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Crises econômicas e crises políticas: algumas reflexões à luz da experiência brasileira

Economic and political crises: some reflections in the light of the Brazilian experience

RESUMO

Partindo da constatação de que as crises políticas têm ocorrido tipicamente no Brasil ao mesmo tempo em que também ocorriam as crises econômicas, este artigo procura indagar as razões dessa coincidência. Nas duas primeiras seções, é desenvolvida uma análise teórica que apresenta algumas razões pelas quais as crises econômicas são propensas a gerar crises políticas. No restante do artigo, as ideias gerais apresentadas até aqui são aplicadas ao caso das duas crises econômicas e políticas mais recentes ocorridas no Brasil: a do início dos anos 1960 e a atual.

PALAVRAS-CHAVE:
Crises; economia política; ciclo político; eleições

ABSTRACT

Starting from the realization that political crises have typically occurred in Brazil at the same time in which economic crises were also taking place, this paper attempts to inquire into the reasons for this coincidence. In the first two sections, a theoretical analysis is developed which puts forward some reasons why economic crises are prone to generate political crises. In the rest of the paper, the general ideas so far presented are applied to the case of the two more recent economic and political crises that occurred in Brazil: that of the early l960’s and the present one.

KEYWORDS:
Crises; political economy; political cycle; elections

Variações bruscas nas taxas de crescimento econômico têm sido uma constante no Brasil, como ilustra a Figura 1 para os anos 1928/83. Taxas negativas ou nulas de crescimento do produto per capita ocorreram nos anos 1929/31, 1940, 1942, 1963/65 e 1981/83. Taxas positivas de crescimento do PIB per capita, tão altas quanto 11,9%, 10,6% e 11,2%, registradas nos anos de 1928, 1933 e 1973, foram correspondidas, por outro lado, por taxas negativas tão baixas quanto - 6,4% em 1930, - 7,7% em 1982 e - 4,4% em 1981 e, possivelmente, alguma coisa ainda menor que - 4,4% em 1983.

FIGURA 1
Taxas anuais de crescimento do produto per pcapita, 1928/83

Mais importante do que isso, o gráfico também mostra que crises econômicas - aqui representadas por declínios acentuados nas taxas anuais de crescimento do produto per capita - e crises políticas - indicadas pela ocorrência de mudanças repentinas e profundas nas regras do jogo político - têm, tipicamente, ocorrido juntas no Brasil contemporâneo.

Nesse sentido, é interessante notar que, com a única exceção de 1954 (e, talvez de 1968, mas notem-se as ressalvas mencionadas na nota de rodapé n.2), as mais importantes crises políticas ocorridas desde os anos 30 no Brasil (1930, 1937, 1945, 1954 e 1964) têm coincidido com períodos de declínio nas taxas de crescimento do produto per capita.1 1 Note-se que isso é verdadeiro para 1964. Como o golpe militar ocorreu a 1 de abril, as condições econômicas da época são mais bem descritas pelo crescimento (negativo) do PIB per capita em 1963 do que pelo mesmo crescimento em 1964.

Senão vejamos: a chamada revolução de 1930 ocorreu numa época de profunda crise econômica, cujas raízes externas eram evidentes. Algo semelhante se repetiu em 1937, ano em que, no meio de uma crise econômica, Getúlio Vargas liderou um golpe de Estado e se proclamou ditador. Em 1945, teve lugar o primeiro golpe anti-Vargas, que inaugurou o período “democrático” (1945/64): também nessa ocasião havia problemas na frente econômica. Por ocasião do segundo golpe anti-Vargas (1954), entretanto, a situação da economia não era crítica, pelo menos à luz do indicador plotado na Figura 1: 1954 é, como foi dito, a exceção à regra. Finalmente, em 1964, a coincidência usual foi restabelecida: o golpe militar que “salvou o país do comunismo” (e da reforma agrária) foi perpetrado em meio a uma crise econômica que já era visível desde 1961.2 2 Se a crise política de 1968 for incluída no seleto grupo das mais importantes crises políticas do período 1928/83, teríamos então a segunda exceção à regra geral discutida acima. Parece-nos, entretanto, que 1968 foi apenas o complemento natural de 1964, tendo importância apenas relativa, portanto.

Que lições podem ser tiradas dessas evidências históricas, especialmente se se tem em mente que a economia brasileira passa, atualmente, pela sua pior crise (em intensidade e duração) desse aproximadamente meio século coberto na Figura 1? Ao nível de agregação dos dados apresentados na figura, consideramos a relação aparente entre crises econômicas e crises políticas como não mais que uma coincidência. Isso equivale a dizer que, mesmo que uma relação sistemática entre essas duas classes de eventos possa existir, essa relação não será necessariamente revelada por dados agregados. De fato, como os casos de 1954 e (talvez) 1968 exemplificam, a relação entre crises econômicas e crises políticas pode perfeitamente aparecer, ao nível agregado, de forma inconsistente com o caso típico. Vamos argumentar, não obstante, que indicações mais precisas sobre as relações entre crises econômicas e crises políticas podem ser obtidas através de análise que se ampare numa especificação adequada dos regimes políticos vigentes em cada momento, assim como em hipóteses sobre o comportamento dos grupos e classes sociais.

“PROCESSO ECONÔMICO” E “PROCESSO POLÍTICO”

De fato, defenderemos a tese de que existem relações identificáveis entre crises políticas e crises econômicas. Ao nível de postulação mais abstrato, essa tese se ampara numa visão geral do processo social, de acordo com a qual as similaridades entre o processo econômico e o processo político são bem mais significativas do que as distinções que possam ser traçadas entre os dois. Em adição a isso, a interação entre esses dois processos é sempre tão forte que torna irrelevante a tentativa de compreender um sem entender o outro.

Nessa visão, processos sociais que se descrevem como “econômicos” ou como “políticos” são essencialmente redutíveis a fluxos de decisões humanas, a fluxos de comportamentos humanos.3 3 Daí não se segue, entretanto, que as sociedades humanas em que estamos interessados possam ser adequadamente representadas como um conjunto de átomos indiferenciados, postos a interagir uns com os outros. Bem ao contrário, o padrão mais comum de organização social impõe fortes diferenciações nas posições relativas dos indivíduos na sociedade - e nenhuma análise de processos sociais que desconsidere esse fato pode ir muito longe. O reconhecimento de que diferentes indivíduos são diferentemente posicionados na sociedade é o ponto de partida para a introdução da ideia de classes na visão do processo social que estamos presentemente apresentando, as classes sendo definidas pela posição dos indivíduos no processo produtivo. Indivíduos posicionados semelhantemente no processo produtivo irão, tipicamente, reagir de forma semelhante a fenômenos sociais que os afetem de forma semelhante - e é apenas dessa circunstância que se pode inferir um comportamento de classe que, longe de ser independente dos comportamentos individuais, se constitui, ao contrário, na resultante desses comportamentos. Cada um desses processos é composto de diferentes tipos de decisões, e também é verdade que eles são sujeitos a diferentes tipos de restrições. O resultado final agregado das decisões econômicas tomadas pelas pessoas, agregadas em classes, em um dado ano - sendo que o fluxo dessas decisões em si constitui o processo econômico -, pode ser descrito por um conjunto de indicadores, como a taxa de crescimento do PIB per capita, por exemplo. É claro que esse resultado final será dependente de fatores econômicos, como a forma de organização da produção, assim como de fatores aleatórios, como as condições climáticas prevalecentes naquele ano. Mas ele também será dependente, por exemplo, da concessão (ou da recusa) pelo Fundo Monetário Internacional do empréstimo de emergência pedido pelo nosso governo, e é claro que essa decisão do Fundo será, sempre, política.

