”. Neste caso, o atraso das relações de produção se fazia por demais evidente, de tal modo que o trabalho assalariado se misturava com a “troca de serviços”, em formas híbridas que denunciavam a sua origem pré-capitalista. Seja como for, na base desta constelação de relações de produção estava a grande propriedade latifundiária, responsável por altas taxas de renda da terra e baixos salários, além da grande sujeição da massa camponesa ao arbítrio dos fazendeiros.

No Norte, região da borracha, já dominaria a exploração pelo capital comercial, através do sistema do “aviamento”, que também implicava taxas de exploração muito elevadas, reduzindo os produtores diretos a uma situação de extrema degradação física e moral, que redundava, em geral, num verdadeiro estado de escravidão. Em contraposição, no Extremo Sul, vicejaria uma próspera economia camponesa que, apesar do descaso da política oficial e do pequeno fluxo de imigrantes para a área, pôde expandir-se, com certo vigor, com base na pequena propriedade.

Esse novo tecido social favoreceu, então, o movimento de imigração estrangeira que buscava o Brasil, dando ensejo a que atingisse o auge entre 1886 e 1896, com a entrada no país de cerca de 1,2 milhão de pessoas. Depois desse período, a entrada de imigrantes estrangeiros arrefeceu sensivelmente, como resultado da crise cafeeira, embora até o término da República Velha ainda ingressassem contingentes significativos.

A completa revolução das relações de produção, com o desabrochar do trabalho assalariado e desenvolvimento da parceria, do pequeno arrendamento e das outras formas de “troca de serviços”, e a evolução da pequena economia camponesa proporcionaram os fundamentos para a ulterior expansão econômica do Brasil. Criou-se, como consequência da imigração estrangeira, um amplo mercado de trabalho no Sudeste do país, enquanto, no Nordeste, pôde expandir-se, pouco a pouco, o regime assalariado. Na região Sul, a base já estabelecida pelas colônias de imigrantes deu condições para o desenvolvimento de uma dinâmica economia camponesa, em acelerado processo de capitalização. Finalmente, no Norte, o aviamento permitiria a expansão do extrativismo vegetal. Assim, contando com terras abundantes - embora inacessíveis à massa trabalhadora - e com alguns capitais acumulados na fase pré-capitalista, a agricultura mercantil pôde expandir-se, principalmente a de produtos de exportação, acicatada pelo aumento da demanda externa.

AGRICULTURA E DESENVOLVIMENTO REGIONAL

Mas as novas condições da economia brasileira, criadas pela superação do escravismo, não se fizeram sentir apenas no seu “setor exportador”, mas, também, no “setor de subsistência” e no “setor de mercado interno”, dando novo fôlego à sua expansão. Na verdade, parte importante das “lavouras de exportação” do período imperial consolidou-se como “lavouras de mercado interno” no desdobrar-se da República Velha. Foi o caso da agroindústria açucareira e da cultura algodoeira, que passaram a abastecer, primordialmente, o mercado interno, em razão da perda de seu poder de concorrência no mercado externo. Por sua vez, o extrativismo gomifero amazonense entrou em colapso depois de 1912, regredindo a níveis medíocres de produção, sem perder, contudo, a ligação com o mercado internacional. Quanto à pecuária bovina, acentuou-se, também, a importância do mercado interno na absorção da produção setorial, apesar do aumento das exportações de couros e peles durante a primeira fase republicana e do boom temporário de colocação de carnes no mercado mundial, em decorrência da Primeira Guerra. Os outros produtos agrícolas de exportação (particularmente o cacau, o fumo e o mate) conservaram uma pequena porcentagem do total das exportações do país, apesar do acréscimo de suas vendas totais. Somente o café se manteve como grande produto de exportação, pois a produção cresceu acima da demanda interna no período da República Velha, ampliando de forma significativa o quantum destinado ao exterior.

Excetuando-se as áreas de predomínio das atividades que passaram do “setor externo” para o “interno” no decorrer da Primeira República, foram as seguintes as principais regiões produtoras de meios de subsistência no início do período republicano, ou que se desenvolveram como tais durante o seu desenrolar: o Extremo Sul, particularmente a região montanhosa do Rio Grande do Sul; o Estado de São Paulo, que se tornou, além de grande produtor de café, um importante fornecedor de alimentos; o Estado de Minas Gerais, tradicional fornecedor de meios de subsistência, principalmente do Rio de Janeiro; e o interior nordestino, onde, de longa data, havia-se assentado a pequena produção alimentar, ao lado ou de forma conjugada com a criação de gado bovino e com as culturas mercantis.

Na realidade, a “agricultura de subsistência” disseminava-se por todo o país, exceto nas áreas altamente especializadas, como na região cafeeira de São Paulo (nas últimas décadas do século XIX); na Zona da Mata nordestina, onde se concentrava a produção açucareira; na área cacaueira da Bahia e na zona gomífera da Amazônia. Contudo, seus excedentes não eram suficientes para caracterizar uma “agricultura de mercado interno”, a não ser em regiões restritas. No próprio sertão nordestino, não se fazia presente um “setor de mercado interno”, suficientemente forte para abastecer outras áreas do país, fora da Zona da Mata da região.

