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Os índices de preços e o compulsório: uma discussão dos fundamentos da decisão do IBGE*

Price indices and reserve requirements: a discussion of the fundamentals of the IBGE decision

RESUMO

Estre trabalho discute as recentes mudanças do BNDES na metodologia do IPCS e INPC , à luz do Decreto-Lei 2288/86.

PALAVRAS-CHAVE:
Índice de preços; inflação

ABSTRACT

This piece discusses the recent changes in IPCA and INPC methodologies by IBGE, in light of Decree-Law 2286.

KEYWORDS:
Price index; inflation

Este texto discute os fundamentos da decisão do IBGE, a respeito do tratamento, em seus índices de preços, ou seja, o IPCA e o INPC, do empréstimo compulsório instituído no Decreto-Lei n. 2288/86.1 1 A pertinência da exclusão dos empréstimos compulsórios do indexador da economia, o IPC, também calculado pelo IBGE, não é objeto de discussão neste trabalho. Sobre este assunto, veja-se uma nota anterior do autor, “Os Índices e o Indexador”, reproduzida pelos principais jornais brasileiros do dia 6.8.1986. Veja-se também “Empréstimo Compulsório X Índice de Preços”, Conjuntura Económica, 40 (8), ago. 1986: pp. 111-3; e, mais geralmente, Michael Emerson, “A View of Current European Indexation Experiences”, em R. Dombusch e M. H. Simonsen, Inflation, Debt, and Indexation, MIT Press, 1983.

De acordo com o Bureau of Labor Statistics dos Estados Unidos, cujas metodologias têm tradicionalmente servido para informar a construção dos índices de preços do IBGE, é o conceito de índice de custo de vida que dá a base conceitual para lidar com as questões práticas que aparecem na elaboração do índice de preços ao consumidor.2 2 A referência básica utilizada neste texto é Bureau of Labor Statistics, BLS Handbook of Methods. Volume II: The Consumer Price Index. Washington, D. C., U. S. Government Printing Office, abr. 1984. O índice de custo de vida do corrente mês é baseado na resposta à seguinte pergunta: “Qual é o custo, aos preços de mercado deste mês, de alcançar o mesmo padrão de vida que foi de fato atingido no período-base do índice?”. Este custo é uma despesa hipotética - a despesa mínima necessária, aos preços deste mês, para atingir o padrão de vida do período-base. A razão entre este custo hipotético e o custo efetivo no período-base da cesta de consumo deste último período é o índice do custo de vida.

O índice do custo de vida é uma medida de mudança de preços, pois compara os preços do período corrente com os do período-base. Contudo, o conceito é difícil de implantar empiricamente porque supõe manter o padrão de vida constante, e tal padrão de vida tem de ser estimado de alguma maneira. O índice de preços ao consumidor usa uma cesta de consumo fixa como uma aproximação para o conceito de um padrão de vida constante. O índice de preços ao consumidor é igual à razão entre o custo da cesta de consumo do período-base, aos preços deste mês, e o custo observado desta mesma cesta no próprio período-base. A fórmula usada, tanto pelo Bureau of Labor Statistics como pelo IBGE, para calcular o índice do custo de vida é conhecida na literatura como índice de Laspeyres. Como supõe que o consumidor não altere seus padrões de consumo quando os preços relativos se modificam, tal fórmula provê um limite superior para o índice do custo de vida, já que, na prática, o consumidor tratará de preservar seu padrão de vida, reduzindo o consumo dos produtos cujos preços relativos subiram e aumentando o consumo dos produtos cujos preços relativos diminuíram.

