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Recessão, inflação e dívida interna

Recession, inflation and foreign debt

RESUMO

Quando a economia está em recessão, a inflação acelera na economia brasileira. Para que os preços subam durante a recessão, as corporações, em uma economia oligopolista, reduzem a produção e aumentam os preços, ao invés de fazer o contrário, como ensinam as economias convencionais. Para superar a recessão, é preciso que os empresários aproveitem as novas oportunidades de investimento em novos setores dinâmicos da economia. No Brasil, os serviços públicos são o setor que tem mais oportunidades de crescimento. As empresas privadas, nacionais e multinacionais, que já têm capacidade ociosa e excesso de poupança, irão repassar essas economias. Aos serviços públicos assim que os arranjos institucionais e financeiros o permitirem.

PALAVRAS-CHAVE:
Recessão; inflação; ciclo econômico

ABSTRACT

When the economy is in recession, inflation accelerates in the Brazilian economy. In order that prices go up during recession corporations, in an oligopolist economy, reduce production and increase prices, instead of doing the contrary, as conventional economies teach. To overcome recession, it is necessary that entrepreneurs take advantage of the new opportunities for investment in new dynamic sectors of the economy. In Brazil, public utilities are the sector that has more opportunities for growth. Private enterprises, national and multinational, that have now idle capacity and excess savings will transfer these savings. To public utilities as soon as institutional and financial arrangements make this possible.

KEYWORDS:
Recession; inflation; business cycle

Nosso ponto de partida deve ser o esclarecimento das etiologias e do inter-relacionamento destas três variáveis: recessão, inflação e dívida interna. Poucos problemas têm inspirado explicações mais equivocadas e terapêuticas mais contraindicadas do que esses.

É moeda corrente a hipótese - que por ser tão óbvia parece dispensar demonstração - de que recessão e inflação são mutuamente antídotos: com um pouco mais de inflação poderíamos reduzir a violência da recessão, ou vice-versa, isto é, com um pouco mais de recessão poderíamos reduzir a violência da inflação. Tudo, pois, ficaria na dependência da opção que se fizesse: é a inflação ou a recessão o “inimigo número 1” a combater.

Há muito tempo deveria estar claro que, com uma terapêutica inspirada em tal ciência econômica, não se vai a parte alguma, porque, há pelo menos um quartel de século, a inflação integra a síndrome da recessão, isto é, surge ou se exacerba quando a economia se desaquece e, inversamente, desaparece ou, pelo menos tem sua intensidade reduzida, quando a economia se reaquece. Não há, portanto, nenhum trade-off a fazer, porque o combate à inflação é inseparável do combate à recessão (Gráfico 1).

Gráfico 1

Outro problema seria o de saber que relação haveria entre a dívida interna e as duas outras variáveis: a recessão e a inflação. Dá-se como evidente por si mesmo que, sendo a dívida interna, em nossas presentes condições, contraída a elevadas taxas de juros reais, por um lado conduz à depressão, visto como desestimula os investimentos, e, por outro, ao elevar os custos financeiros da atividade econômica, entra com um componente não desprezível para a elevação dos custos de produção e, por isso mesmo, da inflação. Nem sequer nos lembramos de que, há vinte anos, vigiam taxas negativas de juros reais, o que não obstava, nem à recessão, nem à inflação.

Nada mais equivocado, portanto, do que supor que estes problemas admitem as chamadas soluções por opção política, isto é, que o “inimigo no. 1” seria quer a inflação, a recessão ou os juros da dívida. O que importa é saber como, na vida real, essas variáveis se fazem presentes, quais as suas etiologias e qual o seu quadro de interdependência. Cada coisa em seu lugar, isto é, the first things first.

SEQUÊNCIA OBJETIVA

O primeiro fato a estudar é a conjuntura que, na espécie, se exprime pela recessão. Esta é um estágio do movimento cíclico, visto como os movimentos conjunturais se repetem ciclicamente. São notáveis os Ciclos Longos, de mais ou menos meio século, resultantes de movimentos econômicos e tecnológicos profundos, oriundos do chamado centro dinâmico da economia mundial (Quadro 1); e os Ciclos Breves (Médios, na classificação de Schumpeter), atualmente oriundos de movimentos da própria economia nacional brasileira, no processo de industrialização, vale dizer, da implantação do capitalismo industrial, o presente estágio do desenvolvimento brasileiro (Quadro 2). Esses ciclos são, também, conhecidos pelos nomes dos economistas que os estudaram mais aprofundadamente: o russo N. Kondratiev e o francês C. Juglar, respectivamente.

Quadro 1
Produção industrial
Quadro 2
Produção industrial
Quadro 3
Brasil 1958-1983

O presente Ciclo Longo ou mundial tem como centro dinâmico os Estados Unidos, país que, ao terminar a Segunda Guerra Mundial - correspondente aos últimos momentos da fase recessiva do anterior Ciclo Longo (o 3º.), não apenas desfrutava de uma inequívoca e marcante dianteira tecnológica, como também de uma posição econômica única, com uma produção industrial de mais da metade da mundial. Essa posição acha-se hoje severamente modificada, visto como no período 1948-80, os Estados Unidos multiplicaram sua produção industrial por 3,3 vezes, enquanto o Japão expandia a sua 38,5 vezes, a Alemanha Ocidental 9,7, os países socialistas cerca de 20 vezes e o Brasil 15,2 vezes. Isso pode ser prenúncio de novo deslocamento do centro dinâmico mundial, nas condições do presente Kondratiev, o 4º., que, em 1973, ingressou claramente em sua fase final, recessiva.

O Brasil, embora jamais tenha integrado o centro dinâmico da economia mundial, é, entretanto, singularmente sensível aos movimentos desse centro, como formação periférica que é. Suas mudanças sócio-políticas fundamentais - a Independência, na esteira da Abertura dos Portos que, pela primeira vez, nos daria um vigoroso capitalismo mercantil; a República, na saga da Abolição, que substituía a escravidão por um regime muito mais dinâmico, o latifúndio feudal; e a Revolução de 30, que deslocava para posição secundária o capitalismo mercantil, permitindo que se abrisse o passo para a posição hegemônica. ao lado do latifúndio feudal, o vigoroso capitalismo industrial contemporâneo - podem ser estudadas como incidentes das crises mundiais que encerram os Ciclos Longos. A presente crise não deve constituir exceção, sob esse ponto de vista.

