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O caráter cíclico da intervenção estatal* * Agradeço a Eduardo Gianetti Fonseca, Eunice Duran, Philippe Faucher e Helen Shapiro por seus comentários e sugestões.

The cyclical pattern of State intervention

RESUMO

A atual onda de privatizações e o relativo sucesso da crítica neoliberal ao papel econômico do Estado fazem parte do caráter cíclico da intervenção estatal. Estamos agora na recessão do ciclo. Durante a recuperação, a intervenção do Estado, medida em termos de nacionalização e aumento da regulamentação, é inicialmente bem-sucedida, mas depois de algum tempo incorre em distorções crescentes. A crise e as críticas que acompanham as distorções levam a uma redução e principalmente a uma mudança no padrão de intervenção do Estado. Mas nunca a um retorno ao L’Etat gendarme sonhado pelos neoliberais.

PALAVRAS-CHAVE:
Papel do governo; privatização

ABSTRACT

The present wave of prívatization and the relatíve success of the neoliberal criticism against the economic role of the state are part of the cyclical character of state intervention. We are now in the downturn of the cycle. During the upturn state intervention, measured in terms of nationalization and increase in regulation, is initially successful, but after some time it runs into increasing distortions. The crisis and the criticism that comes with the distortions lead to a reduction and particularly to a change in the pattern of state intervention. But never to a return to L’Etat gendarme dreamed by neoliberals.

KEYWORDS:
Role of government; privatization

A intervenção estatal é habitualmente adotada como critério básico para distinguir os economistas conservadores (neoliberais, neoclássicos, monetaristas, defensores do mercado livre) dos progressistas (keynesianos, “liberais” no sentido norte-americano, estruturalistas, neomarxistas). Este é um velho debate que na última década favoreceu os conservadores, na medida em que a intervenção estatal sofreu um ataque bem sucedido. O credo neoliberal clamando por desregulação e privatização, por controle via mercado ao invés de coordenação estatal da economia, ganhou um público maior. E de fato um processo limitado mas efetivo de redução da intervenção estatal teve início.

Neste trabalho proporei, primeiro, que a intervenção estatal não é o melhor critério para distinguir o pensamento conservador do progressista, a menos que se reduza a análise aos pontos de vista neoliberal radical e estatista ideológico; segundo, que o processo atual de redução relativa do papel econômico do estado deve ser encarado como uma fase do caráter cíclico da intervenção estatal; e, terceiro, que em cada ciclo ou momento histórico o caráter da intervenção estatal muda. Embora Polangi (1944) provavelmente estivesse certo ao afirmar que um sistema de mercado autorregulador fosse um momento excepcional na história da humanidade, a ideia de haver uma tendência para uma coordenação crescente da economia pelo Estado é verdade apenas em parte. De fato, o que se observa historicamente é um processo cíclico, e sempre em transformação, de expansão e contração da intervenção do Estado.

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É comum ouvir-se frases como “Economia é o estudo do mercado, ciência política, o estudo do poder. Economia é o domínio da sociedade civil, ciência política é o domínio do Estado”. Essas são definições simples e claras, mas enganosas. Têm um pouco de verdade porque o interesse básico dos economistas é de fato o mercado; dos cientistas políticos, o poder do Estado. Mas na verdade essas afirmações são um exemplo de pensamento ideológico conservador, uma vez que são uma tentativa de mistificar a realidade, reduzindo o alcance da análise econômica a uma “economia positiva” (Friedman: 1953FRIEDMAN, Milton (1953). “The methodology of positive economics”. Essays In Positive Economics. Chicago, The University of Chicago Press. ) e, portanto, evitar uma discussão mais ampla e histórica sobre a natureza interna e o caráter dialético do capitalismo.

Os economistas clássicos, que fundaram nossa ciência, entenderam muito bem a impossibilidade de uma separação radical entre o mercado e o Estado. Daí a razão por que - embora tenham sido os maiores ideólogos do liberalismo - chamaram nossa ciência de Economia Política e não de Economia. 1 1 Economia Política é o nome original da Economia ou Teoria Econômica. Foi abandonado quando os economistas neoclássicos decidiram “expurgar a Economia da Política e da ideologia”. A tradição, entretanto, foi mantida por marxistas, keynesianos e estruturalistas. Mais recentemente surgiu nas universidades dos países avançados, em geral fora dos departamentos de economia, um campo chamado Economia Política, ou, contraditoriamente, Polítical Economics (Política da Teoria Econômica) (ver Alt e Chrystal, 1983). A Economia Política é a ciência que estuda a riqueza das nações, que examina a produção e distribuição num mercado que obedece à lei de valor, mas é regulado e garantido pelo Estado. Não há produção, e muito menos distribuição sem poder: o poder privado e o poder político estão permanentemente presentes no mercado. Como Altvater deixou definitivamente claro, a existência de capital depende da existência do Estado:

“O Estado pode, assim, ser entendido nem como um mero instrumento político nem como uma instituição social estabelecida pelo capital, mas antes como uma forma especial do cumprimento da existência social do capital ao longo e além da concorrência. . . Há essencialmente quatro áreas em que o Estado é primariamente ativo: 1) a criação das condições materiais gerais de produção (“infraestrutura”); 2) a determinação e a salvaguarda do sistema legal geral ( ... ) ; 3) a regulação do conflito entre salário e capital ( ... ) ; 4) garantia e expansão do capital nacional total e o mercado capitalista mundial” (1972: 99-100).