A metodologia do Bureau of Labor Statistics não contém uma discussão sobre a forma de tratar empréstimos compulsórios em índices de preços. Entretanto, uma pista para tais procedimentos pode ser obtida, naquela metodologia, ao considerar-se a forma pela qual é tratada a mudança de qualidade dos produtos. O que ocorre quando um produto incluído na cesta-base muda de qualidade? O Bureau of Labor Statistics admite que um dos problemas conceituais mais difíceis na compilação do índice de preços é o tratamento e a medição acurada da mudança de qualidade, devida às constantes mudanças de especificação e de padrões de consumo. Isto porque o conceito do índice de custo de vida requer que se meça o custo de aquisição de uma cesta fixa de bens e serviços de qualidade constante através do tempo. O procedimento mais explícito adotado pelo BLS para lidar com mudanças de especificação dos produtos é o ajustamento direto pela qualidade. Para fazer este ajustamento, e necessário calcular o valor em cruzados da mudança de qualidade. Seja q este valor (estimado, por exemplo, pelo custo de produção das alterações de qualidade, mais uma margem de comercialização). Suponhamos que o “produto novo” entre neste mês - indicado por t - no índice, em substituição ao “produto velho”. Então, o próximo passo do procedimento consiste em definir um número para o preço do produto-novo no mês (t - 1) imediatamente anterior ao de seu cômputo no índice. Isto é feito adicionando-se q ao preço observado do produto-velho naquele mês. Depois desta imputação, o preço do produto-novo no período-base é computado multiplicando-se o preço no período-base do produto-velho pela razão entre o preço imputado do produto-novo e o preço observado do produto-velho, no mês t - 1. Ou seja, introduz-se o produto-novo na base do índice com um preço maior (desde que q > 0) do que o produto-velho. A diferença de preços é proporcional à estimativa do valor da mudança de qualidade, q.

Como se poderia aplicar este procedimento à questão do empréstimo compulsório? Para fixar ideias, consideremos como o Bureau of Labor Statistics, seguindo a metodologia acima, trataria o problema de uma mudança na qualidade da gasolina. Para simplificar, suponhamos que, no mês t, tenha havido a substituição de uma gasolina velha, de x octanas, por uma gasolina-nova, de x + y octanas, sendo y um número não negativo. Claramente, o procedimento seria o de estimar o custo de produção das y octanas adicionais (incluindo a correspondente margem de comercialização) e de substituir, no índice, a gasolina nova pela gasolina velha, com um preço, no período-base, correspondente à estimativa do custo mais elevado das octanas adicionais. Nota-se que o valor da diferença de qualidade, q - estimado pelo estatístico como sendo igual ao custo de produção das inovações introduzidas no produto mais uma margem de comercialização - , não será necessariamente igual à diferença entre os preços de mercado da gasolina nova e da gasolina velha, já que nesta diferença entrarão não somente as variações de custo, mas também outros componentes de preço, relacionados à estrutura de mercado e à estratégia de venda das empresas fabricantes.

O próximo passo, então, consiste em verificar, primeiro, se o empréstimo compulsório adiciona alguma “octanagem” positiva à gasolina vendida nos postos brasileiros, a partir da última semana de julho (o mesmo raciocínio, obviamente, vale para os casos do álcool e dos carros). Em caso afirmativo, tratar de estimar o valor destas “octanas” adicionais, para obtermos um tratamento tecnicamente apropriado do compulsório em índices de preços ao consumidor.

Voltemos, para isto, ao exemplo da qualidade. Ao admitir, com q > O, que o produto-novo valha mais que o produto-velho para o consumidor, o estatístico está supondo que o bem-estar do consumidor melhora ao consumir o produto-novo ao invés do produto-velho. É por isto que ele, consumidor, estará disposto a pagar um preço mais alto pelo produto-novo. Ou seja, na ilustração acima, apesar de pagar um preço mais alto pela gasolina de octanagem mais elevada, o consumidor não estará necessariamente pior de vida. Isto somente ocorrerá no caso em que a melhoria de qualidade, medida pelo estatístico como tendo valido q > O, para o consumidor de fato tenha um valor menor que o aumento observado nos preços de mercado. É também importante observar neste caso que o estatístico usa um critério objetivo - o custo de produção da melhoria de qualidade - para imputar um valor numérico em cruzados, q, a uma variação subjetiva do bem-estar do consumidor, dada pela melhor qualidade do novo produto que substitui o antigo no mercado.

Deste modo, a mera constatação de que a gasolina-com-compulsório custa mais caro do que a gasolina-sem-compulsório não é suficiente para que o custo do compulsório seja integralmente adicionado ao índice do custo de vida. E isto pela mesma razão que é incorreto dizer que o custo de vida aumentou apenas porque a gasolina com x + y octanas custa mais caro do que a gasolina com x octanas. Para incluir o compulsório integralmente no índice seria preciso demonstrar que a “octanagem” que ele adiciona à gasolina não tem qualquer valor para o consumidor. Por outro lado, para excluí-lo integralmente do índice, seria preciso demonstrar que a “octanagen;” acrescida tem, para o consumidor, um valor não inferior ao preço adicional que ele está pagando, ao comprar gasolina-com-compulsório, ao invés de gasolina-sem-compulsório.