A expansão dessa agricultura diversificada, tanto em termos setoriais quanto espaciais, constituir-se-ia no fundamento do desenvolvimento capitalista do Brasil, principalmente do desenvolvimento do seu processo de industrialização. Com efeito, a agricultura de cada uma das diferentes regiões brasileiras funcionou como um hinterland para alguns poucos centros urbanos que se industrializaram contando com essa base.

Assim sendo, no caso de Extremo Sul, a economia regional experimentou certo dinamismo oriundo de um processo de desenvolvimento calcado pela pequena produção familiar, a partir da colonização estrangeira. Contudo, devido à política imigratória do país, que dava preferência antes à entrada de trabalhadores para a lavoura do que a atrair pequenos proprietários, devido às condições favoráveis criadas pelo regime do colonato adotado pelos cafeicultores paulistas, e devido aos pesados subsídios que São Paulo pôde conceder à imigração estrangeira, a imigração para o Brasil Meridional deixou muito a desejar em relação à que demandou São Paulo. Isto tolheu a expansão econômica do Sul, embora o crescimento da pequena produção camponesa nos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná tivesse propiciado o surgimento relativamente precoce de uma difusa indústria doméstica e do artesanato rural, culminando na implantação das primeiras unidades da grande indústria capitalista, incentivada pelo mercado interno da zona colonial e pela existência de matérias-primas agrícolas de fácil processamento.

No entanto, o prosseguimento do processo de industrialização do Sul do país, propiciado pela expansão da agricultura camponesa, estava na dependência do prosseguimento da colonização estrangeira, a qual não teve o vigor suficiente para sustentá-la, pelas razões salientadas anteriormente. Além disso, a produção agrícola sulina teve que enfrentar, assim como a sua própria indústria, a concorrência de outras regiões do país, notadamente a de São Paulo. Na verdade, na medida em que a expansão da fronteira agrícola, resultante do processo de colonização estrangeira, esbarrou no reduzido número de imigrantes, comprometeu-se a expansão do mercado rural que servia de sustentação à instalação da indústria leve regional. Esta teve, pois, de procurar outros mercados, sendo obrigada deste modo a enfrentar a concorrência da indústria nacional nos mercados extrarregionais. A insuficiência, pois, do desenvolvimento da pequena produção camponesa estiolou parcialmente a industrialização regional, seu corolário necessário. Essa ausência de força do impulso industrializante sulino - que é a marca registrada da formação industrial da região em seus primeiros estágios - seria depois fatal, pois, quando a grande indústria urbana se instalou em São Paulo e o desenvolvimento do sistema de transportes permitiu a integração do mercado nacional, a força deste próprio impulso deixou de agir sobre a indústria regional, passando a contribuir para o próprio crescimento do parque industrial paulista, transformado em polarizador - pelo menos parcial - da economia regional.

No caso de Minas Gerais, a economia agrícola estadual inseriu-se, depois do advento do capitalismo, num processo de desenvolvimento singular, que implicava um dinamismo reduzido, incapaz de sustentar a força de trabalho rural, ansiosa por melhorar suas condições de vida e trabalho. De fato, ao desabrochar a República, o setor agropecuário estadual encontrava-se relativamente constituído, estruturando-se em torno da grande propriedade latifundiária, alicerçada na parceria e noutras formas de “troca de serviços”. O colonato difundira-se muito pouco, de modo que pesavam sobre os trabalhadores rurais relações de produção que implicavam grande sujeição aos fazendeiros. Mas, além das grandes propriedades, existia grande número de pequenos produtores rurais, formando uma espécie de campesinato, que se confundia com os agregados e os parceiros, que, embora trabalhassem diretamente para os proprietários, também tinham acesso à terra, pagando-o na forma de “serviços” ou mesmo com parte de sua produção. Mas, diferentemente do que ocorria nos estados do Sul do país, essa “classe média rural” encontrava-se prensada pelos grandes fazendeiros, que, além de deterem o grosso do fundo de terras de Minas, ainda controlavam a política estadual.

Como consequência da concentração fundiária, que criava uma “escassez” artificial de terras, das formas assumidas pelas relações de produção e do domínio político dos grandes fazendeiros, não somente os salários agrícolas se viam reduzidos, mas a propriedade camponesa encontrava-se tolhida em sua dinâmica expansiva. O baixo poder aquisitivo da imensa maioria da população do campo e o retardamento da modernização dos trabalhos agrários restringia a especialização produtiva dos estabelecimentos agropecuários e tolhia a expansão do mercado rural de produtos industriais, o que debilitava os liames entre o campo e a cidade e inibia a industrialização.

A indústria doméstica e o artesanato rural ganhavam, pois, em Minas, grande significado, fazendo com que o campo resistisse mais firmemente à penetração dos produtos da grande indústria urbana. Sofrendo a pressão das grandes propriedades e incapazes de se expandirem, as pequenas explorações entraram num processo de autêntica fragmentação e diferenciação, dentro do qual, embora um pequeno número de pequenos estabelecimentos trilhasse os caminhos da capitalização, a grande maioria ia se debilitando, forçando seus proprietários à proletarização. Desta forma, a “classe média rural” iniciava seu processo de desagregação, no seio do qual os aspectos negativos preponderavam sobre os positivos. Essa diferenciação do campesinato aliada à permanência de baixos salários e péssimas condições de vida e de trabalho dos trabalhadores rurais terminaram por gerar um movimento de migração em direção às outras regiões do país, onde o acesso à terra ou a remuneração da mão-de-obra fossem mais favoráveis.