É significativo, entretanto, que o critério básico que distingue os economistas conservadores dos progressistas seja o papel atribuído à intervenção estatal na coordenação econômica do sistema capitalista. Os primeiros são, em princípio, contra; os últimos, a favor de algum grau de intervenção estatal.

Os conservadores são contra a intervenção estatal porque temem o socialismo. Os socialistas são - ou eram - a favor porque acreditam - ou acreditavam - que o caminho para o socialismo seja a nacionalização de grandes corporações. Por muito tempo os partidos socialistas ou sociais-democratas apoiaram as nacionalizações em nome do rumo ao socialismo. Na Inglaterra, com o Partido Trabalhista, depois da Segunda Guerra Mundial, e mais recentemente na França, com o Partido Socialista, o processo de nacionalização se realizou.

Entretanto nos últimos anos tem se tornado cada vez mais claro para os socialistas que o caminho para o socialismo não é o estatismo. A União Soviética ou a China não são países socialistas, são formações sociais estatistas; não são as sociedades sem classes sonhadas por socialistas utópicos, anarquistas e marxistas, mas sociedades dirigidas por uma nova classe dominante, a tecnoburocracia (vide Bresser-Pereira, 1980BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos (1980). A Sociedade Estatal e a Tecnoburocracia. São Paulo, Brasiliense. , 1981BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos (1986). Lucro, Acumulação e Crise. São Paulo, Brasiliense . ). Muitos socialistas confundem estatização com socialismo porque não compreendem a natureza da formação social da União Soviética e da China - insistem em chamá-la de capitalismo estatal ou socialismo degenerado, quando, de fato, não se trata nem de uma formação capitalista nem socialista, mas estatista.

Na verdade, um grande número daqueles que se autodenominam socialistas e afirmam que o caminho para o socialismo está nas estatizações são de fato tecnoburocratas tentando construir não uma formação social socialista, mas sim estatista. Constituem-se ou pretendem constituir-se em uma elite industrializante alternativa aos empresários capitalistas - aliás bem-sucedida nas primeiras fases do desenvolvimento dos países onde prevalece o estatismo (ou o “socialismo real”) - que usam o socialismo como bandeira, não como um objetivo real.

O estatismo é um inimigo do socialismo verdadeiro, na mesma proporção em que representa um perigo para o capitalismo. Os capitalistas estão certos em temer as nacionalizações porque veem que o estatismo é uma alternativa para o capitalismo, que os tecnoburocratas são uma alternativa para a classe empresarial. Mas para os socialistas a questão não é tão clara. A consciência difundida de que o socialismo é essencialmente antagônico ao estatismo é um fenômeno recente. Enquanto no estatismo a tecnoburocracia é a classe dominante, pois tem coletivamente a organização estatal, a formação social socialista é, aliás, será uma sociedade sem classes, em que prevalecem autogestão e democracia. Enquanto o estatismo é, por definição, centralmente controlado, o socialismo será provavelmente um sistema econômico quase tão descentralizado e controlado pelo mercado quanto o capitalismo clássico (competitivo).

Os capitalistas não temem o socialismo como definido acima porque o veem como utopia. Pode ser verdade, mas, de qualquer maneira, é essencial ter em mente uma ideia bastante simples: não há razão para a esquerda ser favorável a estatizações em nome do socialismo. Ou, em outras palavras, não há razão para que os economistas radicais ou políticos esquerdistas apoiem a intervenção estatal em nome do socialismo. Eles podem e devem apoiar uma intervenção estatal limitada pragmaticamente em nome da igualdade e da eficiência econômica, mas isso não irá diferenciar de forma clara uma política econômica conservadora de uma progressista. Apesar de sua retórica liberal, os conservadores na prática adotam com frequência políticas econômicas totalmente intervencionistas.

Recentemente o fato de as estatizações e o excesso de regulação não serem o caminho para o socialismo está começando a ser reconhecido pela esquerda democrática nos países capitalistas. Uma evidência desta mudança é o fato de os partidos social-democratas não incluírem mais as estatizações em seus programas.

Por outro lado, está se tornando cada vez mais claro que os tecnoburocratas são uma alternativa real para a burguesia como classe dominante somente nos países subdesenvolvidos, onde a burguesia não existe ou, mais provavelmente, é apenas uma burguesia mercantil. Nesse contexto, os tecnoburocratas civis e militares podem com sucesso assumir o papel de elite industrializante. Fizeram isso não só na União Soviética, mas também em muitos países subdesenvolvidos na África e na Ásia. A latino-americana Cuba é um exemplo típico. As únicas exceções à regra são a Alemanha Oriental e a Tchecoslováquia, onde a industrialização já havia sido realizada por empresários capitalistas, mas estes casos são explicados pela intervenção militar soviética. Em sociedades capitalistas avançadas e mesmo em sociedades industrializadas subdesenvolvidas, entretanto, o estatismo ou a regra tecnoburocrática não é realmente uma alternativa para o capitalismo. Durante um certo período, o estatismo teve esta pretensão. Mas o caráter autoritário e o desempenho econômico pobre dos sistemas econômicos estatistas na União Soviética e na Europa Oriental nos últimos vinte anos sepultaram definitivamente essa ideia.

