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Dívida, senhoriagem e inflação em economia do tipo brasileiro* * O autor agradece ao World Institute for the Development of Economic Research - WIDER, pelo apoio a esta pesquisa. Agradece ainda os co-autores do projeto: Edward Amadeo, Tariq Baduri, José Camargo, Stephen Marglin e Jaime Ros, como também Luiz Carlos Bresser-Pereira e Lídia Goldenstein por seus comentários e sugestões. A responsabilidade pelo trabalho final é inteiramente do autor. Traduzido por Danielle Ardaillon.

Debt, seigniorage and inflation in a Brazilian economy

RESUMO

Os novos países industrializados apresentaram algumas semelhanças em sua dinâmica inflacionária, principalmente com forte monopolização e política salarial. Outra característica é a manipulação da taxa de câmbio para atender a metas específicas, desconsiderando os perigos da inflação. Este artigo visa compreender esse processo, principalmente como as moedas locais começaram a perder seu papel de reserva de valor, a dolarização presente nessas economias e como a dívida externa é um problema.

PALAVRAS-CHAVE:
Inflação; senhoriagem; dívida pública

ABSTRACT

New industrialized countries presented some similarities in its inflation dynamics, particularly with strong monopolization and wage policy. Another feature is the manipulation of the exchange rate to attend specific targets, not considering the dangers of inflation. This paper aims to understand this process, especially how local currencies started to loss their role as reserve of value, the dollarization present in such economies and how foreign debt is an issue.

KEYWORDS:
Inflation; seigniorage; public debt

INTRODUÇÃO

Muitos países do Sul conheceram a inflação (e algumas vezes a estagflação) bem antes das economias centrais.1 1 De fato, várias ideias sobre inflação foram importadas nos primeiros estudos da “teoria da regulação”, pelo economista chileno Carlos Ominami (CEPREMAP (1977)). No seu livro, Bresser-Pereira e Nakano (1987) apresentam um breve histórico dos principais conceitos da “teoria estruturalista da inflação” (mark-up administrado, salário indexado, moeda endógena). Embora possam ser rastreados até Marx através dos trabalhos de Kaldor, Robinson, Keynes, Kalecki, Schumpeter e Bortkiewicz, esses conceitos foram desenvolvidos na América Latina, na tradição da CEPAL, pelo trabalho seminal de Rangel (1963) e, posteriormente, pelos trabalhos dos futuros “pais” dos Planos Austral e Cruzado. Esses países têm regimes de acumulação tão diversos que vamos deter a nossa reflexão apenas no caso dos países recém-industrializados (NICs) e, mais precisamente, daqueles em que alguns aspectos do regime fordista coexistem com aspectos mais especificamente subdesenvolvidos ou periféricos (daí a designação “fordismo periférico” dada a esses países em Lipietz, 1985LIPIETZ, A. (1985) Mirages et Miracles. Problêmes de l’industrialization dans le Tiers Monde, Paris. La Decouverte.).

Com efeito, durante as décadas de 60 e 70, os NICs foram submetidos a um regime de produção de massa, com o consumo interno crescendo paralelamente. Esse aumento do consumo interno teve uma distribuição mais desigual (no Brasil, por exemplo) ou mais igual (na Coréia do Sul, por exemplo). Todos esses países anteciparam o crescimento de suas exportações e criaram uma capacidade produtiva ao adquirir dos países centrais fábricas e equipamentos, aproveitando-se da oportunidade das baixas taxas de juro reinantes no mercado financeiro mundial nos anos 70. Por isso, a maior diferença entre eles e as economias centrais fordistas reside na importância da dívida externa.

Até onde estão consideradas as “regras do jogo”, eles apresentam semelhanças e diferenças com as economias centrais. Em primeiro lugar, a monopolização prematura das economias semi-industrializadas garantiu desde logo uma administração da fixação de preços através de mark-up arbitrário. Com efeito, a situação monopolística das empresas nesses países desde o período de substituição de importações (1945-1965) permitiu que elas pudessem fixar esse mark-up de acordo com uma meta de lucratividade, em qualquer estágio do ciclo de negócios. Daí o fenômeno bem conhecido, de Chile a Brasil, de que o mark-up aumenta e a inflação acelera nas recessões (Rangel, 1963RANGEL, I. (1963) A Inflação Brasileira. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.; Fonseca 1979FONSECA, M. (1979) “Contra o desaquecimento, crescimento seletivo”. Exame, 14 de março.; Ominami, 1980OMINAMI, O. (1980) Croissance et Stagnation au Chili: éléments pour l’étude de la regulation dans une économie sous-développée, Thêse Université du Paris - X, mimeo.).

Em segundo lugar, a lei salarial foi teoricamente a mesma nas economias centrais: inflação mais um fator de produtividade anual (isto fez parte das legislações do trabalho de Peron, Vargas e Cardenas!). Mas, na realidade, o salário real era muito mais flexível para baixo do que deveria ter sido de acordo com a lei, particularmente durante os regimes ditatoriais. De outra parte, a capacidade competitiva dos trabalhadores para impor maiores salários durante os booms não deve ser ignorada. Mesmo com alta taxa de desemprego e amplo setor informal, o mercado de trabalho formal não é “lewisiano”: rarefações de força de trabalho industrial podem surgir muito rapidamente. Assim, durante o boom dos NICs (nos anos 70), conquanto se considere o setor formal, a lei salarial podia ser aplicada ex post para o fordismo periférico.2 2 Sobre Brasil, ver, por exemplo, Coriat e Sabóia (1987).

Em poucas palavras, as regras do jogo fordista periférico podiam ser consideradas como condutas não explicitamente satisfatórias, em contraste com aquelas do jogo fordista. Não havia um acordo social a respeito da redistribuição dos ganhos de produtividade. Assim, o componente conflituoso da inflação, que retornou normal no final da “idade de ouro do fordismo setentrional”, já o era nos NICs desde o início de sua industrialização. Esse aspecto da inflação do Sul é certamente a parte mais importante da questão.3 3 A respeito dos componentes inercial e conflituoso da inflação, ver a síntese feita por Ros (1990).

Nesse tipo de economias do Sul, a importância da inflação sempre foi de tal porte que a sua “condição permissiva” (a emissão de créditos de acomodação) tinha que ocorrer. Porém (e isto é uma outra diferença com as economias centrais), inflação-zero e estabilidade do câmbio nunca foram norma para o Estado. Ao contrário, a política de taxa de câmbio era utilizada como instrumento econômico. Ou bem uma sobrevalorização real era utilizada para importar ou tomar empréstimo mais facilmente, ou então uma desvalorização real vinha facilitar as exportações. Em cada caso a taxa nominal de câmbio não era um constrangimento para a taxa de inflação. Assim, o componente inercial da inflação não era constrangido de fora como costumava sê-lo nas economias centrais, o que é outra diferença bem conhecida.

Outras razões (o populismo, por exemplo) induziram os Bancos Centrais dos NICs, particularmente nos países da América Latina, a uma política monetária frouxa. Como consequência, as moedas desses países foram privadas de sua funçao de reserva, e de qualquer valor como meio de pagamento fora do país. Isso acarretou forte tendência a usar a moeda internacional (o dólar americano) como segunda moeda para um nível ‘alto’ de funções monetárias (funções de reserva e de pagamento). Esse elemento, associado às primeiras características vistas anteriormente (o problema da dívida), introduziu maior especificidade monetária nas inflações do Sul, frequentemente chamada de “dolarização”. Estudarei a seguir esse conjunto de problemas.

Para tanto, restringirei novamente o escopo da análise à subclasse especial dos NICs onde essas características são mais claras: os latino-americanos. Construirei um modelo típico desse tipo de economia e, além disso, introduzirei a possibilidade de uma falta de capacidade de reserva da moeda nacional a ser compensada por algum mecanismo interno (além da substituição por dólar). Esse é particularmente o caso do Brasil. Estou, portanto, lidando com aspectos monetários de “economias de tipo brasileiro”. Isso não significa que esse trabalho deva ser lido como uma análise concreta do caso brasileiro. Em vez disso, o Brasil será usado para fornecer exemplos para a análise de um “tipo-B”, que inclua os traços mais relevantes das inflações nos NICs. Nem todos esses traços, entretanto, existem no Brasil.

Na seção I, definirei de maneira mais precisa os traços das economias do tipo-B e lidarei sobretudo com o impacto monetário do serviço da dívida. Na seção II, será mostrada a natureza peculiar da moeda nas economias de tipo-B (sobretudo na experiência brasileira) e suas consequências sobre o vigor da inflação serão examinadas. A conclusão resumirá a complexidade do fenômeno inflacionário das economias de tipo-B.

I. O QUE É UMA “ECONOMIA DE TIPO BRASILEIRO”?

Apresentamos aqui uma estabilização do caso brasileiro, até onde as causas distributivas da inflação são relevantes.

Temos, em primeiro lugar, os determinantes reais e institucionais do valor nominal adicionado. O mark-up e a formação dos salários nominais expressam ambos a indexação mútua dos rendimentos (inflação “inercial”) e a ausência de um entendimento social a respeito da distribuição do valor adicionado (inflação “de conflito”, na terminologia de Ros). Isso já é suficiente para explicar por que há inflação nas economias de tipo-B. Além disso, quando se lida com inflações de dois ou três dígitos, podemos assumir que as variações de produtividade são de segunda ordem em relação às variações na Expressão Monetária do Trabalho (MEL): portanto podemos tomar as produtividades de capital e trabalho como aproximadamente constantes.4 4 Agora, a diminuição da produtividade do trabalho pode ser um importante “choque exógeno” capaz de deslanchar uma aceleração da inflação. Além disso, o aumento de K/L tem certamente grande parte de responsabilidade no deslanche da inflação através de mark-up mais alto e do aumento do déficit externo. Esse fenômeno é importante para os países que importam equipamentos ao final da fase de “substituição fácil”. Ver Hausmann & Marquez (1986). Para caracterizar as inflações de tipo-B, entretanto, esse quadro não é suficiente. Ele requer dois outros traços:

  • Há uma dívida externa. o Estado tem a responsabilidade do seu pagamento; e os agentes privados (através de suas atividades de exportação) ganham a moeda estrangeira que deve ser mobilizada para pagar os juros e o pagamento do principal.5 5 Isto não é caso geral, mesmo na América Latina. Na Venezuela, por exemplo, as exportações de petróleo são a base dos rendimentos do Estado, que devem pagar a dívida de agentes privados.

