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A teoria da “não-universalidade” da teoria econômica

The “non-universality” theory of economic theory

RESUMO

Aceitar que os postulados da Teoria Econômica tenham validade em qualquer país é supor a universalidade da teoria. O exame do processo de formação dos custos do sistema produtivo e das fontes de renda mostra que a imposição de novos componentes de custo na economia traz movimentos de acomodação da renda, por meio da aceleração da inflação até um novo patamar de equilíbrio. No entanto, a nova taxa de equilíbrio dependerá de três fatores: a participação dos novos componentes de custos no PIB; a participação das receitas contratuais, como salários, no PIB; e a periodicidade da correção do rendimento contratual. Esses fatores são diferentes de país para país, refutando a validade da suposição da teoria monetária. Este artigo mostra que é possível concluir sobre a “não universalidade” da Teoria Econômica. Por fim, se é correto admitir que quanto maior a participação das rendas contratuais no PIB mais estável será a economia, então a política de renda seria um fator estratégico para a política de estabilização quando a economia estiver sujeita a choques de custos.

PALAVRAS-CHAVE:
Metodologia da economia; formação de preços; estabilização

ABSTRACT

To accept that the postulates of the Economic Theory have validity in any country is to suppose the universality of the theory. The examination of the process of cost formation in the productive system and of the income sources shows that the imposition of new cost components in the economy brings movements for income accommodation, through the acceleration of inflation up to a new equilibrium level. However, the new equilibrium rate will depend on three factors: the share of the new costs components in the GDP; the participation of the contractual income, like wages, in the GDP; and the periodicity of the contractual income correction. These factors are different from country to country, refusing the validity of the monetary theory supposition. This article shows that it is possible to conclude on the “non-universality” of the Economic Theory. At last, if is correct to admit that the larger the share of contractual incomes in the GDP more stable will be the economy, then the income policy would be a strategic factor for the stabilization policy when the economy is subject to cost shocks.

KEYWORDS:
Economic methodology; price formation; stabilization

IMPLICAÇÕES DA SUPOSTA UNIVERSALIDADE DA TEORIA ECONÔMICA

Admitindo a plena neutralidade científica, seria inevitável a consequente aceitação de que os postulados teóricos incorporados a uma ciência nada mais significassem se não um conjunto harmônico de regras de comportamento de fenômenos observados - de natureza física ou social.

A formulação teórica teria, portanto, o objetivo de fazer conhecidas as inter-relações entre diferentes fenômenos, explicitando as relações de causa e efeito, avançando no sentido de maior clareza e precisão a fim de torná-las passíveis de comprovação - uma condição irrecusável para que fosse preservado o caráter científico das proposições.

Se existem “leis” que explicam o comportamento de diferentes fenômenos, as relações de causa e efeito prevaleceriam independentemente de sua natureza. Ou seja, tais relações existiriam quer quando reguladas por “leis naturais”, quer quando influenciadas por comportamentos nascidos no seio do convívio social.

Aceita a existência de “leis naturais” - agora no sentido mais amplo de que nos diferentes ramos das ciências a determinadas ações se deva esperar, necessariamente, certas reações -- não haveria razões para supor que as relações econômicas também não estivessem subordinadas a regras de comportamento específicas. Regras essas que, inseridas no contexto econômico, não seriam passíveis de anulação pela simples vontade do homem. O que significa dizer que a inter-relação de fenômenos econômicos não pode ser arbitrariamente regulada por normas introduzidas no ordenamento jurídico1 1 Poder-se-ia dizer, por exemplo, que “não se pode revogar a “lei da oferta e procura”. É certo, todavia, que mecanismos institucionais podem centralizar nas mãos do Governo todas as decisões econômicas, como ocorre nas economias planificadas, “insensibilizando” o sistema econômico. ; embora decisões lastreadas no conhecimento das inter-relações possam - mediante determinados estímulos ou desestímulos - “dirigir” o caminho de outras variáveis, já que não existiria um determinismo presidindo as relações de causa e efeito no campo social.

Ora, se a teoria econômica incorpora um conjunto de proposições voltadas à explicação da interdependência entre fenômenos específicos, e se as relações de causa e efeito existentes entre eles não são passíveis de revogação - embora possam ser condicionadas - poder-se-ia concluir, complementarmente, que, “cetaris paribus”, as leis que regulam a economia teriam validade em qualquer continente, em qualquer pais, independentemente de características especificas de uma dada região, ligadas ao estágio de desenvolvimento ou de complexidade das relações econômicas. Postulado que poderia ser muito propriamente designado como a “Teoria da Universalidade da Teoria Econômica”.

Em síntese, a aceitação dessa “nova teoria” significaria admitir que a teoria econômica é neutra, já que apenas descreveria o comportamento dos fenômenos e suas inter-relações; e que, portanto, os seus postulados teriam plena validade em quaisquer circunstâncias. Consequentemente as decisões de política econômica fundadas no conhecimento teórico desaguariam irremediavelmente em determinados resultados, e em resultados certos, em qualquer país, “abaixo ou acima da Linha do Equador?”2 2 Expressão atribuída a um Ministro do Governo brasileiro, que visava gerar convicção na opinião pública de que, a despeito dos maus resultados, a política monetária adotada era correta, porque dera resultados em outros países.

Essas questões vêm a propósito das medidas de política econômica implantadas no Brasil, e em muitos países em desenvolvimento, nos últimos dez anos, desde a quadruplicação dos preços internacionais do petróleo, e que se mostraram não só incapazes de corrigir distorções que o sistema econômico passou a registrar desde então, mas, muito além, passaram a agravar os problemas para os quais as medidas eram apontadas pela Teoria Econômica como a solução.

Muitos exemplos poderiam ser apontados como evidências desse aparente divórcio entre teoria e realidade. Mas agora julga-se suficiente recorrer a apenas um deles para dar uma ideia mais precisa da incompatibilidade apontada. E para isso nada melhor que dirigir a atenção para a política tradicional de controle da expansão monetária, seguidamente utilizada pelo Brasil como instrumento de política econômica, com resultados frustrantes, senão adversos.

