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A relação entre moeda e valor em Marx* * Agradeço à professora Leda Maria Paulani pelos comentários, que deram origem ao Apêndice. Agradeço também os comentários de Alfredo Saad Filho e dos pareceristas da REP, bem como o financiamento da FINEP para pesquisa mais ampla da qual este trabalho é parte. A responsabilidade pelos erros é inteiramente da autora.

The relation between money and value in Marx

RESUMO

Este artigo é uma interpretação da teoria do valor de Marx. Chama-se atenção ao vínculo que Marx estabeleceu entre valor e dinheiro, nas economias capitalistas, tanto no sentido da gênese do dinheiro a partir de mercadorias e valor, quanto no sentido da imposição da lei do valor através da restrição monetária. Na primeira parte, o valor é definido como representação social do trabalho nas economias capitalistas. A segunda parte analisa a imposição da lei do valor às mercadorias através do dinheiro. Finalmente, a terceira parte analisa como a lei do valor se impõe sobre o dinheiro.

PALAVRAS-CHAVE:
Teoria do valor; história do pensamento econômico; Marx

ABSTRACT

This paper is an interpretation of Marx’s Theory of Value. Attention is called to the link which Marx has established between value and money, in capitalist economies, both in the sense of the genesis of money from commodities and value, and in the sense of the imposition of the law of value through monetary restriction. In the first part, value is defined as social representation of labor in capitalist economies. The second part analyses the imposition of the law of value to commodities through money. Finally, the third part analyses how the law of value imposes itself over money.

KEYWORDS:
Value theory; history of economic thought; Marx

A relação estabelecida por Marx entre moeda e valor é, a nosso ver, muito mal compreendida. Isso fica claro nas discussões sobre a teoria marxista do valor-trabalho, que há mais de meio século permeiam o debate acadêmico. Estas discussões mostram uma tendência particular a ler Marx como se se tratasse de um discípulo de Ricardo, ou de um membro da chamada “Escola Clássica”. Esse tipo de leitura conduz a uma interpretação da lei do valor como se ela se manifestasse de forma direta e imediata, e se constatasse a cada instante. Essa não é, para nós, a concepção marxista, como tentaremos mostrar neste trabalho, através da análise dessa relação.

Marx estabelece em sua obra uma relação estreita, ainda que complexa, entre moeda e valor que destaca a complexidade da forma valor, entre outras razões, por causa da autonomia que caracteriza a forma do valor em relação ao valor. Essa autonomia, comentada por Marx em diversas ocasiões, é inerente à moeda enquanto forma universal do valor. Como é impossível conceber a existência de uma economia mercantil sem a utilização de moeda, essa ideia de autonomia não pode ser colocada de lado nas análises, mas, ao contrário, deve tornar-se o objeto destas.

É esta autonomia que impede que a lei do valor possa se impor de forma direta e imediata. É ela que permite a imposição da lei do valor de diferentes formas, segundo a diversidade das condições sociais do processo de acumulação do capital. Em qualquer caso, porém, a lei do valor só se impõe através da moeda como equivalente geral.

Assim, a compreensão da forma do valor em relação ao valor e da moeda como forma universal do valor implica a compreensão das razões pelas quais a lei do valor, mesmo se impondo necessariamente através da moeda, não pode ser vista como absoluta e imediata. Esses são os assuntos que pretendemos desenvolver neste trabalho, a partir das contribuições de Rubin e S. de Brunhoff.

Rubin foi escolhido por sua relevante contribuição à compreensão da teoria do valor na versão trabalho abstrato.1 1 Rubin, I. Essais sur la Théorie de la Valeur de Marx, Mas ero, 1978. Nós o designaremos após as citações pela abreviação R(a), seguida da página correspondente. Rubin, I. “Abstract Labour and Value in Marx’s System” em Capital and Class, Summer, 1978. Nós o designaremos pela abreviação R(b), seguida da página correspondente. Quanto a S. de Brunhoff, sabemos que é uma dos poucos economistas marxistas que se dedicou de forma sistemática à análise da moeda e dos fenômenos monetários. No início dos anos 70, S. de Brunhoff sugere uma interpretação da lei do valor que menciona justamente essa impossibilidade de imposição da lei do valor de forma direta e imediata, destacando diferentes aspectos da relação entre moeda e valor em Marx2 2 Ver Brunhoff, S. ‘’Production Marchande. Mode de Production. Catégorie Monnaie”, em La Politique Monétaire, PUF, 1974, cap. II. Nós o designaremos, após as citações, por Brunhoff, seguido da página correspondente. . É essa sugestão de S. de Brunhoff, paralelamente à análise de Rubin sobre o valor, que pretendemos explorar neste trabalho.

Começaremos discutindo a relação entre a forma valor e o caráter mercantil da economia capitalista3 3 Seguiremos neste trabalho a análise de Fausto, R., segundo a qual a “produção mercantil” não é um modo de produção particular, mas sim um “momento” do modo de produção capitalista. “Sur la forme valeur et le fetichisme” em Critique de l’Economie Politique, nova série n. 18 jan./mar. 1982, p. 136. Mas trataremoss de forma diferente dele as noções de trabalho abstrato e valor. e nos apoiaremos para isso nos trabalhos de Rubin.

Em seguida trataremos da imposição da lei do valor e do papel da moeda nesse processo, a partir do desenvolvimento de algumas ideias contidas nos trabalhos de Suzanne de Brunhoff.

1. O PORQUÊ DO VALOR COMO FORMA SOCIAL

‘’Uma economia mercantil pode ser definida como aquela onde: 1) acham-se presentes as células individuais da economia nacional, ou seja, empresas privadas, isoladas, formalmente independentes umas das outras; 2) como consequência lógica da divisão social do trabalho, tais células são materialmente ligadas umas às outras; 3) a conexão direta entre produtores mercantis individuais se estabelece na troca.4 4 Quando falamos aqui de troca, nos referimos necessariamente à utilização de moeda, em contraposição à troca direta, ou escambo. Assim, troca tem aqui o sentido de “échange” em francês, ou “exchange” em inglês, que se contrapõem ao intercâmbio direto observado nas economias “du troc” em francês, ou “barter economy”, em inglês. Isto influencia indiretamente sua atividade de produção” (R (a)27).

No seio dessa economia, a troca é a forma social do processo de reprodução. É na esfera da circulação que ao mesmo tempo se impõe e se resolve a contradição privado-social, ou seja, aquela entre a aparente independência dos produtores privados e a divisão do trabalho, que é social e que impõe a dependência recíproca dos primeiros, sendo o valor o princípio regulador da troca.

A análise de Marx, contudo, não parte do valor como tal. Ao contrário, ela começa por desvendar a origem do valor questionando-se por que os trabalhos nas economias mercantis tomam a forma de valor e como se produz essa transfiguração.

Assim, a preocupação de Marx quanto ao valor é, antes de tudo, a de desvendar a relação fundamental de uma economia mercantil, o que ele exprime em termos de relação social. “Marx se pergunta por que o conteúdo técnico do processo de trabalho toma, a um nível dado de desenvolvimento das forças produtivas, uma forma social particular determinada. Sua linha metodológica é aproximadamente a seguinte: Por que o trabalho toma a forma de valor, os meios de produção a forma de capital, os meios de subsistência dos trabalhadores a forma de salário e o crescimento da produtividade do trabalho a forma de mais-valia?” (R(a)l84).

Em todas as sociedades fundadas na divisão do trabalho, este é socializado e é imprescindível que sua repartição seja proporcional, de modo a garantir a reprodução da própria sociedade, haja visto a dependência recíproca à qual se veem sujeitas as células individuais desta sociedade. Tal repartição passa obrigatoriamente por um processo de equalização dos trabalhos, do ponto de vista social.

