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A condução da política monetária durante o Plano Cruzado* * Gostaria de agradecer os comentários de Edmar Bacha e Rogério Werneck.

The monetary policy during the Cruzado Plan

RESUMO

Este artigo analisa a política monetária durante o Plano Cruzado. Argumenta-se que o estabelecimento da taxa de juros overnight em nível muito baixo (em torno de 15% / ano) foi um dos principais fatores para o rápido surgimento de excesso de demanda em quase todos os mercados. Esse afrouxamento excessivo da política monetária foi resultado da decisão do governo de transformar títulos públicos indexados em títulos de valor fixo, assumindo que a inflação futura seria zero. A política monetária do Plano Cruzado é comparada às políticas adotadas na Argentina nos primeiros meses do Plano Austral e em Israel a partir de julho de 1985. Essa comparação revela que em ambos os casos o processo de remonetização da economia foi feito de forma muito mais gradual do que no Brasil, e que em ambos os países não houve excesso de demanda na fase inicial do congelamento de preços.

PALAVRAS-CHAVE:
estabilização; congelamento de preços; inflação

ABSTRACT

This article analyses monetary policy during the Cruzado Plan. It is argued that the establishment of the overnight interest rate at very low level (around 15%/year) was one of the main factors behind the quick appearance of excess of demand in almost all markets. This excessively slacken monetary policy was the result of the government’s decision of transforming indexated public bonds into bonds with a fixed value, assuming that future inflation would be zero. The monetary policy of the Cruzado Plan is compared to the policies adopted in Argentina in the first months of the Austral plan, and in Israel from July 1985 on. This comparison reveals that in both cases the process of remonetization of the economy was done much more gradually than in Brazil, and that in both countries there was not excess demand in the initial phase of the price freeze.

KEYWORDS:
stabilization; price freezing; inflation

1. INTRODUÇÃO

Um dos maiores problemas de um plano de estabilização baseado na adoção de um congelamento de preços diz respeito ao desenho da política monetária na fase inicial do programa. Com a queda súbita da inflação, a demanda por moeda tende a elevar-se de forma considerável. Caso as Autoridades Monetárias não permitam uma rápida remonetização da economia haverá uma forte pressão recessiva, já que as taxas de juros reais sofrerão grande aumento. Além do impacto depressivo dos juros, o· aperto de liquidez tende a provocar a ocorrência de racionamento de crédito, fato este que reforça a recessão. Além disso, na medida em que a dívida pública seja elevada, taxas de juros reais altas tornam ainda mais difícil toda e qualquer tentativa de ajuste fiscal.

A decisão a respeito da velocidade de remonetização da economia, no entanto, não é trivial. Em primeiro lugar o controle por parte das Autoridades Monetárias dos meios de pagamento é indireto. As experiências da Argentina e de Israel em 1985 mostraram que o volume de crédito concedido pelo setor bancário eleva-se de forma considerável quando a inflação é reduzida. Em Israel, por exemplo, isto ocorreu em virtude de a estabilização dos preços ter induzido uma rápida substituição de depósitos em moeda estrangeira, sobre os quais havia um recolhimento compulsório bastante elevado, por depósitos à vista, cujo compulsório era sensivelmente menor. No caso do Brasil, seria natural que o mesmo fenômeno ocorresse, já que se poderia esperar uma substituição de aplicações de overnight lastreadas em títulos públicos por depósitos à vista.

Em segundo lugar, como não se pode observar a quantidade de moeda real demandada pelos agentes, toda remonetização corre sempre o risco de ser feita de modo demasiadamente rápido. Caso isso ocorra, a credibilidade do próprio programa de estabilização pode ser afetada uma vez que o público poderia interpretar a política monetária folgada como sendo uma mera contrapartida da manutenção da anterior situação de descontrole fiscal.

Além do possível impacto sobre a credibilidade do programa, uma política monetária excessivamente expansionista pode levar, nas economias sem restrições à mobilidade de capitais, a uma corrida às reservas das Autoridades Monetárias. No caso de economias como a brasileira, com severas restrições à aquisição de ativos financeiros estrangeiros, o excesso de liquidez tende a manifestar-se pressionando a demanda agregada.

O dilema entre taxas de juros reais elevadas e rápida remonetização da economia na fase inicial dos programas de estabilização baseados em controles de preços tem sido resolvido, nos casos bem-sucedidos, em favor da primeira. Dornbusch (1987Dornbusch, R. (1987). “Lessons from the German Inflation Experience of the 1920s” in Macroeconomics and Finance: Essays in Honor of Franco Modipliani, edited by Rudiger Dornbusch, Stanley Fischer, and John Bossons, MIT Press, Cambridge, pp. 337-366. ) em recente artigo chama a atenção para o fato de que o programa de estabilização que interrompeu o processo hiperinflacionário na Alemanha no final de 1923 foi caracterizado por quase seis meses de taxas de juros reais extremamente elevadas. Bodin de Moraes (1988Bodin de Moraes, P. (1986) “Keynes, Sargent e o Papel da Política Monetária nos Programas de Estabilização”, Pesquisa e Planejamento Econômico, abril, vol. 18, n. l , pp. 145-160) indica que a importância de se adotar uma política monetária apertada, em seguida à prefixação da taxa de câmbio, já havia sido ressaltada por Keynes em uma pouco conhecida proposta para estabilizar o marco alemão apresentada em novembro de 1922. Também na Áustria na década de vinte e em Israel em 1985 o processo de remonetização foi feito de forma lenta, fazendo a economia conviver por alguns meses com taxas de juros reais bastante elevadas.