Por seu turno, o efeito final agregado das decisões políticas tomadas em dado ano será, certamente, dependente do caráter das instituições políticas prevalecentes nesse mesmo ano, tanto quanto será ele dependente de fatores exógenos, como de terem ou não terem sido os marines americanos enviados para salvar alguma ‘’democracia”. Mas também é claro que o mesmo processo seguirá um ou outro curso dependendo do caráter de certas decisões econômicas intervenientes.

A partir dessas observações de caráter geral, algumas implicações mais específicas podem ser extraídas. Considere-se, de início, esta questão: o que é, realmente, crítico numa crise econômica, definida com base nas variações da taxa de crescimento da renda per capita? O que dá a uma “crise econômica” o seu caráter crítico não é, certamente, o fato de que uma abstrata renda cresça menos do que os analistas econômicos desejariam. O que de fato importa é que a queda na renda significa que há menos bens para serem distribuídos hoje do que os houve no passado. Se os indivíduos que vivem numa determinada sociedade tiverem formado expectativas otimistas a respeito de seus níveis de consumo ou de acumulação nesse ano, então pelo menos alguns desses indivíduos terão agora de reduzir essas expectativas. É muito provável que eles não se sintam propriamente satisfeitos com isso; é muito provável, portanto, que eles tentem reagir a tal situação.

Começamos, dessa maneira, a perceber que o que nós chamamos de uma crise “econômica” constitui-se menos em um evento econômico em si (por exemplo, a queda da renda) e mais no amplo conjunto de consequências advindas do fato de que os indivíduos tentam reagir a uma situação que é sentida por eles como insatisfatória. Assim, os aspectos econômicos de uma crise econômica são, na melhor das hipóteses, apenas tão importantes quanto as consequências políticas dessas mesmas crises. Pois a partir do momento em que os indivíduos tentam reagir contra a perspectiva de arcarem com os custos da crise econômica, eles já estão atuando politicamente.

Isso não implica dizer que uma crise econômica irá necessariamente desencadear uma crise política. De maneira nenhuma. Na verdade, crises políticas eclodem apenas naquelas conjunturas nas quais a continuação do processo político dentro das “regras do jogo” vigentes em um dado momento se mostra incapaz de gerar aquele nível mínimo de consenso exigido para a reprodução do sistema de dominação de classe.4 4 Crises políticas são, portanto, superadas, nos casos extremos, seja pela eclosão de uma revolução social vitoriosa, com base na qual uma nova classe passa a controlar o processo político, mudando, em consequência, as regras do jogo político, seja pela realização de um golpe militar que restabeleça a supremacia política da velha classe dominante, através da imposição de novas regras para o processo político. Afirmar que crises econômicas tendem a desencadear reações

políticas não é o mesmo que dizer que crises econômicas necessariamente desencadeiam crises políticas, entendidas dessa forma. As reações políticas à crise econômica podem, em princípio, ser contidas dentro das regras do jogo vigentes, não dando origem, portanto, a nenhuma crise política.

Um exemplo histórico “estilizado” pode servir para esclarecer esse ponto. Vamos supor que estejamos falando de uma economia escravagista orientada para a exportação. Para simplificar o argumento, vamos reduzir o processo político nessa sociedade à sua base mais essencial, ou seja, às relações entre senhores e escravos. As regras do jogo político vigentes nessa sociedade foram, naturalmente, feitas de modo a assegurar que os escravos continuassem escravos e que os senhores continuassem senhores. De repente, um declínio econômico drástico interrompe um século de “progresso” da economia escravagista, simplesmente porque aquela economia perdeu sua condição de monopolista mundial da produção do seu bem exportável. Com a queda de preços e receitas de exportações, a renda da economia também se reduz acentuadamente. Uma “crise econômica” se manifesta, à medida que os proprietários de terras tentam fazer alguma coisa para evitar os efeitos da queda da renda sobre seu bem-estar.

Uma coisa que eles, certamente, farão será reduzir o consumo dos escravos - se existir alguma coisa ali para ser reduzida. Os escravos podem-se sentir profundamente prejudicados pela “política de estabilização” imposta pelos senhores, mas, a despeito desses sentimentos pessoais dos escravos, é altamente improvável que uma crise política se desencadeie ali. Acontece, simplesmente, que os escravos não podem opor qualquer resistência política efetiva às iniciativas dos senhores. De então por diante, talvez por mais alguns séculos, a economia será mais pobre, mas ela continuará a ser constituída de senhores e escravos, a ter as mesmas instituições políticas fundamentais e a funcionar de tal maneira a reproduzir senhores como senhores e escravos como escravos.5 5 Convém ressaltar que o padrão de ajustamento à crise econômica, descrito acima, não corresponde inteiramente ao caso mais comum. Em economias do tipo mencionado, na maior parte das vezes os efeitos da crise externa tiveram de ser absorvidos pela classe proprietária, já que, entre outras coisas, não havia mais nada o que reduzir no consumo dos escravos. Com a liberação para o cultivo de alimentos de parte das terras anteriormente usadas para cultivar o produto de exportação, os escravos em alguns casos puderam até se beneficiar da crise econômica. Note-se, entretanto, que a conclusão básica não se altera: urna vez que focalizamos o processo político pelo ângulo das relações senhores-escravos, é pouco provável que crises econômicas deem lugar a crises políticas naquelas sociedades.

PADRÕES DE CRISES

No caso hipotético descrito acima, há uma crise econômica de origem externa que, entretanto, não é seguida por uma crise política. No exemplo, o fator básico responsável pela não-ocorrência da crise política é dado pela incapacidade dos escravos de oporem qualquer resistência efetiva à sua dominação política pelos senhores de terras. Não é sempre verdadeiro, contudo, que as classes dominadas sofram de incapacidade tão acentuada. Numa democracia, por exemplo, os trabalhadores dispõem de mecanismos legais que podem ser usados como armas de protesto (o voto, a greve, as demonstrações públicas). Se a ativação desses mecanismos, numa determinada conjuntura, não for aceita pelas classes dominantes, estará aberto um dos caminhos que levam à crise política.6 6 O outro caminho seria dado pela intensificação e aprofundamento do protesto da classe dominada, que eventualmente conduzisse à revolução social. O padrão a ser, possivelmente, seguido, nesse caso, seria: há uma crise econômica externa que desencadeia reações dos vários grupos e classes sociais, cada qual buscando transferir os custos da crise para as outras classes. Como parte desse processo, os trabalhadores entram em greves sucessivas para protestar contra suas perdas salariais. As classes proprietárias reagem violentamente a essa mobilização. Da batalha que se segue, um possível resultado é um golpe militar que mude as regras do jogo político, elimine a democracia e restabeleça a normalidade, ou seja, imponha que os custos da crise sejam absorvidos pelos trabalhadores.

Fica esclarecido, dessa maneira, como crises políticas podem eclodir em decorrência de uma crise econômica, como aliás tem acontecido tão frequentemente na história do Brasil. Não existe, contudo, nenhuma necessidade lógica de que a sequência seja essa. De fato, não apenas é concebível que uma sequência inversa ocorra algumas vezes, com a crise política precedendo a crise econômica, mas também deve ser enfatizado que, uma vez que o processo econômico-e-político seja posto em marcha, faz pouco sentido isolar uma esfera da outra e pretender afirmar que o movimento na esfera econômica, por exemplo, “causa” o movimento na esfera política. Uma descrição mais realista do processo global é sugerida na Figura 2, na qual dois padrões básicos de relações entre as duas esferas são sugeridos.