Se a sociedade é previamente analisada e organizada, ou seja, planificada, o trabalho é de imediato social, apesar da diferença entre os trabalhos concretos, porque cada célula individual tem um papel complementar em relação às outras. Assim, “o trabalho de cada indivíduo é social, precisamente porque ele é diferente do trabalho dos outros membros da comunidade e porque ele representa um complemento material para esses trabalhos’’ (R(a) 137). Este trabalho também é repartido, uma vez que sua organização social consiste, precisamente, em sua repartição entre os membros da sociedade. Finalmente, os trabalhos de diferentes espécies são socialmente equalizados a partir de critérios estabelecidos pela própria organização social no momento de decidir as vantagens e desvantagens do dispêndio de esforços em cada um deles.

Numa economia mercantil, o trabalho também é socializado, repartido e equalizado, visto que também se trata de uma sociedade fundada na divisão do trabalho. Entretanto, a forma pela qual se produzem estes processos é inteiramente diferente, porque o trabalho não é regulado diretamente pela sociedade, mas indiretamente, via troca.

A equalização, a repartição e a socialização dos trabalhos através da troca implicam que as características concretas dos trabalhos sejam abstraídas e que os produtos do trabalho tornem-se equivalentes por meio de mecanismos de mercado.5 5 Trata-se aqui de um movimento de abstração dos trabalhos concretos que “é operado pelo próprio real”, como diz Ruy Fausto. Entretanto, não concordamos com Fausto que uma vez abstraídas as condições concretas do trabalho ele já seja social, embora o processo de abstração faça parte da socialização dos trabalhos privados. É o que veremos no Apêndice. ‘’ Abstract labour is the designation for that part of social labour which was equalised in the process of social division of labour through the equation of the products of the labour on the market” (R(b )118).

Assim, “o conceito de trabalho abstrato exprime a forma histórica específica de equalização dos trabalhos” (R(a)l84) em uma economia mercantil, e a forma valor é consequência do trabalho abstrato não somente do ponto de vista lógico, mas também histórico. É esta precisamente a razão pela qual na sociedade mercantil a contradição entre produtores privados formalmente independentes e uma divisão do trabalho que é social, é expressa e resolvida na circulação, através do mercado, onde o trabalho se torna abstrato e toma a forma de valor.

A forma valor não é, entretanto, arbitrária. Ao contrário, é essencial, em primeiro lugar, observar que a equalização dos trabalhos necessita de uma base comum, ou de um critério, o que conduz imediatamente à questão da substância do valor. Esta base comum é o trabalho, dada a contradição fundamental de uma economia mercantil, entre a independência formal dos produtores privados que agem, entretanto, no seio de uma sociedade baseada na divisão do trabalho. Cada processo de trabalho se apresenta como complementar dos outros, sendo esse caráter complementar fundamental para a existência da sociedade.

Em segundo lugar, o processo de equalização dos trabalhos coloca a questão da grandeza do valor. A resposta a esta questão é fornecida pelo tempo do trabalho socialmente necessário para a produção das mercadorias.

Mas, se a substância do valor é o trabalho abstrato e a grandeza é dada pelo tempo de trabalho, por que a análise e a prática não são feitas diretamente pela via do trabalho, sem passar pelo valor? Porque o tempo de trabalho socialmente necessário à produção das mercadorias só pode ser definido de forma final na circulação. Não é todo o trabalho despendido na produção que é validado socialmente. Por um lado, trata-se do trabalho efetuado nas condições sociais, desconhecidas de cada produtor privado até o momento da compra e venda de mercadorias. Por outro, para receberem sua validação social final é necessário que os trabalhos satisfaçam uma necessidade social. Somente na circulação pode-se saber se uma fração da sociedade se interessa pela mercadoria, ou seja, se há demanda solvável. É necessário, então, que as mercadorias se confrontem no mercado para que a grandeza de seus valores possa ser determinada de forma final. O valor, além de ter um conteúdo, tem uma forma, sempre relativa: a do valor de troca. Mas o valor de troca não se confunde com o valor, porque este exprime algo ligado a uma mercadoria em particular e o valor de troca, sendo sempre relativo e se expressando a partir de outras mercadorias, pode aparecer de diversas formas. Essas diversas maneiras de aparição de uma mesma coisa mostram que o valor de troca é uma representação do valor, mas não se confunde com ele. O fato de o valor se ligar a cada mercadoria em particular e ser ao mesmo tempo comum a todas, implicará, com o desenvolvimento da produção de mercadorias, a necessidade de uma forma do valor também comum, tornando indispensável a aparição da moeda, vista como forma universal do valor.

Fica clara agora a razão pela qual para Marx “era de importância decisiva descobrir a conexão interna necessária entre forma, substância e grandeza do valor ... provar que a forma valor nasce do conceito de valor’’ (Das Kapital Bd I ed. 1867, citado por Rubin (a) p. 157).

O conceito de valor é então definido como contendo substância ou conteúdo e forma, sendo “o próprio conteúdo que no curso de seu desenvolvimento dá origem à forma que nele já estava contida em seu estado latente. Assim, a forma decorre necessariamente do próprio conteúdo’’ (R(a) 164-165). O conteúdo do valor, sua substância, é o trabalho abstrato. Sua forma é o valor de troca, sempre relativo, visto que se trata de um resultado do confronto entre dois produtos do trabalho equalizados a partir do que lhes é comum, o trabalho abstrato. A forma valor, ou simplesmente o valor, é então, por um lado, a forma social fundamental de uma economia mercantil. É a forma através da qual o trabalho abstrato, característico dessa economia, é representado socialmente. Por outro lado, o valor é unidade de conteúdo ou substância (dada pelo trabalho abstrato) e forma (dada pelo valor de troca).

O valor de troca para Marx é a expressão concreta do valor. Esse conceito impõe a necessidade da moeda numa economia mercantil. Segundo Rubin, ‘’we defined abstract labour as labour which was made equal through the round equation of all the products of labour, but the equation of all the products of labour is not possible except through the assimilation of each one of them with a general equivalent” (R(b)llB). Assim, a equalização dos trabalhos deve necessariamente acontecer na troca. Mas para que isto ocorra é necessário um equivalente geral.

Essa necessidade de um equivalente geral ou da moeda decorre do fato de que o valor como forma de representação dos produtos do trabalho numa economia mercantil pode somente se definir de forma completa na troca. Segundo Marx, ‘’o valor faz de cada produto um hieróglifo social’’. As mercadorias não trazem escritas em sua fronte que elas são valores e nem quais são seus valores. Isto só se mostra via confronto de mercadorias e, consequentemente, sempre de forma relativa. A forma relativa de surgimento do valor implica que o valor pode se apresentar de diferentes maneiras, as quais dependem da mercadoria que ocupa o lugar de mercadoria equivalente. Mas como o que é necessário para que a troca possa se desenvolver é uma forma relativa que reflita aquilo que é comum a todas as mercadorias, é preciso que apareça um equivalente comum, o equivalente geral. Este é então indispensável numa economia mercantil, onde o valor é a representação do trabalho abstrato e pode aparecer somente relativamente, na forma de valor de troca.

Assim, o processo de abstração dos trabalhos concretos só pode se completar via conversão das diversas mercadorias em equivalente geral. ‘’Labour becomes abstract through being assimilated with a particular form of labour, or through the assimilation of its product with a universal equivalent which was therefore regarded by Marx as the objetivation or materialisation of abstract labour” (R(b)119).