Esse padrão de desenvolvimento agrícola, dominado pela lenta modernização da grande propriedade, refletiu-se na industrialização do estado. De fato, tendo como fundamento a presença de um mercado interno relativamente grande, devido ao peso da população estadual e à existência de um patamar mínimo alcançado pela divisão social do trabalho e pela produção mercantil, a grande indústria mecanizada começou a se instalar ainda na fase escravista, embora o processo só se tenha acelerado depois da Abolição. Mas desde cedo se pôde observar que seu caráter refletia, de muito perto, as características do meio econômico onde se instalara: a dispersão espacial, a dimensão reduzida dos estabelecimentos e o peso dos ramos de bebidas e alimentos e artefatos de couro. Mesmo a dominância da indústria têxtil era uma consequência da destinação rural da produção industrial mineira. Neste caso, a grande indústria urbana veio ocupar o espaço deixado pelo artesanato rural, desestruturado pela concorrência dos tecidos importados. É claro que este perfil seria alterado posteriormente, com o desenvolvimento da moderna siderurgia, resultado do aproveitamento das ricas jazidas de minério de ferro do estado e de sua abundância de florestas. Contudo, isso já seria outra história.

No caso de São Paulo, a onda de café trouxe no seu bojo a própria industrialização, processo culminante do dinamismo do “complexo cafeeiro”. Ocorreu, então, o primeiro surto industrial do estado, aproveitando as condições favoráveis criadas pelo Encilhamento. Com a crise da cafeicultura em fins do século passado, reduziu-se drasticamente o número de imigrantes estrangeiros dispostos a permanecer em São Paulo. Enquanto isso, a produção alimentar, já presente no interior da própria organização produtiva da cafeicultura, ganhava nova dimensão. A retração da entrada líquida de imigrantes e a crise cafeeira cercearam então o crescimento industrial, que foi retomado, no entanto, com a primeira “valorização” do café e o novo surto de plantios que antecedeu à crise de 1913.

Em 1914, com o advento da guerra, continuou interrompida a expansão cafeeira. Desta vez, contudo, a própria produção agrícola alimentar já se havia expandido de tal forma que as “lavouras de mercado interno” substituíram temporariamente a cafeicultura, como o setor dinâmico da agricultura estadual. Também a própria indústria já alcançara uma maturidade tal que passava a depender, cada vez menos, dos sucessos da cafeicultura, enquanto aumentava sua dependência na existência ou não de barreiras à penetração de produtos da indústria estrangeira no mercado paulista, já criado pelo “complexo cafeeiro”. Daí o inusitado crescimento industrial de São Paulo, durante o período do conflito. Os grandes lucros acumulados pela indústria paulista durante a Primeira Guerra e o aumento da capacidade de importar, decorrente da extraordinária recuperação das exportações do café entre 1918 e 1919, permitiram que se fizessem vultosas encomendas de máquinas e equipamentos industriais no imediato pós-guerra.

Contudo, logo se fez sentir a concorrência estrangeira, principalmente depois que a eficácia do esquema de “defesa permanente” do café passou a desestimular quaisquer esforços no sentido de proteger o mercado nacional. A própria diversificação da agricultura paulista foi interrompida e verificou-se uma nova concentração de recursos no setor cafeeiro, durante a segunda metade da década de vinte. Reduziu-se, então, fortemente o ritmo da acumulação do capital industrial no estado, assistindo-se, assim, a um movimento oposto ao que se verificara nos primórdios da República: a expansão cafeeira negava o prosseguimento da industrialização.

Entretanto, ao mesmo tempo, aprofundava-se a divisão do trabalho e ampliava-se o mercado interno, alargando uma das condições fundamentais de existência da grande indústria urbana. Bastou, pois, que a crise internacional iniciada em 1929 fraturasse a capacidade de importar do país, para que a indústria paulista voltasse a crescer exponencialmente, ocupando os espaços vazios deixados pela produção estrangeira. Neste sentido, o setor industrial de São Paulo passou a se valer de·forma crescente de suas bases mais sólidas e extensas, em relação à indústria do restante do Brasil, passando a invadir os mercados regionais do país, travando luta com as indústrias locais, tecnologicamente mais atrasadas e menos concentradas. Como consequência, uma vez passada a fase recessiva de 1929-1933 e retomado o sentido ascendente, o setor industrial de São Paulo voltou a experimentar taxas mais elevadas de crescimento, de modo que em fins da década de 1930 já se havia consolidado sua hegemonia definitiva dentro do território nacional.