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De qualquer forma, a esquerda nos países capitalistas apoia senão nacionalizações, pelo menos algum grau de intervenção estatal, enquanto a direita insiste num discurso neoliberal que abomina qualquer tipo de intervenção. Como o discurso da esquerda é uma mistura de ideologia e avaliação realista das limitações do mercado, o discurso da direita é o resultado de preconceitos ideológicos, de hipocrisia e de avaliação realista das distorções causadas pelo excesso de intervenção estatal.

O caráter ideológico de ambos os discursos é completamente óbvio, mas acredito que valha a pena referir-me a uma experiência pessoal. No segundo semestre de 1985, participei de um Congresso de Intelectuais em Cuba, e fiquei impressionado com o conteúdo ideológico repetitivo das intervenções: “socialismo”, “democracia”, “imperialismo americano” foram colocados juntos de diversas maneiras para formar um tipo de discurso tecnoburocrático padrão. De volta ao Brasil, estava presente na cerimônia de substituição de presidentes de uma importante associação na área financeira. Ouvi os dois discursos, onde expressões como “livre empresa”, “mercado”, “privatização” e “democracia” foram infinitamente repetidas, formando um discurso capitalístico ideológico padrão, oposto mas na verdade muito semelhante ao discurso que ouvira em Cuba.

Além do ideológico, entretanto, o discurso neoliberal, especialmente nos países em desenvolvimento como o Brasil, tende a ser falso, porque a maioria dos neoliberais é de empresários - e seus intelectuais orgânicos - cujas atividades foram· ou ainda estão sendo fortemente subsidiadas pelo Estado.

A intervenção estatal em países atrasados é uma condição necessária para os estágios iniciais de industrialização. As teorias do crescimento equilibrado ou do grande impulso inicial desenvolvidas nos anos 50 (Rosentein-Rcdan, 1943ROSENTEIN-RODAN, Paul (1943). “Problems of industrialization in Eastern and South Eastern Europe”. Economic Journal, jun.-set. 1943. ; Harvey Leibenstein, 1957LEIBENSTEIN, Harvey (1957). Economic Backwardness and Economic Growth. New York, John Wiley & Sons. ; Albert Hirschman, 1958HIRSCHMAN, Albert O. (1958). The Strategy of Economic Development. New Haven, Yale University Press. ) conferem a base teórica a este fato. Gerchenkron (1962), com sua análise da industrialização dos países europeus retardatários, propiciou a base teórica definitiva para o papel crucial do Estado no desenvolvimento econômico em fase inicial. O papel básico do Estado neste estágio é o de obter poupança forçada e investi-la diretamente, ou, mais habitualmente, transferi-la para as empresas através de financiamentos de longo prazo e particularmente através de diversos tipos de subsídios e incentivos (renúncias fiscais). Dessa forma, a classe empresarial é, de longe, a mais favorecida pela intervenção estatal.

A emergência do welfare state (Estado do bem-estar) em benefício dos trabalhadores é um fenômeno mais tardio. Segundo Claus Offe, que tem enfatizado a crise do welfare state em sua análise política do capitalismo contemporâneo, o welfare state tem servido como a melhor fórmula de paz das democracias capitalistas avançadas depois da Segunda Guerra Mundial” (1980: 147). Mas nos últimos vinte anos uma contradição básica se tornou aparente entre o capitalismo e o welfare state.

Para os países em desenvolvimento o caráter da intervenção do Estado ocorreu de maneira diversa. Durante as quatro décadas posteriores à Segunda Guerra Mundial, a intervenção estatal aumentou a fim de apoiar a acumulação privada de capital. A intervenção estatal foi, de fato, o mecanismo básico de acumulação primitiva. Nessas circunstâncias, o discurso neoliberal, na medida em que é proveniente dos mesmos beneficiários da intervenção do Estado, está no mínimo fora de lugar nos países em desenvolvimento.

Uma observação semelhante aplica-se ao discurso neoliberal que prevalece nas sociedades avançadas. Enquanto o Estado continua a regular fortemente a economia, ao mesmo tempo que um complexo sistema corporativista e protecionista substitui o mercado nas relações de controle econômico (ver Streeck e Schmitter, 1985STREECK, Wolfand and SCHMITTER, Philippe C., eds. (1985). Private interest government: Beyond market and State. London, Sage Publications . , e Cawson, 1985CAWSON, Alan, ed. (1985). Organized interest and the State. London, Sage Publications. ), a política macroeconômica está mais ativa do que nunca nesses países e o discurso de seus líderes políticos é cada vez mais liberal. Os oito anos de administração Reagan nos Estados Unidos é um exemplo perfeito desse fato. Sem dúvida alguma, foi um governo bastante conservador, na medida em que privilegiou os ricos em detrimento dos pobres, mas foi também claramente intervencionista, na medida em que elevou os gastos públicos e produziu déficits públicos recordes. Referindo-se à administração Reagan, Bellon e Niosi afirmam:

“Exceto no discurso, a política de desengajamento do Estado não foi de fato aplicada ... Ao invés da redução da intervenção, o que vemos é a redistribuição dos engajamentos do Estado entre aqueles que deles se beneficiam” (1987: 105-108).