A importância de se adotar uma política monetária apertada na fase inicial de um programa de estabilização “heterodoxo” é devida ao fato de que o congelamento de preços deve preceder a tentativa de ajuste fiscal uma vez que, como o próprio Keynes havia chamado a atenção, é “imensamente mais fácil equilibrar o orçamento depois de ter estabilizado (o câmbio) do que fazê-lo como uma medida preliminar à estabilização”.1 1 Veja Keynes (1981), p. 25. A manutenção de taxas de juros reais elevadas aumenta o custo de oportunidade de se especular contra o congelamento através da estocagem de bens ou da corrida em direção à moeda estrangeira.

Neste artigo iremos analisar a condução da política monetária durante a vigência do plano Cruzado, contrastando o caso brasileiro com as experiências de Argentina e Israel em 1985.2 2 Para uma avaliação detalhada de todo o plano Cruzado, veja, por exemplo, Carneiro, (1987). Em linhas gerais, aceita-se neste artigo a visão de que o sucesso de um programa de estabilização “heterodoxo” no médio e longo prazo depende, em última instância, de uma política fiscal compatível com a meta de inflação que se deseja atingir. A importância da política monetária reside em sua capacidade de evitar eventuais acidentes de percurso que possam atrapalhar o decolar do programa de estabilização. Estes acidentes em geral manifestam-se sob a forma de excessos de demanda temporários e estocagem de bens ou de moeda estrangeira (nas economias sem restrições à mobilidade de capitais).

Os primeiros meses de vigência do plano Cruzado foram caracterizados pelo excesso de demanda. A manutenção dos salários reais em contínua ascensão, depois da adoção do congelamento de preços, reflete com clareza este fato. Esta situação de excesso de demanda sem dúvida sugere que a meta de estabilidade de preços era desde o início inconsistente com a política fiscal, adotada. A preocupação do governo em evitar que o programa tivesse um viés recessivo e a desindexação da economia transformando ativos com correção monetária em ativos prefixados, sob a hipótese de que a inflação futura seria nula, fizeram com que a política monetária fosse demasiadamente folgada, contribuindo para agravar o problema de excesso de demanda.

Por último, é importante chamar a atenção para o fato de que o caso da Argentina com o plano Austral em junho de 1985 deixa claro que uma política monetária apertada obviamente não é condição suficiente para o sucesso do programa de estabilização. O longo período de taxas de juros reais elevadas não impediu que a taxa de inflação naquele país se acelerasse quando se iniciou a fase de flexibilização de preços.

Este artigo está organizado da seguinte forma: a seção 2 discute rapidamente a política fiscal adotada no plano Cruzado, comparando-a com a adotada na Argentina e em Israel quando da adoção do congelamento de preços. Sugere-se que a evolução dos salários reais ao longo de 1986 é explicada e reflete a situação de excesso de demanda que caracterizou todo o congelamento de preços. Na seção 3 descreve-se o comportamento ao longo de 1986 de alguns agregados monetários, do crédito concedido ao setor privado pelas instituições financeiras e das taxas de juros. A seção 4 discute os fatores que levaram à adoção de uma política monetária excessivamente folgada na fase inicial do congelamento de preços. A seção 5 examina as experiências de Argentina e Israel em 1985, com programas de estabilização “heterodoxos”, dando ênfase ao desenho da política monetária, procurando compará-las ao Cruzado. A seção 6 conclui o artigo oferecendo alguns comentários finais.

2. POLÍTICA FISCAL, EXCESSO DE DEMANDA E A EVOLUÇÃO DOS SALÁRIOS REAIS DURANTE O PLANO CRUZADO

Ainda que o objetivo desse artigo seja o de discutir a política monetária adotada durante o plano Cruzado, não se pode deixar de mencionar a política fiscal. Como foi dito anteriormente, enquanto a importância da política monetária está relacionada a sua capacidade de influenciar ·a trajetória da economia rumo à meta de inflação, é a política fiscal que, em última instância, irá determinar se esta meta é factível ou não. É importante, no entanto, chamar a atenção para o fato de que não existe uma resposta precisa com relação ao tamanho do déficit público que possa ser financiado sem taxas de inflação elevadas.

A Tabela 1 apresenta a necessidade de financiamento do setor público em seu conceito operacional no período 1984-86 na Argentina, Brasil e Israel. Conforme pode-se ver, no Brasil a necessidade de financiamento como proporção do PIB passou de 2,7% em 1984 para 4,3% em 1985, caindo para 3,6% no ano do plano Cruzado. A princípio esta queda poderia ser vista como refletindo uma política fiscal mais austera. A redução no déficit, no entanto, deve ser atribuída em grande parte ao excelente desempenho da economia e seu consequente impacto sobre a arrecadação fiscal, bem como à própria queda da inflação.

Tabela 1:
Necessidades de Financiamento do Setor Público (Conceito Operacional) como Proporção do Produto Interno Bruto: Argentina, Brasil e Israel, 1984-1986

Na Argentina o programa de estabilização de 1985 levou a uma redução do déficit operacional. Este passou de 10,8% em 1984 para 7% em 1985, reduzindo-se para 4,3% em 1986. O fracasso do plano Austral sugere que, apesar de o déficit público ter se reduzido, era necessária uma política fiscal ainda mais austera. Somente em Israel o congelamento de preços foi acompanhado por um ajuste fiscal que zerasse o déficit operacional. O sucesso do programa israelense aparentemente indica que o tamanho do déficit público (como proporção do produto) que pode ser financiado de forma não inflacionária após um longo período de inflação acima dos três dígitos é bem reduzido.