FIGURA 2
Relações entre crise econômicas e crises políticas

O padrão n. 1 corresponde ao caso discutido até este ponto, a não ser pelo fato de que agora estamos chamando a atenção para um aspecto anteriormente negligenciado, ou seja, que a própria existência da crise política contribui para aprofundar a crise econômica. Os mecanismos através dos quais a crise política repercute sobre o estado geral da economia são bem conhecidos. Do ponto de vista das ações da classe trabalhadora, movimentos tais como greves, operações-tartaruga ou paralisações de diversas ordens tendem a influenciar negativamente a produção. Já no que se refere às classes dominantes, à medida que essas classes e seus aliados externos percam confiança na capacidade do sistema político vigente de preservar seus privilégios, é de se esperar que elas façam alguma coisa. De fato, elas podem fazer muitas coisas. Parte do que elas “podem fazer” têm caráter político, como seja promover campanhas ideológicas contra o regime político vigente, subornar funcionários e personalidades do governo, convocar os militares para que cumpram seu “dever”, financiar grupos terroristas de direita, e coisas tais.

A outra parte do que as classes dominantes “podem fazer” a respeito de uma crise política, entretanto, tem caráter estritamente econômico. Capitalistas estrangeiros podem-se recusar a continuar investindo no país, capitalistas locais podem expatriar seu capital, abrindo contas em bancos suíços, ou eles podem simplesmente adiar seus planos de investimento, à espera de que condições políticas mais seguras sobrevenham. Não precisamos supor que a classe proprietária tem “consciência de classe”: cada capitalista que agir da forma sugerida acima estará apenas sendo racional, no sentido que os economistas supõem que eles o são. Ocorre que, quando cada capitalista reage assim “racionalmente” à crise política, o resultado óbvio é que eles em conjunto criam uma crise econômica na forma de produção declinante, desemprego ascendente etc. É possível, portanto, que um processo em bola de neve seja, assim, posto em marcha, um processo no qual a crise econômica reforça a crise política e esta, por seu turno, aprofunda a crise econômica. Um processo em bola de neve que talvez só possa ser detido por uma mudança nas regras do jogo político.

O padrão n. 2 tem semelhanças claras com o padrão n. 1, mas ele põe em relevo o fato de que o processo global pode ser desencadeado por desenvolvimentos internos, originados seja na esfera econômica, seja na esfera política. Como o caráter cíclico do desenvolvimento capitalista é independente da ocorrência ou não de “choques externos”, sempre que uma crise econômica endogenamente gerada se apresentar em uma economia, pressões tendentes a produzir uma crise política também se farão presentes. Como isso é bastante conhecido, convém ressaltar que crises políticas também podem ser geradas endogenamente, ou seja, independentemente de choques externos, e autonomamente, ou seja, sem serem induzidas por crises econômicas. Crises políticas endógenas e autônomas, no sentido acima, podem ser geradas, por exemplo, nas ocasiões em que as classes dominantes perdem a confiança nas regras vigentes do processo político, tornando-se temerosas de que essas regras se mostrem incapazes de assegurar a preservação de sua posição privilegiada na sociedade.

Nas seções seguintes, vamos combinar algumas das ideias teóricas esboçadas acima com dados empíricos sobre a situação da economia e da sociedade brasileiras em duas de suas mais recentes crises, a fim de averiguar se aquelas ideias nos ajudam a interpretar de forma coerente certos acontecimentos históricos importantes ocorridos no período, assim como formular expectativas realistas sobre o desenvolvimento futuro da presente crise.

O FIM DO POPULISMO

A crise econômica dos anos iniciais da década dos 60 teve várias raízes, algumas das quais, apenas, podem ser discutidas aqui. Ao final do governo Kubitscheck (1955/60), a dificuldade de completar o financiamento do ambicioso Programa de Metas já levava o governo a incorrer em crescentes déficits fiscais. A desaceleração do crescimento, observável a partir do último ano da administração Kubitscheck, resultou, entre outras coisas, dessas dificuldades de financiamento do investimento público e privado. Parte dessas dificuldades se refletia numa crise de balanço de pagamentos, cujos sinais mais claros eram a retração do investimento estrangeiro e o crescimento da dívida externa. Em adição a isso, há também razões para crer que o sobre investimento dos anos iniciais do Programa de Metas havia criado desestímulos à manutenção do investimento privado nos níveis elevados registrados nos anos anteriores (Serra, 1983Serra, José (1983). “Ciclos e Mudanças Estruturais na Economia Brasileira do Pós-Guerra”. Em Luiz Gonzaga Belluzzo e Renata Coutinho, organizadores: Desenvolvimento Capitalista no Brasil: Ensaios sobre a Crise. São Paulo, Brasiliense. ). À medida que esses fatores se agravavam, a redução no ritmo de crescimento se tornava inevitável. A desaceleração do crescimento viria a implicar, em última análise, a revisão para menos dos planos de consumo e de acumulação feitos pelos indivíduos, de modo que, ao final do processo, alguém teria de se contentar com menos do que houvera antecipado inicialmente.

O resultado final, contudo, é menos interessante, para nossos propósitos, do que o processo por meio do qual esse ajustamento foi levado a cabo. Para dar uma ideia desse processo, vamo-nos concentrar em um dos seus aspectos mais importantes: quando se começava a perceber a existência de dificuldades para se continuar financiando os planos de investimento do Programa de Metas, os primeiros setores a se sentirem ameaçados eram, naturalmente, aqueles que mais dependiam do crédito oficial ou que forneciam materiais e serviços para as obras governamentais. Era, portanto, desses setores que partiam as primeiras pressões sobre o governo, para que este mantivesse as metas de investimento planejadas.

Como regra geral, não apenas devido a essas pressões, o governo decidia prosseguir com seu programa, viabilizando-o principalmente através da expansão da oferta monetária. Com o crescimento da liquidez na economia, a pressão sobre a capacidade produtiva se traduzia em crescimento no nível geral de preços que, começando pelos setores mais diretamente dependentes do crédito ou das encomendas governamentais, logo se propagava para os demais setores. O mecanismo era simples e consistia basicamente no recebimento dos impactos de custos nominais mais elevados, por parte de um grupo de firmas, e na sua transmissão para diante, por meio da elevação dos preços de vendas dos bens produzidos por essas firmas.

Tendo em vista que seus custos nominais cresciam, as firmas, em geral, aumentavam suas demandas por recursos financeiros, indo aos bancos em busca de empréstimos maiores que os usuais. Isso constituía, naturalmente, uma pressão adicional sobre a oferta monetária. Na hipótese de que o governo não permitisse um novo crescimento dessa oferta de dinheiro, os bancos perceberiam ser possível (e racional, dentro da lógica de maximização de lucros) elevar as taxas de juros, ou então racionar numa base quantitativa os empréstimos concedidos. Em um caso ou no outro, algumas firmas deixariam de receber todo o dinheiro de que necessitavam, enquanto outras iriam repassar para seus preços o adicional de custos financeiros que elas estariam tendo de pagar aos bancos.

