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A moeda indexada: nem mágica nem panaceia

Indexed currency: neither magic nor panacea

RESUMO

O autor formulou uma proposta baseada em uma nova moeda indexada com o objetivo de superar o impasse em que se encontra a política econômica de combate à inflação. Esta peça é ao mesmo tempo uma resposta às críticas e uma oportunidade para comentar sugestões.

PALAVRAS-CHAVE:
Inflação; estabilização; inércia

ABSTRACT

The author formulated a proposal with base on a new indexed currency with the objective of overcoming the deadlock in which the economic policy of the inflation fight has come to. This piece is both a response to criticism and an opportunity to comment suggestions.

KEYWORDS:
Inflation; stabilization; inertia

Recentemente formulei proposta com base na introdução de uma nova moeda indexada, com o objetivo de superar o impasse em que se encontra a política econômica no plano do combate à inflação. O interesse e a polêmica em torno da sugestão demonstram a necessidade de se romper o frustrante imobilismo a que está relegada a política anti-inflacionária. Com o intuito de esclarecer alguns pontos, procuro aqui responder às críticas e comentar as sugestões.

CRÍTICAS ÀS PREMISSAS

As críticas feitas à proposta podem ser classificadas em duas categorias. Primeiro, críticas às premissas, a começar da que entende que a atual inflação tem caráter predominantemente inercial. Por inflação inercial entende-se o componente de um processo inflacionário não explicado pelos fatores primários de pressões sobre os preços. Trata-se da taxa de inflação que se manteria no sistema caso não houvesse nenhuma ação ou choque no sentido de elevar ou reduzir os preços. A tal componente de inércia inflacionária, sobrepõem-se os choques deflacionários ou inflacionários. A redução da demanda agregada, através do controle monetário e fiscal, é um exemplo de choque deflacionário. A maxidesvalorização, que procura modificar a taxa de câmbio real, é por sua vez um exemplo de choque inflacionário. O componente inercial da inflação decorre do desenvolvimento de mecanismos de indexação por parte dos agentes econômicos que não apenas são inevitáveis em presença de longos períodos de altas taxas de inflação, como independem da existência de mecanismos formais ou legais de indexação. As bases teóricas da distinção conceitual entre inflação inercial e choques inflacionários foram recentemente sumariadas em artigo do Prof. Francisco L. Lopes, “Inflação Inercial, Hiperinflação e Desinflação: Notas e Conjecturas”. Aí podem ser encontradas também referências dos esforços de estimação empírica da contribuição dos choques inflacionários e deflacionários para o processo inflacionário brasileiro. Não é minha intenção retomar aqui tais considerações. Volto, portanto, às críticas à tese de que a inflação brasileira é hoje predominantemente de natureza inercial. As críticas desta categoria podem ser subdivididas em dois grupos de visões distintas. No primeiro grupo, encontram-se as críticas de inspiração monetarista, que por sua vez podem ser distribuídas em dois subgrupos.

A MONETARISTA ILUSTRADA

O primeiro subgrupo de críticas de inspiração monetarista reconhece as implicações dos mecanismos de indexação, formais ou informais, e compreende que a estabilidade monetária e a eliminação do déficit nominal do setor público dependem da superação das dificuldades impostas pela indexação. Críticos deste grupo não acreditam que a inflação seja predominantemente inercial, pois consideram que a quase eliminação do déficit operacional do setor público, conforme a definição acompanhada pelo FMI, não é suficiente. Tal definição - argumentam - não toma em consideração importantes focos de déficit não contabilizados e que permanecem inatacados. Argumentam ainda que a disciplina monetária requer mudanças na atual estrutura das autoridades monetárias e maior independência do Banco Central.