2.1. A evolução dos salários reais em 1986

A proibição legal de se elevar preços fez com que o excesso de demanda que permeou a economia desde os primeiros meses do Cruzado não se manifestasse através da inflação. As pressões de demanda, como nos países de economia centralizada, deram origem à cobrança de ágios e à existência de filas. Assim sendo, os índices de preços durante a vigência do plano Cruzado, e em particular os referentes ao mercado atacadista, muitas vezes não refletiram com exatidão os preços efetivamente praticados.

Se no mercado de bens existe alguma dificuldade em se caracterizar a situação de excesso de demanda, o mesmo não ocorreu no mercado de trabalho. Neste mercado o excesso de demanda da economia manifestou-se quase que de forma imediata, provocando uma grande elevação dos salários nominais. Convém lembrar que durante a vigência do plano Cruzado em instante algum proibiu-se que os salários nominais fossem reajustados. O congelamento de preços apenas impedia que estes aumentos fossem repassados aos consumidores.

A Tabela 2 apresenta a evolução ao longo de 1986 de diversas medidas para os salários reais praticados na economia. Todas as séries indicam a ocorrência de um expressivo aumento. O salário médio pago pelas indústrias do Estado de São Paulo, por exemplo, elevou-se em termos reais em 27% entre o final de outubro e a decretação do congelamento de preços no último dia de fevereiro. Parte desse aumento é devida ao abono de 8% concedido sobre todos os salários quando da adoção do plano Cruzado e nada tem a ver com o aquecimento da economia. Entre março e outubro, no entanto, aquele salário real elevou-se em quase 12%. O aumento dos rendimentos em termos reais dos trabalhadores sem carteira assinada e por conta própria foi ainda mais espetacular. Entre março e outubro estes elevaram-se em 29% e 51% respectivamente. Tendo isso em vista, é difícil deixar de caracterizar os meses de vigência do congelamento de preços como sendo um período de generalizado excesso de demanda.

Tabela 2:
Evolução do Salário Real em 1986 (fevereiro = 100)

3. AGREGADOS MONETÁRIOS, EMPRÉSTIMOS E TAXAS DE JUROS EM 1986

Iniciaremos pela descrição do que foi a política monetária, a partir dos dados sobre agregados monetários, empréstimos ao setor privado e taxas de juros dividindo o período de vigência do congelamento de preços em duas fases. A primeira, caracterizada por uma grande euforia quanto ao sucesso do programa, compreende os meses de março a junho. A segunda fase, que foi marcada por uma grande reversão de expectativas quanto ao êxito do congelamento, vai de julho às medidas corretivas pós-eleição tomadas no final de novembro.

A Tabela 3 apresenta os dados referentes à evolução de alguns agregados monetários entre fevereiro e dezembro de 1986. Podemos ver que a remonetização da economia ocorreu de forma bastante rápida. No primeiro mês do congelamento a base monetária e os meios de pagamento aumentaram em 36% e 80%, respectivamente. Nos meses seguintes as taxas de crescimento desses dois agregados, apesar de declinantes, mantiveram-se bastante elevadas. Entre o final de fevereiro e o final de junho a base monetária expandiu-se em 134%. Neste mesmo período os depósitos à vista do Banco do Brasil e dos bancos comerciais aumentaram em 267% e 187%, respectivamente.

Tabela 3:
Evolução de Agregados Monetários Selecionados em 1986: Saldos em Fins de Período, Cz$ bilhões

O agregado monetário M4, o qual inclui, além dos depósitos à vista e do papel-moeda em poder do público, os depósitos a prazo e de poupança e os títulos do governo fora do Banco Central, também manteve ao longo de 1986 uma tendência ascendente. Entre o final de fevereiro e o final de junho este agregado expandiu-se em 20,4%, o que representou um crescimento real de 16,5%. Grande parte do aumento de M4 ocorreu em março, quando este agregado apresentou um crescimento de 12,2%. No período junho a novembro o crescimento real de M4 foi de apenas 2%.

A Tabela 4 apresenta a evolução do crédito concedido ao setor privado ao longo de 1986. Pode-se ver que o total do crédito ao setor privado, depois de uma pequena queda em março, expandiu-se de forma contínua durante os primeiros meses do congelamento de preços. Entre fevereiro e junho, por exemplo, houve um aumento de 16,2%, o que representou em termos reais uma elevação de 12,4%. A partir de julho, o volume de operações de crédito acelerou-se, impulsionado sobretudo pelos bancos comerciais. Somente entre o final de julho e o final de novembro o crédito dos bancos comerciais (inclusive Banco do Brasil) ao setor privado expandiu-se a uma taxa média mensal de quase 6%.

Tabela 4:
Empréstimos Concedidos pelo Sistema Financeiro ao Setor Privado: 1986, Cz$ bilhões

O desempenho das instituições financeiras foi bastante diversificado no que concerne à oferta de créditos durante a vigência do plano Cruzado. A grande expansão dos depósitos à vista teve um impacto quase que imediato sobre a oferta de crédito dos bancos comerciais. O Banco do Brasil, por exemplo, já em março havia elevado seus empréstimos em quase 9% em relação ao mês anterior. Entre o final de fevereiro e o final de junho este banco expandiu seu crédito ao setor privado em 57%, o que representou um crescimento real de 52%. Os demais bancos comerciais expandiram suas operações ativas de forma um pouco mais lenta e a taxas menores. Ainda assim, o volume de crédito desses bancos elevou-se em 25% em termos reais nos quatro primeiros meses do congelamento. As financeiras, os bancos de investimento e desenvolvimento, as sociedades de crédito imobiliário e caixas econômicas, por outro lado, mantiveram praticamente constante ou mesmo reduziram nos primeiros meses do congelamento de preços o volume de crédito concedido ao setor privado.

