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O Plano Austral* * Traduzido por Marina Brasil Rocha.

Austral Plan

RESUMO

Este artigo analisa o plano de estabilização argentino, conhecido como “Plano Austral”. Dividimos este trabalho em três seções principais. Na primeira, as proposições teóricas, que, a nosso ver, são importantes para a compreensão das medidas do “Plano Austral”; sejam revistas. A segunda seção aborda as medidas mais importantes do plano e a evolução da economia argentina durante os primeiros nove meses de aplicação do plano, ou seja, desde o momento em que o plano foi implementado até que os preços começaram a subir. Na última seção, consideramos algumas questões que o programa terá de enfrentar no futuro próximo.

PALAVRAS-CHAVE:
Plano Austral; inflação; estabilização

ABSTRACT

This paper analyses the Argentine stabilization plan, known as “Austral Plan”. We divided this work in three main sections. In the first one, the theoretical propositions, which, according to us, are important for understanding the measures of the “Austral Plan”; are reviewed. The second section looks at the more important measures of the plan and the evolution of argentine economy during the first nine months of the application of the plan, that is, from the time the plan was implemented until the prices began to rise. In the last section, we consider some questions the program will have to face in the near future.

KEYWORDS:
Austral plan; Argentina; stabilization

1. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS

A dinâmica da inflação

Desde 1975, a economia argentina tem experimentado taxas de inflação altas e variáveis. Em consequência, as mudanças nos preços relativos seguiram uma escala de variação com um forte componente aleatório. Em tal contexto, os agentes econômicos mostram-se reticentes em estabelecer contratos em termos nominais, pois o valor real dos mesmos seria muito afetado, tanto pelos movimentos futuros nos níveis de preços como pelos dos preços relativos. Devido a alta probabilidade de que se produzam fortes variações nas taxas de inflação futuras, os contratos em termos nominais desaparecem e, inclusive, os contratos indexados tornam-se arriscados. O risco de mudanças nos preços relativos no futuro não pode ser evitado, uma vez que a indexação leva em conta o nível geral de preços como base para os pagamentos futuros. Disto, deduz-se que se produzirá uma relação inversa entre a inflação observada e a duração dos contratos e que, à medida que a duração dos contratos se reduz, a incerteza em relação ao futuro aumenta. Sob tais circunstâncias, o custo de recolher informação relevante acerca da evolução futura da economia torna-se cada vez mais alto.

Entretanto, deve-se levar em conta que, à medida que não se estejam produzindo shocks de preços relativos (por exemplo, uma maxidesvalorização), a indexação à inflação passada é uma alternativa racional e eficiente, pois permite evitar a renegociação dos contratos (especialmente aqueles que fixam os salários).

Nesse sentido, não só é crucial conhecer como os agentes formam suas expectativas inflacionárias, mas, também, os custos de recolhimento de informação relevante e os custos de renegociação dos contratos.

A experiência argentina parece indicar que em uma situação normal, os agentes formadores de preços tendem a estabelecê-los tendo como referência a inflação passada. Isto é, os salários, as tarefas públicas e o câmbio tendem a ser estabelecidos segundo esta regra, e a inflação torna-se inercial. Há inflação hoje porque houve inflação ontem. “Normal”, neste contexto, significa que não se estão produzindo mudanças significativas nos preços relativos devido, por exemplo, a um shock de oferta, pressões dos sindicatos por aumentos salariais ou medidas de política. Isto assim é devido a que, afora a inércia advinda da indexação, a tese central da teoria estrutural da inflação é que esta é provocada por mudanças nos preços relativos chaves.1 1 Para uma revisão dos recentes desenvolvimentos na teoria estruturalista latino-americana da inflação, ver Figueiredo et alii (1985) e Heymann (1986).