Quanto a este subgrupo da crítica monetarista, não temos discordância de substância, mas apenas de grau. Sendo a inflação predominantemente inercial, suprimidos os mecanismos de indexação, através da reforma monetária pela moeda indexada, entendemos que não haveria maiores problemas em manter o crescimento da moeda em níveis compatíveis com razoável estabilidade de preços. Quanto ao déficit do setor público, medido em nova moeda, o déficit nominal coincidiria com o déficit operacional e estaria, portanto, também praticamente eliminado. Qualquer que seja o teor de inadequação da definição do FMI, o déficit assim definido caiu de 8% do PIB, em 1982, para praticamente zero ao fim do corrente ano. É possível que ainda haja importantes fontes não contabilizadas de déficit, mas não há como negar a redução significativa do déficit nestes últimos dois anos. Simplesmente não nos parece, a priori, que ainda seja necessário um vigoroso esforço adicional para a redução das despesas públicas e o aumento da arrecadação fiscal. De qualquer forma, críticas deste subgrupo limitam-se à proposta como condição suficiente para pôr fim à inflação. Aceitam, entretanto, a moeda indexada, como forma possível de implementar a condição necessária que é a desindexação. Independência das autoridades monetárias, transparência dos orçamentos públicos, disciplina monetária e fiscal são evidentemente fatores desejáveis, sem os quais a eliminação da inflação inercial, ainda que bem-sucedida num primeiro momento, estaria inevitavelmente fadada ao fracasso.

A MONETARISTA RADICAL

Analisemos então a crítica monetária (radical) de inspiração ortodoxa. Inicialmente, ela não reconhece a relevância dos mecanismos de indexação, através dos quais os agentes econômicos reajustam os preços pelo pico prévio de renda real atingido à época do reajuste anterior. Nega-se simplesmente qualquer relevância ao fenômeno da indexação, seja ela formal ou informal. Para este grupo, a persistência da inflação decorre única e exclusivamente da falta de credibilidade da política econômica, que não consegue controlar a oferta de moeda, nem reduz suficientemente o déficit público. As expectativas inflacionárias, formadas coerentemente a partir da observação da incompetência dos gestores da política econômica, encarregam-se de manter a virulência da inflação. Para este grupo de analistas, não há problema de indexação ou de resistência inflacionária. Bastaria que um deles, de implacável convicção a favor do controle monetário e da redução do déficit público, fosse incumbido de administrar as finanças do país para que a inflação desabasse da noite para o dia.

Os que sustentam esta opinião devem explicar como será possível aumentar em termos reais todos os rendimentos dos que têm contratos com periodicidade de reajuste em intervalos regulares. É trivial demonstrar que o valor real médio dos contratos de salários e aluguéis, entre outros, corrigidos pela inflação acumulada entre reajustes semestrais, aumentariam cerca de 30%, caso a inflação, hoje em torno de 220%, ao ano fosse totalmente eliminada. Como é virtualmente impossível o aumento simultâneo da renda real de todos os detentores de contratos assim indexados, não é possível reduzir significativamente a inflação sem quebrar a regra de indexação. É sempre possível quebrar tais regras de indexação, até mesmo as legais, através da rotatividade da mão-de-obra e dos aluguéis, aplicando-se um choque monetário suficientemente drástico. O primeiro problema com tal alternativa é que, sendo a grande parte das despesas do setor público e dos ativos das autoridades monetárias indexados, também o passivo monetário das autoridades monetárias tende a crescer de acordo com a inflação passada. Para impedir tal crescimento e estabilizar a base monetária, o Banco Central seria obrigado a aumentar substancialmente a colocação de dívida pública e elevar as taxas de juros reais a níveis absurdos. Os custos recessivos do choque monetário e fiscal sem desindexação seriam dramáticos. Disto discorda, entretanto, a ortodoxia monetarista. Não existe problema de indexação, mas apenas problema de expectativas inflacionárias. Expectativas que seriam alimentadas pelo déficit público. Diante da argumentação de que o déficit operacional do setor público foi praticamente eliminado, a ortodoxia monetarista utiliza-se de dois tipos de contra-argumentos.