Vimos até aqui que a articulação feita por Marx entre as relações mercantis de produção e o trabalho abstrato é dada pela própria definição de trabalho abstrato enquanto característico de uma economia mercantil, onde o caráter permutável dos bens exige que as características concretas do trabalho sejam abstraídas. Vimos também que a articulação entre trabalho abstrato e valor existe porque o trabalho abstrato é o conteúdo do valor, este último sendo a representação social do trabalho numa economia mercantil. Vimos ainda que o valor toma uma forma concreta, que é a de valor de troca, sendo este sempre relativo, uma vez que ele exprime o confronto de dois produtos do trabalho que na circulação têm necessidade de se comparar baseados naquilo que lhes é comum. Enfim, vimos que a ideia de valor de troca conduz inevitavelmente à ideia de moeda como equivalente geral. Isto porque, comparando um quarter de trigo com diversas proporções de mercadorias, Marx mostrou que apesar das formas fenomenais diferentes, o valor intrínseco do trigo é o mesmo e ele tende a buscar um outro valor intrínseco no qual refletir seu próprio valor, que seja diferente e único. O equivalente geral, ou a moeda, é então a forma comum daquilo que é comum. É a objetivação do trabalho abstrato. É a forma comum de expressão do valor de troca de todas as mercadorias que têm em comum a forma valor numa economia mercantil e que têm também em comum a substância do valor.

As relações de troca, ao se desenvolverem de forma regular, levam a atividade social dos produtores de mercadorias à seleção de uma mercadoria que possa ser imediatamente trocada por uma outra qualquer. Esta mercadoria selecionada faz o papel de equivalente geral e toma então a forma moeda.

2. A LEI DO VALOR

A análise da forma valor permite, por um lado, que Marx compreenda a relação fundamental de uma economia mercantil, tendo sempre em mente que a economia capitalista é mercantil. Assim, ele consegue perceber que o problema do valor só se coloca neste tipo de economia, porque só aí o trabalho precisa de uma forma para se representar. A partir do conceito de trabalho abstrato ele pode chegar ao porquê desta forma. É o que vimos no item precedente, ao tratar da articulação entre os conceitos de trabalho abstrato, valor e moeda.

Por outro lado, Marx pode, a partir do valor, compreender e explicar o funcionamento de uma economia capitalista no tocante a seu caráter mercantil.6 6 Observe-se que não foram introduzidas até aqui, como também não o foram nos três primeiros capítulos do Capital, as relações de produção capitalistas ou o caráter capitalista propriamente dito. É nesse sentido que S. de Brunhoff diz que “sem ser uma relação de produção, a relação social de troca se inscreve num organismo de produção espontânea” (p. 73). Este é o assunto deste item 2, onde o problema da grandeza do valor se coloca como importante no tratamento de duas questões interligadas: a questão da equivalência e a do equilíbrio numa economia mercantil. Tais questões devem ser esclarecidas de modo a definir o que entendemos por lei do valor.

A questão da equivalência na troca, para Marx, tem dois objetivos analíticos estreitamente ligados. O primeiro é o de definir o processo de criação do valor na esfera da produção, sendo a esfera da circulação aquela onde apenas são distribuídos os valores já criados. Isto se baseia no fato de que os ganhos obtidos apenas na troca não podem ser sistemáticos e se tornarem gerais, visto que o que um indivíduo ganha como vendedor, perde pouco depois, quando ele se torna comprador.

O segundo objetivo analítico, ligado ao primeiro, é o que vê a operação de compra e venda como relação social fundamental numa economia mercantil, ou como forma social de articulação entre os produtores privados aparentemente independentes, mas, apesar disso, submetidos à dependência recíproca que decorre do caráter social do trabalho em toda economia baseada na divisão do trabalho. Numa sociedade onde cada célula individual é ao mesmo tempo compradora e vendedora, a troca deve se produzir entre equivalentes, ou a própria existência da sociedade enquanto tal é colocada em risco.

‘’Todo sistema de divisão do trabalho é ao mesmo tempo um sistema de repartição do trabalho’’ (R(a)100). Sabendo que a divisão do trabalho supõe uma complementaridade e que esta complementaridade implica proporções não arbitrárias, é necessário haver uma certa proporcionalidade entre trabalho efetuado e trabalho apropriado, de modo a permitir o funcionamento da sociedade.

Quando se trata de uma economia mercantil, onde o trabalho adquire a forma social de valor, a apropriação do trabalho em proporções convenientes para permitir a manutenção da sociedade requer a equivalência entre as diferentes mercadorias vendidas e compradas. Assim, “a troca de equivalentes é uma necessidade nascida na circulação de mercadorias que se impõe aos produtores de valores de troca” (Brunhoff, pp. 73-74).

A equivalência necessária entre as mercadorias faz do valor o regulador das trocas e estabelece, então, a necessidade de proporcionalidade na repartição do trabalho social entre os diferentes ramos de produção. É precisamente isto que, a nosso ver, conduz Rubin a afirmar que “a troca entre duas mercadorias diferentes, por seus valores, corresponde ao estado de equilíbrio entre dois ramos de produção” (R(a)101). Tal afirmação, entretanto, exige que nos detenhamos na noção de equilíbrio aqui mencionada, de forma a destacar o que existe de diferente entre esta concepção e aquela cara à economia burguesa.

Segundo Rubin, “a lei do valor é a lei de equilíbrio da economia mercantil” (R(a)l03). A noção de equilíbrio aqui transcrita só pode ser compreendida, em nossa opinião, como a alocação do trabalho necessária para permitir a existência da sociedade como tal. Assim, não se trata de estabelecer uma tendência ao equilíbrio, nem de supor que tal alocação do trabalho se faça de modo direto ou imediato, nem tampouco garantido. Pelo contrário, “as condições sociais da troca de equivalentes se impõem aos produtores-comerciantes como lei do valor” (Brunhoff, p. 58). Mas “a troca de equivalentes pode apresentar divergências com relação à produção dos valores de troca” (Brunhoff, p. 59). Assim, a imposição da lei do valor, como necessidade de uma economia mercantil, não se efetua em absoluto de modo simples e direto, nem é a garantia de um equilíbrio tendencial, mas, como veremos no item 3, ela reflete, por sua complexidade, o caráter contraditório da própria economia mercantil. O que a noção de equilíbrio exprime na citação acima é a necessidade de se manter proporções não arbitrárias na repartição do trabalho para que a sociedade possa se manter. Os problemas sempre presentes na economia mercantil são então indícios de problemas que ocorrem constantemente para que se verifique a troca entre equivalentes.

O aspecto quantitativo do valor é então necessário, por causa do caráter não arbitrário da repartição do trabalho na economia mercantil. Entretanto, esse aspecto quantitativo do trabalho não pode ser estabelecido de forma direta entre trabalho gasto na produção de uma mercadoria e trabalho-apropriado na forma de dinheiro, na venda. O processo é significativamente mais complexo, produzindo-se via restrição monetária.

A restrição monetária nada mais é do que a necessidade de conversão de todas as mercadorias em moeda e de todas as formas de moeda em moeda equivalente geral. Além disso, a restrição monetária implica que a moeda deve se reproduzir e se afirmar sempre como equivalente geral.

A restrição monetária relaciona os produtores individuais separados, o que ocorre de forma completa apenas na troca, depois que as mercadorias foram produzidas. Esta é a razão pela qual aparece a possibilidade de divergência entre valor criado individualmente e valor realizado socialmente, fruto da contradição privado-social que define as economias mercantis.