De fato, logo após os primeiros reflexos da crise do petróleo, na última década, passou-se ao controle dos meios de pagamento com maior rigor, para conter o processo inflacionário que então se acelerava no Brasil (e em outros países), enquanto paralelamente eram liberadas as taxas de juros dos controles governamentais, sob a suposição de que assim a inflação arrefeceria. Ou, como diz Simonsen:

“Há muito tempo se sabe que uma contração súbita de M provoca uma reação em três etapas: na primeira sobem os juros e a velocidade renda da moeda; na segunda modera-se os juros, mas à custa da queda da taxa de crescimento do produto e da diminuição do mercado de emprego; só na terceira etapa é que se chega à Terra Prometida da diminuição da inflação com o restabelecimento do pleno emprego, após o purgatório das duas primeiras fases”3 3 Simonsen, Mário Henrique. A Teoria da Inflação e a Controvérsia sobre a Indexação. Estudos Econômicos, FIPE/São Paulo, maio/agosto de 1980, pp. 05-55.

O papel funcional do controle monetário compõe um dos elementos de maior importância na visão ortodoxa sobre o funcionamento do sistema econômico. Constituindo um arsenal teórico que tem orientado políticas econômicas supostamente corretivas em uma infinidade de países - desenvolvidos, em desenvolvimento, ou mesmo subdesenvolvidos - especialmente após os desarranjos ocorridos desde 1974, e numa amplitude jamais verificada.

Se a política monetária fundada em postulados “tradicionais” tem encontrado amplo campo de aplicação, especialmente em épocas recentes, geralmente por recomendação - ou, talvez mais precisamente, por imposição - de organismos internacionais, não está ela só. Em verdade, também com base em supostos teóricos marcados pelo tempo, outras políticas têm proliferado desde a primeira metade da última década, tanto em países do Norte como do Sul, voltadas para o ajuste das contas externas e/ou dos distúrbios monetários.

Se a introdução de políticas corretivas comuns, fundadas em diagnósticos padronizados, se materializa tanto nos países ricos como em nações pobres - lastreando-se na suposta neutralidade científica, seria esse o ponto de interesse para investigação. Isto porque a aceitação da “teoria da universalidade da teoria” abstrai quanto à possibilidade de existência de diferenças fundamentais entre distintos países ou regiões; enquanto, em realidade, tais diferenças não só existem, como são marcantes, colocando em xeque hipóteses básicas que sustentam a tese da neutralidade, ou da validade universal das proposições teóricas.

A COMPOSIÇÃO DE CUSTOS E A FORMAÇÃO DAS RENDAS NA ECONOMIA

A compreensão do processo de formação e movimento das rendas, nas economias de mercado, a partir da caracterização dos seus principais componentes, permite desvendar-se um véu de surpreendente amplitude para a análise das diferenciações entre países. E, por uma questão meramente didática, a abordagem inicial será feita não sob a ótica da distribuição funcional da renda, mas sim sobre o ângulo de componentes de custos registrados pelas empresas em cada etapa do processo produtivo.4 4 O conceito de custos aqui adotado inclui a remuneração do capital (lucros e dividendos) e os impostos indiretos (líquidos dos subsídios), equivalendo, portanto, ao valor das vendas.

Recorrendo-se à decomposição dos custos de produção, no conceito mais amplo aqui adotado, pode-se classificar cada um dos componentes em função da forma como se ajusta quando um fenômeno qualquer produza efeitos inflacionários na economia. Para o que os diferentes elementos são distribuídos em dois grupos: aqueles em relação aos quais a empresa não consegue fugir à elevação dos preços de compra (custos) em função dos níveis de inflação observados; e os custos que a empresa não necessita corrigir pari passu com a inflação. Diferentes componentes de custos designados, respectivamente, de “Ad-valorem” (ou Flexíveis) e “Contratuais” (ou Fixos), a seguir identificados:

  • a) Custos “Ad-valorem” (ou Flexíveis)

  • - Aquisição de insumos

  • - Despesas Financeiras

  • - Despesas com Autônomos Qualificados

  • - Despesas com Impostos Indiretos (liq. de subsídios)

  • - Lucros e Dividendos

  • b) Custos “Contratuais” (ou Fixos)

  • - Despesas Salariais

  • - Despesas com Trabalhadores Autônomos Não Qualificados

  • - Despesas com Encargos Sociais

  • - Despesas com Aluguéis

O que se pretende evidenciar é que uma empresa qualquer revela diferentes comportamentos na cobertura dos custos quando um fator qualquer introduza novos componentes de custos na economia, quer esta anteriormente se apresentasse estável ou não em relação aos preços. Alguns são ajustados automaticamente em função da inflação observada; enquanto outros são regidos por “contratos “de periodicidade certa, e consequentemente corrigidos apenas em determinadas datas.5 5 Se isso é perfeitamente compreensível para salários (mais encargos sociais) e aluguéis, pode parecer menos claro em relação aos trabalhadores autônomos não qualificados. O que se admite é que, não possuindo poder de barganha para reagir, tais trabalhadores estão submetidos às mesmas condições de congelamento periódico dos rendimentos, acompanhando a tendência dos salários.

Ora, se se aceita que ao nível das diferentes unidades produtivas os componentes de custos se comportam da forma descrita, então torna-se evidente que iguais “leis” regem o movimento das rendas, já que, afinal, a renda interna, no conceito de custo de fatores, nada mais é se não o valor adicionado nas “n” etapas do processo produtivo, em determinado período. Em consequência as rendas podem ser igualmente classificadas como “Ad-valorem” ou “Contratuais” - embora a precisão metodológica dirigida aos fins procurados requeira que se trabalhe não ao nível de renda interna a custos de fatores, mas sim do PIB global, que inclui os impostos indiretos (líquidos de subsídios) e a parcela de depreciação (que se agrega aos lucros brutos) - ambos de caráter “Ad-valorem”.

O PROCESSO DE ACOMODAÇÃO DAS RENDAS

Admitindo-se que, por extensão, também as rendas e os tributos possam ser classificados em diferentes categorias, segundo a flexibilidade que os caracterize, a identificação que se segue, dos componentes do PIB, surge como mera decorrência do desenvolvimento do tópico precedente:

  • a) Rendas (e Tributos) “Ad-valorem”

  • - Juros e outras receitas financeiras

  • - Rendimentos de Autônomos Qualificados

  • - Rendas de negócios próprios

  • - Lucros e Dividendos (inclusive participação em lucros)

  • - Impostos indiretos (liq. de subsídios)

  • b) Rendas (e Encargos) “Contratuais”

  • - Salários

  • - Rendimento de autônomos não qualificados

  • - Encargos sociais

  • - Rendas de aluguéis.