Primeiro, observa que o déficit nominal se manteve em torno de 18% do PIB. Ora, como a diferença entre o déficit operacional e o déficit nominal é justamente a correção monetária do estoque da dívida do setor público, é óbvio que tal déficit aumenta com o aumento da inflação. Por outro lado, tal déficit seria idêntico ao déficit operacional, caso a inflação fosse eliminada. A comparação do déficit nominal do setor público com a taxa de poupança real da economia é uma confusão primária entre contabilidade nominal e contabilidade real. O mesmo tipo de confusão é feita quando se argumenta que o volume nominal de dívida pública a ser girado a cada ano significa pressão sobre a economia. Como o equilíbrio de carteira dos agentes na economia é estabelecido em termos de estoques reais de ativos, a parte do giro da dívida, que corresponde à mera reposição do seu valor real erodido pela inflação, ou à sua correção monetária, não implica modificação do equilíbrio e, portanto, não pressiona a poupança privada ou as taxas de juros.

Tal confusão, compreensível em pessoas sem intimidade com a teoria econômica, é surpreendente em economistas profissionais com formação acadêmica. A explicação para tal bloqueio analítico parece ter a mesma raiz psicológica do segundo tipo de contra-argumento levantado em relação à importância da indexação como mecanismo de resistência inflacionária. Trata-se de simplesmente negar a validade das estatísticas. Pouco importa que o déficit operacional do setor público, acompanhado cuidadosamente pelo FMI, tenha sido eliminado. A eliminação seria uma impostura conseguida com manipulações contábeis que iludem os técnicos do FMI. Há aqui uma inversão lógica do próprio argumento monetarista ortodoxo: em vez de “observar o déficit público para ver se a inflação será controlada”, passou-se a “observar a inflação para saber se o déficit público foi controlado”. Como a inflação não caiu - argumenta-se - só podem ser falsas as estatísticas indicativas da redução do déficit operacional do setor público, de 8% do PIB para praticamente zero, em dois anos. Negue-se a evidência dos fatos para preservar o pressuposto teórico. Trata-se de mais uma ilustração do conhecido princípio: “Se os fatos não confirmam, pior para os fatos.” Tal impenetrabilidade do dogmatismo teórico é matéria para psicossociologia do conhecimento.

Antes de voltar ao segundo grupo de críticas às premissas da proposta, cabe, entretanto, uma observação sobre o indisfarçável grau de perplexidade e desconforto que transpira dos diagnósticos e das sugestões da ortodoxia monetarista no Brasil. O longo período - desde meados de 1981 - de taxa de expansão monetária muito inferior à inflação confiscou-lhe o apelo e a força de argumentação que a simplicidade da Teoria Quantitativa da Moeda lhe conferia. O esforço de controle fiscal dos últimos dois anos dificultou a interpretação de que a expectativa de emissões monetárias futuras mantém acesas as expectativas inflacionárias. Com a perplexidade, aumentou o número de monetaristas ortodoxos que apelam para reformas “estruturais” ou “profundas”. A este respeito, vale a pena citar A. Hirschman: “Enquanto os economistas latino-americanos que primeiro expuseram as teses estruturalistas eram em geral identificados com a esquerda, agora parece que a teorização estruturalista é um jogo de que todos os tipos de crentes na necessidade de reformas e mudanças fundamentais podem participar e de fato participam. Quanto mais persistente e mais intratável a inflação, maior a probabilidade de que todos os campos apareçam com seus favoritos diagnósticos e tratamentos profundos ... “ (“The Social and Political Matrix of Inflation”, in Essays in Trespassing; Cambridge University Press, 1981.)

O CONFLITO DISTRIBUTIVO

No segundo grupo de críticas às premissas da proposta estão os que vêm a inflação como resultante de um conflito distributivo. Embora em linhas gerais aceitem as dificuldades criadas pela indexação para o controle inflacionário, tais críticas desconfiam da ênfase no componente inercial da inflação. A introdução da moeda indexada - argumentam - estará destinada ao fracasso se não for resolvido o conflito distributivo, que é a causa primária da inflação. A incompatibilidade distributiva reaparecerá na nova moeda e restabelecerá a dinâmica inflacionária. A incompatibilidade distributiva ex-ante, ou seja, as aspirações por parte de diferentes grupos de agentes na economia, por fatias de renda nacional que somam mais do que o todo, só pode ser resolvida ex-post, através da redução da renda real de alguns agentes pela elevação dos preços.