  • O Estado não recolhe suficientes impostos sobre as atividades internas para dar conta de suas despesas e da dívida nacional. Ele deve, portanto, levantar fundos adicionais através de senhoriagem e de dívida pública adicional.

Não é essencial que essas duas observações caracterizem exatamente o Brasil. Como dissemos, a nossa intenção é muito mais a de fornecer uma explicação esquemática dos aspectos essenciais dos processos inflacionários do Terceiro Mundo. Entretanto, é bom que observemos o Brasil mais detalhadamente, para justificar a designação “tipo-B”.

Em primeiro lugar, grande parte do endividamento externo privado inicial foi contratado sob pressão do Estado para financiar o seu próprio déficit.6 6 O processo de “estatização” da dívida externa brasileira, e do endividamento do Estado em relação aos agentes privados, atravessou diversas fases descritas por Cavalcanti (1987) e Bontempo (1988). Antes de 1983, e ainda após o primeiro choque do petróleo, as· autoridades monetárias (Banco Central e Tesouro) induziram os agentes privados e as empresas estatais a tomarem empréstimo diretamente no mercado internacional e a transformarem os dólares obtidos em cruzeiros no Banco Central, para, então, emprestarem os cruzeiros ao Tesouro. A ideia era de aumentar a capacidade do Brasil em tomar empréstimo, de aumentar as reservas do Banco Central e de cobrir o déficit do Governo para com a Nação. Em troca, as autoridades monetárias assumiam o risco da variação do câmbio e da volatilidade dos juros, através da indexação dos títulos do Tesouro (ver Parte II, 2~). Durante os anos 70, a dívida externa direta do Estado aumentou e substituiu progressivamente a dívida privada durante o boom do país. Após 1983, o serviço da dívida externa dos agentes privados teve que ser pago ao Banco Central do Brasil, o qual, então, tomou a obrigação em relação aos credores estrangeiros: o Brasil tornou-se de fato um devedor do “tipo-B”. Em 1970, a dívida pública federal era de $2 bilhões e a dívida externa líquida das autoridades monetárias (dívida bruta menos reservas) era de menos de $750milhões. Assim as autoridades induziam os agentes privados a aumentarem sua dívida externa para aumentar as reservas externas do Banco Central! Como resultado, essas reservas líquidas ‘atingiam $5 bilhões em 1973; naquele ano, a dívida interna do Estado era exatamente igual a essa quantia. Depois, a dívida externa bruta do Estado começou a aumentar, atingindo o total das reservas em 1978. A dívida interna era então de $15 bilhões e a dívida externa bruta das autoridades monetárias era da mesma ordem. Em 1987, a dívida externa líquida das autoridades monetárias era de $50 bilhões (além de uma dívida bruta nacional de $111bilhões) e sua dívida financeira interna era de $32 bilhões. A dívida total líquida do Estado (interna mais externa) era, em 1970, equivalente a 3% do PNB e a 30% da receita fiscal. Essas duas proporções atingiam 7,3% e 75%, em 1978, e 27% e 270%, em 1987! Empresas, e particularmente empresas estatais, foram induzidas a tomar empréstimos no mercado financeiro internacional além de suas necessidades para importação de equipamentos. O Ministro do Planejamento concedia licenças de importação às empresas conquanto tomassem empréstimos externos equivalentes a duas ou três vezes o total do seu investimento em mercadorias estrangeiras. Quando as empresas utilizavam os seus lucros para comprar moeda estrangeira a fim de pagar sua dívida, o Estado podia mobilizar a contraparte doméstica para pagar o serviço de sua dívida interna. Mas, em 1983, a dívida privada foi estatizada e os credores estrangeiros tornaram-se explicitamente credores do Estado. Como resultado, a dívida externa ficou expressa, de um lado, como uma dívida do país com o exterior e, de outra parte, como a dívida do Estado em relação a agentes privados domésticos. Esta última poderia ter sido paga através de impostos, mas isto não ocorreu (ver o ponto 2. retro). Examinemos isto à luz do formalismo de Cohen (1987COHEN, D. (1987) “External and Domestic Debt Constraints in LDCs. A Theory with a Numerical Application to Brazil and Mexico”, in Bryant, R. C. and Portes, R. Global Macroeconomics, Policy Conflict and Cooperation. London: Macmillan.).

Chamemos D*(t) a dívida externa do país, C(t) o total de mercadorias consumidas privadamente (incluindo investimentos), G(t) as despesas do governo, Y(t) o PNB, i(t) a taxa internacional de juro, tudo isso sendo expresso em termos reais. Temos:

S a l d o c o m e r c i a l T B T = Y T - C + G T

S a l d o c o r r e n t e = T B T - I D * T - 1

A nova dívida externa do país é acrescida do déficit desse saldo corrente:

D * t = 1 + i D * t - I + C + G - Y t (I)

Chamemos T(t) os impostos recolhidos, D(t) a dívida interna do governo, @ a taxa real de juro interna. Os movimentos das dívidas interna e externa do governo são ligados (assumindo que, como no ponto 1 retro, D*(t) é a dívida pura do Estado) através do movimento no tempo do déficit total do Estado (externo e interno) da seguinte maneira:

D t - D t - 1 + D * t - D * t - 1 = i D * t - 1 + @ D t - 1 + G - T t (II)

Essa equação é a expressão de que a variação do endividamento total (interno e externo) do Estado é igual aos pagamentos de juros mais a transferência líquida real do Estado aos agentes privados.

Subtraindo (VII) de (VI), temos:

T B t = T - G t + D t H l + @ D t - 1 (III)

Assim, qualquer superávit na balança comercial deve ter correspondência na soma do superávit do governo e da nova dívida interna.

Na nossa estilização do “tipo brasileiro”, porém, o primeiro termo poderá ser coberto não tanto por impostos explícitos como por uma “taxa de senhoriagem”, ou seja, o rendimento real que o Estado ganha através da inflação. Dividamos o superávit governamental em duas partes: aquela acumulada do superávit de impostos explícitos Z(t) e a senhoriagem S(t). A equação (III) transforma-se em:

T B t = S t + Z t + D t - D t - 1 (IV)

Cohen (1987COHEN, D. (1987) “External and Domestic Debt Constraints in LDCs. A Theory with a Numerical Application to Brazil and Mexico”, in Bryant, R. C. and Portes, R. Global Macroeconomics, Policy Conflict and Cooperation. London: Macmillan.) fornece uma estimativa dessa decomposição no caso do Brasil antes do “choque heterodoxo”. A Figura 1 mostra a evolução de TB (Conta Corrente Sem Juros), Z e S. Pode ser visto que, embora Z varie de modo irregular e esteja declinando aproximadamente desde o quarto quadrimestre de 1983, a senhoriagem parece relacionada com a Balança Comercial. Isso traduz o mecanismo institucional através do qual moeda vai sendo criada na medida em que os exportadores vendem a sua moeda estrangeira ao Banco Central.

Figura 1
O Superávit Primário, Conta Corrente sem juros e Senhoriagem do Brasil 1963-85

No entanto, vê-se na Figura 2 o total da dívida do governo aumentando largamente. Avaliando a decomposição do ajuste total da conta corrente de 1983 (primeiro quadrimestre) até 1985 (quarto quadrimestre), Cohen acha que:

  • a senhoriagem atinge 57 ,5% do ajuste;

  • a variação da dívida interna é de 71%;

  • o superávit “explícito” Z (sobre o primário) atinge -28,6%.

Figura 2
Dívida total/PNB no Brasil 1975-85

Como resultado, 71% da dívida externa foram transformados em dívida interna e 29% foram pagos pelo governo, mas não a partir de cobrança de impostos. Pelo contrário, o governo teve um déficit primário (durante os últimos anos do regime militar) equivalente a 28,6% do ajuste externo. O que foi transferido do setor privado para o setor público foi transferido essencialmente através da senhoriagem. Desse modo, o endividamento do Estado e a inflação aparecem profundamente ligados à forma da transferência do país para os credores externos. Uma via alternativa poderia ser a transferência direta através de pagamentos de impostos explícitos. Mas a ausência do entendimento social, que está por trás da inflação inercial e conflituosa, é também responsável pela ausência de uma reforma fiscal. Desde o começo, o déficit fiscal acarretou o endividamento externo, e é possível que a crise fiscal e a crise da dívida venham a crescer no mesmo passo.

A maior consequência dessa evolução é a mudança dramática na estrutura do orçamento. A dívida do Estado adquire autonomia, e o serviço dessa dívida torna-se a maior parte do orçamento. No Brasil, em 1981, o déficit público figurava em 13,6% do PIB (relativamente às despesas do Estado que atingiram 40% do PIB: uma “economia central” standard), e os pagamentos dos juros públicos representavam 5% do PIB. Em 1985, o item “despesas do estado” permanecia constante e o déficit tinha baixado para 8,4% do PIB. Mas a percentagem dos juros da dívida pública tinha atingido 12,2% do PIB. A proporção entre os juros e o déficit tinha saltado de 0.37 para 1.45! Perderam evidentemente os investimentos do Estado, caindo de 9,6 para 4,9% do PIB (Salama, 1989SALAMA, P. (1989) La Dollarisation. Paris: La Découverte.: ver Quadro 1).

Quadro 1
Componentes do Orçamento como Percentagem do PNB

Para terminar essa parte, devemos dizer que, do conflito costumeiro a respeito das distribuições de renda indo para os salários e lucros (e outros rendimentos), o serviço da dívida externa deve ser introduzido na briga pela divisão do valor adicionado nacional.7 7 Para a América Latina inteira, a transferência líquida anual de capital para o exterior soma 4% do PIB desde o início dos anos 80. Essa cifra é provavelmente maior do que o aumento de produtividade. E a população vai aumentando. A contribuição “conflituosa” do serviço da dívida para a inflação deve ser, portanto, muito importante. A partir do momento em que não há um consenso nacional sobre essa distribuição, o déficit do Estado toma a responsabilidade do serviço da dívida, e o financia através da dívida pública interna. O Estado, por sua vez, não ousa introduzir uma taxação explícita sobre os rendimentos primários para poder pagar a dívida, mas ele a financia através da senhoriagem, que só pode existir num contexto de inflação.