Pode-se então imaginar que, numa economia em condições de plena estabilidade ou não - dado irrelevante - quando quaisquer circunstâncias venham a determinar uma apropriação adicional de rendas por parte de agentes atuando no sistema (um aumento real dos lucros, ou dos juros, ou dos aluguéis, ou dos salários), ou um aumento nos tributos indiretos, ou uma transferência de rendas para o exterior (em face de aumentos reais de custos de importação), tende-se a observar um movimento nas rendas nominais na forma que os gráficos 1-A, 1-B e 1-C procuram descrever. Ou seja, enquanto o produto global do país “incha” em termos de valor nominal, em face dos mecanismos de repasse de maiores custos para os preços, isso só ocorreu, ao nível dos diferentes “rendimentos” que compõem o produto, com as rendas ditas “Ad-valorem”, de algum modo acompanhando a inflação. Com o que as rendas “contratuais” perdem posição relativa, como se visualiza nos gráficos, o que significa perdas de rendas reais. Fenômeno claramente perceptível quando se lembra que as correções periódicas das rendas contratuais impõem perdas reais no intervalo entre dois reajustes.

Gráfico I
Movimento das rendas quando da introdução de novos componentes de custos no sistema econômico

O que se pretende evidenciar é que se há uma apropriação adicional por parte de detentores de rendas “Ad-valorem”6 6 E isso pode ocorrer ainda, como já mencionado, via aumento nos preços de produtos importados, em face dos efeitos de uma desvalorização cambial concorrencial, encarecendo as importações de bens e serviços e a amortização de empréstimos, e paralelamente transferindo rendas para o exportador e/ou para o consumidor externo. , os mecanismos de mercado alocam perda equivalente nos grupos de rendas “contratuais”. E para isso a inflação se acelerará, atingindo um patamar onde, em determinado prazo (intervalo de tempo entre dois reajustes), as perdas de rendas contratuais, em termos reais - materializadas pela queda da renda média real - representem exatamente o montante de rendas (reais) objeto de apropriação.7 7 Essa tentativa de interpretação dos mecanismos redistributivos dentro das economias de mercado, que atuariam via processo inflacionário mas como resposta a uma prévia apropriação de rendas por determinados agentes que atuam no sistema (internos ou mesmo do exterior), foi desenvolvida inicialmente no texto do autor, “Inflação Brasileira - Um Enfoque Não Ortodoxo” (Notas para Discussão n. 7, UNB/Departamento de Economia, jan. 1977, 17 p. mimeo.); e, posteriormente, em “Inflação - Impulsos de Custos Reversíveis e Não Reversíveis e a Taxa de Inflação de Equilíbrio” (Textos Para Discussão n. 51, UNB/Departamento de Economia, set. 1978, 52 p. mimeo., e revista Estudos Econômicos, FIPE/São Paulo, Vol. 9, 1979, n. 2, pp. 05-45). A presente apresentação constitui uma primeira e ainda parcial revisão e ampliação dos estudos originais.

1. A Taxa de Inflação de Equilíbrio das Rendas - Um Modelo Teórico

Se a inflação tende a se elevar até níveis que provoquem perdas de rendas reais aos detentores de rendas contratuais equivalentes aos ganhos de terceiros, então pode-se dizer que existe uma taxa de inflação - e apenas uma -· que satisfaça essa condição. E que representaria a taxa de inflação de equilíbrio das rendas.

Quais seriam, então, os elementos determinantes para fixação da taxa de inflação de equilíbrio, poder-se-ia perguntar. Questão que pode ser enfrentada sem maiores dificuldades, desde que se raciocine em termos relativos, considerando a importância, em relação ao PIB, das rendas apropriadas por terceiros, da participação das rendas contratuais no PIB global, e da periodicidade observada para correção dos rendimentos contratuais. Essas seriam as variáveis significativas, compondo um modelo matemático simples:

Y a p P I B = Y f x P I B - Y f x / P I B 1 + r / 2 (I)

Renda Apropriada (ou sobrecarga de custos) Rendas Fixas ou Contratuais

Produto Interno Bruto

Taxa de Inflação de Equilíbrio (ou taxa de inflação que equilibra o montante de rendas apropriadas, com a perda de renda real média dos detentores de rendas “contratuais”). Trata-se da taxa de inflação no período “i”, definido este como a periodicidade de correção das rendas contratuais.

O modelo pode ser interpretado, portanto, como expressando a equivalência entre as rendas apropriadas por algum segmento da economia - ou transferidas para o exterior - (o primeiro termo da equação), e a perda de renda real média, entre dois reajustes, nos ganhos do grupo detentor de rendas fixas (contratuais), dado um crescimento anual de preços de “r” por cento - em verdade expresso em decimal (o segundo termo da equação).

Resolvendo (I) tem-se que:

' ' r ' ' = Y f x / P I B Y f x / P I B - 2 Y a p / P I B - 1 (II)

Trata-se de um modelo simplificado, que admite implicitamente:

  • a) que as perdas reais se distribuem uniformemente ao longo do período entre dois reajustes (donde a hipótese incorporada, de que a perda média é igual à metade da perda observada na enésima etapa do período);

  • b) inexistência de inflação no período anterior;

  • - essa hipótese restritiva está vinculada ao modelo simplificado, aqui apresentado. Limitação que pode ser superada por um modelo mais completo, já desenvolvido, mas que ainda revela alguns problemas afetando a sua consistência lógica;

  • c) periodicidade anual na correção das rendas contratuais.

  • - essa hipótese se relaciona à interpretação de ser a taxa de inflação “r” uma taxa anual; ocorre, entretanto, que a taxa de equilíbrio “r” é aquela que necessariamente se materializaria no período “i”, definido este como a periodicidade de correção das rendas contratuais.

  • - caso os reajustes sejam semestrais, por exemplo, a taxa de inflação de equilíbrio, em termos anuais, seria obtida por [(1+r)(1+r)].

  • d) que a taxa de inflação de equilíbrio, em termos de taxa anual, será alcançada apenas quando decorridos doze meses do fato gerador do processo redistributivo. é inevitável que os índices de preços apenas passem a captar plenamente os efeitos redistributivos, para efeito de taxa de inflação anual, quando decorridos doze meses dos “impulsos de custos”; a menos que a periodicidade de correção das rendas contratuais seja diferente de um ano. Para correções semestrais, por exemplo, os efeitos seriam plenamente captados pelos Índices de Preços em seis meses, mas a taxa anual de inflação de equilíbrio dependeria da anualização do aumento observado nos seis meses decorridos desde o fato gerador.