Tal formulação, embora tenha grande apelo intuitivo, é destituída de qualquer relevância teórica ou prática, a menos que se tornem explícitas as funções de comportamento dos diferentes grupos de agentes. Se não forem adequadamente formuladas as razões do conflito distributivo, afirmar que a inflação decorre de demandas sobre a renda superior ao todo é uma observação meramente tautológica, compatível com qualquer formulação teórica, inclusive a puramente monetarista.

E possível argumentar como se segue. A crise do endividamento externo, que eliminou o acesso do Brasil a novos empréstimos internacionais, requer do país uma transferência de recursos para o exterior. Tal transferência, conceitualmente equivalente à questão das reparações de guerra, conhecida na literatura econômica como “o problema da transferência”, exige que se extraia excedente através da redução do salário real e da queda da absorção, isto é, do consumo e do investimento. O valor desta transferência, e, portanto, do excedente a ser extraído, é regulado pela taxa de juros internacional e pelo volume dos novos empréstimos - hoje semi-compulsórios - pelo Brasil. Considerando que a taxa de juros internacional não apenas continua extremamente alta em termos reais como poderá voltar a elevar-se, e que a disponibilidade de novos créditos só tende a diminuir, o valor da transferência de recursos não apenas é alto como poderá aumentar. Para extrair tal excedente, será necessário comprimir o salário real. Combinando-se a necessidade de redução adicional de salário real com as demandas de reposição salarial que poderão advir de um período de democratização pública tem-se a exacerbação do conflito distributivo. Ainda que seja bem-sucedida a eliminação da inflação inercial, surgirão, portanto, de forma inevitável, novas pressões inflacionárias.

Não é possível negar as graves pressões que decorrem da brutal transferência de recursos exigida pela crise da dívida externa que, apesar de temporariamente sob controle, está longe de ter sido equacionada. À crítica da incompatibilidade assim formulada, a resposta é a mesma dirigida à crítica monetarista ilustrada: a reforma da moeda indexada não tem pretensões de resolver todos os problemas fundamentais do país. Se problemas existem, ou virão a existir, que impliquem choques inflacionários, a inflação será retomada, ainda que num primeiro momento a reforma monetária seja bem-sucedida. De qualquer forma o processo inflacionário, se retomado, se iniciaria a partir de patamares significativamente inferiores aos atuais. Para encerrar a resposta às críticas das premissas, quanto ao caráter eminentemente inercial da atual inflação brasileira, é preciso frisar que a proposta é perfeitamente compatível com medidas adicionais que objetivem manter os preços próximos da estabilidade. A moeda indexada é única e exclusivamente uma forma de desindexar a economia, eliminando assim o componente inercial da inflação. Quanto maior a crença na predominância do componente de inércia da inflação, mais a proposta se aproximará da condição de suficiência para estabilizar os preços. Trata-se, entretanto, de fórmula viabilizadora da condição necessária - a desindexação -, desde que se admita algum componente de inércia na inflação. Deve-se tomar, entretanto, cuidado com os que de forma genérica são céticos em relação a qualquer ideia que possa reduzir a inflação sem mudanças profundas na estrutura social e política. Citando mais uma vez A. Hirschman: “Aqueles que pretendem que a inflação é devida a alguns problemas fundamentais na estrutura social e política se convencerão de imediato que tais problemas existem; uma vez convencidos, eles serão altamente tentados a vincular a eliminação de um mal tão universalmente reconhecido, como a inflação, à implementação de um programa de mudança sociopolítica que tem normalmente um apelo muito mais limitado.” (A. Hirschman, op. cit.) Tal comentário vale tanto para os conservadores novos-estruturalistas-monetaristas, como para os progressistas associados ao conflito distributivo.