II. A RIGIDEZ MONETÁRIA DA INFLAÇÃO DO TIPO-B

Precisamos agora levar em conta a conexão entre a “necessidade” de inflação e a “necessidade” do endividamento do governo. Ao financiar as transferências externas e o déficit fiscal interno através de dívida e senhoriagem, o Estado induz os agentes privados a condutas extremamente perversas. Ou seja: a usar os dólares e os títulos do Tesouro Nacional como moeda. Focalizaremos agora esse segundo ponto, dos títulos do Tesouro, por ser o mais interessante e pelo fato de ele coexistir necessariamente com o primeiro.

Para financiar o seu déficit, o Tesouro deve oferecer papéis atraentes, ou seja, aqueles que rendem uma taxa real de juros. Numa “economia central-fordista”, esses títulos devem ser monetizados por um Banco Central independente, que autorize sua troca, de acordo com regras restritivas, contra a moeda oficial legalmente em vigor no território nacional. Entretanto, a inflação necessária na economia de tipo-B ameaça o caráter de reserva da moeda do Banco Central. Daí o salto para os dólares. Os títulos do Tesouro, ao contrário, ao produzir taxa real de juro, podem ser usados como meios de reserva e de pagamento.

Numa economia de tipo-B, assumimos que a moeda oficial é usada como moeda de referência, para contratos, e como moeda “vernacular”, para impostos, salários, pagamentos e comércio corrente. Os títulos do Tesouro são utilizados como moeda “verdadeira” entre empresas, bancos e Estado. Por moeda “verdadeira” queremos dizer que ela é usada tanto como unidade de conta, como reserva de valor e de meio de pagamento entre aqueles três agentes. Ela pode ser usada como meio de troca e de pagamento, ou pode ser trocada imediatamente por moeda vernacular no decorrer dessas operações. Chamamos essa moeda que rende juro de “moeda alta”.8 8 Um monetarista como Brito (1979) chegou à convicção empírica de que a equação quantitativa é válida para o Brasil conquanto a massa monetária inclua os títulos do Tesouro.

A “moeda alta” e a moeda vernacular são evidentemente intercambiáveis a qualquer momento, a uma taxa que depende da inflação. Há, porém, uma “barreira no acesso” à “moeda alta” (em função de hábitos culturais, pelo fato de não existirem bancos nas pequenas aldeias ou nos bairros pobres, ou por causa da não-divisibilidade dos títulos). Há, portanto, uma característica social nessa distinção: a moeda vernacular é também a moeda dos mais pobres, sendo a “moeda alta” reservada às empresas e às classes médias e altas. E ainda as duas moedas podem evidentemente ser trocadas por uma terceira moeda: o dólar, num mercado mais ou menos “negro”. Apesar disso, a existência de uma “moeda alta” é um bom incentivo para impedir o êxodo de capitais.9 9 Segundo Salama (1989), isto pode explicar o reduzido êxodo de capitais brasileiros se comparado com o caso argentino. A saída de capitais representaria algo como $49 bilhões de uma dívida externa de $50 bilhões, no caso da Argentina, e somente $15 bilhões de uma dívida de $107 bilhões, no caso brasileiro (Salama utiliza a avaliação do Morgan Bank, World Financial Market, março 1986). Vê-se aqui que há dois incentivos para que os agentes privados retenham a “moeda alta” nacional: o limite para o acesso às moedas estrangeiras (o bastão) e os juros sobre a “moeda alta” (a cenoura).

Quais são as consequências da existência de “moeda alta” para os processos inflacionários? É desse ponto que vamos tratar agora, para voltar em seguida à realidade brasileira.

1º Moeda-que-rende-juro: consequências inflacionárias

Um novo tipo de moeda-crédito aparece, portanto, nas economias de tipo-B: uma moeda-que-rende-juro (Faria, 1988FARIA, L. (1988) “A Inflação Brasileira e a Moeda-Crédito”, International Conference in Regulation Theory, Barcelona, 16-18 de junho.). Ela é bastante diferente da moeda-crédito das economias centrais. Nesses países, existe uma marcada hierarquia entre moeda e crédito. Dois agentes diferentes dividem a responsabilidade na emissão da moeda-crédito: Em primeiro lugar, os bancos comerciais reconhecem, prevalidam as dívidas (tanto das empresas como do Estado). A seguir, os Bancos Centrais oficializam, pseudo-validam, alguns direitos trocando-os contra uma moeda-que-não-rende-juro. A moeda é um sinal inquestionável de valor, mas não rende nenhum juro; as dívidas comuns produzem juros mas continuam com valores questionáveis (não líquidos).

Nas economias de tipo-B, os títulos do Tesouro combinam duas qualidades, ao passo que a moeda oficial não oferece nenhuma. Assim, apenas um agente, o Estado, emite, de acordo com suas necessidades, as únicas notas que gozam das propriedades essenciais da moeda. Com mais uma: é uma moeda que rende juro. Com menos uma: é diferente da unidade de moeda vernacular. Uma compensa a outra. Essa diferença, porém, bem como a sua instabilidade (a razão de conversão entre a unidade de reserva de valor e a unidade de conta) representam um fator de inflação embutido na existência da moeda-que-rende-juro.

Para entender isso, utilizamos a Expressão Monetária do Trabalho (MEL), lembrando que variações de produtividade do trabalho ou do capital são irrelevantes em relação às mudanças nominais. Agora, consideremos que no tempo t=0, a unidade de “moeda alta” (o título do Tesouro) é igual à Expressão Monetária do Trabalho (em moeda vernacular ou seja em cruzeiros) - MEL (0). Esse título produz uma taxa nominal de juro @. Assumimos para o momento que as autoridades monetárias fixem essa taxa para uma taxa de inflação corretamente projetada, de maneira que o título do Tesouro é o meio exato de conservação de valor, nem mais, nem menos. No tempo T, o mesmo título mais juro representa, portanto, o mesmo poder de compra em valor (a partir do momento em que é uma moeda de reserva), porém a sua expressão corrente em moeda vernacular MEL(T) mudou:

M E L T = 1 + @ T M E L 0

E, supondo que À seja constante, este valor representa a mesma quantidade de mercadorias, e essa equação muda para:

P T = 1 / À M E L T = 1 / À M E L 0 . 1 + @ T = p 0 1 + @ T (V)

e MEL(0)/À representa exatamente o preço pO do produto da unidade de trabalho no tempo t=0.

Assim, pelo que assumimos, o uso de um instrumento de reserva que rende juro implica um aumento de preços igual à taxa de juro sobre este instrumento de reserva. Em outras palavras, a lógica financeira combina-se com a lógica inercial-conflituosa de produção e de distribuição. A mistura das duas produz:

p T = p 0 1 + @ T = R / T - 1 + w t - 1 I t - 1 (VI)

e a conexão entre a taxa de juro @, o limite máximo R e o salário nominal w torna-se muito complexa!

Até agora, aceitamos a hipótese de uma inflação pura “profundamente” inercial e conflituosa (envolvendo R e w) que se impõe ela mesma como determinante de@. Como @ é exatamente a taxa de inflação, a equação (VI) deve ser lida então da direita para a esquerda: ela expressa a indexação pura dos títulos do Tesou­ro, os quais podem ser usados como moeda pura de reserva, rendendo uma taxa real de juro zero. Nenhum constrangimento posterior é imposto (pela existência de uma forma de moeda-que-rende-juro) sobre o mecanismo geral de indexação que está na raiz da inflação inercial. Isto é também verdadeiro se a “moeda alta” for o dólar, e se uma desvalorização suave e regular compensar o diferencial entre as taxas de inflação interna e norte-americana. Há, porém, uma série de dificuldades.

Para começar, a inflação inercial está agora embutida nas propriedades da “moeda alta” (como distinta da unidade corrente). Isso impõe um limite para a eficiência da senhoriagem. Há um limite máximo para a renda real que um governo pode extrair da criação de moeda. Nesse ponto máximo, a taxa de inflação é igual ao inverso da semi-elasticidade da demanda de moeda em relação à taxa de inflação.10 10 Resultado bem conhecido (ver Cagan (1956): demonstração no Apêndice). De acordo com Cohen (1987COHEN, D. (1987) “External and Domestic Debt Constraints in LDCs. A Theory with a Numerical Application to Brazil and Mexico”, in Bryant, R. C. and Portes, R. Global Macroeconomics, Policy Conflict and Cooperation. London: Macmillan.), essa taxa mensal está ao redor de 11% no Brasil. A taxa real de inflação tem estado acima desse limite desde o início dos anos 80, do lado decrescente da “curva de Laffer da taxa de senhoriagem”. Mas, em primeiro lugar, a quantidade de moeda que serve de base para essa taxa de senhoriagem diminui com a importância da moeda alta “livre de senhoriagem”. Segundo, como veremos, a taxa de juro @ empurra a taxa de inflação para cima, além do limite de eficiência.

De fato, um depósito em títulos do Tesouro não é uma reserva pura. É também suposto ser uma forma de poupança, que produz uma renda real especialmente se os depósitos em dólares disponíveis produzem um juro real. Portanto, a taxa de juro sobre essa dívida (@) deveria ser maior do que a inflação. Então, a causalidade na equação (VI) deve ser lida da esquerda para a direita: @ impõe-se como propulsora da inflação, porque o mark-up R deveria ser administrado de tal maneira que o capital produtivo pudesse produzir uma taxa de lucro competitiva com as rendas acumuladas de reservas não utilizadas! Vários mediadores vão compor-se nessa conduta:

  • quando as empresas estão endividadas, os custos financeiros são parte dos custos de produção e, de qualquer maneira, @ representa o custo da oportunidade de comprometer o capital na produção;11 11 Isso pode lembrar velhas discussões do final dos anos 70 e início dos 80, no ponto de inflexão da crise das economias centrais fordistas. Depois, foi discutido se um aumento da taxa de juros poderia aumentar a taxa de inflação (mecanismos de indexação repassando esse aumento aos custos), ou se a reduziria pela diminuição da liquidez. De fato, parecia que entre 1979 e 1982 o primeiro efeito prevalecera. Mais tarde, o “choque monetarista” conseguiu destruir a indexação, acarretando, portanto, uma impressionante redução da inflação. Ainda no final dos anos 80, o Reino Unido verificou que um aumento da taxa de juros podia aumentar a taxa de inflação.