A Tabela 5 apresenta a evolução das taxas de juros do overnight e dos Certificados de Depósito Bancário (CDB), da estrutura a termo entre as aplicações por um dia e as aplicações por sessenta dias e da taxa de inflação medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) no período de fevereiro a dezembro de 1986. Conforme se pode ver, todas as taxas de juros caíram de forma abrupta logo em março, mantendo-se próximas à taxa de inflação vigente nos primeiros meses do congelamento. Essa queda dos juros nominais, em conjunção com a elevação dos impostos sobre as operações financeiras ocorrida na segunda semana de março,3 3 A alíquota do imposto sobre as aplicações por um dia foi elevada de 10% para 45% e a alíquota do imposto sobre os CDBs, com prazo· superior a 59 dias, foi elevada de 7% para 35%. fez com que a rentabilidade real líquida (ex-post) tanto das aplicações por um dia quanto das por sessenta dias, à exceção do mês de março, fosse negativa até setembro. Para se ter uma ideia de como as taxas de juros estiveram deprimidas na fase inicial do congelamento de preços, basta mencionar que a compra de um CDB em abril com renovação automática em junho à taxa vigente geraria uma perda real anualizada de quase 9%.

Tabela 5:
Taxas de Juros, Inflação e Estrutura a Termo: 1986 (médias mensais)

Na medida em que um programa de estabilização baseado no congelamento de preços sempre corre o risco de fracassar, a taxa de inflação esperada em geral mantém-se acima da taxa observada. Assim sendo, se a taxa de juros real ex-post foi negativa nos primeiros meses do plano Cruzado, parece razoável supor que a rentabilidade real esperada tenha sido ainda menor. O custo de se especular contra o congelamento de preços através da estocagem de matérias-primas ou de bens finais foi desprezível.

É interessante notar que o comportamento da estrutura a termo entre a taxa de juros líquida dos CDBs e a taxa de juros líquida no mercado de overnight é bastante distinto nos dois períodos em que dividimos o plano Cruzado. Entre março e junho a estrutura a termo permaneceu praticamente constante e sempre abaixo dos 5% ao ano. A partir do final de julho, o prêmio pela iliquidez começou a aumentar de forma bastante rápida, o que obviamente refletiu a expectativa de uma inflação em elevação ou de uma política monetária mais apertada (ou de ambas). Em novembro, o diferencial anualizado entre a taxa de juros dos CDBs e a taxa de juros no overnight alcançou quase 24%.

Tanto a evolução das taxas de juros quanto a dos agregados creditícios e monetários indicam que o processo de remonetização da economia ocorreu de forma bastante rápida. Em particular, o comportamento de M4 constitui-se em um bom indicador da velocidade de monetização da economia uma vez que este agregado deveria ser invariante a oscilações da taxa de inflação. A estabilização dos preços levaria apenas a uma substituição entre ativos; a elevação na demanda por depósitos à vista teria como contrapartida uma queda, por exemplo, na demanda por títulos do governo.

Alguns autores4 4 Veja, por exemplo, Carneiro (1987), p. 264. indicaram que em grande parte a expansão do agregado M4 estava fora do controle do governo tendo sido causada pelo fato de que todos os ativos indexados com prazo de vencimento ao longo do mês de março tiveram seus saldos corrigidos de acordo com a inflação de fevereiro. De fato, os títulos do governo fora da carteira do Banco Central apresentaram um crescimento de 11,6% em março. Assim sendo, o comportamento de M4 deveria ser interpretado com cautela não devendo ser utilizado como evidência de uma excessiva monetização. Apesar dessa ressalva, é preciso ter em mente que o grande crescimento apresentado por M4 em março, ainda que não tenha sido intencional, elevou a relação ativos financeiros/produto. Se a demanda agregada é afetada pela riqueza financeira (efeito Pigou), o crescimento de M4 ocorrido em março contribuiu para gerar uma situação de excesso de demanda.

A manutenção de uma elevada e sempre crescente brecha entre a cotação do dólar no mercado oficial e no mercado paralelo, conforme a Tabela 6 ilustra, também pode servir de evidência de que a remonetização da economia foi de fato excessiva. Entre março e maio o ágio passou de 26,4% para 47%. Com as taxas de juros nominais deprimidas, os investidores fugiram para ativos fora do controle do governo. Esta corrida para os ativos reais explica a contínua elevação do ágio no mercado paralelo e o comportamento tanto da Bolsa de Valores quanto do preço da terra. A evolução do preço do hectare de terra virgem (matas) ao longo de 1986 sugere a ocorrência de um grande aumento da demanda por ativos não financeiros que pudessem desempenhar o papel de reserva de valor. Entre o final de 1985 e o final de 1986 o preço médio do hectare de mata elevou-se em quase 300%. No Estado de São Paulo, o aumento foi de 373%.

Tabela 6:
Ágio da Taxa de Câmbio no Mercado Paralelo, lndice da Bolsa de Valores de São Paulo e Preço Médio da Terra

4. MOTIVAÇÕES PARA UMA POL1TICA MONETÁRIA EXPANSIONISTA

Nas discussões sobre a noção de inflação inercial e relativas ao desenho de um programa de estabilização para lidar com esta situação específica, pouca ou mesmo nenhuma atenção foi dada à política monetária. Quando a política monetária é mencionada de forma explícita, seu papel é no mínimo extremamente obscuro.5 5 O artigo original de Lara Resende (1984) que contém uma proposta específica de adoção de uma reforma monetária trata a política monetária de forma superficial. Lopes (1986Lopes, F.L. (1986). O Choque Heterodoxo, ed. Campos, São Paulo. ), por exemplo, menciona que “num programa de choque heterodoxo os instrumentos tradicionais de política monetária e fiscal assumem um papel secundário; a preocupação principal deve ser com a consistência entre os parâmetros fiscais monetários e creditícios e a trajetória de estabilidade de preços que se quer manter”. Mas o que fazer na fase inicial do programa de estabilização? Será importante nesta fase a adoção de uma política monetária restritiva?