Para entender tanto a possibilidade dessa divergência, quanto os limites da mesma - estes últimos vistos como expressão da imposição da lei do valor -é necessário apreender, por um lado, o papel do equivalente geral na imposição da lei do valor. Por outro, compreender como a lei do valor se impõe ao próprio equivalente geral. É sobre estes assuntos que falaremos no próximo item.

3. O PROCESSO DE IMPOSIÇÃO DA LEI DO VALOR

Analisamos até aqui a forma valor como forma social característica das economias mercantis e o papel do valor como regulador intrínseco do funcionamento dessas economias. A propósito deste último tópico, vimos que é o caráter não arbitrário da repartição do trabalho nas economias mercantis que torna a lei do valor a lei de alocação de trabalho desta economia e que torna importante a análise da grandeza ou da amplitude do valor. Vimos também que o problema do valor só se coloca neste tipo de economia, porque somente nela a troca faz o papel de articulador necessário entre os produtores privados independentes, explicitando e trazendo uma solução à contradição privado-social ligada ao trabalho. Assim, a determinação final do valor se verifica somente na circulação de mercadorias. Vejamos isso mais cuidadosamente.

Cada célula individual de uma sociedade mercantil desenvolve sua capacidade produtiva sem acordo ou plano prévio a respeito das atividades dos outros. É somente no processo de troca que o caráter social da produção será legitimado como tal de forma final ou definitiva. É aí que os produtos do trabalho receberão sua validade social efetiva. Até então seu caráter social é somente latente, no sentido de trabalhos que são frações do trabalho da sociedade como um todo, tendo em vista a divisão do trabalho.

Quando a mercadoria, fruto de um processo de trabalho privado, chega ao mercado, ela se vê diante de outras de diferentes qualidades. Nesse momento, três ordens de problemas podem se apresentar. Primeiro, o conteúdo de trabalho privado pode ser diferente do trabalho que em média é gasto para produzir mercadorias da mesma natureza. Se a mercadoria em questão é produzida a partir de um gasto de trabalho superior à média social, uma parte do trabalho é desperdiçada. Neste caso, segundo Brunhoff (p. 58), “o valor imanente individual da mercadoria, como tempo de trabalho coagulado que corresponde ao tempo de trabalho socialmente necessário num período anterior, deve se modificar sob a pressão do novo valor imanente social, ou tempo de trabalho coagulado necessário, no período atual, que determina o valor de troca da mercadoria ...”.7 7 Para uma explicação detalhada da relação entre as categorias valor individual, valor social, trabalho concreto, trabalho abstrato, trabalho médio e trabalho socialmente necessário, ver o Apêndice.

Além disso, “a troca social de equivalentes pode entrar em desacordo com a produção social de valores” (Brunhoff, pp. 58-59) quando o valor da mercadoria em questão em termos de uma outra se modifica por causa de uma variação do valor intrínseco da última.

Finalmente, sabendo-se que o valor intrínseco de uma mercadoria pode somente se exprimir de forma relativa, ou seja, por meio de uma mercadoria particular que se torna a forma valor comum a todas as mercadorias, que é a forma moeda, o valor da troca da mercadoria em questão pode se modificar simplesmente porque o valor da moeda mudou.

Assim, segundo Brunhoff (p. 62) “encontra-se aqui a divergência ... entre valor relativo e valor imanente. Existem então três casos: 1) Para uma mesma mercadoria, sanção do trabalho individual despendido pelo valor social tornado imanente (‘desvalorização interna’); 2) na troca de duas mercadorias, sanção da mudança da relação dos valores imanentes pela mudança do valor- relação (‘desvalorização externa’); 3) na troca mercadoria/ouro, sanção externa específica pela depreciação, como caso particular da (‘desvalorização externa’)”.

Tais possibilidades de divergências não fazem mais do que explicitar a autonomia da circulação com relação à produção, embora esta autonomia seja apenas relativa, já que se trata de duas etapas de um mesmo processo social. Essa autonomia relativa e a divergência entre valor individual e valor social são derivadas da contradição fundamental entre o caráter privado e ao mesmo tempo social do trabalho nas economias mercantis, contradição que aparece e se resolve somente na troca através da forma valor. Daí “a divergência entre troca de equivalentes e produção de valores de troca” (p. 73).

Essas divergências mostram, entre outras coisas, que “a lei do valor ( ... ) só pode ser compreendida na relação produção-circulação” (Brunhoff, p. 75), o mesmo ocorrendo com a categoria “trabalho abstrato”. “O trabalho abstrato, substância do valor de troca, é um pressuposto da produção mercantil, mas só se torna trabalho abstrato na circulação de mercadorias” (Brunhoff, p. 75).

No tocante à “desvalorização interna”, S. de Brunhoff observa uma sujeição do trabalho individual ao trabalho social. “É na circulação que o novo ‘valor social’ da mercadoria se impõe sobre o valor individual” (p. 75). Esse desacordo entre valor individual e valor social é perfeitamente compreensível se nos lembrarmos que a circulação é o elo de socialização dos indivíduos separados na economia mercantil, e que esta socialização implica não apenas trabalho efetuado nas condições sociais, mas atendendo também a alguma necessidade social. Neste caso, torna-se fácil a compreensão do valor social submetendo o valor individual, não somente no momento da troca, mas intervindo também depois, no sentido de estimular a produção nas condições individuais menos favoráveis que as sociais ao aperfeiçoamento.

Entretanto, no tocante à desvalorização externa, colocam-se certos aspectos cuja compreensão é indispensável para apreendermos corretamente a lei do valor e seu modo de imposição. Analisemos a densa citação de S. de Brunhoff a seguir, destacando seus aspectos importantes:

“Por um lado, qualquer que seja o modo de produção do qual participem categorias mercantis, a lei do valor tem necessariamente um papel. Mas, por outro lado, as modalidades e os efeitos de sua ação mudam com as condições sociais de produção. Se se trata de produção mercantil, todas as contradições examinadas até aqui engendram a diferença entre valor individual e preço social mercantil. Se se trata de produção capitalista, é provável que a contradição valor-preço se exprima diferentemente na contradição valor-preço de produção ligada à concorrência entre capitalistas e à formação de uma taxa média de lucro.

“De qualquer maneira, a forma preço é um elemento da contradição. Deste ponto de vista, a moeda como equivalente geral tem o caráter de um invariante: a lei do valor implica que a moeda se reconstitua sem parar como equivalente geral, quaisquer que sejam as relações sociais de produção, desde que exista circulação de mercadorias. Entretanto, mesmo que a lei do valor aja de modo diferente em função das condições sociais da produção, a reconstituição do equivalente geral pode se efetuar sob diversas formas” (Brunhoff, pp. 76-77).

Levando em conta inicialmente o papel da lei do valor, o compreendemos como sendo o de socializar os produtores privados agindo de forma independente. Esta socialização se efetua através dos produtos dos trabalhos privados, na circulação de mercadorias, já que o que lhes é comum além do fato de serem frutos do trabalho é sua característica de permutabilidade. Uma vez que a lei do valor só tem sentido nas sociedades mercantis onde a produção se faz com o objetivo de venda, sua imposição se completa somente no ato da troca em si, via conversão de mercadorias em moeda. Somente através do ato da troca a validação social das mercadorias se produz de forma final.

Logo, somente via circulação de produtos dos trabalhos privados é que os produtores independentes são submetidos, “através das coisas”, à dependência recíproca inerente a toda sociedade fundada na divisão do trabalho.

