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A invenção do subdesenvolvimento

The invention of underdevelopment

RESUMO

O autor resgata a teoria do desenvolvimento para ilustrar as diferenças notáveis entre os padrões e resultados da acumulação capitalista nas regiões centrais e periféricas. Enquanto nas primeiras o resultado foi o aumento dos salários e da qualidade de vida, conclui que nas regiões periféricas houve o recrudescimento das desigualdades sociais e dos padrões de dominação, para, a partir dessas reflexões, estabelecer o conceito de subdesenvolvimento e refletir meios de superá-lo.

Palavras-chave:
Teoria do desenvolvimento econômico; subdesenvolvimento; centro e periferia

ABSTRACT

The author recalls the development theory to illustrate the notable differences between the patterns and results of capitalist accumulation in central and peripheral regions. While in the former the result was an increase in wages and quality of life, he concludes that in the peripheral regions there has been an upsurge in social inequalities and patterns of domination, in order to, based on these reflections, establish the concept of underdevelopment and reflect ways of overcoming it.

KEYWORDS:
Theory of economic development; underdevelopment; core and periphery

É quando a capacidade criativa do homem se volta para a descoberta de suas próprias potencialidades, quando se empenha em enriquecer o universo de que participa, que cabe falar de desenvolvimento, o qual somente se efetiva quando a acumulação conduz à criação de valores que se difundem na coletividade. A ciência do desenvolvimento preocupa-se com dois processos de criatividade. O primeiro diz respeito à técnica, ao empenho do homem de dotar-se de instrumentos, de aumentar sua capacidade de ação. O segundo refere-se ao significado de sua atividade, aos valores com que o homem enriquece seu patrimônio existencial.

Nada é mais característico da civilização industrial do que a canalização privilegiada da capacidade inventiva humana para a criação de técnicas, ou seja, para abrir novos caminhos ao processo de acumulação, o que explica sua formidável força expansiva. E também explica por que, no estudo do desenvolvimento, o ponto focal dominante foi a lógica da acumulação.

Mas foi como rejeição de uma visão simplificada do processo de difusão geográfica da civilização industrial que emergiu a Teoria do Desenvolvimento, cujo campo central de estudo são as malformações sociais engendradas durante esse processo de difusão. A denúncia do falso neutralismo das técnicas deu visibilidade à face oculta, mas dominante, do processo de desenvolvimento, que é a definição dos fins, a criação dos valores substantivos.

A teoria do desenvolvimento traduz a tomada de consciência das limitações impostas ao mundo periférico pela divisão internacional do trabalho que se estabeleceu com a difusão da civilização industrial. O primeiro passo consistiu em perceber que os principais obstáculos à passagem da simples modernização mimética ao desenvolvimento propriamente dito cimentavam-se na esfera social. O avanço na acumulação nem sempre produziu transformações nas estruturas sociais capazes de modificar significativamente a distribuição da renda e a destinação do novo excedente. A acumulação, que nas economias cêntricas havia conduzido à escassez de mão-de-obra, criando as condições para que se dessem a elevação dos salários reais e a homogeneização social, produziu nas regiões periféricas efeitos totalmente diversos: engendrou a marginalização social e reforçou as estruturas tradicionais de dominação ou substituiu-as por outras similares. Em verdade, a acumulação periférica esteve de preferência a serviço da internacionalização dos mercados, que acompanhou a difusão da civilização industrial.

O conceito de dependência tecnológica permite articular os distintos elementos que estão na base desse problema. O desenvolvimento tecnológico é dependente quando não se limita à introdução de novas técnicas, mas impõe a adoção de padrões de consumo sob a forma de novos produtos finais que correspondem a um grau de acumulação e de sofisticação técnica que não existem na sociedade em questão.

Uma melhor compreensão dessa problemática permitiu que fossem formuladas algumas questões e abertas novas linhas de reflexão sobre o subdesenvolvimento. Que possibilidade existe de se ter acesso à tecnologia de vanguarda da civilização industrial, escapando à lógica do atual sistema de divisão internacional do trabalho? Ou melhor: até que ponto essa tecnologia pode ser posta a serviço da consecução de objetivos definidos autonomamente por uma sociedade de nível de acumulação relativamente baixo e que pretende a homogeneização social? Seria a dependência tecnológica simples decorrência do processo de aculturação das elites dominantes nas economias periféricas? É possível ter acesso à tecnologia moderna sem submeter-se ao processo de mundialização de valores impostos pela dinâmica dos mercados? Pode-se evitar que o sistema de incitações, requerido para alcançar os padrões de eficiência próprios da técnica moderna, engendre crescentes desigualdades sociais nos países de baixo nível de acumulação?