É importante assinalar que, uma vez elevada a taxa de inflação até os níveis de «taxa de equilíbrio”, o patamar inflacionário se estabilizará, a menos que se altere a periodicidade de correção das rendas contratuais, ou que surjam novos fenômenos distributivos de renda; entre os quais não se deve deixar de incluir variações nos preços internacionais das importações, variações nas taxas de juros externos, variações na taxa de câmbio divergentes com a taxa de paridade, como também variações na produtividade, com ganhos (ou perdas) transferidos para os preços; fenômenos que não se relacionam diretamente com a remuneração dos fatores, mas que, pelo mecanismo de repasses, pode refletir negativa ou positivamente sobre os níveis de preços - desde que, evidentemente, não sejam neutralizados por agentes intermediários, impedindo reflexos sobre os preços finais. O que se pretendeu no presente tópico foi, portanto, chamar a atenção para a forma como as economias de mercado alocam perdas de rendas reais nos grupos de rendas contratuais. Bem como pretendeu-se mostrar que existe uma, e apenas uma taxa de inflação de equilíbrio das rendas, que tende a ser inevitavelmente alcançada; influenciada, essa taxa, pela amplitude da parcela do PIB apropriada por terceiros, pela participação das rendas contratuais no produto global, e pela periodicidade observada na correção das rendas contratuais - especialmente a salarial, por ser a mais importante dentro do grupo.

Uma observação complementar é que a recomposição dos “picos” de renda real por ocasião dos reajustes periódicos não impede as perdas impostas às rendas contratuais - já que em verdade as perdas se concretizam em termos de rendas reais médias, figurando os assalariados (e outros componentes do grupo) como perdedores temporários de rendas - até o próximo reajuste; nessa oportunidade, todavia, reinicia-se um novo ciclo, repetindo-se as perdas médias observadas na etapa anterior. É importante assinalar, todavia, que para a estabilidade dos preços o sistema econômico requer perdedores definitivos de rendas reais - posição que os assalariados resistem em assumir, mas nem sempre revelam força suficiente - ou argúcia - para que as perdas definitivas, como preço para a estabilização, sejam assumidas pelos detentores de rendas “Ad-valorem”.

2. Limitações do Modelo Proposto

O modelo desenvolvido apresenta algumas limitações aparentemente passíveis de superação sem grandes dificuldades. Mas registra outras restrições de maior relevo, e que estão sendo trabalhadas visando definir de modo mais preciso algumas hipóteses incorporadas, além daquelas comentadas no tópico precedente. E um caso especial se refere à classificação das rendas em “Contratuais” e “Ad-valorem”.

Em verdade, embora possa parecer plenamente justificável a identificação das rendas (e outras receitas) anteriormente revelada, deve-se admitir que nem sempre as variáveis apontadas podem ter uma classificação rígida, como inicialmente admitido. Observação que se dirige principalmente para Rendimentos de Autônomos Qualificados, Rendas de Negócios Próprios, Lucros/Dividendos/Participações, e Impostos Indiretos - no grupo de Rendas “Ad valorem”, e Encargos Sociais, dentre as chamadas Rendas “Contratuais”.

Em realidade aceitar-se o “mark-up” como regra (ou ganhos proporcionais aos custos, como implícito em Rendas de Negócios Próprios e em Lucros/Dividendos/Participações) podem parecer uma generalização pouco realista para fases em que a economia esteja próxima da estagnação, ou mesmo em depressão, já que se deve admitir que em períodos de dificuldades, com quedas nas vendas, apenas as grandes empresas, geralmente monopolistas ou oligopolísticas, conseguem manter imutáveis as taxas de retomo, enquanto as empresas menores podem chegar aos limites da sobrevivência; fenômeno que deve afetar igualmente os pequenos industriais e comerciantes em atividades autônomas (Rendas de Negócios Próprios), bem como com os Autônomos Qualificados, já que os primeiros ficam indefesos nos períodos de crise, enquanto os últimos veem reduzido o seu poder de barganha.

Em todos os casos assinalados admite-se que o nível de atividades da economia deva aparecer como fator de extrema importância para determinar os movimentos nas rendas reais; em razão do que supõe-se que a classificação mais rígida apenas seria adequada quando a economia estivesse em fase normal de crescimento.

Também nas fases em que a economia se apresente estagnada ou em depressão há uma tendência à sonegação de tributos, donde os impostos indiretos e os encargos sociais devam refletir mudanças - ou recuos - tornando a classificação rígida inconsistente. E, em relação a encargos sociais, embora se vinculem de modo “ad-valorem” a uma renda rígida (contratual) - o que justificaria a inclusão de uma obrigação essencialmente “ad-valorem” no grupo de rendas fixas - em períodos de dificuldades econômicas a relação entre fato gerador e encargos efetivamente recolhidos deva alterar-se, ainda que seja apenas em função de ampliação dos níveis de impontualidade. O que não se pode assegurar, em ambos os casos, é quanto à significância estatística das contribuições eventualmente omitidas, e consequentemente em que medida o modelo matemático ficaria prejudicado pela eventual desconsideração de fenômenos próprios das crises econômicas.

FUNDAMENTOS DA “TEORIA DA NÃO-UNIVERSALIDADE”

Se se aceita que os impulsos de custos introduzidos na economia terão reflexos inflacionários tanto mais significativos quanto maior a “apropriação” em relação ao PIB, ou quanto menor a periodicidade entre dois reajustes de rendas contratuais; e, paralelamente, reflexos tanto menos importantes quanto maior a participação das rendas contratuais no produto global, então pode-se concluir que, se existem diferenças fundamentais entre tais variáveis, entre diferentes países, estariam comprovados os postulados que fundamentam a “Teoria. da Não-Universalidade da Teoria Econômica”. Já que seria impossível negar esta última sem antes ter negado a validade das hipóteses pertinentes ao processo de acomodação das rendas em economias de mercado.

1. Diferenças Fundamentais Entre Economias Avançadas e as Demais Regiões

Se nas economias de mercado à introdução de novos componentes de custos (ou apropriações de renda) o sistema econômico tende a reagir processando mecanismos de ajustamento das rendas, às rendas contratuais dirigem-se as perdas, via elevação do patamar inflacionário. Nesse caso, quanto maior a participação das rendas contratuais na renda global mais facilmente o sistema econômico conseguirá materializar a acomodação das rendas. Isso porque uma sobrecarga igual a 2,0% do PIB, por exemplo, requererá uma taxa de inflação de equilíbrio relativamente baixa se as rendas contratuais corresponderem a 70,0% do PIB; diferentemente de provocar perdas de rendas médias equivalentes a 2,0% do PIB num grupo que detenha apenas 30,0% do mesmo PIB - quando a taxa de inflação necessária à acomodação das rendas teria de ser muito mais elevada, ou mesmo excessivamente elevada. Como procura evidenciar os elementos inseridos na Tabela I, na qual se combina diferentes hipóteses de sobrecarga (“apropriações”) com diferentes hipóteses de participação das rendas contratuais no PIB.