Outro exemplo da contradição entre política real e discurso é o protecionismo e o caráter planejado das políticas econômicas da Comunidade Econômica Europeia, onde com frequência predominam os governos conservadores. Assim, fatos são muito diferentes de retórica. Nas palavras de Jeanne Laux e Maureen Molot:

“A retórica da privatização é hoje em dia difundida, mas concluímos que, com exceção da Inglaterra, estamos testemunhando não o desmantelamento em massa das empresas estatais, mas a reestruturação do capitalismo estatal. Os governos vendem corporações selecionadas e recorrem ao mercado de ações para financiar outras. Eles ainda recorrem ao uso arbitrário de investimento, e o fazem tornando a intervenção estatal mais aceitável” (1988: VIII).

Por outro lado, o discurso estatista está hoje em dia em posição politicamente desfavorável. Por isso ele sobrevive muitas vezes de forma disfarçada. Seus defensores tendem a emudecer ou a falar muito pouco. Mas a tese da superioridade intrínseca do plano sobre a “anarquia do mercado” ainda está viva, e é tão ideológica quanto o discurso neoliberal.

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Não critiquei o caráter ideológico dos discursos neoliberal e do estatista para enfim optar por uma alternativa intermediária. A crença de que in media, virtus é geralmente fruto de um bom senso vazio de sentido. Alec Nove também não crê nesse meio termo:

“A visão de competição perfeita e mercado perfeito, assim como de comunismo pleno são utopias para mim, algo inerentemente irrealista” (1978: 237). Seria bom imaginar que o desperdício inerente a um mercado competitivo e o desperdício causado pelo planejamento stalinista centralizado pudessem ambos ser eliminados. Ninguém encontrou ainda esse ótimo” (1977: 157).

Meu propósito neste trabalho não é sair à procura nem mesmo discutir tal ótimo intermediário entre mercado e controle estatal da economia - um ótimo que aliás não existe. Em países estatistas pode-se assumir o sistema de controle estatal centralizado existente hoje na China e na União Soviética - o sistema que Deng Xao Ping e Gorbachev estão tentando reformar - é ineficiente, mas sabemos que esses países experimentaram altas taxas de desenvolvimento econômico num primeiro momento, no estágio inicial de industrialização, as quais, no caso da União Soviética, duraram muito tempo.

Por outro lado, verificamos, com base em pesquisa empírica, que nas economias europeias avançadas, entre 1960 e 1984, a taxa de crescimento econômico foi mais alta e a taxa de desemprego mais baixa quando os países eram governados pelos partidos de esquerda (democrata-sociais) ou coalizões de partidos que favorecem um grau maior de intervenção estatal (ver Kurt Rothschild, 1986ROTHSCHILD, Kurt W. (1986). “Left” and “right “ in “Federal Europe “. Kyklos, vol. 39, fase. 3. ). Mas essa superioridade, embora estatisticamente demonstrada, não é estável no tempo: em certos períodos ela é clara, e em outros, nem tanto. De fato, embora o raciocínio e a experiência histórica comprovem a superioridade de estratégias intermediárias, não podem dizer-nos “quanto” de intervenção estatal deverá ser adotada.

Desta forma, em vez de cairmos em uma discussão interminável sobre um ótimo discutível, o que quero propor neste trabalho é a ideia do caráter cíclico sempre em transformação da intervenção estatal. E se eu obtiver um êxito, mínimo que seja, em demonstrar esta hipótese, acredito que o conteúdo ideológico do debate sobre a intervenção econômica do Estado será de alguma forma reduzido.

Minha asserção básica é que a intervenção estatal se expande e se contrai ciclicamente, e que a cada novo ciclo o modo de intervenção muda. Por um determinado período a intervenção estatal aumenta, o Estado assume um papel crescente na coordenação do sistema econômico, na microalocação de recursos, na macrodefinição do nível de poupança e investimento (ou do equilíbrio entre oferta e demanda agregada), e na micro-macrodeterminação da distribuição de renda entre as classes sociais e entre os setores da economia. Mas como a intervenção estatal aumenta, seja em termos da participação do Estado e das empresas estatais no PIB, seja em termos do grau de regulação ao qual a economia é submetida, ela começa a ficar disfuncional. O excesso de regulação, que retarda ao invés de estimular e orientar a atividade econômica, e enormes déficits públicos no lugar da obtenção de poupança forçada, são os dois sintomas básicos a indicar que a expansão do Estado excedeu. É o momento de reverter o ciclo, de contrair o Estado e expandir o controle do mercado, é tempo de desregular e privatizar.

Essa hipótese sobre a natureza cíclica da intervenção do Estado conflita tanto com as teorias estáticas, que assumem como ideal um determinado nível de intervenção estatal, como com as teorias históricas que pretendem uma tendências de longo prazo no sentido da estatização da economia. Para os neoliberais, o nível ideal de intervenção estatal deveria ser muito baixo; para os estatistas, muito alto; e para os pragmáticos, intermediário. Embora mais próximo dos pragmáticos, digo que as três posições são inaceitáveis, na medida que assumem uma determinada relação entre mercado e controle estatal como ideal ou ótima. Minha hipótese é a de que esta relação ideal irá necessariamente variar no curso da história e de acordo com o caráter cíclico e em permanente transformação da intervenção do Estado na economia.