Obviamente, a “octanagem” a mais do compulsório é dada pelo número de cotas do Fundo Nacional de Desenvolvimento (FND) a que o consumidor faz jus, ao consumir a gasolina-com-compulsório. A pergunta, então, é: que valor tem hoje estas cotas para o consumidor? Este problema seria trivial caso as cotas se tornassem imediatamente disponíveis e, ademais, houvesse um mercado ativo para sua comercialização. O preço das cotas nesse mercado sinalizaria seu valor para o consumidor. No caso em pauta, entretanto, as cotas são uma promessa com valor de mercado desconhecido. Sobre seu valor, o consumidor pode apenas conjecturar. A inexistência de um mercado onde as cotas possam ser negociadas talvez fosse um argumento para ignorar o cálculo de valores presentes virtuais, dentro da norma estatística de somente considerar, em índices de custo de vida, os valores de mercado efetivamente praticados no presente.3 3 Para uma discussão desta postura, veja-se: Robert Gillingham, “A Conceptual Framework for the Consumer Price índex”, Proceedings, Business and Economics Statistics Section, American Statistics Association, 1975. Entretanto, em situações, como no caso em análise, em que a taxa voluntária de poupança dos consumidores sujeitos ao compulsório é presumivelmente positiva e em que, portanto, valores presentes virtuais são obviamente importantes, essa norma estatística pareceria violar excessivamente a teoria de escolha intertemporal do consumidor para poder ser acatada por economistas.4 4 O estilo do tratamento dado por economistas ao problema é ilustrado em “Empréstimo Compulsório X Índice de Preços”, Conjuntura Econômica, 40 (8), ago. 1986: pp. 111-3. Uma análise econômica mais completa do tema está sendo presentemente desenvolvida pelo prof. Fernando Saldanha, da PUC-RJ.

De um ponto de vista econômico, no caso das cotas, temos de fazer a mesma translação do mundo subjetivo do consumidor para o mundo objetivo do dinheiro, que antes foi feita para o caso da mudança de qualidade. A diferença é que, antes, o fato subjetivo era a apreciação da qualidade de um produto presente, enquanto agora o fato subjetivo é o valor presente de um rendimento futuro. Num caso, temos de transformar a percepção de qualidade (presente) em dinheiro (presente); noutro, a expectativa de dinheiro (futuro) em dinheiro (presente).

Consideremos, então, a seguinte resposta à pergunta anteriormente formulada: “hoje, estas cotas não têm valor algum para o consumidor; logo o compulsório é um mero imposto indireto e, como tal, tem de entrar integralmente no índice”. Perguntemos, então: em que circunstância estas cotas não teriam, hoje, valor algum para o consumidor? Basicamente, em duas circunstâncias. A primeira é o caso em que o consumidor estime, hoje, que o futuro valor de mercado das cotas - seja quando elas se tornarem negociáveis daqui a três anos, seja quando se constituir um mercado de futuros para tais cotas - será rigorosamente igual a zero. A segunda é o caso em que o consumidor julgue que - ainda que as cotas possam ter um valor positivo - o tempo de espera será muito longo; neste caso, para ele, hoje, qualquer benefício que se materialize no futuro (seja daqui a três anos, seja quando se formalize um mercado de futuros) tem um valor presente rigorosamente igual a zero. Trata-se, como se vê, de posições extremas. A segunda justificativa, por exemplo, aparentemente pode ser descartada a partir da constatação de que os consumidores de gasolina, álcool e automóveis tipicamente têm uma poupança voluntária positiva. Isto significa que o futuro para eles vale alguma coisa, se não tratariam de consumir integralmente sua renda presente. Quanto à primeira alternativa, aparentemente também contempla uma posição gratuita, pois a ela corresponderia, por exemplo, a disposição do consumidor de doar a qualquer pessoa interessada o direito de haver essas cotas no futuro. Mas, a preço zero, a demanda de cotas do FND parece ser bem maior que sua oferta.