Tabela I
taxa de inflação de equilíbrio das rendas simulações com diferentes hipóteses de apropriações de renda e de participação das rendas contratuais na renda global

Admitindo-se a importância do tamanho das rendas contratuais para a determinação do grau de instabilidade da economia, observa-se que nos países industrializados a melhor distribuição da renda proporciona a existência de relativamente elevada participação das rendas contratuais no global - diferentemente do que se constata nas economias não desenvolvidas, com rendas altamente concentradas, como o registra a Tabela II.

Tabela II
Compensações a empregados, em relação ao PIB por produtores locais a famílias residentes 1980

Embora a. classificação adotada nas estatísticas das Nações Unidas não abranja a plenitude das rendas fixas, compreende as parcelas majoritárias - dispêndios das empresas com salários e remunerações a empregados, seguro social e previdência privada. E, observando-se as discrepâncias entre diferentes países, vê-se que, pela substancialmente mais elevada participação das rendas contratuais, as economias industrializadas se colocam em situação vantajosa para absorver impulsos de custos extraordinários (ou apropriações de rendas) com menor instabilidade interna.

Se em realidade os sistemas econômicos revelam quadros tão discrepantes em variável fundamental, como então aceitar-se que deveriam eles reagir de igual modo diante de iguais fenômenos?

Deve-se imaginar que os diferentes países podem vira sofrer, internamente, impactos não homogêneos, e nem coincidentes no tempo, decorrentes de processos de apropriação de rendas - tais como ligados a uma elevação da carga tributária, ou a um aumento das taxas de juros, ou a um aumento real de salários desproporcional aos aumentos de produtividade. Donde o fenômeno inflacionário em cada país deve necessariamente ser diferente - independentemente das semelhanças e dessemelhanças nas variáveis fundamentais, quais sejam, além da importância do impacto de custos, a proporção das rendas contratuais na renda global e a periodicidade de correção das rendas contratuais. Mas, mesmo quando um mesmo fenômeno provoque a introdução de componentes de custos quase generalizadamente quanto a países - como ocorreu com a “crise do petróleo” - tem-se em realidade condições objetivas diferenciadas, como se procurará evidenciar.

De fato, quando os preços internacionais do petróleo se elevaram substancialmente, no mínimo em duas oportunidades desde 1974, foi bastante diferenciado o impacto de aumento de custos internos - ou de transferência de rendas para o exterior (“imposto petrolífero”) - nos diversos países. Com “apropriações” de rendas que, em relação ao PIB, foram influenciadas pela dependência de petróleo importado, pela evolução dos preços internacionais, e pela forma de reação interna aos aumentos de preços, reduzindo ou não as importações. E pode ser observado na Tabela III que mesmo o fenômeno dos aumentos de preços do petróleo - de reflexos em um grande número de países - representou um “imposto” totalmente diferenciado: enquanto o Japão e a Coréia, dentre os países listados, foram os mais “punidos” em 1974 - com aumentos de gastos de importação superando 3,0% do PIB, o Brasil, a França e Singapura situaram-se numa posição intermediária (“imposto” pouco superior a 2,0% do PIB), e Alemanha, Estados Unidos e Turquia se revelaram menos afetados - especialmente os Estados Unidos, cuja transferência compulsória de rendas foi de apenas 1,24%.

Tabela III
Aumento nos custos de importação de petróleo em termos de% do PIB em 1974

Não se pretende nos estreitos limites do texto discutir os efeitos inflacionários gerados pela chamada crise do petróleo. Mas parece essencial adicionar que além do efeito estabilizador decorrente da maior proporção das rendas contratuais no PIB, os países industrializados dispõem, com exclusividade, de outra frente de estabilidade monetária, que acionam quando, quaisquer sejam as causas, se registra pressão inflacionaria mais sensível: a recessão. E simplesmente porque, com a recessão - que geralmente se liga a políticas econômicas comuns dos países industrializados - restringem-se os mercados para “commodities”, deprimindo os preços internacionais, e assim introduzindo “automaticamente”, mecanismos compensatórios nas economias ricas, com efeitos estabilizadores; o que se verifica já que a inflação - que é um mecanismo redistributivo de rendas acionado a partir de alguma forma de apropriação de rendas que a precede - requer perdas definitivas de rendas reais para que se reverta. E, no caso, as perdas de rendas que agem com grande peso - ao lado dos salários internos - para estabilização monetária das economias desenvolvidas, se transferem para as economias periféricas.

Embora as digressões do parágrafo anterior se fizessem necessárias, não é intenção avançar aqui na discussão mais ampla dos aspectos comentados. Isso porque, a despeito de extraordinariamente importantes para que se possa ter uma visão global dos mecanismos de interdependência econômica internacional, não parecem essenciais ao entendimento do tema central.

2. A Importância de Uma Política de Rendas

Se a componente salarial, ao lado de outras rendas contratuais, desempenha um papel estratégico nas economias de mercado, uma política de rendas voltada para melhor distribuição, especialmente nas etapas de desenvolvimento econômico, e em benefício dos grupos detentores de rendas contratuais, parece essencial. E, o que é relevante, essa proposição não se fundamenta apenas na questão da justiça social, ou para fortalecimento do mercado interno - apelos que nunca sensibilizaram as elites nos países em desenvolvimento - mas sim porque a estabilidade monetária, e consequentemente a própria estabilidade política, depende fundamental e totalmente da distribuição adequada das rendas.

Uma política de rendas deve ocupar, portanto, um lugar de destaque na formulação de metas de política econômica. Questão da maior urgência porque tradicionalmente a política de estabilização tem-se sustentado, nos países em desenvolvimento, na visão monetarista mais ortodoxa; em razão do que, em verdade, a estabilidade dos preços tem sido alcançada especialmente via redução dos salários reais, sob justificativas teóricas abstratas, embora convenientes, e normalmente em esquemas de rígidos instrumentos de controle social. Donde a constatação de que os programas de estabilização - que se seguem a períodos de inflação mais aguda - tendem a ser introduzidos e administrados sob regimes políticos de exceção.