Por outro lado, embora possa ser verificada uma certa tendência histórica no sentido de uma intervenção estatal crescente, sugiro que a tendência é limitada e não linear. Essa tendência está implícita em Marx e foi explicitamente desenvolvida por Adolph Wagner (1983WAGNER, Adolph (1983). Grundeglung de Politschen Dekonomie. Leipzig, C. F. Wintersche Verlagshandlung (relatado in Wildavsky, 1985). ), segundo o qual, à medida que a renda per capita aumenta, as nações gastarão uma parte cada vez maior do produto nacional através do governo. Segundo o relato de Wildasvsky (1985), Wagner apresentou diversas razões para esse aumento: complexidade adicional de relações legais introduzida pela especialização elevada e divisão de trabalho, aumento nos conflitos sociais devido a uma crescente densidade de vida urbana, insuficiência de poupança privada para investimentos exigindo grandes quantias de capital, demanda crescente (elasticidade-renda em excesso de um) para investimentos na produção de determinados bens cujos benefícios não podem ser estritamente apropriados ao investidor privado (bens públicos em terminologia moderna), e necessidade de regular os monopólios privados.

Eu diria que todas essas razões são convincentes. A evidência estatística em favor da tese de Wagner é incontestável. Borcherding, por exemplo, afirmou que nos Estados Unidos as despesas governamentais (federal, estadual e local) elevaram-se de 7,7 para 21,4 por cento do PIB de 1902 a 1932; declinaram de 20,4 por cento do PIB até 1940; e então elevaram-se regularmente, atingindo 35 por cento do PIB em 1978 (1985: 361). Na Alemanha, o gasto público total como proporção do PIB elevou-se firmemente de 15,7 a 42,5 por cento do PIB de 1913 a 1969 (vide Mandel, 1972MANDEL, Ernest (1972). Late Capitalism. London, Verso Edition, 1978 (1.ª ed. em alemão. 1972). : 488). Mas, minha asserção é que nem os argumentos teóricos nem as evidências empíricas podem ser tomados como definitivos. Wagner escreveu sua obra na Alemanha no final do século passado, quando o Estado assumiu um papel decisivo na industrialização tardia de seu país. Entretanto, na Alemanha, depois do salto industrial, a intervenção estatal, seguindo um caráter semelhante ao dos outros retardatários no processo de industrialização, incluindo o Japão, tendeu a diminuir nas áreas produtiva e financeira, enquanto se elevava no plano regulatório e do welfare state.

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Esse caráter cíclico de expansão e contração da intervenção estatal pode ser visto sob uma ampla perspectiva histórica e pode também ser examinado sob o ponto de vista da tendência do papel econômico do Estado transformar-se nos momentos de reversão cíclica. Em cada ciclo temos a introdução de novos modos de intervenção estatal. O Estado expande-se e contrai-se, mas ao fazê-lo também mudam continuamente as formas de sua intervenção na economia.

Numa perspectiva histórica ampla, tomando a Inglaterra, a França e os Estados Unidos (os primeiros países a se industrializarem) como referência, temos no primeiro estágio do capitalismo - o período mercantilista - uma forte intervenção do Estado apoiando o processo de acumulação primitiva. As distorções provocadas pelas regulações excessivas e pelos monopólios reais deram origem à crítica dos economistas clássicos e, durante e depois da Revolução Industrial, verifica-se uma acentuada redução da intervenção estatal. O capitalismo competitivo reina durante o século XIX, mas aproximadamente em 1870 o crescimento das grandes corporações indica uma nova fase - a fase do capitalismo oligopolista - em que se torna necessária novamente a intervenção estatal. As pressões sociais dos trabalhadores apontam na mesma direção. O sistema político burguês resiste à nova onda de intervenção do Estado, mas esta, de uma forma ou de outra, começa a crescer no início do século XX.

É somente com a grande depressão dos anos 30 e com a crítica revolucionária de Keynes ao liberalismo neoclássico que o processo deliberado de intervenção estatal assume um caráter mais claro e definido. É o grande momento do welfare state e da macroeconomia keynesiana. A prosperidade dos anos 50 e 60 - uma verdadeira “idade de ouro” do desenvolvimento econômico capitalista, segundo a expressão usada por Glyn, Hughes, Lipiets e Singh (1988GLYN, Andrew, HUGHES, A., LIPIETZ, A. e SINGH, A. (1988). The rise and fall of the Golden Age. Helsink, WIDER Working Paper n.º 43. ) - está acompanhada por uma crescente intervenção estatal, e também pelo aumento das reivindicações sociais dos trabalhadores. Na Europa as transferências e subsídios às famílias elevaram-se de cerca de 8 por cento em 1955-1957 para aproximadamente 16 por cento do PIB em meados dos anos 70 (Glyn et alii, 1988GLYN, Andrew, HUGHES, A., LIPIETZ, A. e SINGH, A. (1988). The rise and fall of the Golden Age. Helsink, WIDER Working Paper n.º 43. : 23).

Mas nessa década a economia mundial enfrenta uma nova crise - uma crise definida, em termos econômicos, por grandes déficits públicos, pela redução generalizada das taxas de crescimento e pela estagflação, e, em termos ideológicos, pela crise do keynesianismo e pelo surgimento das teorias neoliberais - monetarista e expectativa racional. Privatização, desregulação, controle de mercado são as novas doutrinas da onda conservadora. A intervenção estatal deixa de crescer e há alguns sinais de que está aos poucos sendo reduzida. A contração cíclica do Estado, no entanto, é muito menos acentuada do que a expansão anterior.