Esse processo torna explícitos e resolve os problemas decorrentes da contradição privado-social, via valor de troca, de modo sempre relativo, através da conversão das mercadorias em moeda. A conversão em moeda, a venda, determina então, de modo definitivo, o valor em termos de unidades monetárias, que assume a forma preço. Levando em conta a forma preço, concluímos que a determinação final do valor através da troca, pela conversão das mercadorias em moeda, impõe a dominação do preço social mercantil sobre o valor imanente individual. De acordo com o preço que a mercadoria obteve, é possível que somente uma parte do valor imanente individual tenha sido realizada, como também é possível que o preço seja superior ao valor imanente individual.

Mas se é somente pela conversão das mercadorias em moeda, ou seja, via preços, que se impõe de forma final a lei do valor, qual a importância do valor? Qual o sentido da divergência entre valor realizado e valor incorporado? O que significa um valor não realizado se o valor só se define completamente na troca? Finalmente, por que não partir diretamente dos preços?

Em primeiro lugar, só a análise do porquê da forma valor permite uma boa compreensão dos preços. Somente através dela tornam-se claras as razões pelas quais a expressão do valor é sempre relativa, porque a moeda é inseparável de uma economia mercantil, e a significação da moeda como equivalente geral; em segundo lugar, a diferença entre valor e valor realizado é a expressão da sanção social sobre os trabalhos efetuados de modo independente, sanção que se torna necessária por causa da dependência recíproca à qual se encontram sujeitos esses indivíduos privados, dada a divisão do trabalho; e, finalmente, a imposição da lei do valor via conversão de mercadorias em moeda, quer dizer, via preços, e a possibilidade de divergências entre preços e valores são indícios do caráter complexo do processo de imposição da lei do Valor.

A lei do valor se faz sempre presente, mas nem sempre de forma direta e imediata. Tal complexidade decorre da contradição privado-social, própria das economias mercantis, que só se resolve se transformando em outras contradições. Entre estas últimas encontramos a da própria forma do valor, que tem uma certa autonomia em relação ao valor. Esta autonomia não diminui a importância da forma valor, mas, ao contrário, torna importante sua análise tal como é, relativamente autônoma. Se a complexidade da imposição da lei do valor decorre da autonomia do valor de troca, esquecer ou negar tal autonomia para tornar mais simples a análise não teria nenhuma utilidade. Seria desprezar o que é real na análise da realidade.

Levar em conta a autonomia do valor de troca e em consequência a complexidade da imposição da lei do valor significa partir da conversão necessária das mercadorias em moeda. Estas tomam então a forma de preço, que pode divergir dos valores. Mas, quando esses preços se tornam, de modo sistemático e geral, expressões pouco convenientes do valor, podem colocar em risco a reprodução da sociedade, seja pela impossibilidade de realização do valor contido nas mercadorias, que impede o início de um outro ciclo de produção8 8 Se levarmos em conta a sucessão de fases que define o ciclo de reprodução do capital veremos, por exemplo, que se os preços das mercadorias finais são sistematicamente inferiores aos valores, e se os preços dos meios de produção e da força de trabalho são sistematicamente superiores aos valores, haverá problemas ao longo do tempo para o reinício do ciclo de reprodução, a não ser quando as taxas de lucro são uniformes, caso dos preços de produção. , seja pela impossibilidade da moeda de continuar se afirmando como equivalente geral. É por isso que a imposição da lei do valor, via restrição monetária, implica não somente a conversão necessária de todas as mercadorias em moeda e de todas as formas de moeda em equivalente geral, mas também na reprodução necessária da moeda como equivalente geral. Chegamos então ao último parágrafo da longa e densa citação de de Brunhoff, transcrita acima.

Em nossa opinião, esse parágrafo é de fundamental importância para compreendermos o papel da moeda na imposição da lei do valor, e da própria lei do valor se impondo também sobre a moeda.

O equivalente geral é definido como um valor imediatamente social, e a conversão de mercadorias em equivalente geral não somente socializa os produtos dos trabalhos privados, mas indica a amplitude do valor que é socializado através da venda. Constatamos então que é a noção da moeda como equivalente geral que, nesse raciocínio, explica a imposição da lei do valor articulando os produtores privados formalmente independentes através dos produtos do trabalho e a partir do trabalho socialmente necessário, substância comum a todas as mercadorias.

Neste ponto do nosso trabalho, torna-se clara a importância da noção de moeda como equivalente geral, de modo a compreender a lei do valor se impondo, não de forma direta ou imediata, mas através de um processo complexo e contraditório, que implica, por um lado, a troca de equivalentes, característica de uma economia mercantil e, por outro, a utilização de moeda como algo inseparável deste tipo de economia.

Detenhamo-nos agora na noção de moeda como equivalente geral. Em primeiro lugar, porque se a lei do valor se impõe através da restrição monetária, é necessário analisar o que, na condição do equivalente geral, é requerido para que este esteja apto a realizar convenientemente seu papel de validador social dos trabalhos privados. Em segundo lugar, para poder definir como a lei do valor se impõe à própria moeda ou à sua reprodução enquanto equivalente geral, de modo a torná-la apta a garantir a imposição da lei do valor pela conversão das mercadorias em equivalente geral.

O problema da autonomia do valor de troca com relação ao valor imanente de uma mercadoria é uma expressão da autonomia da forma do valor, sempre relativa, com relação ao seu conteúdo, que é absoluto. Esse problema é então também o da autonomia da moeda como forma universal do valor.

O que limita essas autonomias, o que as torna relativas, o que, finalmente, dá ao valor toda sua importância no tocante ao seu papel de articulador social dos produtores privados é a restrição monetária, ou seja, a conversão necessária de mercadorias em moeda e de todas as formas de moeda, em equivalente geral.

Se o equivalente geral tem um valor intrínseco, a conversão das mercadorias em moeda implica que um certo trabalho privado, de certa grandeza, recebeu validação social ou se legitimou socialmente proporcionando a satisfação de uma necessidade social. A conversão das mercadorias deve então ser feita, em última análise, em equivalente geral, porque este é, por definição, imediatamente social.

O que dá ao equivalente geral esse caráter imediatamente social é a forma através da qual a moeda é criada e entra em circulação e seu reconhecimento social como equivalente geral. Analisemos este ponto de maneira mais detalhada.

Partamos da análise de Marx da moeda-ouro. Seu papel de equivalente é sustentado, por um lado, pelo seu valor intrínseco, decorrente de um processo de trabalho que, como para as outras mercadorias, constitui uma fração do trabalho da sociedade, ou uma alíquota do trabalho da sociedade como um todo. Mas, por outro lado, seu caráter social se fundamenta na aceitação do ouro como equivalente geral, excluído previamente do conjunto das mercadorias para cumprir o papel de moeda.

Para Marx, o trabalho do produtor de ouro era imediatamente social. O ouro entrava em circulação através de um processo de troca direta entre seu produtor e o produtor da mercadoria trocada pelo ouro nas minas. Segundo alguns autores9 9 Ver em particular Renetti, Cartelier e Deleplace em Economie Appliquée, Tome XXXVIII, 1985 n. 1. , a entrada do ouro em circulação, no raciocínio de Marx, coloca o problema da não-socialização da moeda, visto que o ouro obtinha sua sociabilidade num processo privado de troca direta. Não concordamos com este ponto de vista porque o processo de aceitação do ouro como equivalente geral é muito mais amplo que o compreendido na mera entrada em circulação do ouro pela primeira vez.