Com base na teoria estrutural,2 2 A argumentação que se segue baseia-se em Frenkel (1983b) e (1984). a dinâmica da inflação na Argentina pode ser representada por:

P t = a 1 P t f l e x + a 2 P t f i x + a 3 P t g o v (1.1)

onde Pt é a taxa de inflação em termos de um nível de preços agregado e Ptflex, Ptfix e Ptgov são, respectivamente, a taxa de variação de preços do setor de preços flexíveis, do setor de preços administrados e do setor público.

Por outro lado, a1, a2 e a3 são parâmetros que representam a participação de cada setor na oferta agregada.3 3 As referências básicas para esta distinção entre preços flexíveis e administrativos são: Kalecki (1971), Okun (1981) e, para inflação alta, Frenkel (1979).

A desagregação implícita em (1.1) reflete as características estruturais da economia argentina. No setor de preços flexíveis, os agentes econômicos são “tomadores” de preços. Isto é, os preços são determinados pela oferta e demanda. Trata-se de um setor que produz, basicamente, alimentos não-manufaturados ou matérias-primas. Neste setor, os preços experimentam uma maior variabilidade do que nos demais. Devido a isso, o índice de preços flexíveis induz uma maior volatilidade no índice de preços agregado.

O setor de preços administrativos é predominantemente industrial e oligopólico. Nele, a formação de preços realiza-se com base na regra do mark-up. Em uma situação normal (isto é, quando não se está produzindo um shock de preços relativos), como demonstrado por Frenkel (1983bFrenkel, Roberto (1983b), La Dinámica de los Precios Industriales en la Argentina, 1966-1982. Un Estudio Econométrico, Buenos Aires, Estudios CEDES .),4 4 Em Frenkel (1979) demonstra-se, na realidade, que a taxa de mark-up depende das expectativas de perdas de renda e de capital que, por sua vez, são função da demanda efetiva e da inflação esperada. a taxa de mark-up é constante. Dado que, ao nível agregado, os custos primários mais importantes são os constituídos pelos salários e as matérias-primas importadas, a inflação em termos de bens industriais pode ser expressa como:

P t f i x = b 1 e t + b 2 w t (1.2)

onde et é a taxa de variação dos preços domésticos dos bens importados, wt a taxa de crescimento dos salários e b1 e b2 são parâmetros. A equação (1.2) implica que o setor de preços administrados atua como um mecanismo de transmissão das pressões inflacionárias de outras partes do sistema. A elasticidade b1 e, portanto, a importância dos bens importados na explicação da inflação dependerá da proporção de bens comercializáveis utilizados como insumo no processo produtivo. A variabilidade de e, será uma função tanto dos preços internacionais como da política das autoridades em relação ao câmbio.

Na Argentina, o câmbio é uma variável controlada em larga medida pelo governo (ao menos no curto prazo). A taxa de crescimento dos salários é função de vários fatores, entre os quais cabe incluir: o marco institucional em que os salários são negociados, o nível da demanda por emprego e as expectativas dos assalariados com relação à taxa de inflação futura. Entretanto, a experiência indica que, na Argentina, os fatores institucionais e políticos, tal como a força dos sindicatos, parecem desempenhar um papel crucial na determinação dos salários reais e na inflação. Assim, por exemplo, nas acelerações inflacionárias de 1975 e 1983, os salários monetários tenderam a crescer acima da inflação, como resultado das pressões sindicais, e os aumentos nominais de salários foram repassados aos preços, com o que se induziu um processo inflacionário acumulativo.

O terceiro componente de (1.1), as tarifas públicas, é uma variável controlada pelo governo e deve ser considerada uma variável de política.