CRÍTICAS ÀS CONSEQUÊNCIAS

Passamos agora à segunda categoria de críticas. Referem-se não à predominância da inflação inercial, mas se voltam para possíveis consequências negativas da tentativa de implementação da proposta. Algumas são frutos do mero não entendimento do que foi proposto. A alegação de que os preços relativos se tornariam rígidos é o exemplo mais eloquente. Ora, a conversão da economia para um sistema de preços cotados na nova moeda, onde embora indexado diariamente em relação à velha moeda não há indexação, reintroduz a flexibilidade de preço relativo que no atual sistema indexado só é obtida através da aceleração da inflação. Nada impede que um preço caia ou suba na nova moeda. Muito pelo contrário. Com a inflação na nova moeda mantida em níveis razoáveis, é restabelecida a própria noção de preços relativos, que se perde no ambiente de altas taxas de inflação. O relaxamento da disciplina exercida pela demanda em condições de inflação crônica - pois torna-se impossível distinguir movimentos de preços relativos dos movimentos do nível geral de preços - é fenômeno amplamente estudado. A reforma da moeda indexada restabelece tanto a noção de preços relativos, perdida pela exposição à inflação crônica, quanto a flexibilidade de preços relativos perdida pela indexação.

A HIPERINFLAÇÃO NA MOEDA VELHA

Exemplo do que nos parece ainda ser má compreensão da proposta é a afirmação de que dela resultará a hiperinflação na moeda velha. São duas as linhas de argumento neste sentido. A primeira teme ou a perda do controle monetário ou a aceleração da velocidade de circulação da moeda velha. O exemplo histórico da Hungria, imediatamente após a Segunda Guerra, é invocado para sustentar tal tese. Em 1946, na Hungria foi criada uma moeda indexada, o Pengo-Fiscal, cuja cotação em relação à moeda não indexada era revista diariamente de acordo com a variação no nível geral de preços.

A Hungria experimentou nesse período a maior hiperinflação de que se tem notícia. Tal corno foi introduzido na Hungria, o Pengo-Fiscal foi, sem dúvida alguma, fator de aceleração da inflação medida em Pengo não indexado.

O Pengo-Fiscal consistiu inicialmente apenas em depósitos à vista indexados no sistema bancário. Só dois meses antes do fim da hiperinflação, em agosto de 1946, entrou em circulação o papel-moeda indexado1 1 Dois artigos recentes de W. A. Brobenger e G. E. Mahrinen tratam da experiência inflacionária húngara de 1945 e 1946: Indexation lnflationary, and Hyperinflation: The 1945-46 Hungrian Experience, Joumal of Polítical Economy, 1980, Vol. 88, n9 3 e “The Hungrian Hyperinflation and Stabilization of 1945-46”, J.P.E., 1983, Vol. 91, n9 51. O ponto fundamental a ser abordado é que o Banco Central da Hungria nunca se dispôs a comprar o Pengo não indexado. Ora, se uma moeda indexada entrar em circulação paralela com uma moeda não indexada, em ambiente de altas taxas de inflação, haverá uma tentativa do público de correr para a moeda indexada e fugir da moeda convencional. Consequentemente, a velocidade de circulação da moeda convencional se acelerará significativamente. Ao forçar os bancos a aceitar depósitos à vista indexados, mas não indexando as reservas bancárias, ou seja, não comprando Pengos convencionais e vendendo Pengos-Fiscais, o governo da Hungria estava convidando o público não-bancário a se defender parcialmente do imposto inflacionário. Os bancos, entretanto, ao receber tais depósitos em Pengos convencionais, que se transformavam em passivos indexados, tratavam de se livrar o mais depressa possível dos Pengos convencionais recebidos. Tal aceleração da velocidade de circulação da moeda velha não ocorrerá, entretanto, se o Banco Central comprar à cotação do dia quantidade irrestrita de moeda velha, suprindo a demanda pela moeda indexada. Com o Banco Central trocando ilimitadamente a moeda velha pela moeda nova à cotação do dia, não há risco nem de aceleração da velocidade de circulação, nem do aumento da oferta de moeda velha. Ao contrário, a base monetária da moeda velha sairá rapidamente de circulação, pois tanto os bancos corno o público não-bancário venderão imediatamente seus estoques de moeda velha ao Banco Central, em troca de moeda indexada. A afirmação de que a introdução da moeda indexada, nos termos da proposta, provocaria uma hiperinflação na moeda velha, com base apenas no ocorrido na Hungria em 1946, revela desconhecimento das razões da aceleração da inflação húngara, quando da introdução do Pengo-Fiscal - aliás muito bem analisadas nos artigos de Brobenger e Makinen - e da diferença fundamental representada pela possibilidade de se vender a moeda velha ao Banco Central.