Na verdade, tal aceitação atinge o conjunto da sociedade, a totalidade dos produtores-comerciantes, e não somente os produtores de ouro de um lado e, do outro, aqueles que, nas minas, trocavam outras mercadorias por ouro. Isso porque a troca de mercadorias pelo ouro que entra pela primeira vez em circulação já pressupõe que o ouro é reconhecido socialmente como equivalente geral, e que o trabalho do produtor do ouro, dessa forma, é aceito como social. Assim, essa troca valida socialmente as mercadorias vendidas aos produtores de ouro, porque essas encontram nesse ato uma demanda social salvável e, de fato, satisfazem a uma necessidade de uma fração da sociedade. Tal processo permite então a realização social do conteúdo de trabalho das mercadorias trocadas pelo ouro. Em outras palavras, a demanda dos produtores de ouro - enquanto células individuais da sociedade, participando do processo de trabalho como as outras células - é o que dá o caráter social final às mercadorias adquiridas, tal como fazem os proprietários de dinheiro com as mercadorias que eles compram. Mas é o reconhecimento social prévio do ouro como dinheiro que legitima socialmente o papel cumprido pela demanda de seus produtores.

A exclusão do ouro do conjunto das mercadorias e sua eleição como equivalente geral é um processo social que precede analiticamente sua entrada em circulação por meio de troca direta nas minas. Assim, podemos dizer que o que permite a reprodução do ouro como equivalente geral é seu reconhecimen­to social como tal, baseado na exclusão dessa mercadoria a fim de realizar esse papel e no seu processo de trabalho, que lhe dá um valor intrínseco. É esse valor intrínseco, aliado à sua prévia exclusão como equivalente geral, que permite ao outro entrar em circulação já possuindo valor e, então, refletir o valor e a grandeza do valor das mercadorias pelas quais ele é trocado.

Constatamos então que o processo de exclusão do ouro como mercadoria-moeda é também o do reconhecimento social do processo de trabalho de seu produtor como imediatamente social, tendo como unidade de medida do trabalho o tempo de trabalho nas suas condições de produção.

As categorias mercantis descritas até aqui se modificam, assim como as formas de moeda, com a introdução das relações capitalistas de produção. Estas transformações alteram a maneira através da qual a restrição monetária é imposta, mas jamais a eliminam. Assim, por exemplo, o desenvolvimento do crédito desloca no tempo a restrição monetária, mas ela não desaparece. Pelo contrário, ela é somente ampliada e transformada para poder conter também a conversão necessária de todos os créditos e formas de moeda em moeda equivalente geral.

A complexidade do processo de imposição da lei do valor aumenta, entretanto, à medida que as formas de moeda se modificam. Se, no caso da moeda-mercadoria ouro, com cunhagem livre, a lei do valor se impõe pela conversão das mercadorias em moeda equivalente geral, reconhecida socialmente e então tornando-se imediatamente social, pelo processo acima descrito, como se coloca esta questão, para a moeda de curso forçado, inconversível, sem valor intrínseco?

No tocante à moeda de curso forçado inconversível, seu reconhecimento não se sustenta em nenhum valor intrínseco, mas na capacidade que ela pode ter de permitir a reprodução da economia, refletindo as condições sociais médias de produção. Os processos de criação e de entrada em circulação da moeda de curso forçado também são diferentes dos que analisamos para a moeda de cunhagem livre, sobretudo em função da ação coercitiva do Estado. Esta ação torna a moeda um símbolo, sem valor intrínseco, se opondo ao valor das outras mercadorias. Mas se o valor da moeda deve conservar uma ligação com o das mercadorias que ela supostamente representa, a questão que se coloca então é a seguinte: Como a lei do valor se impõe ao equivalente geral quando a moeda não tem valor intrínseco, de modo a torná-la apta a impor a lei do valor ao conjunto de mercadorias através da restrição monetária?

A questão da perda do valor intrínseco da moeda é tratada parcialmente por Marx, estudando as funções da moeda como equivalente geral. Ele diz por exemplo, a esse respeito, que como medida de valor a moeda só é empregada como moeda ideal, e que como meio de circulação é necessário somente que “o símbolo do dinheiro tenha a validade social própria do dinheiro, e esta adquire-a o papel que o simboliza, através do curso forçado” (O Capital, Civilização Brasileira, 1970, p. 143). Mas Marx diz também que essa ação coercitiva do Estado só pode ser exercida no âmbito nacional da circulação, sendo necessária a função de moeda universal para relações entre nações. Segundo Marx, esta função de moeda universal, bem como as de meios de entesouramento e de pagamento, exigem a moeda como “forma de riqueza absolutamente social” (idem p. 146), “existência absoluta do valor de troca” (p. 151), “mercadoria absoluta” (p. 152).

Na função de meio de pagamento, o que fica claro é que a restrição monetária pode ser adiada, mas não eliminada. O crédito antecipa a realização das mercadorias, mas a necessidade de realização final se desloca em direção ao sistema bancário, no momento do pagamento das dívidas. Assim, quando a realização das mercadorias não ocorre de forma conveniente, é o sistema bancário que arcará com os problemas. O que existe então é uma transformação da restrição monetária, que se amplia. ‘’ A conversão das mercadorias em moeda toma aqui a forma da necessária conversibilidade dos créditos em moeda.’’10 10 Brunhoff, S. Les Rapports D’Argent. PUG Maspero, Grenoble, 1979.

Na função de meio de entesouramento, o que está em jogo é o reconhecimento da moeda como valor por excelência. É porque a moeda é reconhecida como valor imediatamente social que ela é desejada e requerida como reserva de valor. Quando ela deixa de ser desejada como tal; isto é indício de problemas na afirmação da moeda como equivalente geral.

Finalmente, a função de moeda universal explicita o problema do valor não arbitrário das moedas nacionais, ou seja, explicita os limites da ação coercitiva dos Estados nas relações entre as nações. “Os diferentes tipos ou formas de moedas definidas como símbolos de valor reproduzem entre elas seu papel de equivalente geral e são ‘conversíveis’ entre si, como se diz geralmente, mas isso, sob a condição de que cada moeda, em última análise, esteja de acordo com a lei do valor” (Brunhoff, p. 91).

Essas observações nos mostram a importância do valor da moeda para que ela possa funcionar convenientemente como equivalente geral e, assim, impor a lei do valor às mercadorias através da restrição monetária.

Assim como a nível mais abstrato, a reprodução da economia mercantil, contendo a contradição privado-social, só é possível através da troca de equivalentes, é necessário também que as moedas nacionais sejam conversíveis entre elas em relação a um equivalente geral comum. Além disso, assim como o ajuste entre valores imanentes individuais e os valores sociais ‘’é feito no mercado por tateamento” (Brunhoff, p. 59), a reprodução das moedas nacionais como equivalentes gerais é feita no mercado através de complexos movimentos de valorizações e desvalorizações. Estes movimentos impõem, no processo de circulação, limites à própria criação da moeda e, consequentemente, permitem que o símbolo do valor mantenha certa ligação com o valor que ele supostamente representa.

Essa forma de interpretação da lei do valor permite, por um lado, a compreensão das divergências entre valor e preço observadas concretamente quando da ação coercitiva do Estado nas dinâmicas monetárias, quando a restrição monetária pode ser adiada ou deslocada. Mas, por outro lado, essa forma de interpretação da lei do valor permite também analisar os limites a tais divergências e ao papel do Estado, nas dinâmicas monetárias, através das Autoridades Monetárias.

Se, por exemplo, analisamos a moeda lastreada em ouro, observamos que os problemas contidos na divergência sistemática e geral entre valores e preços acabam por se resolver nas crises, via falências do sistema bancário. Ao contrário, nas economias modernas, as crises de realização são deslocadas via criação monetária pelas Autoridades Monetárias, que sancionam a criação privada de moeda pelos bancos, impedindo que o sistema financeiro-monetário se desintegre de forma abrupta. Nessas circunstâncias, porém, o que se consegue é preservar, dentro de certos limites, a conversão das mercadorias e das moedas em equivalente geral. Mas, neste processo, o que é colocado em risco é o próprio papel da moeda como equivalente geral. Nesse sentido, a fuga diante da moeda, e a procura generalizada de valores-refúgio nos processos inflacionários, não fazem mais do que mostrar o papel da restrição monetária na imposição da lei do valor, e a crise como forma brutal de resgatar a equivalência necessária às economias mercantis.