Quanto ao Nordeste, à época da Abolição e da Proclamação da República, a região já possuía uma estrutura agrária polarizada, dentro da qual um pequeno número de latifúndios - quer fossem dedicados à produção açucareira, quer ao cacau, quer à pecuária, ou mesmo a outras atividades - monopolizava a grosso do fundo de terras economicamente aproveitáveis. As pequenas propriedades, disseminadas entre as grandes explorações, encontravam-se numa situação de subordinação econômica e política a estas últimas. Em muitos casos, os bolsões de pequenas propriedades funcionavam até mesmo como verdadeiros reservatórios de mão-de-obra para os grandes estabelecimentos. Em outras circunstâncias, os próprios latifúndios compunham-se de muitas roças de pequenos produtores arrendatários, que entregavam aos proprietários, além de parte de sua produção, dias de serviço, a título de renda da terra.

Essa estrutura agrária polarizada abrigava, no início do período republicano, uma agricultura de exportação de grande importância dentro do contexto brasileiro, produzindo algodão, cacau, açúcar, couros e peles. Além disso, o Nordeste encerrava uma agricultura de subsistência de relevância, uma vez que essa atividade garantia grande parte do fornecimento de gêneros alimentícios à sua grande população. Essa agricultura de subsistência, considerada atividade subsidiária da grande lavoura, dava suporte objetivo à pequena produção camponesa, que se comprimia nos interstícios dos latifúndios da região. Além disso, era tocada dentro das próprias grandes fazendas, como forma de assegurar a mão-de-obra necessária e garantir seu abastecimento.

Indubitavelmente, as transformações da economia agrícola do Nordeste durante a República Velha repercutiram profundamente no processo de industrialização regional, a exemplo do que ocorria nas outras regiões do Brasil. Com efeito, a “revolução agrícola”, promovida pelo surgimento das usinas de açúcar, provocou um aumento da regressividade da repartição da renda e a redução do número de empregos por saca de açúcar produzido, criando um excedente de mão-de-obra. Esse excedente, apesar de servir como condição favorável ao surgimento da grande indústria urbana, atuava comprimindo os salários para baixo e reduzindo o mercado interno para essa mesma indústria. Ademais, a “modernização” dos outros setores da atividade agropecuária regional manteve-se ainda mais restrita, conservando relações de produção arcaicas, um alto grau de concentração da propriedade da terra e o domínio completo dos “coronéis”, isto é, da classe latifundiária nordestina. As mudanças nas relações de produção foram pouco efetivas, perpetuando portanto a baixa eficiência, a baixa produtividade e os reduzidíssimos níveis salariais, comprimindo a demanda de meios de consumo e de meios de produção. Com isso, restringiu-se o mercado rural para a produção industrial urbana e inibiu-se o progresso técnico. A produtividade do trabalho continuou baixa e os métodos de produção continuaram primitivos, tolhendo-se a expansão da divisão social do trabalho, com a indústria rural resistindo, pelo menos parcialmente, à concorrência da grande indústria mecanizada. A força de trabalho viu-se, pois, prostrada, e a iniciativa das massas foi tolhida, de modo que o progresso econômico se fez de forma lenta e dolorosa, com a industrialização andando a passo de tartaruga. Não é à toa, pois, que se gerou um movimento de fuga da população nordestina, em busca de melhores condições de vida e trabalho em outras áreas do país. Com a crise de 1929, essa fraqueza congênita da indústria nordestina, cujo desenvolvimento se encontrava condicionado pelas disfuncionalidades da estrutura agrária regional, foi posta a nu. Como resultado, o Nordeste transformou-se em verdadeira “periferia” da indústria do Sudeste, vendo seus mercados invadidos pelos produtores paulistas, que passaram a desbancar completamente a produção regional.

Finalmente, a região Norte do Brasil também teve sua evolução econômica, no período da Primeira República, vinculada ao desempenho de sua atividade primária, através do extrativismo gomífero. As relações de produção prevalecentes na Amazônia baseavam-se no sistema de “aviamento”, que consistia na cessão, por parte do comerciante ou seringalista, de mantimentos e meios toscos de produção para a empresa coletora de produtos da região, ou diretamente para os seringueiros, que, ao término da expedição, deviam pagar o adiantamento, com juros, com o produto coletado. Na prática, esse regime levava a uma verdadeira escravidão por dívida, mantendo os seringueiros em situação miserável, enquanto os seringalistas e as “casas aviadoras” se enriqueciam. Esse atraso das relações de produção refletia-se nos métodos de produção adotados, que continuavam sendo primitivos e de baixa produtividade, ao mesmo tempo que praticamente impedia a expansão do mercado interno, dado o baixo nível dos adiantamentos em espécie que eram feitos aos produtores diretos. A própria prostração da força de trabalho inibia a iniciativa individual, tolhendo a formação familiar consumidora, constitutiva de um mercado rura1 em expansão. Mas, além da altíssima taxa de exploração da força de trabalho, o próprio caráter mercantil da exploração - uma vez que o excedente era arrancado, de fato, na esfera da circulação, pela troca de não equivalentes e a cobrança de juros escorchantes - fazia com que o excedente, em mãos da burguesia comercial e financeira, não se aplicasse à indústria regional, mas antes escoasse para fora da região, seja através da compra de produtos importados, seja pela remessa de lucros, realizadas pelos comerciantes e financistas forâneos, que dominavam a economia amazonense. Assim, o processo de industrialização não chegou nem a ensaiar seus primeiros passos na Amazônia durante a República Velha. Até o processo de debâcle da economia gomífera amazonense foi sintomático, pois da crise não resultou a superação da organização econômica preexistente, mas apenas o seu atrofiamento.