Esse processo cíclico de expansão e contração do Estado pode provavelmente ser examinado numa dimensão de curto prazo - o prazo dos longos ciclos Kondratieff.2 2 As evidências a favor dos ciclos Kondratieff são muito fortes. Examinei o assunto em Lucro, Acumulação e Crise (1986, cap. 12), onde uma extensa bibliografia pode ser encontrada. A hipótese é de que nos períodos de expansão dos ciclos longos a intervenção estatal aumentaria, enquanto nos períodos de contração, se reduziria. Foi exatamente o que aconteceu no último ciclo longo: de 1940-1945 a 1970, a intervenção aumentou, e desde então - aliás, com a demora de aproximadamente uma década - está aos poucos sendo reduzida.

A partir dessa hipótese, cuja evidência é nítida na atual onda longa, procurei confirmação para a mesma nos ciclos longos anteriores. Se o mesmo padrão prevaleceu, a intervenção estatal deve ter-se elevado entre aproximadamente 1895 e 1920, e reduzido ou sofrido um processo de queda relativa desde então até 1940. E de fato os dados de Wallis (1984WALLIS, John Joseph (1984). “The birth of the old federalism: Financing the New Deal, 1932-1940”. Journal of Economic Hystory, vol. 44, n.º 1, março.) sobre as despesas não-militares do governo dos Estados Unidos como percentagem do PIB (Figura 1) mostram que, com um certo atraso, foi exatamente o que aconteceu.3 3 Os dados de Joseph J. Wallís baseiam-se no relatório elaborado pelo Ministério do Comércio americano, Historical Statistics on Government Finance and Employment (Washington, D.C., 1969). Essa percentagem elevou-se de forma regular até 1932; declinou até 1943; e finalmente retomou o crescimento até o último ano examinado, 1968. Na França, a correlação entre os ciclos de Kondratieff e as despesas públicas é também muito nítida, mas o que não se observa é o mesmo atraso. Segundo os dados de Delorme e André (1983DELORME, Robert e ANDRÉ, Christine (1983). L’Etat et L’economie. Paris, Seuil. :723), a despesa global do Estado como percentagem do PIB eleva-se do início do século até 1922; declinou até 1934; deste ano até 1969 elevou-se acentuadamente; no ano seguinte começou um declínio moderado das despesas estatais até o último ano examinado, 1974.

Figura 1:
Despesas não-militares do governo dos Estados Unidos (% do PIB)

David Gordon, examinando os ciclos de Kondratieff, identificou-os com os “estágios de acumulação”, que seriam caracterizados por “uma série de instituições integradas ... necessária para a continuidade da acumulação capitalista individual ... A integridade institucional de um estágio de acumulação começará a se desintegrar depois de um período de prosperidade” (1978:27-28). Se aceitarmos que, entre essas instituições, o Estado seja a instituição dominante, não é difícil estabelecer a relação entre os ciclos longos e as mudanças no caráter e na intensidade da intervenção estatal.

A razão pela qual a intervenção apresenta um caráter cíclico é mais ou menos óbvia, uma vez estabelecida a ideia. O mercado por si é claramente insuficiente para garantir a acumulação capitalista e não possui um mecanismo endógeno para promover uma distribuição de renda socialmente aceitável. Dados estes dois pressupostos, a intervenção estatal é uma condição necessária tanto para o processo de acumulação como para o de distribuição. Desta forma, não obstante toda a crítica ideológica, a intervenção estatal irá ocorrer. E como tende a aumentar em intensidade durante a fase de expansão do ciclo, irá necessariamente provocar distorções, que só serão corrigidas na fase de retração.

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A intervenção do Estado assumirá muitas formas. É possível destacar quatro delas: 1. a regulação macroeconômica; 2. a regulação microeconômica normativa; 3. a regulação microeconômica administrativa (incluindo todos os tipos de subsídios); 4. as estatizações ou a produção direta. A intensidade da intervenção variará de acordo com o tempo e a situação. O limite da macro regulação é o planejamento centralizado; a micro regulação normativa pode limitar-se a algumas regras de proteção à saúde e à segurança dos consumidores relativas à produção e distribuição de determinados bens ou estender-se a praticamente todos os tipos de atividade econômica. A micro regulação administrativa - regulação específica caso a caso, cuja aplicação depende da decisão de um determinado funcionário público ou de um comitê governamental - pode também ser muito abrangente e detalhista e muito limitada. Finalmente, o limite das estatizações é a abolição da propriedade privada dos meios de produção, enquanto o mínimo é a total ausência do Estado na esfera produtiva.

A intervenção estatal irá variar de acordo com o tipo de relação que o Estado estabelecer com as empresas. Pode ser limitativa, de apoio e neutra. Tributação, regulação sobre saúde, segurança, poluição são tipicamente intervenções limitativas. Subsídios e renúncias fiscais são exemplos clássicos de intervenção estatal de apoio. A política macroeconômica pode eventualmente ser neutra - embora saibamos muito bem que neutralidade distributiva na intervenção estatal é quase impossível.