Consideremos, então, uma resposta alternativa: “o valor das cotas, hoje, para o consumidor não é inferior ao preço majorado da gasolina; logo, o compulsório deve ser tratado como um empréstimo e, portanto, excluído do índice de custo de vida”. Nos termos do exemplo acima, esta afirmação corresponde ao suposto de que o valor, para o consumidor, das y octanas adicionais contidas na nova-gasolina não é inferior ao preço a mais que ele está pagando, nos postos, por estas mesmas y octanas. Ou seja, o preço é maior, mas o bem-estar não é menor, porque a melhoria de qualidade compensa este maior preço. Note-se que o caráter compulsório do empréstimo parece ser irrelevante para esta discussão. Pois quando uma companhia de petróleo decide introduzir uma gasolina de x + y octanas em substituição à gasolina de x octanas, ela, especialmente se for monopolista, pode fazê-lo sem deixar qualquer margem de opção para o consumidor. Para quem calcula o índice de preços, caberá apenas tratar de estimar, da melhor maneira que lhe for possível, quanto é que essas y octanas adicionais valem, do ponto de vista do bem-estar do consumidor, dado que a gasolina de x octanas agora não existe mais no mercado. Enquanto cidadão, o consumidor poderá não gostar da forma de atuação tanto de monopólios quanto de governos, mas, enquanto produtor de índices, terá necessariamente que incorporar as consequências, sobre suas medições, do exercício de poder de mercado dessas duas entidades, independentemente de suas opções filosóficas.

Em que circunstâncias, então, o valor das cotas poderia não ser inferior ao custo do compulsório? Consideremos o caso de um consumidor que pague o compulsório com uma redução de sua poupança. Neste caso, temos de comparar a taxa de retorno do compulsório com a taxa de juros da poupança, tendo em conta todos os aspectos relevantes do ponto de vista do consumidor, tais como o prazo da aplicação, a liquidez do principal e a certeza do rendimento. Além disto, como o compulsório, no momento de sua cobrança, implica uma mudança de preços relativos e, no momento de sua restituição, implica um aumento da renda disponível, tais efeitos-preços e renda têm de ser levados em conta nas comparações dos rendimentos relativos. A partir da especificação de um modelo adequado, simulações financeiras alternativas podem ser feitas. Mas, à primeira vista, parece que, logicamente, não se poderá descartar a possibilidade de que a taxa esperada de retorno do compulsório supere a taxa de juros da poupança, por uma margem mais do que suficiente para compensar todas as características negativas que estes empréstimos possam ter, em termos de incerteza de rendimento e não-liquidez do principal. Logicamente, assim, deve aceitar-se a possibilidade de que seria apropriado excluir integralmente o compulsório do cômputo do índice de preços ao consumidor. Com modificações adequadas, este mesmo raciocínio é válido para o caso do consumidor que paga o compulsório, em parte com redução da poupança, em parte com redução do consumo. Neste caso, entretanto, além da taxa de retorno da poupança, necessitaríamos desenvolver uma estimativa da taxa intertemporal de desconto do consumidor, para poder fazer todos os cálculos necessários.

Se estas considerações forem aceitas, elas têm as seguintes implicações: de um ponto de vista lógico, em índices de preços ao consumidor apropriadamente especificados poder-se-ia tratar o compulsório como se fora um imposto indireto apenas em casos extremos, de muito baixa probabilidade. Por outro lado, também logicamente, não se pode excluir a possibilidade de tratar-se o compulsório como se fora um empréstimo normal, excluindo-o, portanto, integralmente do índice de preços, a partir da analogia com o caso de uma mudança de qualidade, que valesse, para o consumidor, em termos de bem-estar, tanto quanto ela lhe custa, em termos de dinheiro.

Mas, por que, então, neste caso, a posição dos responsáveis pela maioria dos diversos institutos de estatística no Brasil foi a de incorporar integralmente o compulsório a seus índices de preços? São eles que estão errados ou é o raciocínio acima que está incompleto? Vamos explorar a segunda hipótese.