Substituindo (1.2) em (1.1) temos:

P t = x 1 P t f l e x + x 2 P t + x 3 W t + x 4 P t g o v (1.3)

A taxa de inflação no período t é, então, uma função: da taxa de variação dos preços “flexíveis”, do câmbio, dos salários e das tarifas públicas. As elasticidades . xi refletem as características estruturais já mencionadas. Em uma situação normal, os preços relativos permanecem aproximadamente constantes e a indexação à inflação passada converte-se em uma regra ótima, tanto para o governo como para o setor privado. Neste contexto, deduz-se que:

W t = P t - 1 , e t = P t - 1 e P t g o v = P t - 1

Se, como estamos supondo, não há mudanças nos preços relativos, PtflexPtfix permanece constante e, portanto, a inflação não desaparece e, sim, torna-se inercial: Pt=Pt-1.

Mas, a indexação “olhando para trás” não é ótima em qualquer contexto. O que ocorre quando os preços relativos se modificam? Se essas mudanças são graduais, os contratos indexados e os acordos implícitos continuam sendo alternativas de menor custo em relação a um custoso processo de renegociação. Mas, se se produz uma forte mudança nos preços relativos, este não será o caso.

Por exemplo, se em um contexto no qual a maior parte da dívida pública pertence ao Estado produz-se um aumento brusco da taxa de juro internacional (como ocorreu na Argentina, a partir de 1981), a consequência imediata será a de um incremento no déficit fiscal e uma piora na conta corrente. Diante disso, a reação provável das autoridades será a de aumentar as tarifas públicas e desvalorizar a moeda doméstica. De acordo com (1.3), essas medidas levarão a uma sensível aceleração da inflação e a uma ruptura com a “normalidade”. Um resultado altamente provável desses fatos é o de que os agentes mudem a forma com que estabelecem suas expectativas. Isto é, haverá uma mudança estrutural no modelo estabelecido em (1.3). Os agentes baseiam suas expectativas de inflação em toda a informação disponível, incluindo a informação de que a economia está em desequilibrio e que, portanto, se podem esperar fortes mudanças nos preços relativos. Dado que, sob condições de shock, um erro de cálculo no preço do próprio produto poderia implicar perdas sensíveis de capital ou de receitas, os agentes começarão a formar suas expectativas “olhando para a frente”, ao invés de “olhando para atrás”. Os custos de renegociação tornam-se menores que os benefícios advindos de evitar perdas de capital ou de receitas.

Essas mudanças na forma com que os agentes formam expectativas constituem um risco básico e característico da dinâmica de uma economia que se encontra atravessando um período de·shock.

Sendo assim, se os agentes levam em conta toda a informação disponível de uma forma racional, por que os shocks de política foram tão efetivos em induzir mudanças nos preços relativos no passado? Como foi possível modificá-los em 1976-1977 e a partir de 1981? A resposta que parece mais plausível surge da diferença entre ter expectativas corretas e estar em condições de impor os preços de salários “desejados” na renegociação. A renegociação de preços e salários é uma função do marco institucional. Nesse sentido, deve-se salientar o fato de que outro risco característico dos shocks de política é o de que eles são capazes de conduzir a economia a um certo tipo de desequilíbrio, de acordo com os objetivos de política do governo, tal como, por exemplo, fechar o mercado externo ao custo de abrir, de forma simultânea, o mercado interno (isto é, gerando desemprego). Uma condição necessária para esse resultado é a existência de contratos flexíveis que atuem como uma âncora para a estabilidade econômica. Quando os agentes econômicos mostram uma “indevida” propensão em concretizar contratos flexíveis (especialmente acordos salariais), o resultado é uma forte instabilidade econômica (como ocorreu na Argentina em 1975).5 5 Para uma revisão das políticas de ajuste na Argentina nos últimos dez anos, ver, por exemplo: Canitrot (1981), Fanelli e Frenkel (1985), Feldman e Sommer (1983). Para o período anterior, podem-se ver Mallon e Sorrouille (1975) ou Williamson (1983).

A dinâmica do setor financeiro

Como consequência do processo de “ajuste caótico” ante a restrição externa que se inicia com a crise de princípios de 1981 surge uma série de fatores econômicos novos na dinâmica de funcionamento do sistema financeiro, que deve ser levado em conta para a elaboração da política econômica.