  • o aumento de @ acima da inflação real pode ser interpretado como um sinal de que as autoridades monetárias projetam uma aceleração da inflação, induzindo assim as empresas a aumentarem os seus preços de oferta;

  • quando o preço de custo é calculado diretamente pelas empresas numa unidade “constante” de moeda, que sejam dólares ou títulos do Tesouro, a causalidade na equação encontra-se então completamente invertida: da esquerda para a direita.12 12 Esse processo é paralelo aos estágios de inflação acelerada, segundo um comentário de Luiz Carlos Bresser-Pereira feito sobre este trabalho: os preços são indexados em primeiro lugar pela inflação passada, depois pela inflação esperada, enfim, pela taxa nominal de juros; ele chama este último estágio de “hiperinflação indexada”.

Em outras palavras, ao misturar moeda e crédito, a “moeda alta” mistura as expectativas dos agentes, que querem apenas preservar o valor do seu dinheiro, e as expectativas daqueles que estão esperando uma renda real do seu depósito. Se o controle dos fluxos de capital não for eficiente, e se @ for fixada para proteger apenas o valor do depósito, o segundo grupo de agentes será induzido a mudar os seus haveres para o exterior, em busca de mercados financeiros mais remuneradores. Assim a taxa @ sobre a “moeda alta” é fatalmente destinada a ser mais alta do que a inflação esperada e, através desse mecanismo (VI), ela acelera a inflação.

Mas há pior. Até agora, parece que uma política de renda mais a conversão dos títulos (no Brasil: OTN, ORTN, LTN, LBC ... ), ou seja, uma troca dos velhos papéis que rendem uma alta taxa de juros por papéis novos rendendo uma taxa nominal de juros corrigida pela desinflação esperada, poderia esfriar as inflações tanto “profunda” como monetária. O problema reside na conexão com o resto do mundo e, até onde a inflação está em questão, na taxa de câmbio entre a unidade monetária nacional e o dólar (aqui, novamente, devemos considerar a inflação mundial como de segunda ordem em relação à inflação interna).

Enquanto o país conserva uma taxa “real” de câmbio constante através de sucessivas minidesvalorizações (segundo a tática Delfim Neto, o principal ministro das Finanças da ditadura brasileira), estamos sempre dentro da “lógica inercial”. Uma política conjunta de esfriamento da inflação, de taxa de juro e de taxa de desvalorização é concebível. Mas a necessidade de conquistar novos setores do mercado mundial, para melhorar a balança comercial, pode levar a maxidesvalorizações. O problema é que esses títulos do Tesouro são também frequentemente indexados (mais ou menos) ao dólar. Portanto, como Salama (1988) o indicou, o valor nominal dos títulos (expresso em moeda vernacular) é aumentado pela taxa da desvalorização real. E a taxa de inflação é aumentada do mesmo modo. Isto não se deve ao fato de todos os preços estarem indexados ao dólar (a “dolarização da economia” como em Israel ou na Argentina), mas pelo fato de a moeda estar rendendo um juro real que deve compensar a desvalorização. Até onde a moeda está em questão, uma economia totalmente do tipo-B não é tanto “dolarizada” quanto “titularizada”.

2º O Brasil como uma “economia de tipo B”13 13 Os parágrafos seguintes devem muito aos trabalhos de Goldenstein (1987, 1988), e às frutíferas discussões com essa autora.

Do ponto de vista monetário, o Brasil é uma economia de tipo-B muito interessante. Até 1990, nunca teve experiência de uma “dolarização” pura e simples, ou seja, da dramática substituição de sua moeda nacional pelo dólar, operada com a simples indexação dos preços internos pela taxa de câmbio. Ao contrário, o Brasil combateu o declínio do valor de reserva de sua moeda oficial pela consolidação de uma moeda nacional “alta”. Essa “moeda alta” não pode ser assimilada a pseudo-dólares (como Salama, 1989SALAMA, P. (1989) La Dollarisation. Paris: La Découverte., o faz). O valor dessa moeda (chamejo-a de OTN),14 14 OTN é o nome usado tanto para um tipo de título do Tesouro (Obrigação do Tesouro Nacional), como para o índice utilizado para a correção monetária de todos os papéis que não são indexados ao dólar (através da OTN cambial). Assim, OTN pode ser compreendida como a unidade de conta usada para a “moeda alta”. em moeda vernacular, foi geralmente indexado pelo índice nacional de preços, independentemente do valor do dólar, e o princípio da paridade do poder de compra não se mostrou válido a médio prazo. Assim, como outros países que tiram vantagem de sua soberania nacional, o Brasil pôde praticar desvalorizações ou revalorizações reais. Dessa maneira, a taxa real de juro sobre a “moeda alta” não foi a mesma do eurodólar (libor mais spread). “Política monetária” era, portanto, no Brasil, uma expressão que tinha ainda algum sentido.

Enfim, pelo menos até 1990, o Brasil existia ainda como entidade monetária. Mas o fato de sua moeda estar cada vez mais identificada com as dívidas públicas acarretou muitas consequências perversas, todas elas emperrando quaisquer condutas das autoridades monetárias (Tesouro e Banco Central) destinadas a lutar contra a inflação. É que o processo de estabilização da “moeda alta” é também o processo de confusão entre moeda e crédito,15 15 Ou, na nossa terminologia (Lipietz, 1983) entre prevalidação (pelo poder de compra dos Bancos do Estado) e pseudovalidação (dos seus futuros rendimentos pelo Estado que reconhece e impõe sua própria dívida como meio de pagamento). e, portanto, do desaparecimento da política monetária. No decorrer desse processo, o Brasil salvou-se de maiores saídas de capitais, mas criou tendências inflacionárias.

Em 1967, foram criadas as Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional (ORTN), primeiros títulos do Tesouro a render uma taxa prefixada de juros mais a correção da inflação. Na época, era um instrumento real de poupança e de intermediação, e significava, além da senhoriagem sobre a moeda vernacular, o instrumento de financiamento do déficit do Estado fora do endividamento privado externo. Após 1974, a avidez por dólares era tal que a taxa de juros sobre os títulos indexados do Tesouro foi aumentada para incentivar os agentes privados a tomar empréstimos no mercado internacional. Foi o início de um círculo vicioso.

A dolarização do passivo dos agentes privados aumentou. Paralelamente, aumentaram o volume e o custo da dívida pública. Para poder lidar com as enormes taxas reais de juros (ultrapassando 15% ao ano e algumas vezes muito mais entre 1973 e o Plano Cruzado), o Estado tinha que acudir com subsídios os setores estratégicos da economia: o que veio a aumentar ainda mais o déficit orçamentário.

No decorrer dos anos 70 e início dos anos 80, desenvolveram-se esses mecanismos perversos. A senhoriagem atingiu seu “limite de Cagan”16 16 Ver o Apêndice e a emissão de obrigações do Tesouro aumentou dramaticamente, com uma série de nomes diferentes e diversas formas de indexação: pela inflação dos preços internos, pelo dólar ou pela escolha entre os dois.

Como resultado, os títulos do Tesouro tornaram-se uma parte importante dos haveres totais. De um lado, os bancos comerciais foram autorizados a comprar títulos em quantidades várias vezes maiores do que seus próprios fundos, títulos que eles financiavam no mercado de moeda de muito curto prazo através de alguma forma de Mutual Money Market Funds. De outro, essa forma de investimento (chamado overnight no Brasil!) tornou-se a maneira normal de se conservar ativos. Um ativo ao mesmo tempo perfeitamente líquido (como o nome overnight o indica) e rendendo uma incrível taxa real de juro! Na prática, o acesso ao overnight era limitado por barreiras de entrada. Uma outra forma de depósito, a Poupança - instituição pública de poupança que deveria supostamente financiar um sistema social de habitação - garantia um juro real de 6%, com acesso universal (até para os mais baixos níveis de renda), mas não era completamente líquida (o dinheiro podia ser retirado apenas uma vez por mês).

Assim, na primeira metade dos anos 80, existiam no Brasil duas formas de poupança: uma para o povo, a Poupança, rendendo 6% reais a curto prazo, e outra, financiada pelos depósitos em overnight, portanto líquidos e rendendo uma maior taxa real de juros! E os próprios certificados bancários eram de prazo cada vez mais curto. Enquanto a massa da população estava ainda descobrindo a diferença entre a moeda vernacular de valor cada vez mais diminuto e sua forma de poupança - a caderneta -, as classes alta e média e as empresas já estavam misturando moeda e poupança na forma do overnight, indexada pela OTN e rendendo mais do que a Poupança. Empresas e classes superiores utilizavam evidentemente também a Poupança para proteger seus haveres, especialmente nos períodos em que as taxas reais de juro sobre a OTN estavam abaixo de 6% (algo que se tornará frequente após 1985).

A estrutura dos haveres financeiros na economia (domicílios e empresas) deslocou-se então de maneira dramática da moeda oficial (vernacular) para a “moeda alta” (Quadro 2). Em 1966, o papel-moeda representava 18% dos haveres, os depósitos em conta corrente, 62%, e não havia Poupança. Os 20% restantes eram não-monetários. Em 1970, os haveres monetários (vernacular) tinham caído para 50%, a Poupança representava 4,1% e os títulos da dívida, o restante. Em 1978, os haveres monetários ainda correspondiam a 32%, a Poupança a 19%. Em 1985, os haveres monetários caíram para 14% (papel-moeda: 2,9%), a Poupança passou para 27% e os títulos da dívida (na maior parte dívidas federais) para 59%.