A segunda linha de argumentação da crítica dos riscos de hiperinflação, causados pela introdução da moeda indexada, baseia-se na observação de que aumento dos preços na nova moeda é aceleração dos preços na velha moeda. Ou seja, a inflação na nova moeda corresponde ao aumento da inflação na velha moeda. Ou ainda, em termos técnicos, a primeira derivada dos preços em relação ao tempo na nova moeda é igual à segunda derivada dos preços em relação ao tempo na velha moeda. Impõe-se a conclusão trivial de que, se houver inflação na nova moeda, estará havendo aumento da inflação na velha moeda. Ocorre que, corno tal relação vale por definição, todas as possíveis causas e as possíveis consequências da inflação na nova moeda coincidem com as causas e consequências da aceleração da inflação na velha moeda. Um choque, por exemplo, que viesse a causar aumento da inflação na velha moeda, causaria inflação na nova moeda e, consequentemente, reduziria o salário real médio, por exemplo, tanto dos contratos fixados na moeda velha quanto na moeda nova.

Assim como não há nenhuma garantia de que não ocorrerão novos choques, sejam de demanda ou de oferta, que venham a provocar inflação na nova moeda, também não há rigorosamente nenhuma razão lógica a priori para, com base na identidade entre inflação na nova moeda e aumento da inflação na velha moeda, concluir que haveria aceleração da inflação medida na velha moeda. A vantagem da desindexação pela moeda indexada é justamente, e apenas, eliminar o componente de inflação inercial. Abre-se assim a possibilidade de, se necessário, utilizar com sucesso e sem maiores sacrifícios a política de demanda - tanto monetária quanto fiscal - para manter a estabilidade dos preços na nova moeda.

A CONVERSÃO PELAS MÉDIAS

Ponto incontestavelmente crítico da introdução da moeda indexada é a conversão dos contratos estipulados em cruzeiros e reajustados com periodicidade fixa. O valor real médio de tais contratos aumenta ou reduz se a inflação diminui ou acelera. Para que a conversão do sistema de preços seja feita de forma neutra, ou seja, sem afetar os preços relativos reais médios, é fundamental que tais contratos sejam convertidos não pelos picos, mas pelas médias de seus valores reais entre reajustes. Os salários e os aluguéis são exemplos de contratos que devem ser convertidos pelas médias.

Dois artigos recentes de W. A. Brobenger e G. E. Mahrinen tratam da experiência inflacionária húngara de 1945 e 1946: Indexation Inflationary, and Hyperinflation: The 1945-46 Hungrian Experience, Journal of Political Economy, 1980, Vol. 88, n. 3) e “The Hungrian Hyperinflation and Stabilization of 1945-46”, J.P.E., 1983, Vol. 91, n9 51.

Na proposta original, sugeri que fosse facultativo, para quem recebe renda contratual, exercer a conversão para a nova moeda. Se a opção fosse exercida, entretanto, ela só poderia ser feita pelo valor real médio dos rendimentos no último período entre reajustes. A opção da conversão poderia ser exercida a qualquer momento não se restringindo à data do reajuste contratual em moeda velha. Um assalariado poderia, portanto, optar por ter seu salário fixado na nova moeda, não sendo obrigado a esperar o mês do reajuste para decidir.