Em primeiro lugar, a dívida externa líquida do país aumentou exponencialmente a partir de 1980.6 6 Ver Quadro n. 1. Frente à impossibilidade de o setor privado encarregar-se dela, o setor público, através de diversos mecanismos, terminou por se incumbir da sua quase-totalidade. Isto é, a dívida externa está, hoje, nacionalizada e, portanto, é o setor público que deve encarregar-se de praticamente todos os serviços gerados por tal dívida. Tal abertura reverteu-se, por sua vez, em um aumento permanente do gasto público, cujo impacto imediato foi o de aumentar substancialmente o déficit fiscal. Como consequência do aumento no montante de juros a pagar pelos fatores do exterior, a relação PNB/PIB sofreu uma mudança estrutural, caindo em mais de 6% do PIB e, dado que a dívida é do setor público, tal queda na renda nacional tomou a forma de um aumento do déficit fiscal que, de fato, acabaria por reduzir a renda disponível do setor privado.

Em segundo lugar, o mercado internacional de capitais está racionado. Na medida em que os pagamentos de juros são superiores à disponibilidade de crédito externo, o país deve manter um superávit permanente na balança comercial. De fato, a Argentina se converteu em um país exportador de capitais.

Em terceiro lugar, as exportações provêm do setor privado que, em consequência, é o dono do superávit comercial. Portanto, para fazer frente ao pagamento dos juros da dívida pública externa, as autoridades devem comprar as divisas do setor privado. Essas transações se realizam através do sistema financeiro. A priori, poderia supor-se que os mercados proveriam um conjunto de rendimentos de equilíbrio dos ativos tal que os residentes aceitariam voluntariamente possuir em suas carteiras o dinheiro ou os títulos domésticos em troca das divisas obtidas no comércio exterior. Contudo, dado o enorme montante da nova dívida pública a acomodar anualmente em relação à existente, tal conjunto de rendimentos poderia não existir.7 7 Para a análise da determinação dos rendimentos de equilíbrio em um sistema de equilíbrio geral de ativos financeiros, ver, por exemplo: Tobin (1979 e 1981), Taylor (1983) ou Taylor e Rosenweig (1984). A formalização seguinte acompanha a destes autores e difere da dos tradicionais, como as que se encontram em Mckinnon (1973) e Shaw (1973). Para a importância do problema de como agregar os ativos financeiros, ver Leijonhufvud (1967). Dada a enorme dificuldade em acomodar a dívida externa ou interna, uma alternativa poderia ser a de elevar os impostos e utilizar essas receitas para fazer frente aos pagamentos externos. Tal aumento, entretanto, implicaria forte queda da renda disponível dos particulares, o que seria extremamente prejudicial aos incentivos em uma economia capitalista. Esse dilema é o núcleo do problema de transferência interna.

Essas características estruturais de funcionamento do sistema financeiro e suas repercussões sobre o lado real podem ser melhor compreendidas fazendo-se uso de um modelo sensível, que reflita as relações entre as condutas dos setores externo, público e privado.

No que diz respeito ao setor privado, ao nível macroeconômico, o montante dos fundos disponíveis para empréstimos líquidos oferecidos por ele ao resto dos agentes do sistema é dado pela diferença entre a poupança e o investimento do setor. Tais fundos, por sua vez, são empregados na aquisição de ativos financeiros emitidos pelos agentes econômicos tomadores desses fundos líquidos. Logo (a não ser que se afirme o contrário, todas as variáveis consideradas no decorrer do texto estão expressas em termos reais):