Quadro 2
Estrutura dos Haveres Financeiros

Como o que estava na Poupança era também protegido contra a inflação, a base para a “taxa de senhoriagem” estreitou-se acentuadamente (em face, porém, de uma taxa muito maior). Na prática, uma fração importante dos lucros de senhoriagem foi transferida aos bancos, por algum efeito Tanzi invertido e pelas perdas de tempo na conversão entre dinheiro, contas correntes e overnight.17 17 Essa senhoriagem privada, que representa um aumento de rendimentos para o capital financeiro, é enfatizada por Lídia Goldenstein como um efeito real (conflituoso) do processo monetário. O efeito Tanzi direto consiste numa transferência real para o Estado, quando uma taxa reduzida de inflação limita as perdas na cobrança de impostos, perdas devidas a atrasos no processo burocrático (ver Ros, 1990). Perdas de tempo mínimas, incidindo porém sobre enormes volumes e com inflação desenfreada! Além disso, os bancos guardaram para si a diferença entre a taxa sobre o overnight e a taxa sobre os títulos do Tesouro.

Havia também uma terceira moeda: o dólar. E no início dos anos 80, na época do “choque monetário”, os haveres em dólar rendiam uma taxa nominal de 20% no mercado internacional! Esse juro real alto sobre o dólar induziu um alto patamar inicial para o juro real sobre a OTN, e, portanto, empurrou a inflação para cima. Mais ainda, em 1981 e 1983, para lidar com os déficits comerciais, o governo resolveu fazer “maxidesvalorizações” (ou seja, desvalorização real sobre e acima da constante desvalorização cobrindo a inflação). A partir do momento em que uma parte dos títulos do Tesouro era explicitamente indexada ao dólar, e que a substitubilidade dos haveres entre as três moedas no mercado negro era importante, a taxa de juros sobre a dívida pública e o valor nominal do seu estoque cresceu novamente. Nesse processo, a distinção entre “dolarização” e “titularização” desapareceu, enquanto se aguçava a crise fiscal do Estado.

Ao mesmo tempo, ocorria um aumento camuflado do patamar superior da taxa real de juros: qualquer alta do juro real dos títulos do Tesouro desvalorizaria os títulos em poder dos bancos, ou seja, seus ativos, enquanto seu passivo era financiado no overnight. Com o risco crescente de bancarrota do conjunto do sistema financeiro, as autoridades monetárias, sustentadas pelos bancos comerciais (Epstein e Schor, 1988EPSTEIN, G. e Schor, J. (1988) “Macropolicy in the Rise and Fall of the Golden Age”, WIDER Working Paper. In Marglin (1990).), foram perdendo o controle.

Com o Plano Cruzado (fevereiro de 1986), a moeda vernacular recuperou a sua capacidade de reserva, e se deu a “remonetização” da economia: a distribuição dos haveres monetários voltou aos valores de 1979. As autoridades monetárias tentaram então restaurar a distinção entre moeda e crédito. Em maio, um novo tipo de título, a Letra do Banco Central (LBC),18 18 Letra do Banco Central. Esses certificados são atrativos para o portador final que os utiliza como instrumentos de reserva, como também para os grandes bancos cujos passivos (isto é, os depósitos correntes) são inferiores aos custos com overniights. foi criado, rendendo a taxa média de juro do mercado financeiro (ou seja, uma taxa real de juro baixa). A LBC deveria ser a “moeda alta” “de reserva”. Houve tentativas de reintroduzir um papel de longo prazo, a Letra do Tesouro Nacional com taxa de juro flutuante (LTNF),19 19 Letra do Tesouro Nacional com Taxa de Juro Flutuante (uma forma de Libor). Esses títulos estavam protegidos contra a inflação, mas não tinham liquidez. que continha um risco para o portador final, mas que rendia uma taxa maior de juro. Entretanto, os maus hábitos criados com a moeda-rendendo-juro-real prevaleceram e isso explica em parte o insucesso do Plano Cruzado. Em primeiro lugar, a “ilusão monetária invertida” se deu com a Poupança: com a sua nova taxa nominal de juro baixa, a Poupança revelou que “não rendia mais o mesmo que antes”, o que provocou um boom de consumo (por parte do povo) e, no caso das empresas e das classes mais abastadas, um deslocamento para o mercado negro de dólares.20 20 O “ágio” no mercado negro de dólar atingiu 88%.

Mas os hábitos nominais mostraram também seus efeitos no mercado de “moeda alta”. Em junho de 1986, quando o superaquecimento da economia brasileira ficou evidente, as autoridades monetárias tentaram “esfriá-la” com as receitas clássicas, elevando a taxa de juro no mercado financeiro e, portanto, a taxa das LBC. Isso foi imediatamente interpretado pelos donos de haveres como uma indexação por uma inflação prevista por parte do Governo. O que arruinou a confiança depositada nos títulos não líquidos.

Nas regras do jogo que tinham prevalecido por anos, era suposto que a moeda aumentasse por si, mesmo quando usada como simples instrumento de reserva, mesmo quando os preços estivessem congelados ... Isto também é “inércia”.

Quando, ao final de 1986, o Plano Cruzado falhou, a situação voltou imediatamente aos idos de 1985. A LBC (LFT depois de 1988) ficou a única “moeda alta”. Todas as tentativas de criar instrumentos de poupança de mais longo prazo eram aceitas apenas pelos Bancos, com a promessa de que o Estado os recompraria em caso de dificuldade na sua oferta ao público (“carta de recompra”). De fato, antes, durante e depois do Plano Cruzado, todos os papéis conservaram liquidez independentemente dos termos oficiais, pois os tomadores finais só se engajavam no overnight, e os donos intermediários (os Bancos) conservavam aberta a possibilidade de monetizá-los no Banco Central. Na realidade, a proporção entre o volume mensal de turn-over ou overnight e do estoque total da dívida federal ficou quase sempre entre 70 e 80%. Quando (em 1988) se desenhou uma situação de super liquidez,21 21 Por causa das entradas de dólares provenientes das exportações e das recompras de dívida. as autoridades monetárias tinham perdido todos os meios de retirar créditos da massa monetária. Toda a dívida estava líquida, não havia mais diferença entre a “moeda alta” e o crédito do Estado. A única melhoria foi o fato da LTF render uma taxa real de juro baixa (a do mercado financeiro) em vez das dívidas que rendiam altos juros reais na época pré-Cruzado.22 22 Deve ter sido o único efeito paralelo positivo do Plano Cruzado e, mais tarde, do Plano Bresser: a taxa real de juro sobre os títulos do Tesouro ficou praticamente nula, algumas vezes negativa, porque esses títulos tinham sido reconhecidos como a forma normal de haveres líquidos (ver Quadro 3).

O incidente de junho de 1986, entretanto, indica uma possibilidade interessante. Quando a taxa de juro da LBC aumentou, os bancos que retinham ainda velhos títulos de médio prazo (ORT) sofreram altas perdas potenciais. O Estado trocou as ORT por LBC, com um desconto negociado. Isto foi a primeira tentativa (muito tímida) de cancelamento de uma dívida interna ... À imagem da economia da dívida internacional, surgiu um poder de barganha do lado do devedor!

À GUISA DE CONCLUSÃO

Quando os aspectos monetários são levados em consideração, o processo inflacionário de tipo-B mostra-se de grande complexidade tanto para a sua explicação como para lidar com ele. A síntese é apresentada na Figura 3.

Figura 3
Síntese

A parte inferior esquerda do esquema expressa os níveis mais profundos da explicação em termos de inflação inercial conflituosa. A parte inferior direita introduz a dívida externa, que interfere imediatamente com a inflação interna através de desvalorização.

As principais novidades aparecem nos níveis médio-superior e superior: a conduta orçamentária do Estado e a conduta monetária induzida de todos os agentes domésticos. Ao financiar o seu déficit interno e o pagamento de sua dívida externa através de uma política fiscal insatisfatória, o Estado tem que se apoiar na dívida interna e na senhoriagem. Essas duas características induzem e enrijecem ao mesmo tempo a tendência de usar diretamente os papéis do Tesouro como moeda. Essa moeda é desligada da unidade de moeda corrente, cujo equivalente em valor diminui conjuntamente com a taxa interna de juro. Essa taxa, por sua vez, é aumentada para puxar as poupanças domésticas, as divisas estrangeiras vindas das exportações e para compensar a maxidesvalorização.

Quadro 3
Taxa Real de Retorno sobre Overnight (Deflacionada pelo Índice de Preços IPE,% ao Mês)

Enquanto nas economias centrais fordistas a inflação é tolhida por rígidos mecanismos de formação de preços, nas economias de tipo-B periféricas fordistas, de tipo brasileiro, a inflação é também embutida nos próprios signos monetários por causa da combinação de moeda com crédito. Esse mecanismo perverso é agravado quando as obrigações utilizadas como moeda são livremente criadas pelo Governo segundo suas necessidades e porque teme uma reforma fiscal, e quando o déficit do Estado é constantemente aumentado pelo próprio serviço de sua dívida interna.

Nesse tipo de situação, um congelamento de preços e uma política de renda são insuficientes. Os preços das mercadorias não sobem apenas por causa do aumento inercial-conflituoso nos rendimentos dos fatores de produção. O preço do valor agregado aumenta porque todos os haveres líquidos aumentam em valor nominal, já que a própria moeda rende juros. A moeda não é mais uma condição de acomodação para a inflação de tipo neokeynesiano. Ela se torna causa ativa da inflação.

Para poder lidar com isso, a moeda deveria ser, em primeiro lugar, diferenciada da dívida, com uma separação muito nítida entre a moeda e os haveres rendendo juros. Isto implica o abandono da senhoriagem (ferramenta ultrapassada). Portanto, a necessidade de uma taxação real, cobrada sobre a renda das classes mais abastadas, que se aproveitaram das despesas gerais do governo.

Essas reformas, porém, desaparecem sob o peso dos fatores acumulados, que devem ser antes erradicados. Entre eles, a questão da dívida externa e a questão da dívida pública interna são os mais óbvios. A possibilidade de uma reforma monetária é subordinada à resolução do problema das duas dívidas.