Entretanto, algo de muito inovador está tendo lugar nos quadros do presente Kondratiev. Acontece, com efeito, que, por força da implantação do capitalismo industrial, a economia brasileira tornou-se capaz de engendrar seus próprios movimentos cíclicos endógenos, ciclos obviamente da família dos estudados por Clement Juglar, característicos da economia europeia no século XIX e do Brasil, no presente estágio de desenvolvimento. Chamemo-los de juglarianos brasileiros. Enquanto a economia mundial estava em expansão, as recessões do juglariano brasileiro apenas reduziam a intensidade do crescimento, porque os dois ciclos, como vagas que são, somam-se algebricamente; de modo inverso, na fase recessiva mundial, são os movimentos expansivos que se tornam nossos enérgicos (como o do passado decênio, em seu segundo lustro) e são os movimentos recessivos endógenos que se tornam mais violentos, pela mesma razão, como o do primeiro lustro do presente decênio.

A inflação, a violenta elevação da taxa de juros que está acompanhando o presente movimento recessivo e outros fatos suscetíveis de aparecer como fenômenos independentes são, de fato, complicações do movimento conjuntural básico, isto é, integram sua síndrome. Qualquer tentativa de lhes atribuir outra hierarquia ou prioridade, não tendo fundamento na vida real, está fadada à frustração.

A PRESENTE CONJUNTURA

Recapitulando, temos que, estando a economia mundial em fase recessiva - a “fase b”, como dizem alguns autores - e estando a economia nacional também em “fase b”, tivemos, pela primeira vez, desde a demarragem da industrialização, nos anos 30, um movimento conjuntural expresso em queda real do produto. É que os dois ciclos, com o mesmo sinal, somaram-se.

Se os fatos observados no passado nos podem servir de guia, o Ciclo Breve, o endógeno, aproximadamente decenal, aproxima-se de uma mudança de “fase” e prepara-se para a passagem a nova fase expansiva. Quanto ao Ciclo Longo, também se nos deixamos inspirar pelos fatos passados, deverá continuar em tendência recessiva, por muito tempo ainda. A recuperação esboçada no ano de 1984 não é, entretanto, inteiramente endógena. É que o centro cíclico é também capaz de engendrar movimentos conjunturais de prazo mais breve, espontaneamente, ou por força de políticas anticíclicas, e esses movimentos, dependendo da sua duração e intensidade, podem estender sua ação para além dos limites do “centro” e alcançar a “periferia”, onde nos encontramos, visto como modificam temporariamente o comportamento da “onda longa”, embora sem anulá-la.

Não nos devemos precipitar, portanto, tomando a presente recuperação brasileira como sintomática da mudança de “fase” do ciclo endógeno, embora essa mudança não deva estar longe, visto como elas geralmente ocorrem em meados do decênio. Mas acontece que nossa presente recuperação tem uma explicação mais óbvia, inscrevendo-se num movimento conjuntural de alcance mundial - o que não exclui a possibilidade de que sirva de detonador da mudança endógena de fase, dado que as precondições para essa mudança já estão criadas. Pode muito bem acontecer que a temporária recuperação mundial de origem cêntrica passe, enquanto o Brasil, nos quadros do seu ciclo endógeno, continue a expandir-se.

A presente recuperação mundial de origem cêntrica tem etiologia conhecida: o descomunal déficit do Tesouro Federal dos Estados Unidos criou um destino alternativo para os capitais que, dentro e fora dos Estados Unidos, estavam demandando os países do Terceiro Mundo, inclusive o Brasil. Os “bonos” do Tesouro norte-americano se afiguram uma aplicação mais promissora que os investimentos no Terceiro Mundo, os quais, no caso, em vez de promoverem a expansão das economias periféricas, tinham sobre estes efeito depressivo. No Brasil, tornou-se notório o efeito de dumping sobre a indústria pesada recém-criada.

Ora, o déficit federal norte-americano surgiu como um verdadeiro Malstrom, sugando os recursos ociosos, inclusive no Terceiro Mundo. Segue-se que, em vez de um déficit em nossas contas externas, fomos impelidos a produzir saldos positivos, para contrabalançar o enorme déficit das contas externas dos Estados Unidos. Como devia ser esperado, embora raramente o fosse, a política econômica inspirada pelo centro e orientada para financiar a produção dos nossos superávits comerciais, longe de deprimir a economia, como muitos temeram que acontecesse, promoveu a inversão de sinal da conjuntura interna. É que a economia dispunha de considerável reserva de capacidade ociosa, especialmente - e pela primeira vez - na indústria pesada, isto é, no chamado Departamento I da economia brasileira.

Não foi essa a primeira vez que, por conhecer muito mal o comportamento de nossa economia, o centro dinâmico, no ato de exercer sua política imperialista - como o faz atualmente através do FMI (Fundo Monetário Internacional), perseguindo objetivos próprios de curto prazo, nem sempre confessáveis -, leva nossas economias periféricas a tomar caminhos do seu próprio e duradouro interesse. Devemos, pois, estudar as políticas econômicas que nos têm sido impostas com a maior isenção, sem excluir a possibilidade de que elas possam ser também do nosso interesse. Nada mais equivocado, portanto, do que imaginar que a política orientada para a produção de saldos positivos nas contas externas teria necessariamente efeito recessivo, porque o contrário foi - e deveria tê-lo sido - o que aconteceu.

O JUGLARIANO BRASILEIRO

A industrialização do Brasil, que tem como motor primário um esforço de substituição de importações, tem-se caracterizado por acentuada setorialização. Antes éramos importadores essencialmente de produtos da indústria leve e, reservando o pouco de capacidade para importar que a Depressão Mundial nos deixou, nos anos 30, para a importação de equipamentos e outros insumos ainda não suscetíveis de produção nacional, criamos condições propícias para a implantação de uma indústria leve nacional.

As condições econômicas, tecnológicas e institucionais necessárias à implantação da indústria leve não são obrigatoriamente as mesmas que se tornariam necessárias quando chegasse a vez de, escalonadamente, começarmos a implantar a indústria pesada. Outros países também empenhados em industrializar-se via substituição de importações, notadamente a União Soviética e o Japão, começaram pelo extremo oposto, isto é, pela indústria pesada. Eles tinham algo que nos faltava e que nos falta ainda, isto é, uma consciência muito nítida do processo no qual estavam empenhados - consciência essa suficiente para dar consistência ao mínimo de planejamento. Isso, porém, não significa que nosso processo de industrialização não seja satisfatório. Ao contrário, visto como, nos 42 anos compreendidos entre 1938 e 1980, nossa produção industrial cresceu 27,5 vezes, isto é, consideravelmente mais do que aconteceu em qualquer outro país capitalista - Japão inclusive que, no mesmo período cresceu apenas 14,3 vezes. Mas significa que dita industrialização, dadas as circunstâncias especiais em que deveria fazer-se, teria que apresentar um facies também especial.