Cabe acrescentar, ainda, que se um programa de estabilização ortodoxo determina redução nas rendas contratuais, diminuindo sua participação no PIB, a cada nova etapa a economia tende a ficar mais sensível a novos desajustes, e estes passam a requerer, a cada momento e ao longo do tempo, taxas de inflação de equilíbrio cada vez mais elevadas. Pois só assim consegue alocar perdas de rendas num conjunto que se vê repetidamente reduzido em relação ao global das rendas.

Em conclusão o que se pretende dizer é que os programas ortodoxos de estabilização geram, ao longo do tempo, um processo crescentemente concentrador de rendas, e um potencial de desestabilização também crescente, de tal modo que a não interrupção do processo tende a levar, em determinado momento - quando novas “apropriações” de rendas venham a se repetir no futuro - a um ponto explosivo. Isso porque já então as taxas de inflação necessárias para a acomodação das rendas se revelariam estratosféricas, dificultando o funcionamento da economia e exigindo rápida reversão, enquanto, paralelamente, o baixo nível das rendas contratuais, especialmente dos salários, já comprimidos em etapas precedentes, não permitem a absorção de perdas definitivas de rendas pelos grupos mais fracos, como sempre impõe o tratamento ortodoxo.

Uma política adequada de rendas não coloca em risco o capitalismo, como supõem os conservadores, principalmente em regiões periféricas. Muito ao contrário, a melhor distribuição é vital à sobrevivência do sistema, especialmente quando a concentração de rendas se aproximou de limites extremos, como é o caso brasileiro.

IMPLICAÇÕES DA INADEQUAÇÃO DA POLÍTICA ECONÔMICA

Como se observou de início, a aplicação de determinadas políticas econômicas se fundamenta na aceitação da internacionalidade da teoria econômica. Ou seja, na plena eficácia dos instrumentos de política econômica, quando determinados fenômenos distorsivos fossem observados em quaisquer países, “abaixo ou acima da Linha do Equador”. Grande parte do texto foi reservado, todavia, a justificar por que a teoria econômica não se aplica, no seu conjunto, igualmente em diferentes nações, dadas diferenciações fundamentais. E ao longo da dissertação ficou implícito, sem que se tenha esgotado as formas de diferenciação, que a estrutura do comércio internacional de cada país também desempenha papel estratégico, já que a evolução dos preços dos “commodities” funciona como mecanismo estabilizador dos preços internos, evidentemente que em favor dos países industrializados, nos momentos de instabilidade monetária.

O que se procurou evidenciar, portanto, e em contraposição ao enfoque tradicional, foi aquilo designado, talvez pretensiosamente, de “Teoria da Não-Internacionalidade da Teoria Econômica”. Ou seja, a não validade universal dos postulados que fundamentam aspectos da teoria econômica. Dos quais alguns serão a seguir comentados.

1. Os Fundamentos da Política Monetária Ortodoxa

As crises de estabilização são tratadas, dentro do enfoque ortodoxo e independentemente das características da estrutura econômica de cada país, sempre como se decorrentes de excesso de demanda agregada, em função do que invariavelmente se acompanhavam de desequilíbrios externos.

Para racionalizar a posição preconceituosa inserida na visão clássica, sempre se encontrou fontes supostamente explicativas dos desajustes observados: déficits públicos, emissão desmedida de moeda, moeda valorizada, ou, finalmente, à falta de outros argumentos, tende-se a apontar, mesmo contrariando evidências, as pressões salariais.

A lógica do raciocínio requer um freio na demanda, para o que a teoria ortodoxa prescreve remédios precisos: a) redução das emissões e da expansão monetária, contendo o crédito em geral, inclusive às atividades produtivas (mas não havia excesso de demanda, ou desequilíbrio de mercado?), e com isso elevando as taxas de juros, visando à contenção da procura para consumo ou investimentos; b) reduzir institucionalmente a demanda oriunda do setor público; c) desvalorizar a moeda a fim de que, paralelamente à geração de excedentes exportáveis em face da redução do consumo interno, e conter-se a demanda por importações (cujos preços se elevaram em face da desvalorização cambial), conceder-se ainda ganhos extras ao exportador, aumentando seus ganhos e/ou reduzindo os preços para o consumidor externo.

É evidente que o receituário clássico - pouco imaginativo em muitos aspectos, porque linear - leva, inevitavelmente, a um processo recessivo. Mas essa seria urna passagem purificadora pelo purgatório, a caminho do céu ... E, após algumas etapas, a inflação cairia, a economia recuperaria o dinamismo, e o desemprego, ligado à recessão, seria superado. As nuvens negras se afastariam, e os novos dias seriam abençoados pelo infinito azul do firmamento. E assim, com a sapiência dos homens, a paz voltaria a reinar alegrando o coração de todos. Uma poesia. Mas apenas em homenagem à sabedoria daqueles que, ungidos pelos Deuses, podem proporcionar o caminho da salvação, fazendo renascer as esperanças perdidas.

Os postulados ortodoxos sugerem esperança, encanto, poesia. Mas, de fato, o receituário clássico, divorciado do mundo real dos países não desenvolvidos, mais tem gerado desespero que esperanças, mais tem aproximado o inferno que o céu. E não resolvem, agravando ao invés, as angústias daqueles que, sem poder político, surgem como as grandes vítimas da racionalidade econômica fraudulenta - os assalariados e outros grupos de baixa renda.

2. Distorções Introduzidas pela Inadequação

Os programas de estabilização, que passam pelos caminhos da recessão, têm sido introduzidos nos diferentes países - e com especial ênfase nos últimos dez anos, quando a crise do petróleo, e os seus desdobramentos com reflexos generalizados nas relações econômicas internacionais, geraram desequilíbrios profundos - externos e internos; e em todas as economias, inclusive naquelas não dependentes de importações de petróleo. Presenciou-se, portanto, e sem que muitos se tenham dado conta, possivelmente a mais importante ação espoliativa do centro sobre a periferia jamais verificada em qualquer tempo; já que a estratégia recessiva nas economias fortes, com o paralelo estímulo dos bancos internacionais, de instituições internacionais, e do próprio governo americano, para manutenção de altas taxas de crescimento nos países periféricos, fez destes o tambor de ressonância das dificuldades que os preços do petróleo impunham aos grandes irnportadores.8 8 Foi assim que os países industrializados, após registrar um saldo comercial negativo de US$ 400,0 bilhões no intercâmbio com a OPEP, nos anos de 1974-82, permitindo que a OPEP alcançasse igual montante de superávits globais em contas correntes, puderam transferir integralmente a conta de petróleo para a periferia, com o que os países em desenvolvimento não exportadores de petróleo acumularam uma dívida externa também em torno de US$ 400,0 bilhões, no mesmo período.