A firme crença no diagnóstico de que a inflação no Brasil era totalmente inercial sugeria aos autores do plano Cruzado que a estabilidade de preços era mais do que uma meta a ser perseguida. O objetivo de se ter “inflação zero” não era somente um estratagema para influenciar as expectativas dos agentes da economia. Era uma possibilidade na qual se deveria apostar com convicção. Para isso, seria de fundamental importância que o governo mostrasse estar de fato trabalhando com uma meta de inflação zero.

A política monetária que o governo adotou na fase inicial do congelamento de preços foi implicitamente definida quando se procurou desindexar a economia, proibindo-se a utilização de cláusulas de correção monetária em qualquer contrato com prazo inferior a um ano. Com isso, as ORTNs com prazo de vencimento entre março de 1986 e fevereiro de 1987 que rendiam em média juros de 15% ao ano acima da correção monetária passaram a render uma taxa nominal de 15% ao ano.6 6 É importante lembrar que apesar da remuneração das ORTNs ser de correção monetária mais juros de 6 a 8% ao ano, o deságio com que esses títulos eram adquiridos elevava a rentabilidade efetiva para os mencionados 15% ao ano. Transformava-se um título indexado em um título prefixado sob a hipótese de que a taxa de inflação seria de fato nula.

Uma vez fixada a rentabilidade das ORTNs (que passaram a se chamar OTNs) em 15% ao ano tornava-se difícil, senão impossível, ao Banco Central fixar o custo do dinheiro no mercado de overnight a uma taxa superior à rentabilidade diária desses títulos. Isto se deve ao fato de que uma parcela substancial dos títulos públicos não é adquirida por tomadores finais e sim por instituições financeiras que se financiam diariamente junto ao público através de operações de compra e recompra. Caso a taxa de juros no mercado de overnight permanecesse acima da rentabilidade diária dessas OTNs, o seu carregamento implicaria um prejuízo. Como as instituições financeiras podiam e podem, na média, adquirir um volume de títulos muitas vezes superior aos seus patrimônios líquidos, as perdas resultantes seriam bastante elevadas. A possibilidade de uma crise financeira restringiu em muito a política monetária na fase inicial do plano Cruzado. A evolução da oferta de moeda foi condicionada pela meta implícita de manter a taxa de juros no mercado de overnight próxima a 15% ao ano, o que de fato ocorreu.

Além da preocupação de não explicitar uma taxa de inflação esperada positiva, o desejo de fazer um programa de estabilização neutro do ponto de vista distributivo também contribuiu para que as taxas de juros nominais caíssem mais rapidamente do que na Argentina e em Israel. Se as taxas de juros reais ex-post permanecessem ao redor dos 3 a 4% ao mês, como ocorreu naqueles dois países, haveria uma grande transferência de renda dos devedores para os credores. Parece razoável supor que o governo, para defender na esfera política a conversão dos salários (e de todos os demais contratos) pela média dos últimos seis meses, tenha optado por reduzir rapidamente as taxas de juros.

Em julho de 1986 o Banco Central, reconhecendo que a maior parte dos títulos da dívida pública eram financiados diariamente, lançou um novo título, a Letra do Banco Central (LBC), que teria como rendimento diário o custo do dinheiro no mercado de reservas bancárias por um dia. O carregamento desse título poderia ser feito sem· qualquer risco, uma vez que se garantia que não haveria qualquer descolamento entre as taxas de remuneração e de financiamento.

Quando o primeiro leilão de LBCs foi realizado, permitiu-se que todas as instituições que possuíam OTNs em suas carteiras pudessem trocá-las pelo novo título. Com isso, o Banco Central ficaria livre para colocar a taxa de juros no overnight no patamar que desejasse, sem o risco de colocar as instituições financeiras em dificuldades. A preocupação com a aparente situação de excesso de demanda fez com que, logo após esse leilão, fosse adotada uma política monetária mais apertada, elevando o custo do dinheiro no overnight. No entanto, quando isso ocorreu, o aumento da taxa de juros acabou sendo interpretado como um simples reflexo de que a expectativa do governo para a taxa de inflação havia se elevado e o impacto sobre a demanda agregada foi desprezível. A esse respeito cabe lembrar que se o final do congelamento de preços é tido como iminente, a taxa de juros nominal que irá desestimular a estocagem de matérias-primas e produtos finais será obviamente bastante elevada.7 7 Se a probabilidade a cada dia de que todos os preços serão corrigidos em 10% for também de 10%; somente uma taxa de juros no mercado de overnight superior a 1% ao dia (1127% ao ano) poderá desestimular a estocagem de bens.