Com efeito, as “crises” - isto é, as fases recessivas dos ciclos - ·acabam por induzir investimentos em um grupo limitado de atividades econômicas, em consequência, a economia entra em recuperação. Ao cabo de alguns anos, porém, as atividades bafejadas por condições favoráveis à sua renovação tecnológica e expansão acabam por crescer além dos limites impostos pelo mercado, carregando-se de capacidade ociosa. Sobrevém nova “crise”, isto é, as atividades tocadas de ociosidade, por isso mesmo habilitadas a produzir poupança, quer dizer, recursos livres para investir, não têm por que fazê-lo em suas próprias instalações e, por algum tempo, nem outro grupo de atividades está habilitado a investir os excedentes engendrados pelo primeiro grupo, nem o aparelho de intermediação financeira está em condições de carrear ditos recursos, de um setor a outro. Assim, o tempo necessário para que esse duplo problema se resolva é. período de recessão ou, como mais popularmente se diz, de “crise”.

Essas flutuações econômicas têm-se sucedido com acentuada regularidade. Por isso mesmo podem ser estudadas como “ciclos”. Dia virá em que essa regularidade começará a perder-se, como aconteceu nos países já industrializados, mas o fato é que, por enquanto, isso não aconteceu. Entrementes, a experiência acumulada dos ciclos anteriores pode nos ser de muito proveito. Sabemos, por exemplo, que outro grupo de atividades econômicas deverá preparar-se para investir a poupança a resultar da utilização da capacidade ociosa dos setores já desenvolvidos e que o carreamento dessa poupança de um setor para outro pressupõe um aparelho de intermediação financeira reconstruído.

O ponto de partida, já não direi para o planejamento, que se encontra ainda fora do nosso alcance, mas para uma intervenção na economia minimamente eficaz, uma vez configurada a situação de recessão, consiste em verificar a ubicação da capacidade ociosa, por um lado, e também formar uma hipótese ponderada sobre qual o grupo de atividades - ou “setor” - que deverá entrar em processo de renovação e expansão, como setor dinâmico do novo Ciclo Breve, muito provavelmente na iminência de abrir-se. Isso no que toca a cada ciclo, tomado isoladamente. Entretanto; há certos fenômenos que se repetem com muita regularidade, em toda uma série de ciclos, razão por que devem ser estudados com prioridade.

A RECESSÃO E A INFLAÇÃO

Há pelo menos meio século - aí pelo primeiro lustro dos anos 30, fase recessiva do que podemos estudar como o I Ciclo Endógeno - que a economia brasileira não registra uma queda absoluta do índice de preços, que ao tempo se levantava apenas como “Índice do Custo da Vida” do Rio de Janeiro e outras grandes cidades. Desde então, a inflação é nossa companheira inseparável, tanto nas fases “a” como nas fases “b” dos ciclos. Apenas, nas fases ascendentes, pelo menos no último quartel de século, a taxa média de inflação declina, exacerbando-se nas fases recessivas.

Nem sempre foi assim. Antes, até onde nosso conhecimento de causa pode chegar, a inflação era fenômeno ligado ao superaquecimento da economia, vale dizer, integrava a síndrome das fases “a”, especialmente ao final destas. Não havia, por isso, razão para pôr em dúvida a hipótese de que a inflação estivesse relacionada com um excesso de demanda efetiva, porque é, realmente, nas fases ascendentes que a demanda é máxima. Isso, naturalmente, sem falar na elevação dos preços por efeito da emissão irresponsável de meios de pagamento, porque esse tipo de inflação pode acontecer a qualquer momento dos ciclos. Entretanto, a quem tiver dúvidas sobre e fato de que nossa inflação não tem essa etiologia, pelo menos no longo prazo, basta observar a regularidade com a qual o fenômeno se apresenta. Nossa inflação comparece, muito regularmente, como integrante da síndrome da recessão (Gráfico 1).

Isso deve bastar para que nos apliquemos à busca de outra etiologia para o fenômeno da inflação, dado que a tradicionalmente aceita é incompatível com o fato óbvio de que a inflação se exacerba nos períodos recessivos, isto é, quando a demanda é mínima, vale dizer, quando a economia está sobrecarregada de desemprego e de capacidade ociosa.

Não obstante, para que os preços subam regular, sustentada a acentuadamente, como o fazem, é mister que, de algum modo se rompa a equação das trocas. Ora, não sendo essa ruptura, pelo motivo apontado, resultado de um crescimento unilateral da demanda, dar-se-á que o seja por efeito de uma contração unilateral da oferta? Se a causa do fenômeno não está no primeiro membro da equação de trocas (MV), dar-se-á o caso de que esteja no segundo (PT)? E qual seria a explicação de senso comum para esse fato? Noutros termos, que motivo teria o empresário para subutilizar a capacidade de produção de sua empresa, já que é ele o árbitro, nessa matéria?

A suposição - implícita, quando não explícita nas explicações correntes do processo inflacionário - de que o empresário leva sempre a sua empresa a usar plenamente sua capacidade produtiva não resiste ao exame mais perfuntório. Por várias razões o empresário pode ser levado a usar sua capacidade menos que plenamente, e algumas dessas razões são objeto do estudo da microeconomia corrente. Em princípio, sabe-se que se o custo incremental se torna maior do que o preço, seja porque aquele se eleve, seja porque este decline, a empresa se desinteressa pelo aumento da produção, o que pode significar desuso de parte da capacidade produtiva existente.

Ora, a recessão sobrevém, ordinariamente, em nosso caso, quando a capacidade instalada do setor dinâmico da economia ultrapassa as forças da demanda. Em tal caso, não deve ser comum uma elevação do custo incremental, mas pode frequentemente acontecer que um esforço para lançar ao mercado todo o produto que o setor seja capaz force uma baixa dos preços. Desta possibilidade a empresa, em especial numa economia precocemente oligopolizada como a nossa, tenderá a defender-se.

O problema maior não está aí, entretanto. O que acontece é que a empresa encontra dificuldade para investir o excedente econômico que resultará do uso de sua capacidade instalada além de certo ponto. Com efeito, o reinvestimento no próprio setor, à medida que se configure capacidade ociosa, se tornará ruinoso - o que implica desvalorizar os saldos monetários de caixa. As demoras nas buscas de outras oportunidades de investimento, nas condições da inflação, implicam novo fator de desvalorização dos saldos monetários livres.

Já vimos que, ao cabo de anos de crise, a economia tenderá a habilitar outro setor, ainda sem capacidade produtiva ao nível do mercado, mas, enquanto isso não acontece, os investimentos tenderão a manter-se ruinosos, não sendo surpreendente, pois, que as empresas do anterior setor dinâmico e de todas as atividades tocadas de capacidade ociosa busquem limitar sua oferta, rompendo, por esse meio, a equação de trocas. A situação se inverterá quando, afinal, novo grupo de atividades se qualifique a investir a poupança resultante do uso da capacidade ociosa. Então, a taxa de inflação entrará em declínio, como tem regularmente acontecido, o que se pode ver pelas curvas do Gráfico 1, já citado.