S - I = M - C P = N (2.1)

onde: o investimento financeiro líquido privado (∆N) é igual à diferença entre o aumento dos ativos financeiros do setor no sistema bancário e o aumento do crédito tomado pelos particulares no mesmo; M pode ser interpretado como “dinheiro” em sentido amplo, isto é, abrangendo todos os ativos de curto prazo do sistema bancário que paguem ou não juros. A fim de simplificar, suporemos, por um lado, que não existe um mercado de títulos de longo prazo do governo e, por outro lado, que os particulares não podem operar com divisas, senão através do sistema bancário. A primeira suposição considera o fato de que, devido à extrema incerteza com respeito à evolução da inflação e dos preços relativos e à fragilidade do sistema financeiro, o mercado de ativos financeiros haja desaparecido, nos últimos anos, na Argentina. A segunda suposição se refere a que, dado o controle do câmbio, todas as operações de capital do mercado de câmbio estão sob a supervisão do Banco Central.

Apesar disso, existe, na verdade, um mercado “negro” de divisas. Neste trecho da análise referimo-nos à parte “branca” da economia. Posteriormente, faremos algumas considerações a respeito de como muda o modelo ao levar-se em conta o mercado paralelo de divisas. Suporemos, ainda, que a poupança é função crescente do nível de renda (y); que o investimento depende positivamente dos preços de demanda dos bens de capital (q) e, negativamente, da taxa de juros assegurada pelos ativos financeiros (r). Por último, a demanda líquida de ativos financeiros pelo setor privado (N) é uma função crescente de r, e decrescente de q. Desse modo, a demanda por ativos financeiros aumenta quando a inflação se eleva, em face da necessidade de reposição dos saldos reais corroídos por ela, e também aumenta com o nível de renda, motivada pelas transações. Presumindo (daqui para a frente, no subíndice é indicada a derivada da variável referente ao mesmo):

S y - I q , r = N q , r , π . y S y > 0 ; I q > 0 ; I r < 0 ; N q < 0 ; N r > 0 ; N π > 0 ; N y > 0 (2.1’)

O setor público, por sua vez, oferece ou demanda ativos financeiros à medida que o resultado de suas decisões conduza, respectivamente, a um superávit ou déficit. Supondo que o setor público leva a cabo suas transações financeiras através do sistema bancário, o déficit público define-se como:

G + Z - T = C G (2.2)

Isto quer dizer que, se o gasto público em bens e serviços (G) mais os pagamentos pelos juros da dívida externa (Z) - que supomos só seja realizado pelo Governo por estar a dívida nacionalizada - superam a arrecadação imposta (T), então o setor público deve tomar fundos no sistema bancário (CG), já que supusemos que não pode colocar títulos de longo prazo e que as operações de curto prazo só se realizam através do sistema bancário. Todas essas variáveis são exógenas, exceto a arrecadação tributária que é função inversa da taxa de inflação e direta do nível de renda. A relação inversa entre a arrecadação tributária e a inflação deve-se ao efeito de diferimento fiscal. Dado o período entre a notificação e o pagamento efetivo dos impostos, quando a inflação se acelera, o valor da arrecadação cai em termos reais. Não obstante, deve-se esclarecer que, enquanto G é exógena por ser um instrumento de política, Z o é porque depende da taxa de juros internacional (que é um dado exógeno). Isto é, Z está fora do controle do governo. Disto, segue que:

G + Z - T π , y = C G c o m T π < 0 ; T y > 0 (2.2’)

No setor externo, o montante de fundos para empréstimo que o resto do mundo põe à disposição do país se define como a diferença entre o incremento do crédito externo (∆K) e a acumulação de reservas (∆R) no período. Ex post, tal montante deve coincidir com o déficit em conta corrente. Isto quer dizer que, se a soma das importações de bens e serviços (H) e os pagamentos de juros da dívida (Z) são superiores às exportações (X), o país recebe poupança· externa.

H + Z - X = K - R (2.3)

No que diz respeito às funções de comportamento, suponhamos que as exportações são exógenas devido tanto à restrição da demanda efetiva internacional quanto às limitações de oferta interna de produtos exportáveis. Quanto às importações, o fato considerado é que são uma proporção fixa (h) do nível do produto interno por se tratar, basicamente, de insumos intermediários e bens de investimento utilizados no processo produtivo. Para refletir o fato de que o sistema financeiro internacional encontra-se racionado, suporemos que não exista “dinheiro fresco”, pelo que ∆K=0. Por último, para simplificar, supõe-se que o Banco Central não acumula nem desacumula divisas (isto é, ∆R=0).