Por último, é importante ter em mente que, em uma economia onde haja um grande número de restrições à mobilidade de capitais, a prefixação da taxa de câmbio em combinação com uma política monetária fortemente expansionista não tem qualquer impacto sobre as reservas cambiais do Banco Central. Por isso, tal política pode ser mantida sem maiores problemas nos primeiros meses do congelamento de preços. Entretanto, com uma taxa de juros baixa, o custo de se especular contra o programa de estabilização através da estocagem tanto de produtos finais quanto de matérias-primas não é elevado. Se tal prática for adotada por um número não desprezível de firmas, a economia poderá vir a enfrentar uma situação de desabastecimento generalizado. Este parece ter se constituído em um dos mais sérios problemas enfrentados pelo Plano Cruzado. Além disso, o fenômeno de desabastecimento tende a se propagar como uma bola de neve, uma vez que a possibilidade de que uma mercadoria venha a faltar com certeza alterará os hábitos de consumo da população, fazendo com que compras futuras sejam antecipadas.

5. A POUTICA MONETÁRIA NOS PROGRAMAS DE ESTABILIZAÇÃO NA ARGENTINA E EM ISRAEL EM 1985

Ao contrário do que ocorreu no plano Cruzado, o desenho da política monetária nos programas de estabilização baseados em controles de preços adotados na Argentina e em Israel em 1985 estava desde o início bem definido. Nos dois países havia uma grande preocupação com a velocidade de remonetização da economia que acabou por fazer com que os primeiros meses do congelamento de preços fossem caracterizados por taxas de juros reais extremamente elevadas.

A opção por remonetizar a economia de forma mais lenta contribuiu de forma decisiva para que tanto na Argentina quanto em Israel a fase inicial do programa de estabilização não fosse caracterizada pelo excesso de demanda. Enquanto no Brasil os salários reais continuaram crescendo a taxas bastante elevadas durante todo o período de congelamento de preços, na Argentina e em Israel estes caíram. Em Israel, por exemplo, o salário real médio apresentou uma queda de 15% no primeiro mês de estabilização e de 7% nos quatro meses seguintes.8 8 Veja Dornbusch e Fischer (1986), p. 31.

5.1. Argentina

Quando da decretação do plano Austral, em 14 de junho de 1985, o presidente Alfonsín fez menção explícita à política monetária que iria ser adotada durante o congelamento de preços. Segundo o presidente, o Banco Central argentino não mais iria financiar os déficits do governo emitindo moeda e a expansão da base monetária estaria condicionada a financiar os ganhos de reservas que porventura viessem a ocorrer.

Na prática, não foi isso o que se verificou. Ainda que os ganhos de divisas tenham sido expressivos, o comportamento das operações de crédito ao setor financeiro constituiu-se no principal fator por detrás da expansão da base monetária durante a vigência do plano Austral. Observando-se a Tabela 7 vemos que o crédito líquido do Banco Central às instituições financeiras elevou-se em 154% entre 15 de junho e final de dezembro de 1985. O saldo da conta de regulação monetária, que também representava créditos ao sistema financeiro, elevou-se em 56% naquele período.

Tabela 7:
Fatores Determinantes da Base Monetária durante o Plano Austral: 1985 (milhões de austrais)

Segundo Frenkel e Fanelli (1987Frenkel R. e J. M. Fanelli. (1987) “El Plan Austral: Un Año y Medio Después”, El Trimestre Económico, vol. LIV, número especial, pp. 55-117. ) a grande elevação das operações de redesconto do Banco Central atendeu à necessidade de recursos por parte do sistema bancário para financiar um crescente descasamento de prazos entre as operações ativas e passivas, uma vez que o congelamento de preços provocou uma grande elevação na preferência pela liquidez por parte do público. O temor de gerar uma grave crise financeira, dada a fragilidade de todo o sistema que ainda não havia se recuperado da crise que assolou o setor no início da década de oitenta, fez com que o Banco Central argentino atendesse à crescente demanda pelo redesconto. Além disso, com a decisão do governo federal de não mais cobrir os déficits dos governos estaduais, estes passaram a se financiar através de empréstimos obtidos junto aos bancos por eles controlados que, por sua vez, se financiavam recorrendo ao redesconto do Banco Central.

Em julho, conforme a Tabela 8 ilustra, a rentabilidade média dos certificados bancários com prazo de trinta dias ficou bem abaixo da taxa de crescimento do índice de preços ao consumidor. Entretanto, tal fato não deve ser interpretado como um indicador de uma política monetária folgada uma vez que a inflação de julho não reflete corretamente a evolução dos preços depois da adoção do congelamento. A inflação elevada em julho é quase que inteiramente devida ao comportamento dos preços nas duas primeiras semanas de junho.9 9 Isso é devido ao fato de que na Argentina o índice de preço de cada mês é calculado através de uma média dos preços nas quatro semanas do mês. Para uma discussão desse ponto, veja Lopes (1986). Entre agosto e outubro a taxa de juros real (ex-post) dos certificados bancários de trinta dias permaneceu acima dos 32% ao ano. Assim sendo, apesar de a expansão da base monetária ter ficado bem acima dos ganhos de divisas, o comportamento das taxas de juros durante o congelamento de preços sugere que a política monetária foi bastante restritiva. A tendência declinante do ágio no mercado paralelo de câmbio a partir de agosto também pode ser utilizada como um indicador de uma política monetária apertada.

Tabela 8:
Argentina: Taxa de Juros, Inflação e Ágio em 1985 (taxas mensais)

5.2. Israel

No início de julho de 1985 foi adotado em Israel um programa de estabilização baseado no congelamento da taxa de câmbio, dos salários e dos preços. Além do ajuste fiscal via cortes nos gastos do governo e eliminação de diversos subsídios, houve também uma preocupação explícita com a condução da política monetária na fase inicial do programa. O Relatório Anual do Banco de Israel referente ao ano de 1985 indica que havia uma meta de manter a taxa de crescimento nominal do crédito em julho 10% abaixo da inflação do mês. Para que esse objetivo fosse alcançado, o compulsório sobre os depósitos à vista foi elevado, e o Banco de Israel manteve em julho a taxa de juros nas operações de redesconto em níveis bastante elevados.