O PAPEL DA DÍVIDA PÚBLICA NA RECESSÃO

O período da recessão, isto é, aquele compreendido entre a revelação de capacidade ociosa no setor que, por seus investimentos, na precedente fase de expansão, mantinha a economia em atividade, e a abertura de novas oportunidades de investimentos, em outro setor do sistema, pelos problemas que suscita, impõe ao Estado graves responsabilidades. Compreende-se que a iniciativa privada fique na dependência de que se criem condições propícias aos investimentos, para tomar interesse sério pelo grupo de atividades que deverá emergir como o setor dinâmico ou novo ciclo. Entrementes, porém, ditas atividades carecem de um mínimo de cuidados.

Por exemplo, os grandes serviços de utilidade pública - transportes pesados de carga, transportes de massa de passageiros, energia, serviços urbanos etc. - não poderiam ficar na expectativa de que as atividades correspondentes fossem preparadas para oferecer promissoras oportunidades de investimento e, por essa razão, são convertidos em responsabilidade precípua do Estado. São esses serviços os destinatários finais de quase todos os recursos que estiveram sendo levantados por empréstimo, dentro e fora do país. Mesmo que o Estado quisesse desinteressar-se por eles, a iniciativa privada, como ponta de lança de todo o corpo social, pressionaria para que o mesmo Estado deles cuidasse.

É fácil perceber que, ao fazê-lo, o Estado presta à economia e à sociedade um relevante serviço, visto como assegura o mínimo de desenvolvimento a atividades essenciais. Mas não é tão fácil perceber que o serviço prestado pelo Estado não se limita a isso. Com efeito, o levantamento de recursos para investimento nas atividades a desenvolver, mas pelas quais a iniciativa privada não se interessa ainda, pode ser feito por via fiscal ou pelo endividamento externo. Ou ainda pode ser feito pelo endividamento interno.

O levantamento de recursos por via fiscal, além de encontrar limites relativamente estreitos, porque o corpo social resiste à tributação além de certo ponto, deixa em aberto o problema da utilização da capacidade ociosa, isto é, da “crise” propriamente dita. Embora a redistribuição implícita da renda, que sempre acompanha a variação da carga fiscal, não seja indiferente ao equilíbrio macroeconômico do sistema, os efeitos finais podem revelar-se muito aleatórios, isto é, a redistribuição da renda por via fiscal tanto pode ser conducente a amainar a recessão, como a agravá-la.

O endividamento externo, mesmo nas melhores condições, pode traduzir-se num efeito dumping, privando as atividades tocadas de capacidade ociosa de mercado para sua produção, agravando, implicitamente, a recessão. A suposição corrente de que a entrada líquida de recursos importa em elevação da formação de capital do país, especialmente nas fases recessivas, dificilmente se confirmará. Ao contrário, o efeito dumping deprime o esforço interno de formação de capital, de modo que a formação real de capital não apenas pode não ser maior, como também pode deprimir-se.

Se, entretanto, o Estado se empenha em levantar os recursos destinados aos investimentos nas atividades sob sua responsabilidade, pela via do endividamento interno, as probabilidades de um efeito final anti-recessivo aumentam consideravelmente.

Com efeito, o Estado pode levantar capitais em condições que seriam insuportáveis para a empresa privada. Ora, nas condições recessivas, quando o mecanismo de intermediação financeira não se ajustou ainda ao serviço que dele exigirá o novo ciclo, o mercado de capitais tende a caracterizar-se por acentuada viscosidade, que se exprime, entre outras coisas, por elevadas taxas de juros, não obstante a eficácia marginal do capital obviamente negativa. Em especial, o sistema de garantia revela-se inadequado.

A superação do problema supõe, essencialmente, a adequação do aparelho de intermediação financeira e, em primeiro lugar, do sistema de garantia, às condições do novo ciclo. No curto prazo, porém, vale dizer, nas condições da recessão, importa amenizar os efeitos desta. Noutros termos, as empresas tocadas de capacidade ociosa, aquelas, portanto, habilitadas à produção da parcela decisiva do excedente social, enquanto não chega a hora de assumirem, elas próprias, a responsabilidade pelas novas atividades a desenvolver, carecem de quem absorva os excedentes a resultarem do uso da capacidade ociosa, e esse papel incumbe ao Estado. O aparelho de intermediação financeira do sistema assume a forma de um enorme funil, incumbido de carrear recursos para o setor público, para todos os fins práticos· estruturados em torno do Estado. O aval do Tesouro, indispensável a virtualmente todas as operações de crédito, unifica num só todo:

  1. o orçamento fiscal;

  2. o orçamento das empresas estatais;

  3. o orçamento monetário.

QUAL SERÁ O SETOR DINÂMICO DESTE CICLO?

Uma vez entrada a economia em recessão, devemos saber que todo o sistema entrará a gravitar entre dois polos:

  1. o pólo de ociosidade, isto é, as atividades que, no ciclo transcurso, se estiveram desenvolvendo prioritariamente;

  2. o pólo de anti-ociosidade, ou polo dos estrangulamentos, onde se situam atividades retardatárias, isto é, que ainda não se renovaram tecnologicamente, ou não se expandiram ao nível exigido pelo estágio de desenvolvimento da economia. como um todo, e cujo crescimento entrou a ser exigido imperativamente pelo sistema.

Uma vez precisados esses pontos, o problema de orientar a intervenção do Estado no sentido necessário torna-se muito simplificado. Com efeito, se, por um lado, considerarmos que a economia brasileira acaba de criar uma indústria pesada, vigorosa e modernizada, capaz de dar ao país a parcela decisiva dos equipamentos, desde que tenha acesso à correspondente documentação tecnológica, e, por outro lado, que a economia carece ainda de serviços de utilidade pública, muitos dos problemas a resolver estarão predeterminados. Sabemos, por exemplo, que a colocação no mercado dos produtos da nova indústria pesada exige um aparelho de intermediação financeira que não existe ainda, nem haveria por que existir, dado que os setores anteriormente desenvolvidos não impunham as mesmas necessidades. Como também sabemos que o levantamento do capital para a implantação de um serviço de utilidade pública impõe condições não presentes no caso da implantação de outras indústrias. Esse fio de Ariadne deve levar-nos diretamente ao centro da problemática econômica básica da presente conjuntura.

De certo modo, a própria vida nos formula o problema a resolver, confrontando-nos com uma série de “crises” que, sendo partes da problemática global, ao se resolverem, resolvem o problema geral. Em sua expressão mais simples, temos o Estado sobrecarregado de responsabilidades desproporcionadas com a parcela da renda nacional que, nas condições concretas, ele pode enfeixar em suas mãos; enquanto as empresas privadas, no comando da capacidade ociosa, comandam implicitamente um poder de poupança desproporcionado com as oportunidades de investimento em seu horizonte.