CARÁTER JUNKER DO DESENVOLVIMENTO CAPITALISTA DA AGRICULTURA NA REPÚBLICA VELHA

Em síntese, o desenvolvimento do capitalismo no Brasil durante a etapa inicial, isto é, durante a República Velha, alicerçou-se na expansão da agricultura, liberada pela reforma das relações de produção iniciada por volta de 1850 e que culminou com a extinção da escravatura em 1888. Dentro desse processo, a indústria infante, resultado último da implantação do capitalismo no pais, assumia um perfil regional estreitamente vinculado ao tipo de desenvolvimento agrícola dominante.

No Extremo Sul, uma pequena mas dinâmica economia camponesa impulsionava celeremente o processo de industrialização, embora o ritmo não pudesse ser maior, em decorrência dos próprios entraves que uma economia de pequena propriedade encontrava num país dominado pela grande propriedade latifundiária. Em São Paulo, o dinamismo extraordinário da economia cafeeira, baseada num compromisso entre a grande propriedade e a economia camponesa, empurrava, com redobrado vigor, o processo de instalação da grande indústria. Em Minas Gerais, pelo contrário, apesar de sua grande população, a indústria se encontrava fragmentada e disseminada espacialmente, refletindo um setor agrícola pouco dinâmico, baseado numa economia latifundiária, alicerçada em relações de produção mais atrasadas. No Nordeste, a industrialização estava na dependência do comportamento de sua agricultura de exportação, que, por sinal, se mostrava incapaz de manter competitividade internacional, justamente em razão da concentração da posse da terra e do atraso das relações de produção, que reduziam os produtores diretos a uma situação de completa sujeição frente aos “coronéis” da região, e da lentidão da difusão do progresso técnico e do avanço das forças produtivas, consequências diretas do domínio latifundiário e do atraso das relações de produção. Finalmente, no Norte, o estado lastimável a que se viu reduzida a força de trabalho, como resultado da exploração comercial, ensejada pelo sistema do “aviamento”, impediu a formação de um mercado interno que induzisse à instalação da grande indústria urbana.

Uma vez estabelecido o trabalho assalariado no país, essa dominação latifundiária continuou a prevalecer. Assim, apesar do avanço da economia camponesa no Sul, as grandes fazendas continuaram a predominar, quer em São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, regiões cafeeiras, quer no Nordeste açucareiro, cacaueiro e pecuário. Também continuaram em poder dos grandes fazendeiros as atividades econômicas mais rentáveis, vinculadas à grande lavoura de exportação. Mas, além do predomínio numérico e econômico, continuava a dominação política do aparelho de Estado que, no caso das unidades da federação, ficava nas mãos das oligarquias rurais regionais e, no caso do governo central, sob controle dos fazendeiros do café.

Assim, a política econômica republicana seria orientada por um “modelo primário-exportador’’, procurando desenvolver o complexo de exportação-importação e defender a própria atividade econômica agrícola de exportação, sendo a expansão do mercado interno e a instalação da grande indústria relegadas a segundo plano. E em estreita correspondência com essa política econômica interna, as classes dominantes do Brasil procurariam atrair o capital internacional, principalmente através da reiteração dos empréstimos externos e da política de liberdade de atuação das empresas estrangeiras fixadas no país.

Na verdade, em termos gerais, quer por sua predominância geográfica, quer pelo domínio político dos fazendeiros do café durante a República Velha, em aliança com as outras oligarquias rurais, quer pela própria condução do processo de gestação de novas relações de produção, o caráter de desenvolvimento agrícola do Brasil aproxima-se da via junker. Assim, o processo de desenvolvimento do capitalismo no Brasil se deu encabeçado pela grande exploração fundiária, que, paulatinamente, substituía o trabalho escravo pela parceria e pelo trabalho assalariado, substituindo os métodos de exploração pré-capitalistas pelos burgueses. Não houve, pois, uma verdadeira “revolução agrícola”, que subvertesse o domínio da oligarquia latifundiária, mas apenas a reforma das relações de produção, reforma essa preconizada e levada adiante pelos próprios fazendeiros do país. O capitalismo no Brasil não nasceu, pois, de um movimento de baixo, provocado pela expansão da pequena exploração camponesa que, tendo entrado em choque com o sistema latifundiário pré-capitalista, o substituísse, por um ato de força, pelo sistema de pequenos fazendeiros (farmers), em rápido processo de capitalização. Também não houve, a não ser em áreas reduzidas, a livre ocupação do solo virgem pela pequena propriedade, uma vez que, desde cedo, a grande propriedade latifundiária ocupou, pela força e pelo roubo sistemático, o fundo de terras acessíveis à exploração comercial. Ao contrário, o capitalismo no Brasil nasceu de um movimento imposto de cima, efetuado sob o controle dos antigos senhores de escravos, que desde logo se opuseram à reforma agrária e ao desenvolvimento generalizado da pequena propriedade.