Portanto:

Z ¯ - X ¯ - h Y (2.3’)

Dado que, ao nível agregado, a soma dos déficit e superávit de todos os setores deve ser zero e que o sistema bancário só se limita a facilitar as transações, sem poupar nem investir, da contabilidade do sistema bancário surge que:

M - C P = R + C G - K (2.4)

e dados os supostos do modelo:

N = C G (2.4’)

Isso quer dizer que a condição de equilíbrio no mercado financeiro é a de que a demanda de “dinheiro” deva ser igual às necessidades de crédito do governo.

Um primeiro exercício para ver a dinâmica do funcionamento financeiro da Argentina é o de observar a relação entre pagamentos de juros da dívida externa, rendimento dos ativos financeiros e investimentos. Para efeito de isolar o mais possível os aspectos monetários suporemos que a renda é dada e que a inflação é determinada pela equação da inflação estrutural. Fazendo-se as substituições correspondentes, o resultado é um sistema de duas equações com duas incógnitas (q e r):

S Y ¯ - I q , r = Δ N q , r , π ¯ (2.1’)

Δ N q · r · π , Y = Δ C G ¯ (2.4’)

A equação (2.2’) representa, então, o equilíbrio dentro do setor privado e a (2.4’), o equilíbrio do mercado de “dinheiro”.

De acordo com as suposições feitas quanto à conduta dos agentes agregados, deduz-se que:

d q d r < 0 S e t o r p r i v a d o (2.5)

e que

d q d r > 0 " d i n h e i r o " (2.6)

Graficamente:

No setor privado, (2.5) expressa o fato de que existe uma relação inversa entre o preço de demanda dos bens de capital e o rendimento dos ativos financeiros, que é apresentada no Gráfico 1.8 8 Utilizamos a expressão “preço de demanda dos bens de capital” no sentido empregado por Minsberg (1975).

Os pontos sobre a curva correspondente ao setor privado equivalem a pontos de equilíbrio de orçamento de tal setor. Ou seja, a poupança privada é igual ao investimento físico mais o investimento financeiro dos agentes privados. O setor privado está em desequilíbrio acima ou abaixo da curva. Acima dela, por exemplo, existe um excesso de investimento sobre a poupança. Portanto, ou o bem q deve cair para que se reduza o investimento físico, ou o bem r deve diminuir para que o investimento financeiro se reduza, liberando fundos para o financiamento do investimento privado. No que diz respeito ao mercado de dinheiro, a equação (2.6) mostra que existe uma relação positiva entre o rendimento dos ativos físicos e os financeiros. Isto se reflete através da tendência positiva da curva do Gráfico 1. Os pontos sobre a curva indicam todos os possíveis equilíbrios do mercado de “dinheiro”. Os pontos acima e abaixo desta representam estados de desequilíbrio. Assim, os pontos situados sobre a curva do mercado de dinheiro indicam situações de excesso de demanda de tal ativo. Por isso, dado o crédito necessário para o governo (∆CG=∆CG), se existe um excesso de demanda de fundos líquidos, ou a taxa de juros deve baixar ou o preço de demanda dos ativos físicos deve aumentar, para que os agentes substituam “dinheiro” por tais ativos (isto quer dizer que· sobe a demanda por investimento).

Se as equações de ajuste dinâmico do sistema são tais que, por uma parte, no mercado de dinheiro a taxa de juros sobe quando se produz um excesso de oferta de dinheiro e, por outra parte, no setor privado, o preço de demanda dos bens de capital aumenta quando existe um excesso de fundos para empréstimos oferecidos pelos agentes privados que poupam a estes que investem, então pode-se demonstrar que o sistema é estável.