Se os países em desenvolvimento materializaram elevadas taxas de crescimento, mantendo importações crescentes, ao mesmo tempo em que a recessão nas áreas industrializadas deprimia os mercados de matérias-primas e produtos primários em geral, inevitável seria o aprofundamento dos desequilíbrios em seus balanços de pagamentos. Enquanto nas economias dependentes os “policy-makers” ingenuamente acreditavam tratar-se de uma astuta política de “absorção de poupanças externas”, passível de reversão mediante simples ato de vontade.

Com desequilíbrios externos via comércio, com os juros da dívida externa sangrando as economias, com os preços do petróleo e de manufaturas importadas acelerando o processo inflacionário internamente, surge, finalmente, a oportunidade para introdução parcial de mecanismos ortodoxos de estabilização. Introdução parcial porque apenas se pretendia, numa primeira fase e até que o processo de transferência da conta de petróleo se completasse, atacar os desajustes monetários (inflação), e ainda assim sem afetar o crescimento das importações - afinal estas faziam parte do esquema global que evitaria transformar os países industrializados, grandes importadores de petróleo, em indefesos devedores internacionais.

Mas a aplicação de fórmulas teóricas ao longo dos últimos dez anos, em uma situação inortodoxa, faria agravar os desarranjos monetários. Já que elevar as taxas de juros e os tributos sobre combustíveis num momento em que os preços internos se elevavam por força do “imposto-petróleo” (transferência de mais de 2,0% da renda interna para o exterior, no caso brasileiro), serviria apenas para acelerar ainda mais a inflação, com a introdução de novos componentes de custos - ou apropriação de rendas - pelas instituições financeiras e detentores de poupanças, e pelo próprio Governo.9 9 E às perdas dos assalariados, que se acentuavam via redução dos salários médios reais, não cabia a reação simplista de redução da periodicidade na correção dos salários; e isto porque, à falta de um novo perdedor de rendas, os mecanismos do sistema econômico fariam retornar as rendas contratuais, mediante a prática de repasses imediatos, as mesmas perdas médias antes observadas, A diferença é que agora a taxa de inflação teria de ser mais elevada, para que as perdas possam materializar-se em menor tempo, ainda entre dois reajustes.

Outro aspecto revelador da inadequação das políticas clássicas de estabilização - ao menos para os interesses dos países em desenvolvimento - pode ser encontrado na análise dos reflexos das desvalorizações cambiais concorrenciais - isto é, acima dos níveis justificados pelos níveis da inflação interna e externa. Recomendadas dentro da visão ortodoxa, as desvalorizações competitivas enfraquecem os preços de exportação, dificilmente tem resposta positiva em termos de balanço de pagamentos, e provoca competição predatória entre os países periféricos, já que tende a levar a sucessivas desvalorizações para evitar a perda de mercados. O processo consiste, portanto, na implantação de mecanismos de transferência de rendas dos países pobres para as regiões ricas, empobrecendo ainda mais os primeiros, e introduzindo nas economias dos países industrializados mecanismos estabilizadores, já que transfere para o exterior perdas de rendas reais que de outro modo teriam de ser assumidas internamente para que a redução do patamar inflacionário se materializasse.

O que se verifica, portanto, com a adoção de instrumentos clássicos de política econômica sem atentar para a não universalidade da teoria, é o agravamento dos desequilíbrios nos países periféricos - que se procura sempre compensar com novas reduções reais das rendas contratuais. Enquanto paralelamente os mecanismos de comercio, a ampla participação das rendas salariais no produto, e o longo intervalo para a revisão das rendas contratuais - possível em face da presença das duas primeiras condições - compõem um conjunto que atua decisivamente para que os desarranjos monetários tenham pouca intensidade nos países industrializados, e encontrem outras fontes auxiliares de autoajuste, e dentre eles, em determinadas fases, os ganhos de produtividade.

As formulações teóricas abstratas têm provocado, portanto, nas economias em desenvolvimento, efeitos que contrariam os objetivos procurados. Embora a ilusão de governos conservadores quanto à possibilidade de repetição das políticas concentradoras de rendas - mera contrapartida das perdas impostas às rendas contratuais - tem germinado amplo apoio das classes dominantes para a manutenção das diretrizes. Servindo-se, os menos escrupulosos, da prática de estigmatizar, com epítetos desqualificantes, toda tentativa de discussão do tema sob ângulos não ortodoxos, na busca de reorientação na política econômica.

OS CAMINHOS NÃO ORTODOXOS DA ESTABILIZAÇÃO

Desde que a teoria monetária desconhece os mecanismos que determinam pressões inflacionárias com fins redistributivos que levem ao “reequilíbrio” das rendas - generalizando, a teoria, situações particulares de desarranjos gerados por excesso de demanda - não existem razões para esperar-se que os chamados programas de estabilização façam jus ao nome. A menos que aplicados em economia líderes, favorecidas especialmente pelo processo de transferência de perdas reais à periferia.

De fato, quando com base nos supostos teóricos abstratos impõem-se programas de ajustamento econômico envolvendo aumento de tributos, retirada de subsídios, elevação das taxas de juros, aumento nas tarifas de serviços públicos para garantir melhoria das taxas de retorno, e, dentre outros, a desvalorização cambial concorrencial, o mais correto seria designar tais programas como Planos de Desestabilização. Isso porque, em todos os casos mencionados, as decisões envolvem, em realidade, formas diferentes de apropriação de rendas, com a introdução de novos componentes de custos na economia, acionando, automaticamente, os mecanismos clássicos de repasse.

Os instrumentos que constituem a base dos programas de ajustamento são, portanto, essencialmente desestabilizadores, requerendo elevação das taxas de inflação até que as perdas de rendas correspondentes sejam alocadas - quando se teria alcançado a nova taxa de inflação de equilíbrio. E quando se agrega uma política salarial restritiva - com reajustes abaixo das taxas de inflação, ou em face da manipulação aberta dos índices de preços - só então, em verdade, se estaria introduzindo mecanismos de estabilização; já que, ainda que encobertos por sofismas, o objetivo é a imposição de perdas definitivas de rendas reais aos assalariados - pois a condição essencial requerida pelo sistema econômico para que a inflação regrida, é a existência de perdas reais definitivas por parte de algum ou alguns dos grupos detentores de rendas. E o recurso ao processo coercitivo, sobre os assalariados, decorre de que não aparecem voluntários para assumir as necessárias perdas reais, diante do que se transfere o ônus para a parte mais fraca.