É muito difícil mensurar-se a intensidade de intervenção estatal. A maneira mais simples é ter por medida a participação das despesas estatais no PIB, mas este critério não leva em consideração a produção das empresas estatais. Uma forma diferente e muito reveladora de se medir a intensidade da intervenção estatal é através da avaliação do grau de regulação micro e macroeconômica. Mas não há critério estabelecido para determinar a intensidade da regulação governamental. Neste trabalho estou utilizando uma combinação dos dois critérios.

Durante a fase de expansão do ciclo - que não deve ser confundida com o ciclo normal de Juglar, e pode coincidir com os ciclos longos - a intensidade de todas as formas de intervenção tenderá a se elevar. Partindo-se de um nível alto de coordenação pelo mercado da atividade econômica, a intervenção estatal tentará corrigir as distorções causadas pelo mercado. No estágio inicial do ciclo, as políticas regulatórias serão bem-sucedidas na coordenação da economia, (1) estimulando a produção global através do aumento das despesas do Estado e modernização de determinados setores através dos mais variados tipos de subsídios e renúncias fiscais, (2) distribuindo renda via tributação progressiva da renda e realização de despesas públicas de caráter social, (3) limitando abusos dos agentes privados através de diversas formas de regulação. Por outro lado, os investimentos diretos pelo Estado, com a criação das empresas estatais, também tenderão a ocorrer, particularmente se o país estiver em seu estágio inicial de industrialização. Mas, depois de algum tempo, a intervenção estatal começará a dar origem às suas próprias distorções. O aumento das despesas do Estado, como resultado da crescente pressão dos empresários e consumidores, tenderá a desequilibrar seriamente o orçamento público. O excesso de regulação irá colocar cada vez mais obstáculos à competitividade internacional das empresas. A crítica a essas distorções irá se avolumar à medida que a taxa de inflação se elevar ou à medida que surgirem os problemas no balanço de pagamentos. As empresas estatais, que tiveram um papel decisivo no início da industrialização ao promover e captar poupanças forçadas, passam a apresentar uma administração ineficiente e resultados econômicos insatisfatórios. Chega, enfim, o momento do ajustamento fiscal, da desregulação e da privatização.

Mas, contrariamente à crença dos neoliberais, este não é o fim da estória. Passado algum tempo o processo de desestatização (desregulação e privatização) chegará a um final e um novo processo de intervenção estatal terá início. Será diferente da expansão anterior, o Estado assumirá novos papéis por exigências dos empresários e, cada vez mais, dos trabalhadores e da classe média tecnoburocrática assalariada. Como diz Ignácio Rangel, cuja visão dialética do processo de intervenção é bastante clara:

“Num determinado momento no ciclo o debate entre privatistas e estatistas, que nunca cessa completamente, tende a assumir formas agudas, preparando uma nova distribuição das atividades que compõem o sistema econômico ... Sempre, depois da batalha, os privatistas parecem os vencedores porque o Estado teve de renunciar a determinadas atividades. Entretanto, num segundo momento - mais uma questão de conceito que de cronologia - o organismo social forçará o Estado a assumir novas responsabilidades” (1984: 153-154).

A lógica por trás do caráter cíclico da intervenção estatal é bastante simples. É semelhante à lógica de todos os processos cíclicos. A fase de expansão pode ser pensada como um firme processo de crescimento, mas também como um processo inflamatório ou de intumescência. Tudo cresce - investimentos, lucros, salários, consumo, gastos estatais, regulações - mas o crescimento não é necessariamente equilibrado. Se o fosse, se o crescimento seguisse sempre o caminho do equilíbrio, não teríamos ciclo; apenas o dourado caminho do crescimento. Sabemos, entretanto, que o crescimento não é um processo equilibrado. As experiências bem-sucedidas durante a fase de expansão tendem a se esgotar. Se o aumento da regulação e das despesas estatais for bem-sucedido, os agentes econômicos não saberão o momento de parar. Irão aumentar a intervenção do Estado até o ponto em que esta se torna disfuncional, porque as consequências negativas da intervenção superam as positivas. A disfuncionalidade da intervenção estatal tornar-se-á particularmente óbvia se o aumento da despesa pública levar à crise fiscal. Após um período de crescente crítica e contínuos fracassos, chegará o momento de se reduzir a intervenção estatal, abrindo espaço para mais controle de mercado da economia.

Mas o processo de desestatização e desregulação não perdurará indefinidamente. Em breve as instabilidades inerentes ao sistema de mercado conjugadas às crescentes demandas da sociedade por melhores padrões de vida, mais segurança e previsibilidade, levarão necessariamente a uma nova onda de intervenção no mercado. Mas a nova intervenção será diferente da anterior por diversas razões. Porque alguns dos problemas que tiveram de ser enfrentados na expansão anterior da intervenção estão agora resolvidos. Porque novos problemas ou novos desafios não estão agora sendo resolvidos pelo mercado. Porque velhos erros não devem se repetir.