Teoricamente, o problema admite duas soluções:

  1. ao Estado seria transferida parte da capacidade de poupança - que é uma função da ociosidade das instalações produtivas;

  2. à iniciativa privada seria transferida parte das oportunidades de investimento - que é uma função do comando de atividades relativamente retardatárias, vale dizer, dos grandes serviços de utilidade pública.

Seria grave equívoco supor que poderíamos “optar” entre as duas soluções. A verdade é que a primeira saída corresponde a uma possibilidade de escassíssima ou nula probabilidade, nas nossas presentes condições sociais e políticas, ao passo que a segunda reúne, desde já, quase todas essas condições. E não porque isso nos agrade ou deixe de agradar. Em cada uma das nossas “crises” econômicas, de agora em diante, essa alternativa se definirá, com a diferença de que, no longo prazo, as precondições para a primeira irão aumentando, em detrimento da segunda.

Ora, não somos chamados a resolver problemas de longo prazo, mas um problema imediato, cuja solução depende de possibilidades já encarnadas em probabilidade. Uma redistribuição das responsabilidades econômicas entre o chamado setor público e o setor privado deverá ter lugar agora, como tem acontecido nos quadros de nossas crises periódicas. E não se trata de impor artificialmente uma “privatização” do sistema, mas de proceder a uma redistribuição das atividades, entre os dois setores. Até porque a iniciativa privada não poderia aceitar os novos encargos, a menos que o Estado intervenha para criar precondições institucionais para isso. Ao fim, como antes, haverá um setor privado, ao lado do setor público, dialeticamente unidos, isto é, em conflito que não exclui colaboração. Como antes, e como agora. O que importa, porque é isso o que muda concretamente, é saber quais serão as estruturas, os conteúdos, dos dois setores em presença.

Haverá, portanto, estatização de umas atividades e privatização de outras, mas a variável estratégica é a privatização, dado que o movimento em sentido contrário irá sendo imposto pelas necessidades do primeiro. Com efeito, dado que o setor a desenvolver prioritariamente - aquele, portanto, onde se encontram as oportunidades de investimento - são grandes serviços de utilidade pública, seria ingenuidade supor que isso poderia fazer-se nas presentes condições jurídico-institucionais e econômicas. Ora, isso supõe a aceitação de novas responsabilidades pelo Estado e isso, afinal, implicará recomposição do setor público do sistema econômico brasileiro. Acontece, porém, que, enquanto o movimento privatizante deve fazer-se com certa violência, nas condições da crise, o movimento estatizante deverá fazer-se paulatinamente, nos quadros da recuperação econômica que se deve seguir à presente crise, já em seus momentos finais.

POR QUE A PRIVATIZAÇÃO DOS SERVIÇOS DE UTILIDADE PÚBLICA?

Os atuais serviços de utilidade pública da economia brasileira, sem os quais não teria sido possível a industrialização do país, nasceram, geralmente, como serviços públicos concedidos a empresas privadas, quase sempre estrangeiras. Nem teria sido possível outro modo, dado que, no anterior estágio de desenvolvimento, a economia brasileira não supria ainda os insumos necessários à implantação de tais serviços. Todos os mais velhos devem estar lembrados de que a Light, para implantar os serviços de bondes em nossas grandes cidades, teve que importar, desde o equipamento pesado para a geração e o transporte de energia, para o lançamento das linhas, até os próprios carris. Teve que importar também portugueses e barbadianos para tripular esses carris, dado que o Brasil não produzia homens com as qualidades exigidas.

Os tempos se passaram, porém, e o Brasil foi-se tornando capaz de uma “nacionalização” objetiva dos serviços. Foi um processo longo e complexo, no correr do qual fomos aumentando paulatinamente a participação da economia brasileira no suprimento dos referidos insumos: desde novos bens de produção, a novos homens. E, para financiar a parcela nacionalizada do custo de produção, o Estado foi chamado a comparecer, com recursos fiscais; não somente os recursos fiscais propriamente ditos, mas também com uma sobre tarifa, à qual não correspondia nenhum custo e que, por isso mesmo, era um imposto de fato. Havia em nossa legislação leis e decretos que não passavam de transposição de peças de direito dos países “cêntricos”, mas que estavam destinados a permanecer como letra morta, já que inexistia aqui o mercado de capitais que buscavam reger.

Como reflexo da mudança da origem objetiva dos fatores de produção, um serviço público após outro foi sendo convertido no que os juristas chamam serviços públicos de administração direta, ou régies directes. Uma formação necessariamente provisória, porque esse enquadramento dificulta uma administração eficaz, com base na consciência dos custos e dos benefícios do serviço. Paulatinamente, as régies directes foram sendo convertidas· em empresas públicas, com o resultado que chegaria aos nossos dias como o instituto do serviço público concedido à empresa pública.

Na raiz desse instituto vamos encontrar uma contradição fundamental, isto é: o Estado é, ao mesmo tempo, poder concedente e concessionário. O significado prático dessa contradição reside no fato de que, nas operações de crédito do setor, fica excluído ou ilusório o uso de garantia real, isto é, hipotecária. Com efeito, tratando-se de um serviço de utilidade pública, fica vedado, de plano e de fato, o comprometimento do seu ativo imobilizado, seja para alienação, seja para garantia, salvo para o Estado - ou, como dizem os juristas franceses, hormis le roi. Ora, sendo o Estado o concessionário, não procede, no caso, essa exceção.

Por outras palavras, enquanto estiver esse instituto em vigência, os serviços ficarão na dependência de recursos fiscais, para sua expansão. Como já ficou dito, teríamos recursos fiscais formais, cobrados pelos guichês do Tesouro do Estado, ou de fato, como sobre tarifa autorizada pelo poder concedente.

Isso não quer dizer, naturalmente, que tais serviços públicos não possam recorrer ao crédito, para levantar recursos de terceiros, mas, simplesmente que, como será necessário comprometer recursos fiscais, o aval do Tesouro é de rigor. Todo o sistema de intermediação financeira tenderia para a situação atual, na qual tudo depende de sobredito aval, fundindo num só todo indivisível as finanças do setor público ou, como dizemos nós, os três orçamentos.

Nenhuma ficção legal ou administrativa pode tirar-nos desse atoleiro, que não passe pela conversão da concessão do serviço público à empresa pública, noutra coisa.

A inadequação dessa instituição é o responsável último pelo nosso endividamento descomunal, o qual é, em primeiro lugar, endividamento do Estado e, em segundo lugar, endividamento do setor público da economia ou, como costumamos dizer, das estatais.

ERRADO OU CERTO?

A estatização dos serviços de utilidade pública, primeiro sob a forma de serviços públicos de administração direta e, subsequentemente, como serviços públicos concedidos a empresas públicas, teria sido acaso um erro?