Nessa altura do processo, as firmas que não tivessem podido obter o volume de recursos de que necessitavam, ou que não tivessem podido repassar inteiramente os custos financeiros mais elevados, iriam bater às portas do governo para demandar uma política monetária expansionista, de tal modo que as taxas de juros caíssem e essas firmas pudessem continuar realizando seus lucros como antes. Dadas as circunstâncias, ou seja, dado o comportamento do governo com a manutenção do crescimento, seria natural que ele cedesse às pressões, como de fato acontecia rotineiramente: a oferta de moeda era expandida e ambos os grupos de firmas, e as outras não-mencionadas, igualmente, ficavam contentes, já que poderiam continuar a realizar seus lucros como o vinham fazendo. É certo que elas teriam de pagar mais por seus insumos, mas, em compensação, elas também poderiam cobrar mais por seus produtos.

Alguma coisa está, obviamente, faltando nesse quadro. Começamos a analisar esse processo partindo da suposição de que as taxas de crescimento estavam em declínio, de tal modo que nem todo mundo poderia continuar a “realizar lucros como antes”. Alguém teria de se ajustar à realidade de um produto per capita (possivelmente) declinante, e se esse “alguém” não fosse o capital, ou sua encarnação nas firmas, teria de ser o trabalho, ou sua encarnação nos trabalhadores.7 7 A análise aqui feita tem o objetivo de localizar o que nos parece terem sido os fatores, circunstâncias e classes que desempenharam papéis cruciais no desenrolar da crise econômica e política dos anos 60. É por essa razão que contrapomos “capital” (indiscriminadamente) a “trabalho” (assalariado). Como sempre acontece, simplificações analíticas podem ser extremamente úteis, mas permanecem sendo simplificações. Não há dúvida de que uma interpretação histórica mais detalhada da crise do populismo teria de levar em conta o papel das lutas camponesas, a diferenciação da classe trabalhadora e do capital e a influência estrangeira, entre outras coisas. Sem embargo, cremos que as relações mais significativamente envolvidas no desenrolar da crise são as que estão esquematicamente representadas nesta seção.

De fato, com a subida dos preços, os salários reais necessariamente caíam. Lembremo-nos, contudo, que o Brasil vivia, à época, no mundo maravilhoso da democracia burguesa: quando o mito do “o que é bom para o PIB é bom para você - continue esperando” começou a cair em descrédito, os trabalhadores intensificaram suas demandas de reajustes salariais. Fizeram isso e conseguiram obter o que desejavam, pelo menos em termos nominais. Ocorre, entretanto, que o processo não parou ali, pois nos períodos seguintes as firmas aumentaram novamente seus preços de venda. E o governo expandiu uma vez mais a oferta monetária, e os trabalhadores protestaram novamente, e as firmas outra vez aumentaram seus preços. A esta altura dos acontecimentos, a inflação controlada dos anos anteriores, que havia sempre servido para extrair poupança das classes cuja renda nominal variava apenas a intervalos relativamente longos, começou a degenerar em uma inflação galopante, que produzia mais instabilidade do que lucros. A acumulação de capital se desacelerou, agora já não mais apenas devido aos problemas de bloqueio externo, dificuldades de financiamento do investimento público etc., mas também devido ao clima de incerteza que a inflação fora de controle estava criando. Era a crise econômica.

Nos anos imediatamente seguintes, houve tentativas ortodoxas de debelar a crise. De fato, tanto durante a curta administração de Jânio Quadros (1961) quanto durante os anos iniciais do governo João Goulart (1961/64), várias tentativas foram feitas para implementar programas de estabilização, que, na boa tradição ortodoxa, teriam reduzido a inflação através do congelamento dos salários nominais. À medida que tais políticas tivessem tido sucesso, elas teriam eliminado a inflação por meio da redução permanente dos salários reais, ou seja, o efeito básico daquelas políticas teria sido forçar os trabalhadores a arcarem com os custos da crise econômica, impedindo, ao mesmo tempo, que eles perturbassem com seus protestos a sinfonia da acumulação capitalista: depois de uma breve pausa, correspondendo ao período de ajustamento, a orquestra estaria tocando novamente, tendo a crise sido previamente resolvida através da redução dos salários e da elevação dos lucros.

Fatores vários impediram que essa solução para a crise viesse a prevalecer. A redução no ritmo de acumulação, nessas condições, só fez tornar as coisas piores. Num determinado momento, todo mundo estava descontente, embora talvez por razões opostas, com o estado de coisas. Os trabalhadores estavam descontentes porque a inflação crescente eliminava rapidamente todos os ganhos momentâneos de salário real obtidos com a mobilização e as greves. Em adição a isso, a desaceleração do investimento ia respondendo por um crescimento do desemprego. Os capitalistas, por seu turno, estavam descontentes porque a “anarquia” vigente tornava muito arriscado investir em projetos de expansão da capacidade produtiva: por essa razão, os lucros já não estavam sendo tão altos quanto haviam sido no passado recente. Tudo isso junto significava crise. Crise econômica, primeiro que tudo, mas também crise política.

Por que “crise política”? O fato de os trabalhadores estarem recorrendo aos meios legais para clamar por reajustamentos salariais não era suficiente para definir a crise política. Afinal de contas, até aquele momento, pelo menos, não tinha havido nenhuma tentativa de transgredir as regras do jogo político democrático. A crise política começou a se manifestar, naquela conjuntura, no momento em que as classes dominantes se recusaram a aceitar as soluções para a crise, que poderiam ser produzidas pelo regime político vigente. Essas soluções incluiriam certa divisão de perdas entre as classes sociais. Como isso se revelou inaceitável para a burguesia, não apenas as firmas continuaram empurrando para a frente as pressões de custos recebidas, mas também a burguesia como classe se tornou cada vez mais descontente com a democracia. Isso pela simples razão de que, como os trabalhadores reagiam permanentemente contra a alta de preços, o processo econômico terminou gerando mais inflação do que lucros estáveis.

Em outras palavras, foi o fato de que o sistema político então vigente se mostrou incapaz, em face da crise econômica, de reproduzir em toda a sua extensão a dominação de classe da burguesia que terminou por solapar o consenso em torno do regime democrático. Pode ser útil ter-se “democracia” em tempos normais, se acontece de os trabalhadores estarem contentes com seu quinhão, ainda que isso signifique que eles estão contentes em serem subnutridos, ao mesmo tempo em que a burguesia está experimentando os últimos modelos de carros-esporte. Em tais condições, todo mundo estará feliz com o regime democrático: dado que as regras vigentes do jogo político estão desempenhando tão bem sua função de reproduzir a dominação de classe da burguesia, não haverá nenhum questionamento em relação a essas regras. Muito ao contrário, cada burguês será um compenetrado “democrata”.

Situação diferente pode, contudo, emergir de uma crise econômica como aquela dos anos iniciais da década dos 60, se acontecer de as regras democráticas estarem permitindo aos trabalhadores e a outros segmentos das classes dominadas oporem alguma resistência efetiva contra a tentativa da burguesia de transferir integralmente para a classe subordinada o ônus da crise. Nessas condições, o fato de que os trabalhadores entram frequentemente em greve será rotulado de comportamento “irresponsável”; o fato de que o governo tenta atender parcialmente às demandas dos trabalhadores significará que o governo é “comunista”; o fato de que os trabalhadores estão tentando recuperar parte de sua renda real comida pela inflação será tido como a “causa” da inflação. A oposição burguesa ao governo populista transformar-se-á, num determinado ponto, em oposição ao regime democrático vigente: são as tentativas de derrubar o regime político vigente que caracterizam de forma definitiva a crise política, para a qual uma das soluções possíveis é o golpe militar.