Existem, em primeiro lugar, muitos argumentos em favor do cancelamento da dívida do Terceiro Mundo. Argumentos éticos: a política do tipo Shylock dos credores está levando a maioria da humanidade à miséria, doença e morte. Argumentos macroeconômicos: a partir do momento em que o repagamento da dívida significa extensas exportações líquidas dos devedores, pagar a dívida requer restrição das importações, o que significa a recessão para os devedores (Terceiro Mundo e USA), e ao mesmo tempo uma crise na demanda dos credores (Europa e Japão). Argumentos jurídicos: empresas e indivíduos têm direito a pedir falência, sem consequências físicas (os devedores não são mais presos, abandonados até a morte). Por que populações inteiras deveriam sofrer na carne as consequências de um contrato que nunca assinaram e cujos termos foram mudados unilateralmente pelos credores durante o “choque monetário”? Por que deveriam as novas democracias ser responsabilizadas pelas dívidas das ditaduras?

Enquanto o cancelamento da dívida do Terceiro Mundo é tão justo quanto necessário, resta mostrar que alguma nova Conferência de Bretton-Woods poderia resolver o problema sem a bancarrota geral do sistema bancário. Mas isto é outra questão.23 23 Ver Lipietz (1985), Bresser-Pereira (1988).

De outra parte, a dívida interna do Estado, consequência da primeira, deve ser igualmente repudiada. Isso poderia ser feito por uma desvalorização dos direitos da sociedade civil sobre o Estado: particularmente por parte dos detentores de “moeda alta”. Os argumentos em favor dessa desvalorização devem ser convincentes: necessidades de estabilização, financiamento indevido por parte do Estado dos lucros auferidos pelos exportadores a partir de créditos passados, e assim por diante. A forma dessa desvalorização poderia ser um congelamento seletivo de depósitos de overnight, com a desindexação da “moeda alta”. Em todo caso, se a inflação alta virar hiperinflação, essa desvalorização acontecerá de maneira selvagem: uma troca em pânico dos papéis do Tesouro contra a moeda corrente cujo valor desaparece, e depois contra um dólar caríssimo.

Para concluir, um “choque heterodoxo” deveria ser acompanhado de dois outros choques:

  • o choque da dívida externa.

  • o choque da dívida interna.

POST-SCRIPTUM: O PLANO COLLOR

Após a falência do Plano Cruzado, o Brasil passou por uma fase sombria de completa estagnação em 1988 e 1989, apesar do seu incrível sucesso como terceiro exportador líquido do mundo (um superávit anual de $15 bilhões). Com a total ausência de liderança do presidente Sarney, os dois planos seguintes, o Plano Bresser (junho de 1987: suavemente heterodoxo) e o Plano Verão (janeiro de 1989: mais heterodoxo, com uma subida da taxa real de juro) foram “um mero anestésico, sem a cirurgia” (Goldenstein, 1989GOLDENSTEIN, L. (1989) “O Constrangimento da Dívida Mobiliária”, Economia em Perspectiva, Conselho Regional de Economia, São Paulo, número 56, abril.). Mas a própria “superinflação” tornou-se uma forma cada vez menos potente de anestésico.

Por superinflação, os brasileiros entendiam uma forma de hiperinflação (até mais de 40% ao mês) na qual o sistema de preços relativos era mais ou menos viável: uma “hiperinflação indexada” nas palavras de Bresser-Pereira. Sua condição monetária era a estabilidade da “moeda alta”. Os preços eram indexados diretamente pela taxa de juros sobre a dívida pública segundo a equação (V). Ao final de 1989, essa forma de indexação tornou-se cada vez mais perversa. Essa taxa, por exemplo, era anunciada em “termos brutos”, ou seja, num prazo diário de overnight. A “taxa líquida” é a taxa composta mensal (deduzidos os fins de semana) líquida do imposto sobre os depósitos em overnight. Mas muitos formadores de preços utilizavam a taxa bruta para suas remarcações de preços e, portanto, aceleravam a inflação!

Em dezembro, o candidato populista Fernando Collor de Mello foi efeito com o apoio dos mais ricos, da classe média alta e dos mais pobres. O candidato da esquerda revolucionária, “Lula” da Silva, chegou até 45% das intenções de voto. Enquanto Collor se preparava para tomar posse em 15 de março, nenhum plano de transição foi negociado com o Presidente Sarney. Como Collor não tinha explicado o seu programa de govemo, a situação ficou imprevisível. Em fevereiro, a inflação atingiu 73% e algo mais próximo de uma hiperinflação irrompeu na semana anterior ao 15 de março. Com efeito, suspeitando que Collor começaria por um congelamento, os formadores de preços colocaram uma “sombra” arbitrária a mais nos preços, para proteger-se do congelamento. Mas o preço efetivo ao qual chegavam estava ainda mais ou menos determinado pelos mecanismos anteriores.

O plano apresentado pela ministra da Economia, Zélia Cardoso de Mello, na noite do dia 16, foi uma surpresa total. Havia um congelamento de preços, mas havia também uma cirurgia.

Nada foi dito a respeito da dívida externa, mas havia meses que o Brasil estava de fato em moratória. A grande surpresa foi devida à maneira segundo a qual o plano tratava da dívida pública interna. Primeiro, no que diz respeito aos fluxos, uma ampla reforma fiscal foi anunciada, pesando sobretudo sobre os rendimentos de capital, sobre a terra e sobre os haveres financeiros. Mais ainda, foram anunciados cortes drásticos nas despesas públicas. Especialmente os subsídios do governo às atividades econômicas que foram todos suprimidos. O FMI jamais havia sonhado com uma tal reviravolta após décadas de “desenvolvimentismo” populista. Colocou-se como meta passar de um déficit da ordem de 8% do PNB para um superávit de 2%. Se tal projeto for realizado, será o fim do financiamento pela senhoriagem.

Da mesma maneira que o estoque da dívida pública, o instrumento mais espetacular foi o congelamento de todas as contas, correntes, de poupança e no overnight, em cruzados novos (a moeda vernacular anterior) e a troca de uma quantidade muito pequena numa nova moeda, o Cruzeiro. O limite foi extremamente baixo: NCz$ 50.000, para as contas correntes e da poupança; NCz$ 25.000, para o overnight, o que não passava de 100 dólares! Os haveres restantes foram congelados por dezoito meses, devendo ser novamente trocados por cruzeiros com uma taxa de juro igual à inflação mais 6% ao ano.

Este último aspecto, o aspecto monetário, está longe de ser claro. Representa ele o cancelamento do estoque da dívida pública? Formalmente não. É um imenso empréstimo compulsório, que está preparando uma dramática superliquidez depois de dezoito meses. Mas muitas coisas podem ocorrer nesse período. Se a indexação for subestimada, será um cancelamento real de parte da dívida pública, um instrumento muito heterodoxo!

Mas o efeito imediato foi puramente ortodoxo: uma ausência dramática de liquidez. Como os haveres financeiros não eram poupanças, mas liquidez (a “moeda alta”), esses haveres representavam os meios de pagamento dos domicílios e das empresas. Mais ainda, os bancos tentaram compensar a perda da sua “senhoriagem privada” pelo supercongelamento das contas dos seus clientes. Nas semanas que seguiram o Plano, vigorou a lei de Fisher na causalidade marxista-keynesiana da qual já falamos. A inflação parou, alguns preços caíram (especialmente se comparados com os preços marcados com “sombra” na semana anterior ao 15 de março). Mas a rigidez dos preços prevaleceu em face de uma liquidez cortada em 80%. Como resultado, as transações e, depois, a produção caíram de 25% num mês, o desemprego pulou para cima. Uma economia de troca foi-se desenvolvendo (apartamento por loja, carro por linha de telefone ... ). Em face da rarefação de cruzeiros, houve excesso de dólares, induzindo grande sobrevalorização real da moeda brasileira, bloqueando as exportações ...

O fim da história dependerá parcialmente dos mecanismos de criação de cruzeiros. Se as empresas e os domicílios encontrarem a possibilidade de recuperar cruzeiros dos seus haveres congelados em cruzados novos, a depressão de abril terá sido apenas um erro de política monetária. Se esses haveres são considerados como parcial ou totalmente cancelados, a depressão será a expressão do fato de que os ricos são menos ricos. Mas a demanda efetiva, no regime brasileiro de acumulação, é puxada pelas despesas dos ricos e pela minguada renda por eles esmolada aos mais pobres. Um novo regime deve ser inventado, portanto, baseado na distribuição direta de renda à imensa massa de assalariados pobres. Mas isto foge ao âmbito deste trabalho ...