Como resultado, a liberação das forças produtivas, proporcionada pela reforma das relações de produção, não seria suficiente para gestar um processo de industrialização mais acelerado, calcado na expansão da pequena economia camponesa em processo de capitalização. A “revolução agrícola” do Brasil ver-se-ia parcialmente mutilada e o desenvolvimento das forças produtivas encontraria seus limites na dominação latifundiária, do ponto de vista interno, e na dominação do capital financeiro internacional, do ponto de vista externo. Daí o lento e doloroso processo de sua modernização agrícola, com o predomínio de métodos arcaicos de produção, baixa produtividade, baixos salários e precárias condições de vida da maioria esmagadora da população. Daí, também, o corolário necessário dessa evolução agrícola: uma industrialização relativamente lenta, restringida e espacialmente restrita.

O caráter “prussiano” da via de desenvolvimento agrícola do Brasil está na raiz do domínio político da oligarquia latifundiária, que se exerceu durante toda a República Velha, e que encontra na figura do “coronel” a sua encarnação histórica concreta. Além disso, essa mesma “via” constitui-se o principal condicionante de toda a ulterior evolução política do país, uma vez que esta se processou, sempre, dentro de um quadro mais amplo de aliança orgânica entre a burguesia industrial e a classe dos grandes proprietários fundiários, contra o proletariado e o campesinato.

Segundo Carlos Nelson Coutinho, “o processo de modernização econômico social no Brasil seguiu uma ‘via prussiana’. Vamos recordar as características centrais do fenômeno: as transformações ocorridas em nossa história não resultaram de autênticas revoluções, de movimentos provenientes de baixo para cima, envolvendo o conjunto da população; mas se encaminharam sempre através de uma conciliação entre os representantes dos grupos opositores economicamente dominantes, conciliação que se expressava sob a figura política de reformas ‘pelo alto’. É evidente que o fenômeno da ‘via prussiana’ - tal como Lenin o formula - tem sua expressão central na questão da passagem para o capitalismo, no modo de adequar a estrutura agrária às necessidades do capital. Mas, generalizando o conceito, pode-se dizer que - sobre a base de uma solução prussiana global para a questão da transição ao capitalismo, - todas as grandes alternativas concretas vividas pelo nosso país, direta ou indiretamente ligadas àquela transição (Independência, Abolição, República, modificação do bloco de poder em 30 e 37, passagem para um novo patamar de acumulação em 64), encontraram uma resposta ‘à prussiana’; uma resposta na qual a conciliação “pelo alto” não escondeu jamais a intenção explícita de manter marginalizadas ou reprimidas - de qualquer modo, fora do âmbito das decisões - as classes e camadas sociais ‘de baixo’. Portanto, a transição para o capitalismo (e de cada fase do capitalismo para a fase subsequente) no Brasil não se deu apenas no quadro da reprodução ampliada da dependência, ou seja, com a passagem da subordinação formal à subordinação real em face do capital mundial; em estreita relação com isso (já que uma solução não-prussiana da questão agrária asseguraria o quadro para o desenvolvimento de um capitalismo não dependente), essa transição se processou também segundo o modelo de ‘modernização conservadora prussiana’”.3 3 Coutinho, Carlos Nelson, “Cultura e Democracia no Brasil”, Encontros com a Civilização Brasileira, 17:19-48, Rio de Janeiro, nov. 1979, pp. 26-27. Ver ainda: Coutinho, Carlos Nelson, “A Democracia como Valor Universal”, Encontros com a Civilização Brasileira, 9:33-47, Rio de Janeiro, mar. 1979, especialmente p. 41.

A INTERPRETAÇÃO DA “VIA JUNKER” E O DEBATE SOBRE O CARÁTER DA AGRICULTURA BRASILEIRA

Por outro lado, a compreensão do caráter junker da via de desenvolvimento agrícola do Brasil constitui-se a chave para o exercício da crítica da História do Pensamento Econômico sobre a evolução agrícola do país. Com efeito, ela permite constatar o caráter unilateral de diferentes teses que tentaram apreender o sentido dessa evolução, ao mesmo tempo que propicia o resgate de seu substrato verdadeiro. Assim, em primeiro lugar, destaca-se a concepção de que o desenvolvimento do capitalismo no Brasil defrontou-se com os obstáculos representados pelo caráter feudal de sua agricultura, ou, de acordo com uma variante mais aceita, com os empecilhos criados pelos restos do feudalismo no país. Evidentemente, a concepção extrema que afirma a existência do feudalismo no Brasil, mesmo antes da Abolição, já teve sua crítica realizada, diga-se de passagem, de forma igualmente extremada. Isto porque, no feudalismo, o servo é possuidor de seus meios de produção, estando preso a eles de forma indissolúvel, como quer dizer a expressão “servo da gleba”. O senhor feudal, por outro lado, é um proprietário apenas nominal da terra, pois o seu direito à propriedade se encontra limitado pelo direito do servo à posse, isto é, pelo direito do servo ao usufruto do solo. No caso do Brasil, no entanto, o escravo era propriedade absoluta de seu senhor, não tendo a posse nem da terra nem dos outros meios de produção, ou sequer dos meios de subsistência de que tinha necessidade para sobreviver. Que o escravo pudesse lavrar um lote de terra, para atender às suas necessidades de alimentação, nem de longe significava que tivesse a posse do lote. Aliás, esse fenômeno era encontradiço em outras sociedades escravistas. No Brasil, havia, portanto, escravismo, ainda que implantado por imposição do capital comercial português, de cuja expansão nasceu a Colônia. Na verdade, o uso do conceito de feudalismo para explicar a economia agrícola do país nos períodos colonial e imperial possui, como suportes concretos, o caráter latifundiário das culturas de exportação exploradas no Brasil e a presença da economia de “troca de serviço”; isto é, de relações de produção que são típicas do feudalismo, tais como a prática do “cambão”, que se confunde com a forma feudal da renda-trabalho, as diferentes formas de parceria, como a “quarteação”, a “meação” e a cessão da terra “pela palha”, que se confundem com a renda-produto, e, finalmente, o pequeno arrendamento, que também se confunde com a prática medieval da renda-dinheiro, forma de transição ao capitalismo. Contudo, a presença dessas formas não modifica o caráter do modo de produção dominante, onde o escravismo era central, alicerçando os principais setores da economia brasileira, como no caso da produção açucareira e da lavoura cafeeira. Por outro lado, essas formas vão estar presentes depois do advento do capitalismo, com o surgimento do trabalho assalariado, e, a bem dizer, por si mesmas não são definidoras do modo de produção dominante; a rigor, podem, inclusive, ser tomadas como formas desfiguradas de trabalho assalariado.