A vasta, coordenada e profunda campanha política da burguesia nacional e estrangeira contra o regime populista de João Goulart foi narrada de forma magistral e documentada de maneira impressionante por Dreifuss (1981Dreifuss, René A. (1981). 1964: A Conquista do Estado. Rio de Janeiro, Vozes. ), e não precisa ser repetida aqui. Basta dizer que a ação de classe da burguesia contra o governo Goulart, e contra a democracia populista em geral, envolveu, entre outras coisas, ação política direta no Congresso, suborno em elevadíssima escala em campanhas eleitorais, doutrinação ideológica em massa através dos meios de comunicação, infiltração no movimento operário e camponês, doutrinação de militares para que eles dessem o golpe da burguesia pensando que estavam dando o seu, manipulação de fundos externos com objetivos políticos (com a devida ajuda de Washington), preparação de planos de reformas políticas para serem executadas pelo governo que emergisse do golpe, e muitas outras coisas.

Tendo de enfrentar essa oposição política e o boicote econômico das classes proprietárias comandadas pela burguesia internacionalizada, Goulart terminou vendo-se forçado a buscar abertamente o apoio das massas populares, especialmente urbanas. Beneficiado pelo clima geral de liberdade e insatisfação, o movimento operário estava-se tornando mais ativo, mais capaz de mobilizar suas fileiras em defesa de seus interesses econômicos e até mesmo de objetivos políticos mais amplos. Nessa conjuntura, pelo menos enquanto as regras do jogo democrático fossem mantidas, não haveria mais nenhuma forma de retomar o espetáculo da acumulação capitalista sem conceder ganhos reais para a classe trabalhadora. Políticas de estabilização do tipo tradicional, por exemplo, não mais seriam aceitas. Ao contrário, os trabalhadores estavam já, se bem que de forma lenta, começando a desenvolver suas próprias propostas de políticas, algumas das quais envolvendo coisas tão “más” quanto a reforma agrária e o controle da remessa de lucros.

Precisamente nessa conjuntura, na qual a grande confrontação entre as classes proprietárias e não-proprietárias era mais explícita do que nunca, os militares apareceram no palco, sinceramente convencidos de serem os agentes autônomos da contrarrevolução. Muito cedo, a situação iria ser solucionada pela força: carentes de um mínimo de organização de bases, os trabalhadores foram facilmente derrotados. Foi bastante um golpe militar rápido e quase incruento para acabar com o “experimento em democracia” (Skidmore, 1967Skidmore, Thomas E. (1967). Politics in Brazil, 1930-1964: An Experiment in Democracy. New York, Oxford University Press. ). O banho de sangue viria depois, à medida que os novos governantes se apressavam em destruir o movimento operário e as estruturas políticas democráticas, abrindo o caminho para a implementação das políticas econômicas há longo tempo ditadas pela sabedoria dos economistas ortodoxos. Após poucos anos de transição, o novo regime teria, finalmente, sucesso em restabelecer um clima adequado à retomada da acumulação capitalista. Isso, naturalmente, depois de os canhões, os tanques e os paus-de-arara terem garantido as condições necessárias para que os salários reais caíssem e os lucros subissem.

A CRISE DOS ANOS 80

Uma extrapolação mecânica das regularidades mostradas na Figura 1 nos levaria facilmente a prever que da crise econômica dos anos 80 deverá também resultar uma mudança no regime político vigente. Isso ainda pode, realmente, acontecer. Mas convém não confiar em extrapolações mecânicas que, muitas vezes, deixam de considerar assimetrias decisivas entre duas situações históricas aparentemente semelhantes. Uma tentativa de diagnosticar as relações entre a crise econômica dos anos 80 e uma possível crise política (que até essa altura, fevereiro de 1985, ainda não se manifestou) deveria ser amparada numa análise mais detalhada da presente conjuntura.

Os primeiros sinais da crise econômica que atualmente vivemos começaram a aparecer há mais de dez anos, mais precisamente em 1973, representados por pressões inflacionárias muito fortes e por dificuldades no setor externo. O rápido crescimento econômico verificado entre os anos 1968/73 havia sido grandemente dependente de um volume elevado de importações de bens de capital, o que, por si só, tornava vulnerável a posição da economia brasileira em relação a distúrbios que, por qualquer motivo, viessem a ocorrer na frente externa. Quando o violento aumento de preços do petróleo foi decretado, em 1973, essa vulnerabilidade se revelou em toda a sua extensão.

Não se trata, portanto, de “explicar” as dificuldades da economia brasileira por um evento exógeno como a quadruplicação dos preços do petróleo. A importância decisiva desse aumento decorreu, sobretudo, do fato de que a manutenção do ritmo de acumulação de capital no Brasil vinha sendo estritamente dependente de um nível muito elevado de importação de bens de capital. No momento em que um percentual muito maior de nossas receitas de exportação passou a ter de ser despendido com a importação de petróleo, a continuação do crescimento econômico ficou seriamente comprometida.

Convém notar, entretanto, que essa dependência do crescimento brasileiro ao contínuo suprimento de bens de capital importados resultava não de uma lei inexorável do desenvolvimento econômico, mas sim da forma específica pela qual o país, à sombra do regime militar, vinha crescendo. A dependência era apenas mais um aspecto ou consequência do padrão concentrador do crescimento econômico viabilizado pela ditadura: dificilmente teríamos sido levados a uma situação tão grave se, por exemplo, a base do crescimento tivesse sido dada pela expansão da produção de alimentos, ou de bens de consumo popular, de uma forma geral.

Por volta de 1973, não obstante, o modelo de crescimento que houvera sido adotado nos anos do “milagre” era, obviamente, um dado. Também era um dado o regime político, que continuava baseando sua sustentação no apoio fundamentalmente das mesmas forças que se haviam unido para derrubar a democracia populista, ou seja, as classes proprietárias e as classes médias superiores. Essas classes, que se haviam mobilizado nos anos iniciais da década dos 60 para exorcizar o demônio “comunista” encarnado no governo Goulart, continuaram fundamentalmente unidas em torno do novo regime, o qual terminou por se consolidar politicamente à medida, mesmo, que conseguia manter elevadas as taxas de crescimento da renda daquelas classes.

Ao nível das relações entre o regime militar e as classes proprietárias, o processo de legitimação do regime era levado a efeito, fundamentalmente, através da concessão direta (frequentemente numa base clientelista) de benefícios fiscais e creditícios numa escala impressionante: isenções de impostos, subsídios de crédito, linhas especiais de financiamento com juros negativos, virtual isenção de tributação sobre a renda da propriedade, corrupção pura e simples, e coisas tais. Mas também é claro que o regime ganhava a confiança da burguesia à medida que demonstrava capacidade incontestada de reprimir pela força qualquer manifestação de descontentamento esboçada por aquelas classes que não estavam participando do banquete oficial.