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  • TRIFFIN, R. (1968) Our International Monetary System: Yesterday, Today and Tomorrow, New York.
  • 1
    De fato, várias ideias sobre inflação foram importadas nos primeiros estudos da “teoria da regulação”, pelo economista chileno Carlos Ominami (CEPREMAP (1977C.E.P.R.E.M.A.P. (1977) Approches de l’inflation: L ‘exemple Français, Relatório CORDES, Benassy, J. P., Boyer, R., Gelpi, R. M., Lipietz, A., Mistral, J., Ominami, C.. Paris: mimeo.)). No seu livro, Bresser-Pereira e Nakano (1987BRESSER-PEREIRA, L. C. e Nakano, Y. (1987) The Theory of Inertial Inflation. Boulder: Lynne Rienner Publishers.) apresentam um breve histórico dos principais conceitos da “teoria estruturalista da inflação” (mark-up administrado, salário indexado, moeda endógena). Embora possam ser rastreados até Marx através dos trabalhos de Kaldor, Robinson, Keynes, Kalecki, Schumpeter e Bortkiewicz, esses conceitos foram desenvolvidos na América Latina, na tradição da CEPAL, pelo trabalho seminal de Rangel (1963RANGEL, I. (1963) A Inflação Brasileira. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.) e, posteriormente, pelos trabalhos dos futuros “pais” dos Planos Austral e Cruzado.
  • 2
    Sobre Brasil, ver, por exemplo, Coriat e Sabóia (1987CORIAT, B. e Sabóia, J. (1989) “Regime de Acumulação e Relação Salarial no Brasil”, Ensaios FEE, volume IX, número 2, Porto Alegre.).
  • 3
    A respeito dos componentes inercial e conflituoso da inflação, ver a síntese feita por Ros (1990ROS J. (1988) “Review of Literature on Inflation and Stabilization”. In Marglin, ed. (1990) Heterodox Shock Experimients, WIDER Project.).
  • 4
    Agora, a diminuição da produtividade do trabalho pode ser um importante “choque exógeno” capaz de deslanchar uma aceleração da inflação. Além disso, o aumento de K/L tem certamente grande parte de responsabilidade no deslanche da inflação através de mark-up mais alto e do aumento do déficit externo. Esse fenômeno é importante para os países que importam equipamentos ao final da fase de “substituição fácil”. Ver Hausmann & Marquez (1986HAUSMAN, R. e Marquez, G. (1986) “Venezuela: du bon côté du choc pétrolier”, in Boyer (coord.) Capitalismes: Fin du Siecle. Paris: P.U.F.).
  • 5
    Isto não é caso geral, mesmo na América Latina. Na Venezuela, por exemplo, as exportações de petróleo são a base dos rendimentos do Estado, que devem pagar a dívida de agentes privados.
  • 6
    O processo de “estatização” da dívida externa brasileira, e do endividamento do Estado em relação aos agentes privados, atravessou diversas fases descritas por Cavalcanti (1987CAVALCANTI, C. B. (1987) Transferência de recursos e substituição de dívida externa por dívida interna. Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Brasília.) e Bontempo (1988BOITEMPO, H. C. (1988) “Transferências Externas e Financiamento do Governo Federal e Autoridades Monetárias”. Pesquisa e Planejamento Econômico, volume 18, número 1, abril, Rio de Janeiro.). Antes de 1983, e ainda após o primeiro choque do petróleo, as· autoridades monetárias (Banco Central e Tesouro) induziram os agentes privados e as empresas estatais a tomarem empréstimo diretamente no mercado internacional e a transformarem os dólares obtidos em cruzeiros no Banco Central, para, então, emprestarem os cruzeiros ao Tesouro. A ideia era de aumentar a capacidade do Brasil em tomar empréstimo, de aumentar as reservas do Banco Central e de cobrir o déficit do Governo para com a Nação. Em troca, as autoridades monetárias assumiam o risco da variação do câmbio e da volatilidade dos juros, através da indexação dos títulos do Tesouro (ver Parte II, 2~). Durante os anos 70, a dívida externa direta do Estado aumentou e substituiu progressivamente a dívida privada durante o boom do país. Após 1983, o serviço da dívida externa dos agentes privados teve que ser pago ao Banco Central do Brasil, o qual, então, tomou a obrigação em relação aos credores estrangeiros: o Brasil tornou-se de fato um devedor do “tipo-B”. Em 1970, a dívida pública federal era de $2 bilhões e a dívida externa líquida das autoridades monetárias (dívida bruta menos reservas) era de menos de $750milhões. Assim as autoridades induziam os agentes privados a aumentarem sua dívida externa para aumentar as reservas externas do Banco Central! Como resultado, essas reservas líquidas ‘atingiam $5 bilhões em 1973; naquele ano, a dívida interna do Estado era exatamente igual a essa quantia. Depois, a dívida externa bruta do Estado começou a aumentar, atingindo o total das reservas em 1978. A dívida interna era então de $15 bilhões e a dívida externa bruta das autoridades monetárias era da mesma ordem. Em 1987, a dívida externa líquida das autoridades monetárias era de $50 bilhões (além de uma dívida bruta nacional de $111bilhões) e sua dívida financeira interna era de $32 bilhões. A dívida total líquida do Estado (interna mais externa) era, em 1970, equivalente a 3% do PNB e a 30% da receita fiscal. Essas duas proporções atingiam 7,3% e 75%, em 1978, e 27% e 270%, em 1987!
  • 7
    Para a América Latina inteira, a transferência líquida anual de capital para o exterior soma 4% do PIB desde o início dos anos 80. Essa cifra é provavelmente maior do que o aumento de produtividade. E a população vai aumentando. A contribuição “conflituosa” do serviço da dívida para a inflação deve ser, portanto, muito importante.
  • 8
    Um monetarista como Brito (1979BRITO, N. (1979) “Inflação e o Mercado de Letras do Tesouro Nacional”. Revista Brasileira de Economia, volume 33, número 2; abril-junho.) chegou à convicção empírica de que a equação quantitativa é válida para o Brasil conquanto a massa monetária inclua os títulos do Tesouro.
  • 9
    Segundo Salama (1989SALAMA, P. (1989) La Dollarisation. Paris: La Découverte.), isto pode explicar o reduzido êxodo de capitais brasileiros se comparado com o caso argentino. A saída de capitais representaria algo como $49 bilhões de uma dívida externa de $50 bilhões, no caso da Argentina, e somente $15 bilhões de uma dívida de $107 bilhões, no caso brasileiro (Salama utiliza a avaliação do Morgan Bank, World Financial Market, março 1986). Vê-se aqui que há dois incentivos para que os agentes privados retenham a “moeda alta” nacional: o limite para o acesso às moedas estrangeiras (o bastão) e os juros sobre a “moeda alta” (a cenoura).
  • 10
    Resultado bem conhecido (ver Cagan (1956CAGAN, P. (1956) The Monetary Dynamics of Hyperinflation”, in Friedman, M. (1956).): demonstração no Apêndice APÊNDICE: SOBRE A SENHORIAGEM O texto básico sobre senhoriagem e hiperinflação é de Cagan (1956). Esse autor trata de sete inflações históricas (Alemanha pós-guerra, Áustria, Hungria etc.). São hiperinflações: o que pode não ser o caso do tipo-B. Ele mostra que a demanda de moeda, que é então mais ou menos igual à emissão (a hiperinflação requerendo uma elasticidade de produção de moeda praticamente perfeita) é ainda governada por uma lei que ele ajusta econometricamente. A seguir ele explica o que é a senhoriagem e prova que a taxa de senhoriagem atinge um máximo para uma taxa de inflação que pode ser calculada. Retomemos agora esses três passos. Equação da demanda de moeda Cagan mostra que a moeda circulante real (relação dos índices de final do mês da quantidade de moeda M para o nível de preço P) é função de E, a taxa de inflação esperada, sendo essa uma função da taxa de inflação I: I = P = d log P / d t = d P / P d t F u n ç ã o e t i m a d a : L o g M / P = - a E - b (1) onde: a = d log M / P d E é o oposto da derivada logarítmica (ou da semi-elasticidade) da moeda circulante em relação à taxa de inflação esperada. A senhoriagem Cagan supõe que a moeda é emitida pelo Estado. Fazendo isto, o Estado captura dois fluxos de rendimentos reais num tempo dt: o valor real da nova moeda que ele emite: 1/P.dM a desvalorização do estoque de moeda já emitida, isto é, dos saldos reais dos agentes privados sobre o Estado: -d(M/P) Cagan assume que esse segundo fluxo é de primeira ordem se comparado com o serviço da dívida pública para os agentes privados (de fato ele não está pensando na “moeda alta” de tipo-B). A soma desses dois fluxos é a taxa de senhoriagem S (por unidade de tempo): S = 1 / P . d M / d t - d M / P / d t ou S = M / P . d P / P . d t (2) Nessa forma (2), a senhoriagem aparece como uma taxa cuja base é a moeda real M/P e que varia pela taxa de inflação I. Essa é uma definição muito elegante de senhoriagem, particularmente quando o teorema que segue (3°) é baseado nela. Outros autores, entretanto, como Fisher (1982), restringem a senhoriagem àquela parte que vai para o Estado através da criação de moeda, ou seja, 1/p.dM. A equação (2) não se sustenta. A escolha é difícil: na definição de Fisher, pode haver senhoriagem sem inflação; na definição de Cagan, pode haver senhoriagem sem criação de moeda! Neste trabalho, elegemos a definição de Cagan. O máximo da senhoriagem Para qualquer taxa estabilizada de inflação I, a inflação esperada E é igual a I e a senhoriagem é [por (1)+(2)]: S = I e - a l - b S é uma função de I, que admite um extremo quando: d S / d l = 1 - a I e - a l - b = 0 (3) ou: I=lia depois: d2S/dl2=a2I-2a)e-al-b<0 Essa segunda derivada torna-se positiva para I>2/a. A forma da curva (3) é uma espécie de “curva Laffer de senhoriagem”, que está ao seu máximo quando sua taxa, a taxa de inflação, é o oposto do inverso da derivada logarítmica da moeda real circulante em relação à inflação (Figura 4). Figura 4 A Curva Laffer de Senhoriagem Como o nota Cohen (1987), o Brasil está além deste ponto. A senhoriagem é ainda positiva, diminuindo, porém, com a inflação. Isso pode ser uma definição convencional de “hiperinflação”. ).
  • 11
    Isso pode lembrar velhas discussões do final dos anos 70 e início dos 80, no ponto de inflexão da crise das economias centrais fordistas. Depois, foi discutido se um aumento da taxa de juros poderia aumentar a taxa de inflação (mecanismos de indexação repassando esse aumento aos custos), ou se a reduziria pela diminuição da liquidez. De fato, parecia que entre 1979 e 1982 o primeiro efeito prevalecera. Mais tarde, o “choque monetarista” conseguiu destruir a indexação, acarretando, portanto, uma impressionante redução da inflação. Ainda no final dos anos 80, o Reino Unido verificou que um aumento da taxa de juros podia aumentar a taxa de inflação.
  • 12
    Esse processo é paralelo aos estágios de inflação acelerada, segundo um comentário de Luiz Carlos Bresser-Pereira feito sobre este trabalho: os preços são indexados em primeiro lugar pela inflação passada, depois pela inflação esperada, enfim, pela taxa nominal de juros; ele chama este último estágio de “hiperinflação indexada”.
  • 13
    Os parágrafos seguintes devem muito aos trabalhos de Goldenstein (1987GOLDENSTEIN, L. (1987) “Alguns aspectos do sistema financeiro brasileiro pré e pós-Plano Cruzado, São Paulo: CEBRAP, mimeo., 1988GOLDENSTEIN, L. (1988) “Os Haveres Financeiros e a Dívida Pública”, São Paulo: CEBRAP, mimeo.), e às frutíferas discussões com essa autora.
  • 14
    OTN é o nome usado tanto para um tipo de título do Tesouro (Obrigação do Tesouro Nacional), como para o índice utilizado para a correção monetária de todos os papéis que não são indexados ao dólar (através da OTN cambial). Assim, OTN pode ser compreendida como a unidade de conta usada para a “moeda alta”.
  • 15
    Ou, na nossa terminologia (Lipietz, 1983LIPIETZ, A. (1983) Le Monde Enchanté. De la Valeur à l’envol Inflationniste. Paris. La Decouverte.) entre prevalidação (pelo poder de compra dos Bancos do Estado) e pseudovalidação (dos seus futuros rendimentos pelo Estado que reconhece e impõe sua própria dívida como meio de pagamento).
  • 16
    Ver o Apêndice APÊNDICE: SOBRE A SENHORIAGEM O texto básico sobre senhoriagem e hiperinflação é de Cagan (1956). Esse autor trata de sete inflações históricas (Alemanha pós-guerra, Áustria, Hungria etc.). São hiperinflações: o que pode não ser o caso do tipo-B. Ele mostra que a demanda de moeda, que é então mais ou menos igual à emissão (a hiperinflação requerendo uma elasticidade de produção de moeda praticamente perfeita) é ainda governada por uma lei que ele ajusta econometricamente. A seguir ele explica o que é a senhoriagem e prova que a taxa de senhoriagem atinge um máximo para uma taxa de inflação que pode ser calculada. Retomemos agora esses três passos. Equação da demanda de moeda Cagan mostra que a moeda circulante real (relação dos índices de final do mês da quantidade de moeda M para o nível de preço P) é função de E, a taxa de inflação esperada, sendo essa uma função da taxa de inflação I: I = P = d log P / d t = d P / P d t F u n ç ã o e t i m a d a : L o g M / P = - a E - b (1) onde: a = d log M / P d E é o oposto da derivada logarítmica (ou da semi-elasticidade) da moeda circulante em relação à taxa de inflação esperada. A senhoriagem Cagan supõe que a moeda é emitida pelo Estado. Fazendo isto, o Estado captura dois fluxos de rendimentos reais num tempo dt: o valor real da nova moeda que ele emite: 1/P.dM a desvalorização do estoque de moeda já emitida, isto é, dos saldos reais dos agentes privados sobre o Estado: -d(M/P) Cagan assume que esse segundo fluxo é de primeira ordem se comparado com o serviço da dívida pública para os agentes privados (de fato ele não está pensando na “moeda alta” de tipo-B). A soma desses dois fluxos é a taxa de senhoriagem S (por unidade de tempo): S = 1 / P . d M / d t - d M / P / d t ou S = M / P . d P / P . d t (2) Nessa forma (2), a senhoriagem aparece como uma taxa cuja base é a moeda real M/P e que varia pela taxa de inflação I. Essa é uma definição muito elegante de senhoriagem, particularmente quando o teorema que segue (3°) é baseado nela. Outros autores, entretanto, como Fisher (1982), restringem a senhoriagem àquela parte que vai para o Estado através da criação de moeda, ou seja, 1/p.dM. A equação (2) não se sustenta. A escolha é difícil: na definição de Fisher, pode haver senhoriagem sem inflação; na definição de Cagan, pode haver senhoriagem sem criação de moeda! Neste trabalho, elegemos a definição de Cagan. O máximo da senhoriagem Para qualquer taxa estabilizada de inflação I, a inflação esperada E é igual a I e a senhoriagem é [por (1)+(2)]: S = I e - a l - b S é uma função de I, que admite um extremo quando: d S / d l = 1 - a I e - a l - b = 0 (3) ou: I=lia depois: d2S/dl2=a2I-2a)e-al-b<0 Essa segunda derivada torna-se positiva para I>2/a. A forma da curva (3) é uma espécie de “curva Laffer de senhoriagem”, que está ao seu máximo quando sua taxa, a taxa de inflação, é o oposto do inverso da derivada logarítmica da moeda real circulante em relação à inflação (Figura 4). Figura 4 A Curva Laffer de Senhoriagem Como o nota Cohen (1987), o Brasil está além deste ponto. A senhoriagem é ainda positiva, diminuindo, porém, com a inflação. Isso pode ser uma definição convencional de “hiperinflação”.
  • 17
    Essa senhoriagem privada, que representa um aumento de rendimentos para o capital financeiro, é enfatizada por Lídia Goldenstein como um efeito real (conflituoso) do processo monetário. O efeito Tanzi direto consiste numa transferência real para o Estado, quando uma taxa reduzida de inflação limita as perdas na cobrança de impostos, perdas devidas a atrasos no processo burocrático (ver Ros, 1990ROS J. (1988) “Review of Literature on Inflation and Stabilization”. In Marglin, ed. (1990) Heterodox Shock Experimients, WIDER Project.).
  • 18
    Letra do Banco Central. Esses certificados são atrativos para o portador final que os utiliza como instrumentos de reserva, como também para os grandes bancos cujos passivos (isto é, os depósitos correntes) são inferiores aos custos com overniights.
  • 19
    Letra do Tesouro Nacional com Taxa de Juro Flutuante (uma forma de Libor). Esses títulos estavam protegidos contra a inflação, mas não tinham liquidez.
  • 20
    O “ágio” no mercado negro de dólar atingiu 88%.
  • 21
    Por causa das entradas de dólares provenientes das exportações e das recompras de dívida.
  • 22
    Deve ter sido o único efeito paralelo positivo do Plano Cruzado e, mais tarde, do Plano Bresser: a taxa real de juro sobre os títulos do Tesouro ficou praticamente nula, algumas vezes negativa, porque esses títulos tinham sido reconhecidos como a forma normal de haveres líquidos (ver Quadro 3).
  • 23
    Ver Lipietz (1985LIPIETZ, A. (1985) Mirages et Miracles. Problêmes de l’industrialization dans le Tiers Monde, Paris. La Decouverte.), Bresser-Pereira (1988BRESSER-PEREIRA, L. C. (1988) “Da Crise Fiscal à Redução da Dívida”. in Bresser-Pereira (1989).).
  • 25
    JEL Classification: E31; E51.