Essa preocupação com o comportamento do agregado creditício era devido à previsão de que o congelamento de preços levaria a uma substituição na carteira do público de ativos em moeda estrangeira por ativos denominados em shekels. Como o recolhimento compulsório sobre os depósitos em moeda estrangeira era muito maior do que o recolhimento sobre os depósitos em shekels, a capacidade do sistema bancário de conceder empréstimos obviamente se elevaria. As autoridades israelenses temiam que, com preços congelados, uma expansão do crédito bancário pudesse gerar ou mesmo sancionar pressões de demanda que viessem a comprometer o decolar do próprio programa.

No final de julho, a meta para o crescimento do agregado creditício foi abandonada devido às pressões para que as taxas de juros fossem reduzidas. Apesar disso, a política monetária na fase inicial do programa israelense permaneceu bastante restritiva. A Tabela 9 apresenta a evolução das taxas de juros dos empréstimos e dos certificados de depósitos, do crédito bancário, dos ativos em moeda nacional e estrangeira e da inflação ao longo de 1985. Pode-se ver que o crédito bancário caiu em termos reais em 9% em julho, elevou-se ligeiramente em agosto e permaneceu praticamente constante de setembro até o final do ano. O agregado monetário mais amplo, o qual inclui papel em poder do público, depósitos em shekels e em moeda estrangeira e os títulos do governo fora dos fundos de pensão, caiu 4% entre o final de junho e o final de dezembro.10 10 Veja o capítulo VIII, “The Money and Capital Market”, do Relatório Anual do Banco de Israel, 1986. Assim sendo, o grande crescimento verificado nos ativos denominados em shekels (veja Tabela 9) foi mais do que compensado pela queda dos ativos em moeda estrangeira e pelos títulos do governo. As taxas de juros reais (ex-post) permaneceram em patamares bastante elevados. No período agosto a dezembro, por exemplo, o custo médio dos empréstimos em termos reais foi de 125% ao ano. Nesse mesmo período a rentabilidade dos depósitos a prazo superou a inflação em 7,1%, o que, anualizado, representa um retorno real de 17,9%.

Tabela 9:
Israel: Taxas de Juros, Inflação, Crédito Bancário e Ativos Financeiros em 1985 (taxas de crescimento mensais)

6. CONCLUSÕES

Uma pergunta que tem sido feita com alguma frequência com a derrocada do plano Cruzado diz respeito à origem dos problemas enfrentados. Será que havia falhas na concepção original do programa que inevitavelmente levariam ao seu fracasso ou será que os problemas surgidos se devem apenas a acidentes de percurso, motivados em grande parte por fatores políticos? E razoável concluir que as dificuldades surgidas se originam tanto de falhas de concepção quanto de acidentes de percurso.

A bonificação de 8% sobre todos os salários e de 15% sobre o salário-mínimo constituiu um importante desvio em relação a uma desejada neutralidade distributiva. Essa sem dúvida foi uma importante falha de concepção do plano Cruzado. A tentativa implícita de se distribuir renda, ao mesmo tempo em que se procurava combater a inflação através da adoção de um congelamento, teve consequências danosas no médio prazo. A esse respeito, é importante chamar a atenção para o fato de que a imposição de um congelamento de preços, deixando-se, no entanto, que os salários continuassem a ser determinados pelas forças de mercado, teve um impacto sobre a economia semelhante ao das políticas de valorização do câmbio frequentemente adotadas no passado recente na Argentina e no Chile. Como o ocorrido nestes dois países, a fase inicial de grande euforia culminou em uma grave crise do Balanço de Pagamentos.

A principal falha na concepção do programa está relacionada à política monetária. O medo de que o programa viesse a ser recessivo e a ingenuidade quanto à influência da taxa de juros na formação de expectativas dos agentes econômicos levaram à adoção de uma política monetária excessivamente folgada. A manutenção de uma taxa de juros real negativa teve um efeito duplamente perverso sobre o programa de congelamento de preços. Enquanto pelo lado da oferta os juros baixos incentivavam a retenção de estoques especulativos, pelo lado da demanda estes serviam de estímulo à aquisição de bens de consumo duráveis.

Quando em julho a preocupação com a situação de generalizado excesso de demanda levou o Banco Central a adotar uma política monetária menos folgada, a elevação da taxa de juros no mercado de reservas bancárias foi interpretada como um simples reflexo de que a expectativa do governo com relação à inflação futura havia se alterado. A esse respeito convém chamar a atenção para o fato de que, caso o programa de congelamento de preços não entre em colapso no seu deslanchar, a expectativa do público com relação à taxa de inflação no curtíssimo prazo em geral sofre uma queda acentuada, mesmo que o programa seja percebido como sendo insustentável no longo prazo. Neste primeiro momento, uma taxa de juros nominal da ordem de 3% a 4% ao mês é vista por todos como representando uma taxa real (ex-ante) praticamente da mesma magnitude. Decorridos alguns meses da adoção do programa, no entanto, a incerteza com relação à capacidade do governo de manter o próprio congelamento tende a reaparecer. Nesta fase, elevações da taxa de juros nominal podem ocorrer sem que a taxa de juros real (ex-ante) seja alterada. Tendo isso em vista, é preferível, ao contrário do que foi feito durante o Cruzado, manter a liquidez apertada desde o início do programa a tentar elevar as taxas de juros caso ocorram pressões de demanda.