Do ponto de vista das relações entre o regime militar e as classes médias (sobretudo as de mais alta renda) urbanas, a legitimidade era conseguida através do respeito devotado pelo regime às leis do mercado. Numa época de prosperidade como os anos 1968/73, especialmente, pressões de demanda por trabalhadores de alta qualificação se traduziam em contínuos ganhos de renda real (sobretudo ordenados) para esses profissionais. O governo aceitava e estimulava o crescimento desses ordenados, ao mesmo tempo em que, através de uma política salarial muito conveniente para o capital, comprimia os salários inferiores, já de si muito menos susceptíveis a pressões altistas advindas do mercado, tendo em vista o tradicional excesso de oferta de mão-de-obra não-qualificada no Brasil. A política salarial, destarte, impedia que a massa salarial como um todo (salários mais ordenados) crescesse ao mesmo ritmo em que crescia a produtividade do trabalho. Com os lucros crescendo e os ordenados também, era natural que proprietários e trabalhadores de alta qualificação permanecessem contentes com o estado de coisas. Assegurado esse nível mínimo de suporte, o regime pôde continuar ditatorial por todos aqueles anos.

É quase desnecessário dizer que tal situação era também extremamente confortável para os gendarmes do regime, os oficiais militares, os quais foram autorizados a trocar seus serviços de policiamento por polpudos salários na corporação, em postos civis da administração pública, nas empresas estatais e em diretorias de grandes empresas privadas, nacionais e estrangeiras. Alguns até chegaram a posar de estrategistas, ou mesmo pensadores políticos, o que, certamente, constituía uma gratificação adicional para uma classe que não se destaca propriamente por suas aptidões intelectuais.

Essa complexa teia de interrelações, que terminava por assegurar, com base no rápido crescimento econômico, a sustentação política do regime militar, viu-se subitamente ameaçada com o aparecimento dos primeiros sinais da crise, já em 1973. Como todo o sistema de dominação política estava fundamentalmente amparado no “sucesso” econômico (sucesso para uns, desgraça para outros), era natural que a reação do regime a esses sinais de crise fosse, até o limite do possível, de negação. A aceleração da inflação ocorrida em 1973, por exemplo, em vez de ser combatida, foi simplesmente negada, com o ministro da Fazenda na época comandando uma campanha sistemática de falsificação de todos os índices de preços calculados no país.

Assim foi, também, com o bloqueio externo. No momento em que a elevação dos preços do petróleo tornou cristalina a vulnerabilidade da economia brasileira, o regime negou-se a admitir que as taxas de crescimento teriam de ser reduzidas. Em vez disso, elaborou um plano megalomaníaco que expandia extraordinariamente os investimentos públicos, exatamente no momento em que a possibilidade de financiar tal programa (de forma não-suicida, ressalte-se) havia desaparecido completamente. Continuar a crescer de qualquer maneira, reajustando a estrutura produtiva da economia num prazo rápido, de modo a diminuir a dependência externa, foi a opção do II Plano Nacional de Desenvolvimento, do governo Geisel. A ideia, problemas de financiamento à parte, até que não era má, muito embora não se deva esquecer que o que se tentava preservar era exatamente aquele padrão de crescimento concentrador com base no qual se vinha fazendo a felicidade de uns poucos, à custa do sacrifício de muitos outros.

Ocorre que problemas de financiamento eram, nem mais nem menos, o cerne da questão, pois o que motivara a tentativa de readaptar a estrutura produtiva do país havia sido exatamente a impossibilidade de continuar financiando a importação de bens de capital aos níveis necessários para manter o crescimento elevado, após a quadruplicação dos preços do petróleo. Já que nenhum esquema não-suicida de financiamento poderia ser criado do nada, àquela altura, a decisão inflexível do governo Geisel de manter a economia em rápido crescimento implicou a necessidade de se buscar esquemas suicidas de financiamento. Para sorte de uns poucos e azar de muitos, esses esquemas suicidas estavam disponíveis à época, precisamente porque a revolução de preços do petróleo estava colocando, nas mãos dos países árabes e, por via de consequência, nas dos grandes bancos internacionais, quantidades infindáveis de dólares que precisavam ser, como se dizia, “reciclados”, quer dizer, lançados na conta de algum imprecavido.

O desejo do governo militar brasileiro (e de tantos outros governos latino-americanos, ditatoriais ou não, diga-se de passagem) de continuar prolongando o paraíso pós-64, via manutenção de altos níveis de investimentos, encontrou um casamento perfeito com o desejo irreprimível dos bancos internacionais de “reclicar” os petrodólares. O resultado foi que, por todo o período Geisel, a economia brasileira continuou crescendo à base artificial de um endividamento externo em bola de neve, uma dívida que nunca poderia ou poderá ser paga e que, não muito longe dali, iria terminar levando o país à mais profunda recessão já documentada estatisticamente de sua história.

De 1974 a 1979, portanto, o Brasil continuou crescendo economicamente, apesar das dificuldades que nem mesmo a oferta elástica de recursos financeiros externos conseguia contornar completamente. Como, a despeito de todos os esforços, a crise não pôde ser completamente negada, as taxas de crescimento começaram a cair. Pior do que isso, em face da escassez dos recursos que lhe competia coletar e administrar, escassez relativa às demandas que se havia acostumado a satisfazer, o governo que, na época da prosperidade, tinha desempenhado papel de uma agência distribuidora de benefícios aparentemente inexauríveis para as classes proprietárias, foi lentamente se vendo forçado a assumir o papel de agência responsável pela alocação de recursos escassos com fins alternativos. Secava a fonte, e empresários que haviam feito suas fortunas à base de dinheiros públicos doados (o caso Atalla é apenas o mais conhecido) mais e mais frequentemente levavam a Brasília suas propostas mirabolantes e voltavam para casa sem vê-las encampadas pelo governo. Um dos pilares de sustentação da ditadura começava, assim, a rachar, à medida que a satisfação anterior de quem via seus pedidos atendidos era substituída pela decepção de quem abre um cofre e percebe que não há nada ali para ser roubado.

É nesse contexto que o processo de “abertura” política pode ser entendido: a passagem de uma época de fartura para outra de escassez exigiu que critérios explícitos de distribuição de custos e benefícios governamentais fossem formulados. O processo anterior em que as decisões eram tomadas a portas trancadas, sem participação dos interessados, já não poderia ser aceito por aqueles que, na conjuntura da crise, se viam alijados do banquete oficial. Não foi por coincidência que o debate sobre a estatização apareceu também nessa época: quando os recursos escasseiam, a vigilância sobre quem está se apropriando do quê se torna maior.8 8 Na verdade, mesmo na sua época de maior estabilidade, o regime militar brasileiro nunca conseguiu legitimar-se ideologicamente pelo que ele realmente representava, ou seja, nunca teve a capacidade de se apresentar publicamente como uma ditadura. Pode-se especular (mas não aqui) sobre as razões explicativas desse fenômeno, mas o ponto que nos interessa enfatizar, nesse momento, é outro: a despeito de sua ilegitimidade ideológica, a ditadura militar era capaz de obter “legitimidade operacional”, por assim dizer, isto é, era capaz de conseguir continuar existindo como ditadura, sem grandes problemas. Era, portanto, também capaz de tomar decisões “a portas trancadas”, sem participação direta dos interessados. Foi essa legitimidade operacional que começou a ruir com a crise econômica, obrigando, paulatinamente, o regime a restabelecer formas institucionalizadas de participação das classes dominantes no processo político. Essa é, segundo acreditamos, a origem da abertura política.