De igual modo, a concepção que pretende enquadrar o desenvolvimento da agricultura brasileira antes da Abolição dentro dos quadros do capitalismo, esquece-se do essencial, ou seja, das relações escravistas de produção, sobre as quais se erguia todo o edifício da economia imperial, condicionando a sua lógica de expansão e seu destino histórico. Na verdade, falar de capitalismo no Brasil antes da Abolição só é aceitável em termos formais, como na interpretação marxista das economias coloniais.

Contudo, se a caracterização da economia brasileira antes da supressão do escravismo como feudal é incorreta, a identificação de restos do feudalismo durante a República Velha, paradoxalmente, já é perfeitamente admissível. Na realidade, essa identificação baseia-se na constatação da situação de extrema opressão da massa fundamental da população brasileira, vale dizer do proletariado e do campesinato, que caracterizava a Primeira República, e na continuidade de relações de produção arcaicas, homólogas às de natureza feudal. Sobre tais bases, erguia-se toda a sociedade brasileira de então, onde o desenvolvimento das forças produtivas se fazia de forma lenta e contraditória.

Enquanto isso, no plano político, assistia-se ao domínio incontestável dos notáveis rurais, em sintonia com a sujeição do país ao controle comercial e financeiro das grandes nações imperialistas da época. Ora, a rigor, a precária situação das massas fundamentais da população brasileira durante a República Velha devia-se, antes, à herança do escravismo, que foi substituído pelo capitalismo através da ação dos próprios proprietários, do que à presença de restos do feudalismo.4 4 Na verdade, a constatação de que a herança republicana seria, antes, de natureza escravista e não feudal é de somenos importância, uma vez que, como queria Lenin, “as sobrevivências econômicas do escravismo não se distinguem em nada das do feudalismo”. Lenin, Vladimir Ilich, Capitalismo e Agricultura nos Estados Unidos da América. Novos Dados sobre as Leis de Desenvolvimento do Capitalismo na Agricultura, São Paulo, Brasil Debates, 1980, 100 pp., referência p. 10. Aliás, a persistência dessa herança se deve essencialmente ao fato de que no Brasil o advento do capitalismo não foi resultado do processo revolucionário que, nascido de baixo para cima, tenha destruído todo o carcomido edifício anterior, substituindo-o violentamente por uma nova ordenação jurídica, de natureza burguesa, tal como ocorreu na França. Pelo contrário, no Brasil a substituição do pré-capitalismo se deu por obra da própria aristocracia latifundiária, através da reforma das relações de produção, num movimento realizado de cima para baixo. Neste sentido, a analogia com a via prussiana é notável. Significa que a transição ao capitalismo no Brasil se processou sob condições mais desfavoráveis à população, isto é, por via dolorosa e lenta, pela qual o desenvolvimento das forças produtivas se dava lentamente e através da opressão econômica e política das massas, fadadas a suportar simultaneamente o peso sufocante da velha ordem de produção, ainda não de todo suplantada, e o nascimento da nova sociedade, a exigir alimentação contínua para não abortar. Contudo, a concepção de que o capitalismo no Brasil teria de lutar contra os restos do feudalismo é notável. Isso assim é na medida em que identifica, apesar de sua sustentação equívoca, todo esse extraordinário peso que a velha sociedade latifundiária, não derrocada por via revolucionária, impôs ao desabrochar do capitalismo no país.

Por outro lado, a receita da reforma agrária como meio de libertar o desenvolvimento das forças produtivas, ainda dentro dos limites do modo de produção capitalista, corolário necessário desta concepção, identifica-se realmente com os anseios da massa fundamental da população brasileira, que sofria os efeitos da herança latifundiária em sua própria carne, e tinha na reforma agrária a forma revolucionária de melhorar a sua própria sorte. No entanto, a mesma teoria dos restos do feudalismo equivocava-se, ao propor, como forma de viabilizar a reforma agrária, a aliança entre a burguesia e as massas populares, uma vez que o próprio patrocínio do advento do capitalismo no Brasil fora feito pela mesma aristocracia fundiária que se foi aburguesando e que, portanto, repudiava visceralmente soluções que implicavam a liquidação de suas bases de sustentação.