Os programas de estabilização deveriam ser mais diretos, mais objetivos. Iniciando por uma discussão política sobre a distribuição das perdas reais que mais convêm à sociedade, a fim de que não se incorra no equívoco de repetidamente imputar a uma mesma classe perdas de rendas reais impossíveis de serem absorvidas sem o risco de indesejáveis desequilíbrios de caráter econômico/social, com inevitáveis reflexos políticos. E não há razão para imaginar-se que a estabilização virá com esquemas milagrosos de “desindexação”, “desdolarização” etc., já que os principais componentes da renda global não têm a sua remuneração corrigida em decorrência de mecanismos institucionais de indexação dos preços de bens e serviços. Diferentemente, é o comportamento dos custos empresariais - um dado objetivo, ou dos níveis correntes de inflação - um fenômeno observável sem dificuldades, que orientam o ajuste das rendas não salariais, na defesa de seus níveis reais.

Para a estabilização monetária o sistema econômico requer a introdução de perdedores definitivos de rendas reais. E quando esgotados os instrumentos coercitivos tradicionalmente utilizados para alocar as perdas nas classes assalariadas, restaria apenas o entendimento político como a derradeira oportunidade para o encaminhamento de soluções. Já que, como em relação à necessidade vital de reduzir os custos financeiros que sobrecarregam o sistema produtivo - respondendo parcialmente pelo elevado patamar inflacionário - se teria, preliminarmente, de encontrar formas de girar a dívida mobiliária da União com custos menores que os atuais10 10 O tema da dívida mobiliária do Governo, e dos déficits governamentais em específico, com discussão sobre possíveis alternativas, foi analisado recentemente pelo autor, no texto “Os Déficits do Setor Público Brasileiro”, UNB/Departamento de Economia, série Textos para Discussão, n. 123, julho de 1984, 109 p. mimeo. , “administrando perdas”. E só assim, à base de uma decisão a ser alcançada no nível político, se poderia iniciar um processo de redução das taxas de inflação sem o recurso ao esquema clássico de penalização das rendas contratuais.

  • 1
    Poder-se-ia dizer, por exemplo, que “não se pode revogar a “lei da oferta e procura”. É certo, todavia, que mecanismos institucionais podem centralizar nas mãos do Governo todas as decisões econômicas, como ocorre nas economias planificadas, “insensibilizando” o sistema econômico.
  • 2
    Expressão atribuída a um Ministro do Governo brasileiro, que visava gerar convicção na opinião pública de que, a despeito dos maus resultados, a política monetária adotada era correta, porque dera resultados em outros países.
  • 3
    Simonsen, Mário Henrique. A Teoria da Inflação e a Controvérsia sobre a Indexação. Estudos Econômicos, FIPE/São Paulo, maio/agosto de 1980, pp. 05-55.
  • 4
    O conceito de custos aqui adotado inclui a remuneração do capital (lucros e dividendos) e os impostos indiretos (líquidos dos subsídios), equivalendo, portanto, ao valor das vendas.
  • 5
    Se isso é perfeitamente compreensível para salários (mais encargos sociais) e aluguéis, pode parecer menos claro em relação aos trabalhadores autônomos não qualificados. O que se admite é que, não possuindo poder de barganha para reagir, tais trabalhadores estão submetidos às mesmas condições de congelamento periódico dos rendimentos, acompanhando a tendência dos salários.
  • 6
    E isso pode ocorrer ainda, como já mencionado, via aumento nos preços de produtos importados, em face dos efeitos de uma desvalorização cambial concorrencial, encarecendo as importações de bens e serviços e a amortização de empréstimos, e paralelamente transferindo rendas para o exportador e/ou para o consumidor externo.
  • 7
    Essa tentativa de interpretação dos mecanismos redistributivos dentro das economias de mercado, que atuariam via processo inflacionário mas como resposta a uma prévia apropriação de rendas por determinados agentes que atuam no sistema (internos ou mesmo do exterior), foi desenvolvida inicialmente no texto do autor, “Inflação Brasileira - Um Enfoque Não Ortodoxo” (Notas para Discussão n. 7, UNB/Departamento de Economia, jan. 1977, 17 p. mimeo.); e, posteriormente, em “Inflação - Impulsos de Custos Reversíveis e Não Reversíveis e a Taxa de Inflação de Equilíbrio” (Textos Para Discussão n. 51, UNB/Departamento de Economia, set. 1978, 52 p. mimeo., e revista Estudos Econômicos, FIPE/São Paulo, Vol. 9, 1979, n. 2, pp. 05-45). A presente apresentação constitui uma primeira e ainda parcial revisão e ampliação dos estudos originais.
  • 8
    Foi assim que os países industrializados, após registrar um saldo comercial negativo de US$ 400,0 bilhões no intercâmbio com a OPEP, nos anos de 1974-82, permitindo que a OPEP alcançasse igual montante de superávits globais em contas correntes, puderam transferir integralmente a conta de petróleo para a periferia, com o que os países em desenvolvimento não exportadores de petróleo acumularam uma dívida externa também em torno de US$ 400,0 bilhões, no mesmo período.
  • 9
    E às perdas dos assalariados, que se acentuavam via redução dos salários médios reais, não cabia a reação simplista de redução da periodicidade na correção dos salários; e isto porque, à falta de um novo perdedor de rendas, os mecanismos do sistema econômico fariam retornar as rendas contratuais, mediante a prática de repasses imediatos, as mesmas perdas médias antes observadas, A diferença é que agora a taxa de inflação teria de ser mais elevada, para que as perdas possam materializar-se em menor tempo, ainda entre dois reajustes.
  • 10
    O tema da dívida mobiliária do Governo, e dos déficits governamentais em específico, com discussão sobre possíveis alternativas, foi analisado recentemente pelo autor, no texto “Os Déficits do Setor Público Brasileiro”, UNB/Departamento de Economia, série Textos para Discussão, n. 123, julho de 1984, 109 p. mimeo.
  • JEL Classification: B41; P10.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 1985
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