Note-se que ainda estamos falando apenas das relações entre o regime militar e a classe dominante. De fato, no início pelo menos, a “distensão” do governo Geisel se limitou à tentativa de redefinir os mecanismos através dos quais o regime pudesse manter sua legitimidade diante das classes proprietárias. Foi a dinâmica do processo, muito mais do que os propósitos dos mentores do regime, que levou o movimento de redemocratização a se ampliar para além dos planos iniciais dos feiticeiros de palácio. Isso porque cada pequena liberdade terminou sendo usada para se clamar por liberdades maiores: a realização de eleições menos controladas levou ao crescimento da oposição legal, o afrouxamento da censura à imprensa permitiu a divulgação paulatina do lado podre do regime, o clima geral de menor repressão abriu espaço para uma reorganização do movimento operário, e assim por diante. Aos poucos, e apesar das recaídas periódicas no autoritarismo, o controle da situação foi escapando da cúpula governamental.

Para agravar a situação, aconteceu de a crise econômica se aprofundar progressivamente durante a administração Geisel, como testemunhado pela aceleração da inflação, pelo agravamento da situação do balanço de pagamentos e pela redução na taxa de crescimento econômico. Em tais circunstâncias, o estado geral das relações entre as classes dominantes e o regime militar tendeu a se deteriorar. Não surpreende, portanto, que a política econômica do recém-empossado governo Figueiredo tenha-se perdido entre as alternativas de continuar tentando manter o crescimento ou promover deliberadamente sua desaceleração. Até dezembro de 1980, prevaleceu, de uma forma geral, a primeira alternativa, tão bem simbolizada pelo otimismo eufórico do professor Delfim Netto ao assumir, em agosto de 1979, a chefia da Secretaria do Planejamento.

A despeito da euforia inicial do novo ministro, entretanto, a situação não parou de se deteriorar, com as relações entre o empresariado e o governo jamais tendo voltado a ser tão boas quanto nos áureos tempos do ‘’milagre’’. Para piorar as coisas, começaram a surgir problemas sérios com as classes trabalhadoras, as quais começaram a se aproveitar das brechas deixadas pelo progressivo esfacelamento do poder de repressão do regime para protestar contra suas precárias condições de vida. A insatisfação geral dos trabalhadores com a situação da economia e com os salários permanentemente ameaçados pela inflação descontrolada rapidamente se alastrou: em 1979, por exemplo, houve mais greves do que naquele célebre ano da ‘’anarquia’’, 1963 (Munck, 1981Munck, Ronald (1981). “The Labor Movement and the Crisis of the Dictatorship in Brazil”, Em Thomas C. Bruneau e Philipe Faucher, organizadores, Authoritarian Capitalism: Brazil’s Contemporary Economic and Political Development, Boulder, Colorado: Westview. ). A estratégia adotada pelo governo Figueiredo em seus primeiros anos, para tentar restabelecer um nível mínimo de aceitação do regime por parte das classes trabalhadoras, foi adotar uma política salarial que dava ganhos reais aos trabalhadores na base da hierarquia salarial.

Mais uma vez, tratava-se de uma lei engenhosa: os ganhos dos trabalhadores mais pobres eram quase completamente pagos pelas perdas (também impostas pela lei) dos trabalhadores de maior salário. O resultado líquido da aplicação da nova lei salarial era uma redução no valor real da folha de salários para todas as empresas acima de um tamanho mínimo.9 9 Vários estudiosos da época, por exemplo Camargo (1981), tentaram demonstrar que a aplicação dos percentuais de reajuste da lei salarial de 1979 levaria a uma redução no valor real da folha de salários para a economia como um todo. Estudos empíricos mais recentes, ainda inéditos, de José Hamilton Bizarria, do IPEA-IPLAN (conforme comunicação pessoal ao autor) desmentem, entretanto, aquela colocação de Camargo. Uma exposição mais detalhada das leis salariais no Brasil pode ser encontrada em Maia Gomes (1983, Part III) e em Maia Gomes, Osório e Ferreira Irmão (1985, cap. 1). De modo que, protestos verbais à parte (por que se conformar com um quando se pode tentar obter dois?), os grandes empresários, pelo menos, não tinham do que reclamar. Nem tampouco os trabalhadores mais pobres. Quanto à classe média alta, que houvera sido beneficiária circunstancial do recém-findo “milagre”, a situação era outra e suas perdas eram bem reais. Mas isso não contava muito: por um lado, o peso político relativo dessa classe diminuíra, em face da própria abertura; por outro lado, também o peso econômico das classes médias houvera diminuído, em face da própria desaceleração do crescimento e consequente redução na taxa de expansão da demanda por trabalho qualificado.

O governo conseguiu manter essa estratégia (política econômica predominantemente expansionista, por um lado, e a lei salarial que redistribuía a renda do trabalho, por outro) por dois anos: em dezembro de 1980, o contínuo agravamento da crise do balanço de pagamentos e a exacerbação da inflação terminaram por forçar uma mudança de curso, que passou a apontar para uma temperatura recessiva, primeiro por decisão do próprio governo, depois de algum tempo por imposição dos banqueiros internacionais, através do Fundo Monetário Internacional. Como parte dessa mudança de orientação, a lei salarial distributivista também foi modificada, em 1983, num sentido francamente desfavorável à classe trabalhadora.

EPÍLOGO?

A despeito disso tudo e até o presente, a crise econômica não foi debelada. Já largamente ultrapassado o período de tempo no qual a recessão poderia ser bem recebida pela burguesia (pelos seus efeitos “educativos” sobre a força de trabalho), até mesmo os empresários parecem ter perdido a paciência em relação a um estado de coisas que não leva a nada: nem se consegue debelar a inflação, nem se consegue pagar a dívida, nem se consegue sair completamente da recessão que paralisa os investimentos e impede os lucros de aparecerem.

Temos uma crise econômica e tivemos insatisfação geral. Temos uma crise econômica e tivemos dificuldades políticas, mas a crise política, em sua definição proposta nesse artigo, foi evitada. Não que ela não tenha estado presente, como ameaça, durante boa parte dos meses do ano passado, enquanto se definia a sucessão. Não na forma de revolução sociais, mas na forma de ameaças de golpes. Prevaleceu a “transição” negociada - de fato tão “negociada” que talvez nem se possa caracterizar como transição. Como a crise política foi evitada, como o golpe militar deixou de se materializar, são perguntas que não podem, ainda, ser respondidas com maior segurança, mas que já comportam, a despeito disso, algumas especulações.