A analogia que fizemos acima, com a mudança de qualidade, emergiu em discussões internas no IBGE, mas não tem sido mencionada por outros institutos de estatística. Pode ser que a analogia não seja aceita, uma vez que a discussão atinja um público mais amplo. Neste caso, o problema teria de ser rediscutido. Mas admitamos a aceitação desta analogia por parte da comunidade técnica relevante. Então, a seguinte colocação poderia ser feita. O tratamento da mudança de qualidade mencionada acima é apenas uma das possibilidades contempladas pelo Bureau of Labor Statistics, pois ele também tem um procedimento para o tratamento do que chama de produtos “objetivamente equivalentes”. Quando as características que definem a nova especificação são essencialmente as mesmas que as características do item antigo, então, admite-se que o preço do período-base da nova especificação seja igual ao preço do período-base da velha especificação. Isto quer dizer que todo o aumento de preço devido à suposta mudança de qualidade é integralmente apropriado no índice. No caso em tela, caberia decidir se estamos face a “produtos objetivamente equivalentes” ou - como vimos sustentando até agora - a produtos requerendo “ajustes de qualidade”. Por exemplo, o estatístico pode arguir que, dadas as complexidades teóricas e práticas envolvidas no cálculo do valor das cotas, não há como estimar este valor, senão com um alto grau de subjetividade. E, então, no propósito de limitar ao máximo a faixa de julgamento não objetiva, decida aplicar o princípio da “navalha de Occam”, que requer que a mais simples entre as teorias competitivas seja preferida às mais complexas. Esta solução mais simples teria as seguintes características. Primeiro, qualquer valor intermediário entre o tratamento do compulsório como empréstimo, de um lado, e como imposto indireto, de outro, é eliminada, porque altamente complexa; portanto, somente um procedimento-limite simplificado pode ser adotado: ou é imposto, ou é empréstimo. Segundo, como há, hoje, muito poucos elementos objetivos para estimar-se, com alguma confiança, o valor futuro das cotas do compulsório, o princípio recomendaria ignorar este futuro tão incerto e postular tratar-se de “produtos objetivamente equivalentes”, portanto não requerendo qualquer ajuste nos preços-base. Isto significaria tratar o compulsório não como um empréstimo, mas como um imposto indireto, pelo menos até que se defina com maior precisão a rentabilidade do FND.

Pareceria possível criticar esta atitude, como sendo derivada não de um louvável esforço de evitar julgamentos subjetivos quando fatos objetivos estão à mão, mas sim de uma recusa em enfrentar problemas novos com procedimentos outros que não aqueles inscritos na rotina do dia a dia. Pois, rotineiramente, o que salta à vista no compulsório é o aumento dos preços; já a estimativa do seu valor para o consumidor implica sair da segurança propiciada pelos procedimentos rotineiros (e, por isto mesmo, facilmente assimiláveis pela opinião pública), para tentar descobrir os métodos mais adequados de mensuração. De qualquer modo, dessa atitude occaniana se deriva uma conclusão interessante, a saber, a de que não haveria dúvida em excluir o compulsório do índice - apesar de o preço da gasolina-com-compulsório ser maior do que o da gasolina-sem-compulsório - caso este empréstimo fosse devolvido em data certa por um valor prefixado e com taxa de juros não inferior à de poupança. Ou seja, fossem estas as características, o princípio occaniano do “tudo ou nada” antes exposto implicaria tratar o compulsório como um empréstimo normal, apesar de sua iliquidez e das distorções de preços e renda que ele impõe ao bem-estar do consumidor. Isto representa uma mudança importante, em relação a uma atitude ultra rotineira, a saber, aquela que mantém que o compulsório, quaisquer que fossem suas características, deveria ser tratado como um imposto indireto, simplesmente porque aumenta os preços no presente. O absurdo desta última colocação fica patente ao imaginarmos um caso extremo em que o compulsório tem uma taxa sabida de retorno infinitamente grande; portanto, o bem-estar do consumidor, hoje, estaria infinitamente acrescido, devido à substituição da gasolina-sem-compulsório pela gasolina-com-compulsório-de-rendimento-infinito. Não obstante, um índice de preços que necessariamente tratasse empréstimos compulsórios, porque aumentam preços, como se fossem impostos indiretos, estaria sugerindo que o consumidor piorou de situação por causa de um compulsório que, neste caso extremo, faz com que seu padrão de vida esteja de fato infinitamente acrescido.