6

Em termos muito amplos, pode-se dizer que no primeiro estágio a intervenção estatal é orientada para a acumulação primitiva, para a obtenção forçada da poupança necessária para o início da industrialização: no segundo, o welfare state é instaurado; no terceiro, o apoio ao desenvolvimento científico e ao progresso tecnológico torna-se o principal aspecto da intervenção estatal. Esses estágios podem, até um certo ponto, ser correlacionados com as sucessivas fases de expansão das ondas ou ciclos longos. Além das diferentes formas de intervenção estatal, relacionadas ao seu caráter cíclico e correspondentes aos papéis econômicos ou históricos em transformação do Estado, é necessário considerar também que a intervenção estatal irá variar historicamente de acordo com o estágio de crescimento econômico, mas não de forma linear como acreditava Rostow (1960ROSTOW, W. W. (1960). The Stages of Economic Growth, Cambridge, Mass., Cambridge University Press. ). Depois da contribuição clássica de Gerschenkron (1962GERSCHENKRON, Alexander (1962) Economic Backwardness in Historical Perspective. Cambridge, Mass., Harvard University Press. ) tornou-se claro que a intervenção estatal será tanto maior quanto mais tardia for o início da industrialização em relação aos primeiros países industriais. Levando esta teoria ao limite, o caso da União Soviética pode ser considerado não como uma experiência socialista malsucedida, mas como êxito de uma estratégia industrializante estatista (vide Bahro, 1978BAHRO, Rudolf (1978). The Alternative in Eastern Europe. London, New Left Books. ). Os casos da Alemanha e do Japão no final do século passado e os casos do Brasil e da Coréia neste século seriam situações intermediárias em que uma aliança entre a burguesia e o Estado tecnoburocrático estava por trás do processo inicial de industrialização.

As nacionalizações na primeira fase de industrialização tardia são necessárias somente porque o Estado tem a habilidade para extrair da sociedade a poupança forçada necessária. Uma vez terminada esta fase, entretanto, a obtenção de poupança forçada deixa de ser elemento essencial da estratégia de crescimento. O problema clássico de uma alocação eficiente de recursos assume sua plena relevância, porque o desenvolvimento econômico não pode mais se basear num mercado interno reservado, protegido da competição externa. O crescimento depende agora do aumento da produtividade e da competitividade internacional da produção nacional. Não somente a acumulação de capital, mas também a inovação, a introdução permanente de progresso técnico, assumem um papel decisivo no processo de desenvolvimento econômico. E neste momento tornam-se evidentes as limitações do planejamento econômico comparativamente à coordenação via mercado. As empresas controladas pelo mercado tendem e têm de ser mais flexíveis, criativas e eficientes. As empresas estatais, além de não terem tantos incentivos para inovar, são frequentemente vítimas de interesses políticos. Como resultado, o processo de estatização tenderá a ser reduzido após a fase inicial de industrialização tardia. E só se recuperará depois que o processo de privatização ocorra. Foi exatamente o que aconteceu no começo deste século à Alemanha e ao Japão. É o que está atualmente acontecendo no Brasil, Coréia, México, e, de certa forma diferente embora semelhante, na China e na União Soviética. A perestroika é uma tentativa deliberada de Mikhail Gorbachev de reduzir a intervenção estatal e elevar o papel do mercado na coordenação da economia política.

Assim sendo, para os retardatários no processo de industrialização, a tendência de longo prazo parece ser de redução da intervenção estatal. De fato, o que a experiência de países como Alemanha, Japão e Áustria mostra é que uma nova onda de intervenção estatal ocorreu quando estes países atingiram níveis de crescimento comparáveis aos dos mais desenvolvidos. Neste segundo ciclo de expansão estatal, entretanto, a ênfase não estava mais concentrada em estatizações. Desde a Segunda Guerra Mundial a intervenção estatal estava dirigida para construir um Estado do bem-estar, e para a regulação micro e macroeconômica.

É este novo padrão de intervenção do Estado - o padrão keynesiano e do welfare state - que enfrenta uma crise desde os anos 70. Essa crise, que ainda não terminou, em um primeiro momento leva à redução do papel econômico do Estado, mas muito provavelmente deixará o Estado pronto para uma nova fase histórica de expansão. Dado o caráter em constante transformação da intervenção estatal, nesta nova fase a intervenção assumirá necessariamente novas formas, respondendo às novas e mais recentes necessidades da sociedade.

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  • WILDAVSKY, Aaron (1985). “The logic of public sector growth”. ln Jan-Erik Lane, ·ed. (1985).
  • 1
    Economia Política é o nome original da Economia ou Teoria Econômica. Foi abandonado quando os economistas neoclássicos decidiram “expurgar a Economia da Política e da ideologia”. A tradição, entretanto, foi mantida por marxistas, keynesianos e estruturalistas. Mais recentemente surgiu nas universidades dos países avançados, em geral fora dos departamentos de economia, um campo chamado Economia Política, ou, contraditoriamente, Polítical Economics (Política da Teoria Econômica) (ver Alt e Chrystal, 1983ALT, James E. e CHRYSTAL, Alec (1983). Political Economics. Berkeley University of California Press. ).
  • 2
    As evidências a favor dos ciclos Kondratieff são muito fortes. Examinei o assunto em Lucro, Acumulação e Crise (1986, cap. 12), onde uma extensa bibliografia pode ser encontrada.
  • 3
    Os dados de Joseph J. Wallís baseiam-se no relatório elaborado pelo Ministério do Comércio americano, Historical Statistics on Government Finance and Employment (Washington, D.C., 1969).
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    Agradeço a Eduardo Gianetti Fonseca, Eunice Duran, Philippe Faucher e Helen Shapiro por seus comentários e sugestões.
  • 5
    JEL Classification: H11.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 1989
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