A reflexão suscitada por essa temática vem permitindo circunscrever melhor o campo do estudo do subdesenvolvimento. De um lado, apresentam-se as exigências de um processo de mundialização, imposto pela lógica dos mercados, que está na base da difusão da civilização industrial. De outro, configuram-se os requerimentos de uma tecnologia que é fruto da história das economias centrais e que exacerba sua tendência original a limitar a criação de empregos. Por último, estão as especificidades das formas sociais mais aptas para operar essa tecnologia, ou seja, as formas de organização da produção e de incitação ao trabalho, as quais tendem a limitar a possibilidade de recurso aos sistemas centralizados de decisões.

A superação do subdesenvolvimento implica a tentativa de encontrar resposta para essas múltiplas questões. O que se tem em vista é descobrir o caminho da criatividade em nível dos fins, lançando mão dos recursos da tecnologia moderna, na medida em que isso é compatível com a preservação da autonomia na definição dos valores substantivos. Em outras palavras: como efetivamente desenvolver-se a partir de um nível relativamente baixo de acumulação, tendo em conta as malformações sociais incentivadas pela divisão internacional do trabalho e os constrangimentos impostos pela mundialização dos mercados? Como ter acesso à tecnologia moderna sem deslizar em formas de dependência que limitam a autonomia de decisão e frustram o objetivo de homogeneização social?

É possível resumir em três modelos as tentativas mais significativas de superação do subdesenvolvimento nesta segunda metade do século XX.

1. COLETIVIZAÇÃO DOS MEIOS DE PRODUÇÃO

Esse primeiro projeto baseou-se no controle coletivo das atividades econômicas de maior peso, fosse em nível das unidades produtivas (autogestão), fosse em nível nacional (planificação centralizada), ou ainda sob a forma de combinação desses dois padrões de organização coletiva do sistema econômico.

O fundamento do projeto de coletivização tem raízes na doutrina marxista. Por outro lado, dá-se como evidente que as formas de organização social prevalecentes nos países periféricos conduzem à aculturação das minorias dominantes, integrando as estruturas de dominação interna e externa e, consequentemente, excluindo as maiorias dos benefícios do esforço cumulativo. Daí que o crescimento econômico não conduza por si só ao desenvolvimento. Por outro lado, tem-se como certo que a lógica dos mercados não induz às transformações estruturais requeridas para vencer os fatores de inércia que se opõem ao desenvolvimento das forças produtivas a baixos níveis de acumulação. Na realidade, essa lógica propicia a especialização internacional com base nos critérios de vantagens comparativas estáticas. Ora, o excedente produzido por essa especialização e retido localmente estimula a modernização dependente, a qual passa a condicionar o subsequente processo de transformação das estruturas produtivas. A industrialização que emerge da especialização internacional reforça as estruturas sociais preexistentes.

Se a coletivização se funda na autogestão, as pressões para elevar o consumo podem ser consideráveis, o que reduz a possibilidade de acumulação reprodutiva. Se o ponto de partida é a planificação centralizada, a emergência de um poder burocrático totalizante tende a conduzir a um afastamento crescente entre os centros de decisão e a massa da população, portanto, a novas estruturas de privilégios. Ademais, apresentam-se os problemas suscitados pela operação de um sistema econômico regido por decisões centralizadas. Teoricamente, é possível programar as atividades de um conjunto de unidades operativas discretas, articuladas em um só sistema. Mas a coletivização plena transforma essa possibilidade teórica em necessidade prática. As dificuldades que se apresentam em nível de execução do programa são tanto maiores quanto mais baixo for o nível de desenvolvimento das forças produtivas.

Em síntese, as experiências de coletivização dos meios de produção confrontaram-se com dificuldades criadas por problemas de três ordens:

  • (i) o da organização social, que responde pela definição de prioridades na alocação de recursos escassos;

  • (ii) o do sistema de incitações, que concilia o melhor desempenho das atividades produtivas com a desejada distribuição da renda; e

  • (iii) o da inserção na economia internacional, que assegura o acesso à tecnologia e aos recursos financeiros fora das relações de dependência.

2. PRIORIDADE À SATISFAÇÃO DAS NECESSIDADES BÁSICAS

Outra forma de tentar a superação do subdesenvolvimento tem sido privilegiar a satisfação de um conjunto de necessidades que uma comunidade considera prioritárias, ainda que definidas com imprecisão. Parte-se da evidência de que a penetração tardia da civilização industrial conduz a formas de organização social que excluem dos benefícios da acumulação frações consideráveis da população, se não a ampla maioria desta.

A solução desse problema é de natureza política, e exige que parte do excedente seja deliberadamente canalizada para modificar o perfil da distribuição da renda, de forma que o conjunto da população possa satisfazer suas necessidades básicas de alimentação, saúde, moradia, educação etc. Não é esse um problema exclusivo dos países de desenvolvimento retardado, mas é nestes que se apresenta com indisfarçável gravidade. Não há dúvida de que, se se destina uma parcela do incremento do produto de uma economia à eliminação daquilo que se convencionou chamar de pobreza absoluta, esta desaparecerá ao cabo de um certo número de anos. Várias são as formas imagináveis para alcançar esse objetivo: desde reformas de estrutura, como a reorganização do setor agrário, visando à efetiva elevação do salário básico, até a introdução de medidas fiscais capazes de assegurar a redução dos gastos de consumo dos grupos de altas rendas, sem acarretar efeitos negativos no montante da poupança coletiva.