O aspecto facultativo, tanto da decisão de conversão quanto do momento de fazê-lo, tem evidentemente grande apelo. Foi, entretanto, observado com propriedade que a livre decisão do momento da conversão induzirá os assalariados (faço referência aos contratos de salários, mas o raciocínio vale para todo contrato com reajuste de periodicidade fixa) que já estiverem com salário real abaixo do médio (isto é, aproximadamente após o terceiro mês desde o reajuste), a exercer a conversão imediatamente, enquanto os que estiverem com salário real acima do médio (isto é, antes do terceiro mês desde o reajuste) a esperar para optar pela conversão, quando os salários reais tiverem atingido o valor real médio dos últimos seis meses. O resultado deste comportamento será o de elevar o valor real do agregado de salários na economia. Tal elevação será, contudo; apenas temporária. À medida que os novos contratos atinjam o valor real médio - com opção de conversão exercida ou não - tal distorção desaparece. Observe-se que se a inflação na moeda velha estivesse estabilizada, a distorção desapareceria em três meses. Se a inflação estivesse se acelerando, tal distorção desapareceria ainda em menor prazo.

Os problemas deste tipo decorrem do fato de que os reajustes contratuais não estão sincronizados num único mês, mas distribuídos ao longo dos doze meses do ano. Foi certamente com base neste gênero de considerações que o Prof. Mário Henrique Simonsen propôs que, antes da introdução da nova moeda indexada, os reajustes de salários e de aluguéis fossem sincronizados com reajustes mensais em ORTN’s pelo critério das médias. Desta forma estaria resolvido o problema provocado pela data facultativa de conversão. A solução, contudo, exige que seja feita por via legal e impositiva a transformação pelas médias e, conforme o próprio Prof. Simonsen acentua, deixa a economia durante o período de transição indexada mensalmente, portanto, muito mais sensível a choques inflacionários de oferta. Na proposta do Prof. Simonsen, este período de transição com economia indexada mensalmente duraria seis meses. As dificuldades da sincronização contratual por via legal e os riscos de um período de transição com a economia muito mais sensível a choques de oferta me parecem exceder suas vantagens. Estas são, entretanto, questões abertas a exame mais cuidadoso.

O importante é compreender que a indexação, formal ou informal, introduz uma rigidez para baixo no processo inflacionário, o que torna a relação entre custos e benefícios da utilização de políticas tradicionais de controle de demanda de tal forma desfavorável que não há como conseguir ganhos expressivos apenas através do controle monetário ou fiscal. A moeda indexada é forma neutra de passar a economia para um sistema não indexado. Restabelece-se assim não apenas a eficácia dos tradicionais instrumentos de política monetária e fiscal, como a sua própria viabilidade. Sem superar o problema da indexação, não há clamor por rigor fiscal e monetário que vença a atual inflação, superior a 200% ao ano. A História está cheia de exemplos - Argentina e Israel são os mais recentes - que demonstram que os processos inflacionários crônicos terminam quase que invariavelmente em hiperinflações alucinantes. Evitar que a atual inflação brasileira siga pelo mesmo caminho exige algo mais que o bater em teclas surradas e insistir com fórmulas comprovadamente incapazes de trazer a inflação para níveis razoáveis. O primeiro passo é vencer o imobilismo que a ignorância cautelosa impõe à discussão da política anti-inflacionária.

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    Dois artigos recentes de W. A. Brobenger e G. E. Mahrinen tratam da experiência inflacionária húngara de 1945 e 1946: Indexation lnflationary, and Hyperinflation: The 1945-46 Hungrian Experience, Joumal of Polítical Economy, 1980, Vol. 88, n9 3 e “The Hungrian Hyperinflation and Stabilization of 1945-46”, J.P.E., 1983, Vol. 91, n9 51.
  • JEL Classification: E31; E30.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 1985
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