O principal acidente de percurso deveu-se à paralisia imposta principalmente por fatores de natureza política. A demora em primeiro diagnosticar o excesso de demanda e depois agir de forma incisiva, realinhando preços e elevando impostos, só pode ser explicada pelo temor em perder o apoio da opinião pública. Além da paralisia imposta pela proximidade das eleições, parte na demora em diagnosticar o excesso de demanda foi causada pelo que podemos chamar de “fobia da recessão”. A repetição ad infinitum da opção da Nova República pelo crescimento fez com que o programa tivesse um viés nitidamente expansionista. A experiência do Cruzado mostrou que, em um programa de congelamento de preços, errar na direção da recessão é mais seguro.

As experiências de Argentina e Israel deixam claro que a adoção de uma política monetária apertada tende a evitar a ocorrência do excesso de demanda na fase inicial do congelamento de preços. Os custos de se manter a taxa de juros real elevada por um período prolongado são o impacto depressivo sobre o nível de atividade e a elevação· das despesas com a rolagem da dívida pública interna. Entretanto, as vantagens de se evitar o aparecimento de filas e a cobrança de ágios em geral compensam estes efeitos adversos.

Quanto à delicada questão referente ao desenho da política monetária na fase inicial do congelamento de preços, a experiência israelense sugere que a existência de metas para o crescimento nominal do agregado creditício (ou do agregado monetário mais amplo) deve ser explicitada desde o início do programa. A esse respeito pode ser importante elevar temporariamente o recolhimento compulsório sobre os depósitos à vista. A meta creditícia ou monetária das Autoridades Monetárias deve fazer com que as taxas de juros reais se mantenham elevadas mas declinantes. A questão relativa ao nível exato no qual as taxas de juros nominais devem permanecer no início do congelamento de preços obviamente não tem uma resposta precisa. Entretanto, cabe lembrar que a taxa de juros deve ser mantida em um nível tal que os preços dos ativos reais fiquem constantes ou mesmo em declínio. A cotação diária do dólar no mercado paralelo constitui um importante instrumento de orientação do processo de remonetização da economia. Uma elevação do ágio deveria ser prontamente interpretada pelas Autoridades Monetárias como um indício de uma política monetária demasiadamente folgada.

Por último, é importante que fique claro que a experiência do Cruzado não foi um grande desastre que deve ser esquecido. Em uma economia altamente indexada, a tentativa de se combater a inflação através de políticas de renda tem grandes vantagens em relação às tradicionais políticas monetário-fiscais contracionistas. É preciso, no entanto, resistir à tentação de aproveitar o congelamento de preços para atacar o grave problema distributivo presente na economia brasileira.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • Lara Resende, A. (1984) “A Moeda Indexada: uma Proposta para Eliminar a Inflação Inercial”, Texto para Discussão n. 75, Departamento de Economia, PUC/RJ.
  • Lopes, F.L. (1986). O Choque Heterodoxo, ed. Campos, São Paulo.
  • 1
    Veja Keynes (1981Keynes, J.M. (1981). The Collected Writings of John Maynard Keynes, vol. XIX, parte I, Macmillan, Londres. ), p. 25.
  • 2
    Para uma avaliação detalhada de todo o plano Cruzado, veja, por exemplo, Carneiro, (1987Carneiro, D.D. (1987). “El Plan Cruzado: Una Temprana Evaluación Después de Diez Meses”, El Trimestre Económico, vol. LIV, número especial, pp. 251-274. ).
  • 3
    A alíquota do imposto sobre as aplicações por um dia foi elevada de 10% para 45% e a alíquota do imposto sobre os CDBs, com prazo· superior a 59 dias, foi elevada de 7% para 35%.
  • 4
    Veja, por exemplo, Carneiro (1987Carneiro, D.D. (1987). “El Plan Cruzado: Una Temprana Evaluación Después de Diez Meses”, El Trimestre Económico, vol. LIV, número especial, pp. 251-274. ), p. 264.
  • 5
    O artigo original de Lara Resende (1984Lara Resende, A. (1984) “A Moeda Indexada: uma Proposta para Eliminar a Inflação Inercial”, Texto para Discussão n. 75, Departamento de Economia, PUC/RJ. ) que contém uma proposta específica de adoção de uma reforma monetária trata a política monetária de forma superficial.
  • 6
    É importante lembrar que apesar da remuneração das ORTNs ser de correção monetária mais juros de 6 a 8% ao ano, o deságio com que esses títulos eram adquiridos elevava a rentabilidade efetiva para os mencionados 15% ao ano.
  • 7
    Se a probabilidade a cada dia de que todos os preços serão corrigidos em 10% for também de 10%; somente uma taxa de juros no mercado de overnight superior a 1% ao dia (1127% ao ano) poderá desestimular a estocagem de bens.
  • 8
    Veja Dornbusch e Fischer (1986Dornbusch, R. e S. Fischer, (1986) “Stopping Hyperinflations Past and Present”, Weltwirtschaftliches Archiv, vol. 122, pp. 149. ), p. 31.
  • 9
    Isso é devido ao fato de que na Argentina o índice de preço de cada mês é calculado através de uma média dos preços nas quatro semanas do mês. Para uma discussão desse ponto, veja Lopes (1986Lopes, F.L. (1986). O Choque Heterodoxo, ed. Campos, São Paulo. ).
  • 10
    Veja o capítulo VIII, “The Money and Capital Market”, do Relatório Anual do Banco de Israel, 1986.
  • *
    Gostaria de agradecer os comentários de Edmar Bacha e Rogério Werneck.
  • 12
    JEL Classification: E31; E52

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 1990
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