A dificuldade maior está em gerar uma vontade política capaz de pôr em marcha um tal projeto, pois a estrutura do sistema produtivo e o perfil de distribuição da renda se condicionam mutuamente. Modificar essa interdependência implica um custo social que pode ser considerável, não somente em termos de obsolescência de equipamento, mas também de desemprego imediato. Trata-se, portanto, de operação mais complexa do que à primeira vista pode parecer.

Também no plano das relações externas apresentam-se problemas. As economias subdesenvolvidas que se industrializaram com a cooperação das empresas transnacionais utilizam técnicas, e mesmo equipamentos, que já foram abolidos nos países de origem dessas empresas. A reciclagem dos sistemas produtivos em função de padrões de consumo menos elitistas poderá exigir novos investimentos, acarretando elevação de custos. Produz-se, dessa forma, um efeito perverso: a tecnologia requerida para satisfazer as necessidades de uma população de baixo nível de renda pode ser mais cara, pois estará substituindo outra que, se bem mais sofisticada, tem custo de oportunidade zero para a empresa que a utiliza.

3. GANHO DE AUTONOMIA EXTERNA

Uma terceira estratégia para superar o subdesenvolvimento consiste em assumir uma posição ofensiva nos mercados internacionais. Os investimentos são orientados de forma a favorecer setores com capacidade competitiva externa potencial e que tenham ao mesmo tempo um efeito indutor externo. Desse modo, operam como motor da formação do mercado interno. As exportações apoiam-se em economia de escala e/ou avanço tecnológico, e não em vantagens comparativas estáticas. O êxito desse modelo depende de que as atividades exportadoras se mantenham em posição de vanguarda, não tanto na tecnologia de processo, mas na de produtos. É a posição de vanguarda que dá flexibilidade e adaptabilidade à corrente de exportação. O controle por empresas transnacionais das atividades produtivas com potencial de exportação, ao limitar a capacidade de ação na esfera internacional, pode criar obstáculos a esse tipo de estratégia.

O traço principal desse modelo é o ganho de autonomia nas relações externas. Supera-se a situação de dependência e passividade, imposta pelo sistema clássico de divisão internacional do trabalho, para se adotar uma postura ofensiva fundada no controle de certas técnicas de vanguarda e na iniciativa comercial. Esse modelo requer um planejamento seletivo rigoroso e o logro de uma elevada taxa de poupança. O problema que se coloca de imediato é o da identificação das bases sociais de uma estrutura de poder apta a levá-lo à prática. Não serão as elites tradicionais voltadas para a modernização dependente, nem tampouco as maiorias preocupadas em ter acesso imediato a melhoras nas condições de vida. Compreende-se, portanto, que uma tal estratégia conduzirá com frequência a um reforçamento das estruturas estatais de vocação autoritária.

As três estratégias referidas sintetizam as experiências vividas no último meio século pelos países de economia periférica que adotaram políticas voluntaristas de desenvolvimento. O ponto de partida foi sempre a crítica da forma como se vem difundindo a civilização industrial, das situações de dependência criadas pela divisão internacional do trabalho e das malformações sociais geradas na periferia pela lógica dos mercados. O objetivo tático tem sido ganhar autonomia na ordenação das atividades econômicas, visando à redução das desigualdades sociais, que parecem necessariamente segregar a civilização industrial em sua propagação periférica. O objetivo estratégico é assegurar um desenvolvimento que se traduza em enriquecimento da cultura em suas múltiplas dimensões e permita contribuir com criatividade própria para a civilização que se mundializa. No fundo está o desejo de preservar a própria identidade na aventura comum do processo civilizatório.

As experiências referidas deixam claro que, no mundo atual, certas condições devem ser cumpridas pelo país de economia periférica que pretenda superar o subdesenvolvimento. As de maior relevo são:

  • (i) um grau de autonomia de decisões que limite o mais possível a drenagem para o exterior do potencial de investimento;

  • (ii) estruturas de poder que dificultem a absorção desse potencial pelo processo de reprodução dos padrões de consumo dos países ricos e assegurem um nível relativamente alto de investimento no fator humano, abrindo caminho à homogeneização social;

  • (iii) certo grau de descentralização de decisões empresariais requerido para a adoção de um sistema de incentivos capaz de assegurar o uso do potencial produtivo;

  • (iv) estruturas sociais que abram espaço à criatividade num amplo horizonte cultural e gerem forças preventivas e corretivas nos processos de excessiva concentração do poder.

O logro desses objetivos pressupõe, evidentemente, o exercício de uma forte vontade política apoiada em amplo consenso social.

  • JEL Classification: O10.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Out 2022
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 1995
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