Não foi, por certo, acidental o fato de que a produção de eletricidade brasileira, entre 1955 - época da moderna legislação sobre energia elétrica, que conduziria à implantação da Eletrobrás, o protótipo das empresas públicas concessionárias de um serviço público - e 1981, cresceu 13,6 vezes enquanto a produção mundial de eletricidade crescia 7,5 vezes; que a produção de aço brasileira crescia, entre 1955 e 1980, 13,1 vezes, e a mundial 3,2 vezes: que a produção brasileira de cimento expandia-se 9,2 vezes, e a mundial 4,6 vezes.

O desempenho da economia brasileira torna-se ainda mais satisfatório se compararmos nosso Produto Bruto com o do mundo e das grandes regiões. Com efeito, nosso Produto Bruto, nos mesmos 25 anos, de 1955 a 1980, cresceu 6,2 vezes, contra 3,1 do mundo, 2,6 do mundo capitalista desenvolvido, 2,6 da América do Norte e o mesmo na Europa Ocidental. Nossa produção industrial cresceu 7,1 vezes, contra 3,8 do mundo, 2,9 do mundo capitalista desenvolvido, 2,5 da América do Norte e 2,9 vezes da Europa Ocidental.

Independe de demonstração que isso não teria sido possível se os grandes serviços de utilidade pública, atualmente em crise, não tivessem estado satisfatoriamente estruturados ao longo do referido quartel de século, vale dizer, se sua estruturação como serviços públicos concedidos a empresas públicas não fosse fecunda, não obstante a contradição que os trabalhava por dentro.

Durante um longo período, os serviços em causa puderam desenvolver-se à base dos recursos fiscais que iam sendo coletados e que podiam ser antecipados pelo crédito, tanto interno como externo, sem outra garantia senão o aval do Tesouro Público. Tanto mais quanto a empresa privada tinha outras oportunidades de investimento abertas no seu horizonte. Durante esse quartel de século, as cidades brasileiras foram reconstruídas, sob a pressão de uma explosão demográfica que, no fim do período, as fazia crescer ao ritmo de quase três milhões de novos citadinos por ano; foram pavimentados quase cem mil quilômetros de rodovias; milhões de veículos automotores de produção nacional transitavam por essas rodovias etc.

Atualmente, à iniciativa privada não é mais necessário apenas que o Estado cuide dos serviços de utilidade pública. Para ela tornou-se indispensável que esses serviços sejam reestruturados, a fim de que ela possa assumir a responsabilidade por parte deles. Somente assim poderão ser criadas oportunidades de investimento à altura do seu poder de gerar poupança, pelo uso da capacidade produtiva já criada e parcialmente ociosa.

Com efeito, a ausência de oportunidades de investimentos ao alcance da iniciativa privada é o que a leva a deixar ociosa parte de sua capacidade produtiva e, por sua vez, é a contração da oferta, que disso resulta, que responde pela inflação: uma inflação que, como já ficou dito, ocorre, não nos períodos de aquecimento da economia, quando a demanda é máxima, mas nos períodos recessivos, quando dita demanda é mínima.

A solução do problema deverá sobrevir da reestruturação institucional dos grandes serviços de utilidade pública, convertendo-os em oportunidades de investimento para a iniciativa privada. Entrementes, será mister oferecer à dita iniciativa privada uma participação indireta no processo de formação de capital dos serviços de utilidade pública, via subscrição dos papéis de crédito do governo: tanto dos papéis emitidos diretamente pelo Estado, como dos emitidos pelas empresas públicas concessionárias de serviços públicos, com o aval indispensável do mesmo Estado.

Podemos concluir, portanto, que o enquadramento jurídico que, a partir dos anos 50, estivemos oferecendo aos nossos serviços de utilidade pública foi francamente fecundo e eficaz; mas isso não quer dizer que suas possibilidades não estejam esgotadas, pelo menos para parte dos ditos serviços. Trata-se de oferecer novo enquadramento que, ao mesmo tempo, rejuvenesça o setor e abra ao sistema econômico oportunidades de investimento à altura da presente capacidade de formação de capital do país.

A SUPERAÇÃO DA CRISE

A crise brasileira atual é mais complexa que as crises decenais ou juglarianas que a precederam e que têm inflamado nossa vida política aproximadamente pelos anos 3-5 de cada decênio. É que a implantação do capitalismo industrial se aproxima de sua conclusão, de modo que a próxima (acaso já começada?) recuperação será, ao mesmo tempo, repetitiva e inovadora. O parque industrial brasileiro está virtualmente integrado, faltando apenas certos serviços de utilidade pública, do tipo reconstrução do sistema ferroviário, implantação de uma rede de gasodutos (para o transporte de gás natural ou do gás de usina obtido do carvão e do xisto, dependendo dos acidentes geológicos), implantação dos metropolitanos para o transporte de passageiros em pelo menos uma dúzia de cidades etc.

Resumindo, o que podia ser feito, com base nas garantias reais convencionais, ou foi feito, na medida indispensável neste estágio, ou está-se encaminhado. As atividades correspondentes, inclusive as responsáveis pelo suprimento dos bens de produção (a indústria pesada, a construção civil e a agricultura de exportação) não apenas estão implantadas, como sobrecarregadas de capacidade ociosa. Somente os serviços de utilidade pública ou não se desenvolveram suficientemente, ou se desenvolveram ao custo de um endividamento externo e interno insuportável. Ora, tais serviços carecem tanto, ou mais, do instituto da correção monetária, dado que sua implantação tem que ser feita nas condições da inflação, quanto todas as outras atividades supridoras de bens duráveis. Mas isso não basta, sendo necessário inovar no sentido de permitir o uso dos institutos jurídicos que enquadram a garantia real.

Ora, sendo os bens que integram o imobilizado dos serviços de utilidade pública inalienáveis de fato e de direito, salvo para o Estado, cria-se urna situação sui generis, isto é, tais serviços devem ser privatizados, ou seja, o instituto da concessão de serviço público à empresa pública deverá ceder o passo à concessão do serviço público à empresa privada. Isso não quer dizer que o Estado se deva afastar dessas atividades, mas que deve preparar-se para o desempenho de novas funções. Com efeito, somente sendo privado o concessionário, o imobilizado dos serviços pode ser dado seriamente em garantia, isto é, dado ao Estado, em troca da acceptance dos seus papéis de crédito. Em resumo, em troca da hipoteca dos bens pertencentes ao concessionário e comprometidos na prestação dos serviços, o Estado comparecerá com o seu aval.