Finalmente, os problemas que surgem quando a moeda deixa de cumprir adequadamente seu papel como equivalente geral mostram os limites impostos à própria intervenção das Autoridades Monetárias nas dinâmicas monetárias.

As Autoridades Monetárias precisam, por um lado, prover a atividade produtiva da moeda necessária à circulação das mercadorias e à acumulação de capital; por outro, precisam velar pelo bom desempenho da moeda como equivalente geral. Assim, elas tateiam entre uma coisa e outra e dessa forma as Autoridades Monetárias se veem também sujeitas à restrição monetária, ainda que de forma diferente dos bancos e dos produtores privados.

Compreendendo assim a lei do valor, torna-se importante articular a análise das práticas monetárias em constante modificação às diversas formas de imposição da restrição monetária. Porém, mais importante ainda, a compreensão da lei do valor da maneira aqui exposta permite perceber melhor a significação da moeda como equivalente geral e apreender a produção e a circulação como duas fases articuladas de um mesmo processo social. É então a própria articulação entre essas fases que se torna objeto de análise, juntamente com as particularidades de cada uma.

4. OBSERVAÇÕES FINAIS E CONCLUSÕES

Neste trabalho tentamos descrever a relação entre valor e moeda a partir da compreensão da forma valor e da imposição da lei do valor através da moeda.

As duas primeiras partes versaram sobre o porquê da forma valor numa economia mercantil. É somente a troca de produtos do trabalho que permite a socialização final dos produtores privados formalmente independentes, em vista da contradição existente entre produtores privados operando no interior de uma sociedade onde reina a divisão social do trabalho. Para que a economia possa se reproduzir, este processo de socialização pela troca necessita de uma alocação do trabalho não arbitrária, o que impõe a equivalência na troca.

A troca de equivalentes se impõe então aos produtores-comerciantes como lei do valor. O processo de imposição da lei do valor é complexo e implica necessariamente o uso da moeda como equivalente geral, através da chamada restrição monetária. Esta é compreendida como a conversão necessária das mercadorias em moeda e de todos os tipos de moeda em equivalente geral, assim como a afirmação e a reprodução permanentes da moeda como tal.

A complexidade desse processo deve-se à autonomia relativa da forma do valor em relação ao valor, como consequência direta da contradição privado-social que define a economia mercantil. Essa autonomia se explicita na possibilidade de divergência entre o valor imanente individual e o valor imanente social, determinado pelas condições sociais da produção, e também na possibilidade de que os preços reflitam mal os valores sociais (estes entendidos como os que traduzem as condições sociais necessárias à reprodução da sociedade), quando a restrição monetária é adiada ou deslocada. Finalmente, essa autonomia é responsável pela impossibilidade de imposição da lei do valor de forma direta e imediata. A lei do valor se impõe, entretanto em última instância, e sempre através da restrição monetária, mesmo que isto tenha que se dar às vezes de forma brutal, através de crises.

A autonomia da forma do valor em relação ao próprio valor é, portanto, relativa, o que implica que a lei do valor se impõe, ainda que em última instância. Os limites a tal autonomia são estabelecidos pela restrição monetária, através da qual se impõe a lei do valor. A restrição monetária pode se efetuar de diferentes formas, segundo as modificações constatadas nas formas de moeda. Assim, à medida que se desenvolve o sistema de crédito, ainda no regime de conversibilidade das moedas em ouro, a restrição monetária pode ser adiada e deslocada dos produtores para os bancos. Mas continua se impondo via conversão necessária dos créditos em moeda equivalente geral e as falências bancárias não são mais do que a forma brutal de imposição da lei do valor.

Se a moeda de curso forçado se torna inconversível, passando a ser um simples símbolo, a restrição monetária pode ser deslocada dos bancos em direção às Autoridades Monetárias. Mas, neste caso, a conversibilidade necessária entre as moedas nacionais e a necessidade de garantir o bom cumprimento de todas as funções da moeda (apesar das contradições entre elas) se impõem às Autoridades Monetárias, exigindo, por aí, que a moeda se reproduza como equivalente geral. Estas exigências, ao lado da necessidade de prover a atividade econômica com moeda, limitam o papel das Autoridades Monetárias e se colocam como uma forma específica de restrição monetária. Os problemas enfrentados pela economia, que decorrem da não reprodução da moeda como equivalente geral, refletem, pois, a necessidade de imposição da lei do valor. As crises, então, não são mais do que a forma brutal de imposição da mesma.

A compreensão da autonomia observada entre produção e circulação e da moeda como uma relação social ajuda no entendimento dos fenômenos concretos contidos nas dinâmicas e nas práticas monetárias. Assim, por exemplo, a análise do poder monetário privado dos bancos e do poder público mas não social11 11 Apesar de a Autoridade Monetária ter um lugar e um papel hierarquicamente superiores aos dos bancos, nas dinâmicas monetárias seu poder monetário é limitado. O que limita este poder é o fato de a dinâmica monetária envolver o conjunto da sociedade, a moeda se constituindo numa relação social, enquanto o caráter público da atuação da Autoridade Monetária não se confunde nem abrange o social como um todo. das Autoridades Monetárias, à luz da relação valor-moeda, permite estabelecer, por um lado, o papel de cada tipo de agente nas dinâmicas monetárias, assim como, por outro lado, os limites ao poder monetário dos bancos e das próprias Autoridades Monetárias.

Todas essas questões têm por finalidade sobretudo mostrar a importância da análise do valor para a compreensão dos fenômenos econômicos numa economia mercantil. Além disso, elas mostram que assim como se torna inconcebível uma economia mercantil sem o uso da moeda, se torna também impossível analisar o valor sem relacioná-lo à moeda como sua forma universal. Enfim, elas permitem ressaltar a complexidade da imposição da lei do valor, a qual só se constata por meio da moeda e através da restrição monetária.

Compreender a relação entre o valor e a moeda é então compreender, ao mesmo tempo, o verdadeiro significado e a verdadeira importância da lei do valor. É também dar um passo em direção à compreensão dos processos complexos implicados na sua imposição, vendo essa complexidade como o que é real e decorrente de características próprias de uma economia mercantil, ou ligada ao caráter mercantil da economia capitalista.