Mas, como se disse, a ideia de que o capitalismo no Brasil teria de lutar, depois do advento do trabalho assalariado, contra os restos do feudalismo também possui, como suporte empírico, a presença de inúmeras formas de relações de produção que durante a República Velha, por seu conteúdo, como vimos, eram muito similares às formas características do feudalismo. Na verdade, aqui reside outro mérito dessa concepção: na medida em que foi capaz de revelar o estado de miséria e de sujeição econômica e política das massas camponesas para com os fazendeiros de então e o grande obstáculo representado por esse conjunto de circunstâncias ao desenvolvimento das forças produtivas. Neste sentido, as críticas a essa concepção têm sido empobrecedoras. É o caso, por exemplo, da dura crítica realizada por Caio Prado Júnior, a partir da inversão imediata da ideia de que essas relações de produção arcaicas seriam feudais.

Com efeito, Caio Prado Júnior afirma que elas seriam apenas formas particulares de trabalho assalariado, onde a remuneração monetária seria substituída pela remuneração em espécie (como no caso dos parceiros), ou pelo direito ao cultivo do solo. Ora, a rigor, não se pode afirmar que essas relações de produção seriam próprias do capitalismo, ou se seriam restos feudais, a não ser que se possua um esquema que, a priori, as enquadre em tal ou qual classificação. Assim, a crítica de Caio Prado Júnior, apesar de toda a sua virulência, é claramente insuficiente e não supera os pressupostos que pretende criticar. Isto porque essas formas são o resultado de um processo de lenta transformação da grande propriedade latifundiária pré-capitalista em moderna exploração capitalista, que é pertinente à via junker de evolução agrária, onde o trabalho assalariado se mescla com formas pregressas de sujeição da força de trabalho, gerando formas híbridas onde o velho e o novo se misturam, impedindo sua catalogação precisa. De fato, olhando do ponto de vista do futuro, têm-se formas arcaicas de trabalho assalariado e, portanto, dentro dos quadros do capitalismo. Entretanto, olhando com os olhos do passado, têm-se heranças da “economia de troca de serviços”, de natureza latifundiária pré-capitalista.

Finalmente, pouco se adiciona à discussão conceber tais formas como funcionais ao desenvolvimento do capitalismo, na medida em que contribuem para a redução do valor da força de trabalho e, por conseguinte, permitem uma elevação da taxa de lucro do sistema econômico. Na realidade, essa última concepção suprime a riqueza da crítica que via claramente, nas consequências funestas do arcaísmo das relações de produção, uma das razões fundamentais da lentidão do desenvolvimento das forças produtivas no campo brasileiro, que infletia dificultando o processo de industrialização do país.5 5 A posição clássica da tese “feudal” é dada por Guimarães, Alberto Passos, Quatro Séculos de Latifúndio, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977. 249 pp. Já a posição oposta, que enxerga apenas diferentes formas do capitalismo no país pós-abolição, é dada por Prado Júnior, Caio, A Questão Agrária no Brasil, São Paulo, Brasiliense, 1979. 188 pp.; Prado Júnior, Caio, A Revolução Brasileira, São Paulo, Brasiliense, 1978, 267 pp.

  • 1
    Mello, João Manuel Cardoso de, O Capitalismo Tardio, São Paulo, Brasiliense, 1982, 182 pp.
  • 2
    Segundo o silogismo dialético, o singular (universal concreto) resulta da particularização do universal.
  • 3
    Coutinho, Carlos Nelson, “Cultura e Democracia no Brasil”, Encontros com a Civilização Brasileira, 17:19-48, Rio de Janeiro, nov. 1979, pp. 26-27. Ver ainda: Coutinho, Carlos Nelson, “A Democracia como Valor Universal”, Encontros com a Civilização Brasileira, 9:33-47, Rio de Janeiro, mar. 1979, especialmente p. 41.
  • 4
    Na verdade, a constatação de que a herança republicana seria, antes, de natureza escravista e não feudal é de somenos importância, uma vez que, como queria Lenin, “as sobrevivências econômicas do escravismo não se distinguem em nada das do feudalismo”. Lenin, Vladimir Ilich, Capitalismo e Agricultura nos Estados Unidos da América. Novos Dados sobre as Leis de Desenvolvimento do Capitalismo na Agricultura, São Paulo, Brasil Debates, 1980, 100 pp., referência p. 10.
  • 5
    A posição clássica da tese “feudal” é dada por Guimarães, Alberto Passos, Quatro Séculos de Latifúndio, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977. 249 pp. Já a posição oposta, que enxerga apenas diferentes formas do capitalismo no país pós-abolição, é dada por Prado Júnior, Caio, A Questão Agrária no Brasil, São Paulo, Brasiliense, 1979. 188 pp.; Prado Júnior, Caio, A Revolução Brasileira, São Paulo, Brasiliense, 1978, 267 pp.
  • 6
    JEL Classification: Economic history of Brazil; agriculture.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 1988
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