Aparentemente nada haverá mudado, visto como, desde já, esse aval é obrigatório, mas devemos estar advertidos de que essa aparência de não-mudança é ilusória em nossa história. De fato, ter-se-á criado uma relação de direito radicalmente nova. Com efeito, o novo aval trará consigo, não o simples comprometimento de recursos fiscais e parafiscais futuros, como agora, mas uma situação tal que o Estado, como credor hipotecário, poderá tomar os bens ao concessionário inadimplente, executando a hipoteca e, como poder concedente, tomar-lhe a concessão, que poderá ser negociada com outro concessionário em perspectiva. Esses casos de inadimplência não devem ser frequentes. Bastará que não exista a expectativa de impunidade.

Isso responde pela parte por assim dizer conservadora da mudança, visto como, no essencial, ter-se-á, como de tantas outras vezes, qualificado novo grupo de atividades a receber os investimentos dos recursos levantados pelo uso da capacidade ociosa acumulada no restante do sistema econômico. Será uma reforma da mesma família da que criou a correção monetária, nos anos 60; da que, pelo leilão de câmbio, abriu a porta à indústria pesada nacional, nos quadros do Programa de Metas; da que, nos anos 30, investiu o Estado no virtual monopsônio-monopólio da divisa etc.

Entretanto, como já ficou dito, isto será apenas parte da mudança em perspectiva. Por um lado, o surgimento do capitalismo financeiro brasileiro exigirá crescente medida de planificação do comércio exterior, o que não pode ser obtido senão através de forte medida de estatização do setor. Essa estatização deverá resultar das pressões da própria iniciativa privada sobre o governo. Finalmente, há tempos que o problema da terra, no Brasil, tomou a forma de um problema financeiro. Assim, a configuração gradativa do novel capitalismo financeiro trará em seu bojo uma reforma agrária, nada menos. Noutros termos, a reforma agrária que não precedeu a industrialização, como julgávamos nós, os revolucionários dos anos 30, terá que vir agora, como coroamento da mesma industrialização.

O PAPEL DO APARELHO ESTATAL DE INTERMEDIAÇÃO FINANCEIRA

No processo geral de suprimento de recursos aos serviços de utilidade pública via antecipação de recursos fiscais futuros alocados aos mesmos serviços, estivemos criando uma complexa rede de instituições públicas de investimento, notadamente os bancos de desenvolvimento, com o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) à frente. Uma das funções mais importantes dessas instituições foi a administração do que podemos chamar poder de aval do Estado. Como já ficou dito, já que a única coisa que as empresas públicas concessionárias de serviços públicos podem oferecer ao credor são suas receitas líquidas futuras, as quais têm caráter claramente fiscal, o aval do Estado é de rigor.

A generalização do uso do poder de aval - sem a qual, nem os nossos serviços de utilidade pública teriam tido o desenvolvimento que tiveram, no último quartel de século, nem a economia poderia ter tido o desenvolvimento que teve, um dos mais brilhantes em toda a experiência mundial - essa generalização representou uma clara violência ao direito que rege nossas finanças públicas. Com efeito, esse expediente vai convertendo o orçamento do Estado em matiêre votée - isto é, a matéria decidida a priori, subtraindo à decisão do Poder Legislativo o orçamento, ou melhor, os orçamentos do Estado, convertendo em letra morta o princípio da anualidade orçamentária.

Isso não é dito por amor ao puro formalismo jurídico, mas para o fim de tornar claro que um novo direito esteve sendo implantado, transformando o direito-positivo vigente em letra morta. Boa parte do ilegalismo que, com a ditadura militar, caiu sobre a sociedade brasileira, tem essa origem, isto é, o fato de que, com o direito formalmente vigente, o país ter-se-ia tornado ingovernável. Nessas condições, deve ficar claro que um retorno puro e simples à legalidade, da qual nos apartamos há dois decênios, seria simplesmente inconcebível. O novo legalismo deverá enquadrar e facilitar, não bloquear, o desenvolvimento econômico nacional.

A superação da presente crise supõe o aparecimento de um aparelho de intermediação financeira de corte novo, voltado para a solução dos problemas do empresariado industrial, a classe que se esteve desenvolvendo prioritariamente e conduzindo o desenvolvimento de toda a sociedade brasileira, em aliança com o latifúndio feudal. Ora, o problema fundamental com o qual se defronta o capitalismo industrial brasileiro é a sua capacidade ociosa, problema esse agravado pelo dumping levado a cabo pelo capitalismo financeiro dos países cêntricos. Não raro a indústria pesada nacional perde a competição com a indústria pesada cêntrica, não por problemas de qualidade ou preço, mas pelo fato de que, enquanto o produto estrangeiro nos chega financiado, o nosso teria que ser pago a vista. Ora, para fazer frente a esse problema, cuja solução é essencial para que o potencial produtivo nacional possa ser posto em evidência, o sistema estatal de intermediação financeira que esteve sendo implantado paulatinamente, no passado quartel de século, a começar pelo BNDES, terá que desempenhar função-chave. A começar, como já ficou dito, pela administração do poder de aval do Estado.

A nova etapa a abrir-se em nosso processo de industrialização supõe, por um lado, o financiamento dos novos investimentos - especialmente nos grandes serviços de utilidade pública, como já vimos - e, por outro, o acesso à tecnologia que se esteve cristalizando neste pós-guerra, nos países mais desenvolvidos, tanto do mundo capitalista, como do socialista. É isso o que torna possível nossa saída da fase “b” do 4º. Ciclo Longo. Com efeito, os países mais desenvolvidos, para retomarem seu impulso perdido, terão que aguardar o amadurecimento de uma tecnologia novíssima, por comparação à que vem sendo implantada neles, ao passo que essa tecnologia nova dos países de vanguarda, sendo, em geral, muito superior à que informou a primeira etapa de nossa industrialização, representa para nós o que a tecnologia novíssima deverá representar, quando estiver amadurecida para aplicação, àqueles países.

É função do capitalismo financeiro resolver não somente o problema de reunir recursos monetários livres para investir, mas também o do acesso à tecnologia que deve ser encarnada aos novos investimentos.

O PROBLEMA DA TAXA DE JUROS

Ao serem estruturados os serviços de utilidade pública como serviços públicos concedidos a empresas públicas, há cerca de um quartel de século, vigia no mercado financeiro uma situação caracterizada pelas taxas negativas de juros reais, isto é, as taxas de juros cobradas formalmente, ou como descontos concedidos a papéis do tipo letras de cambio, eram claramente menores do que as taxas de inflação observadas. Noutros termos, se o Estado - ou as empresas públicas concessionárias de serviços públicos - levantava empréstimos ou outras antecipações de suas receitas futuras, na verdade expandia suas receitas reais. Com efeito, o resgate futuro das dívidas envolvia um desembolso real, isto é, uma correção monetária, como dizemos hoje, menor do que as antecipações obtidas.