  • 1
    Rubin, I. Essais sur la Théorie de la Valeur de Marx, Mas ero, 1978. Nós o designaremos após as citações pela abreviação R(a), seguida da página correspondente. Rubin, I. “Abstract Labour and Value in Marx’s System” em Capital and Class, Summer, 1978. Nós o designaremos pela abreviação R(b), seguida da página correspondente.
  • 2
    Ver Brunhoff, S. ‘’Production Marchande. Mode de Production. Catégorie Monnaie”, em La Politique Monétaire, PUF, 1974, cap. II. Nós o designaremos, após as citações, por Brunhoff, seguido da página correspondente.
  • 3
    Seguiremos neste trabalho a análise de Fausto, R., segundo a qual a “produção mercantil” não é um modo de produção particular, mas sim um “momento” do modo de produção capitalista. “Sur la forme valeur et le fetichisme” em Critique de l’Economie Politique, nova série n. 18 jan./mar. 1982, p. 136. Mas trataremoss de forma diferente dele as noções de trabalho abstrato e valor.
  • 4
    Quando falamos aqui de troca, nos referimos necessariamente à utilização de moeda, em contraposição à troca direta, ou escambo. Assim, troca tem aqui o sentido de “échange” em francês, ou “exchange” em inglês, que se contrapõem ao intercâmbio direto observado nas economias “du troc” em francês, ou “barter economy”, em inglês.
  • 5
    Trata-se aqui de um movimento de abstração dos trabalhos concretos que “é operado pelo próprio real”, como diz Ruy Fausto. Entretanto, não concordamos com Fausto que uma vez abstraídas as condições concretas do trabalho ele já seja social, embora o processo de abstração faça parte da socialização dos trabalhos privados. É o que veremos no Apêndice.
  • 6
    Observe-se que não foram introduzidas até aqui, como também não o foram nos três primeiros capítulos do Capital, as relações de produção capitalistas ou o caráter capitalista propriamente dito. É nesse sentido que S. de Brunhoff diz que “sem ser uma relação de produção, a relação social de troca se inscreve num organismo de produção espontânea” (p. 73).
  • 7
    Para uma explicação detalhada da relação entre as categorias valor individual, valor social, trabalho concreto, trabalho abstrato, trabalho médio e trabalho socialmente necessário, ver o Apêndice.
  • 8
    Se levarmos em conta a sucessão de fases que define o ciclo de reprodução do capital veremos, por exemplo, que se os preços das mercadorias finais são sistematicamente inferiores aos valores, e se os preços dos meios de produção e da força de trabalho são sistematicamente superiores aos valores, haverá problemas ao longo do tempo para o reinício do ciclo de reprodução, a não ser quando as taxas de lucro são uniformes, caso dos preços de produção.
  • 9
    Ver em particular Renetti, Cartelier e Deleplace em Economie Appliquée, Tome XXXVIII, 1985 n. 1.
  • 10
    Brunhoff, S. Les Rapports D’Argent. PUG Maspero, Grenoble, 1979.
  • 11
    Apesar de a Autoridade Monetária ter um lugar e um papel hierarquicamente superiores aos dos bancos, nas dinâmicas monetárias seu poder monetário é limitado. O que limita este poder é o fato de a dinâmica monetária envolver o conjunto da sociedade, a moeda se constituindo numa relação social, enquanto o caráter público da atuação da Autoridade Monetária não se confunde nem abrange o social como um todo.
  • 12
    JEL Classification: B14; B31; D46.
  • *
    Agradeço à professora Leda Maria Paulani pelos comentários, que deram origem ao Apêndice. Agradeço também os comentários de Alfredo Saad Filho e dos pareceristas da REP, bem como o financiamento da FINEP para pesquisa mais ampla da qual este trabalho é parte. A responsabilidade pelos erros é inteiramente da autora.

APÊNDICE

Em concepções como a de Ruy Fausto (Marx: Lógica e Política. Ed. Brasiliense, 1987) pode parecer que não faz sentido falar em valor individual. Nessa concepção o trabalho concreto é individual e o trabalho abstrato é social (p. 92). Sendo este último a substância e o fundamento do valor, não haveria sentido em falar em valor individual.

Nossa visão é a de que a solução, nos termos de Marx, da contradição privado-social que define as economias mercantis é necessária para que se possa dar à sociedade mercantil este nome de sociedade, ao invés de se contar com o mero caos. Essa solução nada mais é do que o processo de socialização dos trabalhos privados que se dá pela imposição da lei do valor, através da restrição monetária.

Nesse processo é importante a tensão entre valor imanente individual e valor imanente social, o primeiro sendo definido como tempo de trabalho gasto no processo de produção e o segundo sendo o tempo de trabalho socialmente necessário, legitimado ou imposto socialmente na circulação.

A importância que damos a essa tensão deve-se ao interesse que temos em destacar justamente a análise do processo pelo qual o valor se determina de forma final ou recebe validação social final apenas na circulação, embora já seja parcialmente determinado na produção. Trata-se de privilegiar a articulação produção-circulação, enquanto duas fases de um mesmo processo social, ressaltando as relações e os processos sociais envolvidos na imposição da lei do valor ou na socialização dos trabalhos privados.

Nesse sentido devemos dizer, em primeiro lugar, que não concordamos com Fausto quando sugere a interpretação de trabalho abstrato como social e trabalho concreto como individual (p. 92). Vemos o trabalho abstrato como fruto de um processo de abstração que é real, mas a realidade dele envolve tanto o que ocorre com o produtor privado quanto o que ocorre quando o processo de abstração se completa. Essa realidade envolve tanto a abstração do trabalho no sentido da sua generalização, quanto a necessidade social da abstração (para a solução - nos termos de Marx - da contradição privado-social que caracteriza as economias mercantis) e, ainda, a abstração como prática social. Esta prática implica na imposição do valor social, no aparecimento do dinheiro enquanto “ser aí da abstração do trabalho” (p. 95) e na própria conversão das mercadorias, frutos de trabalho privado, em dinheiro, “ser aí da abstração do trabalho”.

Em segundo lugar, para Fausto, ‘’o trabalho socialmente necessário não é necessariamente o trabalho médio, mas o trabalho que se impõe socialmente (p. 93). Podemos concordar com esta afirmação no seguinte sentido: a imposição da lei do valor, ou o processo de socialização dos trabalhos privados, é um processo complexo que não se resume ao cômputo dos trabalhos individuais para obtenção de uma média quantitativa que seria o trabalho social. A complexidade desse processo admite inclusive, como vimos, divergências entre o gasto de trabalho individual (que está por trás do valor individual), e o tempo de trabalho socialmente necessário, ou aquele imposto socialmente na circulação de mercadorias (que está por trás do valor social). Aliás, R. Fausto nos diz que “o trabalho socialmente necessário corresponde ao tempo que se impõe socialmente determinando o valor - isto é, em primeira instância os preços. (Isto parece uma tautologia, mas na realidade não é; isto quer dizer: há um certo tempo social que aparece de forma mais ou menos modificada nos preços das mercadorias)” (p. 126, nota 14). Concordamos com essa afirmação, mas adicionamos que, quando o deslocamento ou adiamento da restrição monetária permite que os preços se tornem expressões inadequadas do valor, este entendido como contendo as condições socialmente necessárias à produção, surgem problemas como o da rejeição da moeda como equivalente geral. Estes problemas que podem transformar-se em crise, mostram, por um lado, que a imposição da lei do valor precisa se dar, ainda que somente em última análise. Por outro lado, mostram que a crise pode aparecer como forma brutal de imposição da lei do valor.

Tudo isso, ao invés de impedir, nos permite aceitar a noção de valor individual. O valor individual pode ser concebido como trabalho abstrato, no sentido acima exposto, e como trabalho necessário, mas não como trabalho socialmente necessário. O socialmente só vai ser obtido de forma definitiva no processo de socialização dos trabalhos privados, processo este que é justamente o nosso objeto de análise neste trabalho. É, portanto, a tensão entre valor individual e valor social que é preciso analisar, porque se trata justamente de investigar a maneira pela qual o segundo se impõe ao primeiro.

Segundo Ruy Fausto ‘’Marx supõe que a posição da coisa - e a posição da coisa é a existência (social) da coisa - é essencial para que ela seja o que é. Para que o ‘valor’ seja valor (ou o ‘trabalho abstrato’ seja o trabalho abstrato), é essencial que, além dessa determinação, haja posição, ou que essas determinações sejam determinações postas, socialmente existentes” (p. 105). O processo de imposição social do valor, que é posto, já que tem existência social, passa necessariamente pela tensão entre valor individual e valor social. Daí a necessidade de conceber e trabalhar com as duas categorias.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 1991
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