APÊNDICE: SOBRE A SENHORIAGEM

O texto básico sobre senhoriagem e hiperinflação é de Cagan (1956CAGAN, P. (1956) The Monetary Dynamics of Hyperinflation”, in Friedman, M. (1956).). Esse autor trata de sete inflações históricas (Alemanha pós-guerra, Áustria, Hungria etc.). São hiperinflações: o que pode não ser o caso do tipo-B. Ele mostra que a demanda de moeda, que é então mais ou menos igual à emissão (a hiperinflação requerendo uma elasticidade de produção de moeda praticamente perfeita) é ainda governada por uma lei que ele ajusta econometricamente. A seguir ele explica o que é a senhoriagem e prova que a taxa de senhoriagem atinge um máximo para uma taxa de inflação que pode ser calculada. Retomemos agora esses três passos.

Equação da demanda de moeda

Cagan mostra que a moeda circulante real (relação dos índices de final do mês da quantidade de moeda M para o nível de preço P) é função de E, a taxa de inflação esperada, sendo essa uma função da taxa de inflação I:

I = P = d log P / d t = d P / P d t

F u n ç ã o e t i m a d a : L o g M / P = - a E - b (1)

onde:

a = d log M / P d E

é o oposto da derivada logarítmica (ou da semi-elasticidade) da moeda circulante em relação à taxa de inflação esperada.

A senhoriagem

Cagan supõe que a moeda é emitida pelo Estado. Fazendo isto, o Estado captura dois fluxos de rendimentos reais num tempo dt:

  • o valor real da nova moeda que ele emite: 1/P.dM

  • a desvalorização do estoque de moeda já emitida, isto é, dos saldos reais dos agentes privados sobre o Estado: -d(M/P)

Cagan assume que esse segundo fluxo é de primeira ordem se comparado com o serviço da dívida pública para os agentes privados (de fato ele não está pensando na “moeda alta” de tipo-B).

A soma desses dois fluxos é a taxa de senhoriagem S (por unidade de tempo):

S = 1 / P . d M / d t - d M / P / d t

ou

S = M / P . d P / P . d t (2)

Nessa forma (2), a senhoriagem aparece como uma taxa cuja base é a moeda real M/P e que varia pela taxa de inflação I. Essa é uma definição muito elegante de senhoriagem, particularmente quando o teorema que segue (3°) é baseado nela. Outros autores, entretanto, como Fisher (1982FISCHER, S. (1982) “Seignorage and the Case for a National Money”. Journal of Political Economy, volume 90, número 2, abril.), restringem a senhoriagem àquela parte que vai para o Estado através da criação de moeda, ou seja, 1/p.dM. A equação (2) não se sustenta. A escolha é difícil: na definição de Fisher, pode haver senhoriagem sem inflação; na definição de Cagan, pode haver senhoriagem sem criação de moeda! Neste trabalho, elegemos a definição de Cagan.

O máximo da senhoriagem

Para qualquer taxa estabilizada de inflação I, a inflação esperada E é igual a I e a senhoriagem é [por (1)+(2)]:

S = I e - a l - b

S é uma função de I, que admite um extremo quando:

d S / d l = 1 - a I e - a l - b = 0 (3)

ou: I=lia

depois: d2S/dl2=a2I-2a)e-al-b<0

Essa segunda derivada torna-se positiva para I>2/a.

A forma da curva (3) é uma espécie de “curva Laffer de senhoriagem”, que está ao seu máximo quando sua taxa, a taxa de inflação, é o oposto do inverso da derivada logarítmica da moeda real circulante em relação à inflação (Figura 4).

Figura 4
A Curva Laffer de Senhoriagem

Como o nota Cohen (1987COHEN, D. (1987) “External and Domestic Debt Constraints in LDCs. A Theory with a Numerical Application to Brazil and Mexico”, in Bryant, R. C. and Portes, R. Global Macroeconomics, Policy Conflict and Cooperation. London: Macmillan.), o Brasil está além deste ponto. A senhoriagem é ainda positiva, diminuindo, porém, com a inflação. Isso pode ser uma definição convencional de “hiperinflação”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 1991
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