A taxa negativa de juros reais não deve ser considerada, em princípio, como anomalia. Com efeito, a eficácia marginal do capital para uma empresa que se deixa surpreender pelo acúmulo de capacidade ociosa é claramente negativa e, ceteris paribus, é para essa eficácia que se deve orientar a taxa de juros. Ora, como a capacidade ociosa é, hoje, um fenômeno ainda mais generalizado do que antes, o fato de ter a taxa de juros evoluído para valores não apenas positivos, como também insuportavelmente positivos, carece de explicação, pois é claro que a cláusula ceteris paribus foi retirada. Efetivamente, se algo de anômalo há, em tudo isso, não é a taxa negativa de juros reais de há vinte e poucos anos, mas apresente taxa violentamente positiva, a ponto de tornar virtualmente impossível estabelecer, com base nessa taxa, as tarifas dos serviços de utilidade pública. A crise do Sistema de Habitação tem essa origem. Por que, então, como agora, a eficácia marginal do capital era negativa?

Entre as causas que contribuíram para que a taxa real de juros se tornasse tão insuportavelmente positiva, inclusive para os papéis do Estado, deve ocupar lugar de proeminência o fato de que o principal devedor, a saber, o setor público, não tem outra garantia a oferecer além do aval do Tesouro. Não um aval lastreado por uma reconhecida solvabilidade desse Tesouro, mas um aval de valor discutível, ante a evidente insolvência deste. Com efeito, se antes, há vinte anos, o levantamento de empréstimos pelo Estado implicava aumento da receita real do Tesouro, na medida da negatividade das taxas reais de juros, hoje a mesma operação implica um forte desconto das receitas futuras.

Pode lançar alguma luz sobre este problema o exame dos debates, na Câmara dos Deputados, do Projeto de. Decreto Legislativo no. 156-A - 1962 (em Anexos). Esse projeto propunha o lançamento de títulos destinados a captar para o Tesouro o diferencial de valor representado pela negatividade da taxa real de juros. Eventualmente, dito projeto foi rejeitado, pelo óbvio motivo de que a maioria dos deputados componentes da Seção da Comissão Especial no. 7, da referida Câmara, não desejava ver fortalecido o governo João Goulart; mas, uma vez deposto esse governo, o motivo do projeto foi retomado e, como esperavam os inspiradores deste, com resultados muito brilhantes, pois a eles não é estranho o desempenho da economia nacional, no período coberto, quando o PIB e a Produção Industrial cresceram cerca de 8,1 por cento ao ano (1963-80). Não há comparação possível entre o lançamento de títulos proposto por aquele projeto - 200 bilhões de velhos cruzeiros ou 200 milhões de cruzeiros novos, no valor de 1980, de perto de 50 bilhões de cruzeiros - e as muitas dezenas de trilhões da dívida interna governamental desse mesmo ano. Noutros termos, os inspiradores do projeto não se haviam equivocado, nem quanto à potencialidade do mercado, nem quanto aos efeitos que de sua exploração deviam ser esperados.

Entrementes, a situação mudou-se radicalmente. O aval do Tesouro foi explorado abusivamente e a taxa negativa de juros reais converteu-se na taxa violentamente positiva que é do conhecimento geral. Até mesmo a captação de recursos pelas cadernetas de poupança pagava juros reais fortemente positivos, enquanto o seu equivalente de há vinte anos - os depósitos em cadernetas da Caixa Econômica - tinham seus juros limitados pela Lei de Usura a uma fração da taxa de inflação.

Teria sido um erro não utilizar aquela oferta de capitais, mas seria agora um erro não menor jogar na possibilidade de que essa cornucópia poderá jorrar indefinidamente. No entanto, enquanto o mercado de capitais não revela condições para uma taxa de juros mais próxima da eficácia marginal do capital, ao Estado incumbe continuar a explorar a oferta de recursos, embora às taxas violentamente positivas de juros aos quais ela é feita.

O CURTO E O LONGO PRAZOS

Este problema, que é, afinal, a questão que nos ocupa neste seminário, pede soluções diferentes, conforme o abordemos do curto ou do longo prazo. O curto prazo, que não é mera questão de tempo matemático, mas da constância dos parâmetros, deve supor a continuidade de juros fortemente positivos. Noutros termos, deve o Estado continuar a levantar recursos nesse mercado, mesmo sabendo que, às taxas de juros vigentes, esse expediente importará em forte desconto das receitas futuras?

Com efeito, a empresa privada não poderá arcar com tais juros, visto como no seu horizonte escasseiam verdadeiras oportunidades de inversão, isto é, aplicações que prometam rentabilidade comparável com as taxas de juros implícitas. Consequentemente, se o Estado, através dos seus bancos e de sua participação no aparelho de intermediação financeira, em geral, levanta recursos para financiar a iniciativa privada, deve transferi-los com forte subsídio. Se os levanta para formar o capital dos serviços de utilidade pública sob sua responsabilidade, deve saber que, dada a elevada razão capital/produto, característica de tais serviços, o Tesouro Público - estadual, federal ou municipal - deverá absorver parte importante do custo do capital. É simples questão de bom senso que nenhuma tarifa de serviço público possa remunerar capital levantado a taxas reais de juros de 30 por cento, por exemplo.

Será mister, portanto, criar condições para juros mais módicos e estou convencido de que, sem a regeneração do instituto da garantia, isso não será possível. Entrementes, levanta-se o problema de saber se, no curto prazo, isto é, vigentes os presentes parâmetros, deve o Poder Público insistir em recorrer ao mercado de capitais, no lato sentido desta expressão.

Sou de parecer que sim. Este gênero de operações deve ser encarado não como uma fonte parafiscal de recursos para o Tesouro, que já vimos que deixou de ser, mas como um serviço prestado pelo Estado à sociedade, mesmo onerosamente para ele próprio. Com efeito, é ilusório supor que, por falta de outros tomadores para os recursos, se o Estado se recusa a pagar o preço pedido no mercado pelo capital, o poupador não terá alternativa senão baixar a taxa de juros. Isso pode acontecer, por certo, em brevíssimo prazo, isto é, enquanto a massa de poupança à busca de aplicação for uma grandeza preestabelecida. Mas a iniciativa privada poderá buscar outra solução - e o faz frequentemente-, isto é, limitar o uso da capacidade produtiva instalada; nesse caso, o reerguimento da taxa de juros não será a única consequência. A taxa de inflação poderá exacerbar-se, concomitantemente.

É provável que a opção entre o curto e o longo prazos esteja fadada a ter vida muito curta. A regeneração do instituto da garantia - que deve passar, como vimos, pela privatização de parte dos serviços públicos concedidos à empresa pública, não poderá ser postergada por muito tempo, até porque o Estado não poderá arcar com os ônus da solução alternativa.

  • JEL Classification: E32; D43.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 1985
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