Do ponto de vista daqueles que poderiam ter liderado um golpe, por exemplo, uma das dificuldades sentidas para viabilizar a intervenção ao processo político foi, provavelmente, a inexistência de um demônio à solta, como a “ameaça comunista”, na luta contra o qual se pudesse promover novamente o movimento de opinião pública que terminou viabilizando o golpe contra Goulart. Dado que os problemas que vêm afligindo a população, tais como o desemprego, a inflação, a dívida externa, a corrupção e a incompetência governamental, foram todos criados, nutridos e engordados pelo regime conservador que se instalou no poder em 1964, foi difícil mobilizar as classes conservadoras em torno de qualquer um daqueles temas, já que isso equivaleria a mobilizar aquelas classes contra o regime que, afinal de contas, sempre foi seu. Em adição a isso, o desgaste das forças armadas, publicamente associadas com o atual estado de coisas, deve também ter dificultado sobremaneira a unidade em torno de um projeto golpista. Prevaleceu, por essa e outras razões, a transição negociada. A dominação de classe voltará, portanto, no Brasil, a ser exercida por meios mais civilizados, mais formais, talvez mais eficazes. Será a democracia, uma vez mais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • Camargo, José Márcio (1981). “A Nova Política Salarial, Distribuição de Renda e Inflação”. Pesquisa e Planejamento Econômico, 11(3), dezembro.
  • Dreifuss, René A. (1981). 1964: A Conquista do Estado. Rio de Janeiro, Vozes.
  • Maia Gomes, Gustavo (1983). The Roots of State Intervention in the Contemporary Brazilian Economy. Dissertação de Ph. D., inédita. University of Illinois.
  • Maia Gomes, Gustavo; Carlos Osório e José Ferreira Irmão (1985). Recessão e Desemprego nas Regiões Brasileiras. Recife, PIMES-UFPe, fevereiro.
  • Munck, Ronald (1981). “The Labor Movement and the Crisis of the Dictatorship in Brazil”, Em Thomas C. Bruneau e Philipe Faucher, organizadores, Authoritarian Capitalism: Brazil’s Contemporary Economic and Political Development, Boulder, Colorado: Westview.
  • Serra, José (1983). “Ciclos e Mudanças Estruturais na Economia Brasileira do Pós-Guerra”. Em Luiz Gonzaga Belluzzo e Renata Coutinho, organizadores: Desenvolvimento Capitalista no Brasil: Ensaios sobre a Crise. São Paulo, Brasiliense.
  • Skidmore, Thomas E. (1967). Politics in Brazil, 1930-1964: An Experiment in Democracy. New York, Oxford University Press.
  • Zerkowski, Ralph M. e Maria A. G. Veloso (1982). “Seis Décadas de Economia Brasileira Através do PIB”. Revista Brasileira de Economia, 36(3), julho-setembro.
  • 1
    Note-se que isso é verdadeiro para 1964. Como o golpe militar ocorreu a 1 de abril, as condições econômicas da época são mais bem descritas pelo crescimento (negativo) do PIB per capita em 1963 do que pelo mesmo crescimento em 1964.
  • 2
    Se a crise política de 1968 for incluída no seleto grupo das mais importantes crises políticas do período 1928/83, teríamos então a segunda exceção à regra geral discutida acima. Parece-nos, entretanto, que 1968 foi apenas o complemento natural de 1964, tendo importância apenas relativa, portanto.
  • 3
    Daí não se segue, entretanto, que as sociedades humanas em que estamos interessados possam ser adequadamente representadas como um conjunto de átomos indiferenciados, postos a interagir uns com os outros. Bem ao contrário, o padrão mais comum de organização social impõe fortes diferenciações nas posições relativas dos indivíduos na sociedade - e nenhuma análise de processos sociais que desconsidere esse fato pode ir muito longe. O reconhecimento de que diferentes indivíduos são diferentemente posicionados na sociedade é o ponto de partida para a introdução da ideia de classes na visão do processo social que estamos presentemente apresentando, as classes sendo definidas pela posição dos indivíduos no processo produtivo. Indivíduos posicionados semelhantemente no processo produtivo irão, tipicamente, reagir de forma semelhante a fenômenos sociais que os afetem de forma semelhante - e é apenas dessa circunstância que se pode inferir um comportamento de classe que, longe de ser independente dos comportamentos individuais, se constitui, ao contrário, na resultante desses comportamentos.
  • 4
    Crises políticas são, portanto, superadas, nos casos extremos, seja pela eclosão de uma revolução social vitoriosa, com base na qual uma nova classe passa a controlar o processo político, mudando, em consequência, as regras do jogo político, seja pela realização de um golpe militar que restabeleça a supremacia política da velha classe dominante, através da imposição de novas regras para o processo político.
  • 5
    Convém ressaltar que o padrão de ajustamento à crise econômica, descrito acima, não corresponde inteiramente ao caso mais comum. Em economias do tipo mencionado, na maior parte das vezes os efeitos da crise externa tiveram de ser absorvidos pela classe proprietária, já que, entre outras coisas, não havia mais nada o que reduzir no consumo dos escravos. Com a liberação para o cultivo de alimentos de parte das terras anteriormente usadas para cultivar o produto de exportação, os escravos em alguns casos puderam até se beneficiar da crise econômica. Note-se, entretanto, que a conclusão básica não se altera: urna vez que focalizamos o processo político pelo ângulo das relações senhores-escravos, é pouco provável que crises econômicas deem lugar a crises políticas naquelas sociedades.
  • 6
    O outro caminho seria dado pela intensificação e aprofundamento do protesto da classe dominada, que eventualmente conduzisse à revolução social.
  • 7
    A análise aqui feita tem o objetivo de localizar o que nos parece terem sido os fatores, circunstâncias e classes que desempenharam papéis cruciais no desenrolar da crise econômica e política dos anos 60. É por essa razão que contrapomos “capital” (indiscriminadamente) a “trabalho” (assalariado). Como sempre acontece, simplificações analíticas podem ser extremamente úteis, mas permanecem sendo simplificações. Não há dúvida de que uma interpretação histórica mais detalhada da crise do populismo teria de levar em conta o papel das lutas camponesas, a diferenciação da classe trabalhadora e do capital e a influência estrangeira, entre outras coisas. Sem embargo, cremos que as relações mais significativamente envolvidas no desenrolar da crise são as que estão esquematicamente representadas nesta seção.
  • 8
    Na verdade, mesmo na sua época de maior estabilidade, o regime militar brasileiro nunca conseguiu legitimar-se ideologicamente pelo que ele realmente representava, ou seja, nunca teve a capacidade de se apresentar publicamente como uma ditadura. Pode-se especular (mas não aqui) sobre as razões explicativas desse fenômeno, mas o ponto que nos interessa enfatizar, nesse momento, é outro: a despeito de sua ilegitimidade ideológica, a ditadura militar era capaz de obter “legitimidade operacional”, por assim dizer, isto é, era capaz de conseguir continuar existindo como ditadura, sem grandes problemas. Era, portanto, também capaz de tomar decisões “a portas trancadas”, sem participação direta dos interessados. Foi essa legitimidade operacional que começou a ruir com a crise econômica, obrigando, paulatinamente, o regime a restabelecer formas institucionalizadas de participação das classes dominantes no processo político. Essa é, segundo acreditamos, a origem da abertura política.
  • 9
    Vários estudiosos da época, por exemplo Camargo (1981Camargo, José Márcio (1981). “A Nova Política Salarial, Distribuição de Renda e Inflação”. Pesquisa e Planejamento Econômico, 11(3), dezembro. ), tentaram demonstrar que a aplicação dos percentuais de reajuste da lei salarial de 1979 levaria a uma redução no valor real da folha de salários para a economia como um todo. Estudos empíricos mais recentes, ainda inéditos, de José Hamilton Bizarria, do IPEA-IPLAN (conforme comunicação pessoal ao autor) desmentem, entretanto, aquela colocação de Camargo. Uma exposição mais detalhada das leis salariais no Brasil pode ser encontrada em Maia Gomes (1983Maia Gomes, Gustavo (1983). The Roots of State Intervention in the Contemporary Brazilian Economy. Dissertação de Ph. D., inédita. University of Illinois. , Part III) e em Maia Gomes, Osório e Ferreira Irmão (1985Maia Gomes, Gustavo; Carlos Osório e José Ferreira Irmão (1985). Recessão e Desemprego nas Regiões Brasileiras. Recife, PIMES-UFPe, fevereiro. , cap. 1).
  • JEL Classification: E32; D72; Z13.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 1986
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