As considerações acima sugerem estarmos face a um caso em que ocorre uma dissociação entre a teoria correta - que requereria uma estimativa, precária como fosse, do valor das cotas do Fundo - e a prática dos índices - que requereria uma decisão tipo “tudo ou nada”, para reduzir o elemento de subjetividade no cálculo dos índices de custo de vida.

Ficamos com a teoria ou com a prática? A prática, alegando a dimensão da incerteza hoje existente sobre o rendimento do FND, sugeriria tratar o compulsório como imposto, pelo menos até que se caracterize melhor a taxa de retorno do Fundo. A teoria sugeriria decompor o compulsório, com a exatidão possível em cada momento no tempo, no que ele tem de imposto e no que ele tem de empréstimo. O problema com a solução prática é que, se daqui a alguns meses, ficar caracterizada uma alta rentabilidade do Fundo, então, a decisão agora tomada, de tratar o empréstimo como imposto, teria que ser invertida, causando uma súbita “deflação” no índice, no mês em que a passagem do “tudo” para o “nada” se desse. O problema com a teoria é que, de fato, aqui e agora ainda não temos em mãos os instrumentos teóricos e empíricos necessários para fazer, com confiança, os cálculos pertinentes.

A alternativa proposta pelo IBGE parece oferecer uma solução adequada, nessas circunstâncias. Ela procura respeitar tanto a teoria como a prática, ao abrir o índice num intervalo de possibilidades, cujo limite inferior exclui o compulsório integralmente, ou seja, trata-o como um empréstimo de rendimento normal, e cujo limite superior inclui o compulsório integralmente, ou seja, trata-o como um imposto indireto.

  • 1
    A pertinência da exclusão dos empréstimos compulsórios do indexador da economia, o IPC, também calculado pelo IBGE, não é objeto de discussão neste trabalho. Sobre este assunto, veja-se uma nota anterior do autor, “Os Índices e o Indexador”, reproduzida pelos principais jornais brasileiros do dia 6.8.1986. Veja-se também “Empréstimo Compulsório X Índice de Preços”, Conjuntura Económica, 40 (8), ago. 1986: pp. 111-3; e, mais geralmente, Michael Emerson, “A View of Current European Indexation Experiences”, em R. Dombusch e M. H. Simonsen, Inflation, Debt, and Indexation, MIT Press, 1983.
  • 2
    A referência básica utilizada neste texto é Bureau of Labor Statistics, BLS Handbook of Methods. Volume II: The Consumer Price Index. Washington, D. C., U. S. Government Printing Office, abr. 1984.
  • 3
    Para uma discussão desta postura, veja-se: Robert Gillingham, “A Conceptual Framework for the Consumer Price índex”, Proceedings, Business and Economics Statistics Section, American Statistics Association, 1975.
  • 4
    O estilo do tratamento dado por economistas ao problema é ilustrado em “Empréstimo Compulsório X Índice de Preços”, Conjuntura Econômica, 40 (8), ago. 1986: pp. 111-3. Uma análise econômica mais completa do tema está sendo presentemente desenvolvida pelo prof. Fernando Saldanha, da PUC-RJ.
  • *
    Agradeço os comentários de Eduardo Augusto Guimarães, Fernando Saldanha, Francisco de Assis, Regis Bonelli e Ricardo Braule Pinto, mas a responsabilidade por eventuais erros de análise ou conclusões equivocadas é inteiramente minha.
  • ***
    A pertinência da exclusão dos empréstimos compulsórios do indexador da economia, o IPC, também calculado pelo IBGE, não é objeto de discussão neste trabalho. Sobre este assunto, veja-se uma nota anterior do autor, “Os Índices e o Indexador”, reproduzida pelos principais jornais brasileiros do dia 6.8.1986. Veja-se também “Empréstimo Compulsório X Índice de Preços”, Conjuntura Económica, 40 (8), ago. 1986: pp. 111-3; e, mais geralmente, Michael Emerson, “A View of Current European Indexation Experiences”, em R. Dombusch e M. H. Simonsen, Inflation, Debt, and Indexation, MIT Press, 1983.
  • 7
    JEL Classification: E31,

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 1987
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