Sendo assim, neste contexto, o que ocorre quando o déficit fiscal aumenta de forma abrupta, como na Argentina, no período anterior ao Plano Austral?9 9 Ver Fanelli (1984) para a análise deste processo e suas repercussões sobre a estrutura de poupança, investimento e financiamento e Fanelli e Frenkel (1985a) para o estudo do processo de endividamento externo.

Fazendo-se uso do modelo, na sua forma estática, pode-se observar no Gráfico 2 que o resultado é um aumento da taxa de juros no mercado de “dinheiro” e uma queda no investimento devido ao fato de que o preço de demanda dos bens de capital (q) se reduz:

De fato, o incremento do déficit do governo implica que as necessidades de crédito do setor público aumentam de ∆CG a ∆CG1. O primeiro impacto é um aumento na taxa de juros paga pelos ativos financeiros que, por sua vez, torna o investimento nesses ativos mais rentável que o realizado em ativos físicos. Assim, produz-se uma depressão no preço de demanda dos bens de capital (q) que leva a uma queda no investimento (ponto B).

A primeira conclusão é, então, que ocorre uma relação inversa entre o aumento do déficit e o investimento. Entretanto, isto não seria importante se, por exemplo, o aumento do déficit levasse a um aumento no investimento público. O efeito de crowding out sobre o setor privado poderia ser compensado pelos efeitos benéficos do investimento (por exemplo, em infraestrutura) no crescimento do produto. Na Argentina, a diferença específica é que o déficit do governo cresceu porque aumentaram os pagamentos externos (Z) e o déficit fiscal ficou fora de controle, ainda que o gasto público em bens e serviços - especialmente em investimento - tenha se reduzido acentuadamente.

Isto é, não se trata de um deslocamento do gasto privado em favor do estatal e, sim, em favor do pagamento de juros ao exterior, o qual se reverte em gasto interno. Quando o incremento do déficit fiscal se deve ao aumento de G é possível manter, em princípio, a hipótese de renda constante, pois um tipo de gasto (G) substitui o outro (I). Quando o aumento do déficit se deve ao aumento de Z, então a hipótese de renda constante é errônea. Não é suficiente que o governo consiga os fundos mediante um aumento de crédito que toma no sistema bancário (∆CG). Deve converter, ainda, os recursos obtidos em moeda doméstica, em divisas. Se o mercado de crédito externo está relacionado, isto implica que o superávit comercial deve crescer e o governo “comprar” tal incremento do superávit para pagar os juros da dívida. Essas novas divisas assim conseguidas exigem, por sua vez, que o setor privado aumente sua provisão de ativos domésticos, já que de 2.2’, 2.3’ e 2.4’ surge que, em equilíbrio:

G ¯ + X ¯ - h Y - T = Δ C G = Δ N

Isso é o que chamamos de problema da “transferência interna”, que é a contrapartida da ‘’transferência externa’’ de recursos devido aos pagamentos de juros da dívida externa. Assim quando Z aumenta, o setor externo entra em desequilíbrio ao mesmo tempo que o déficit fiscal aumenta. Para reequilibrar o setor externo, deduz-se de 2.3’ que a única forma de alcançar o equilíbrio é através da diminuição do nível de renda que, com isso, leva à redução das importações. Isso implica, por sua vez, taxas de juros ainda maiores e preços de demanda dos bens de capital ainda menores (e, com isso, investimento menor) que, no caso de crowding out, não é devido ao aumento de Z e, sim, de G. De fato, ao cair a renda, a poupança disponível S(y) se reduz, o mesmo ocorrendo com os impostos T(y) (com o que aumenta ainda mais o déficit). Para que a poupança seja igual ao investimento e o mercado de dinheiro esteja em equilíbrio, o investimento deve cair e a taxa de juros deve subir.

Entretanto, essa forma de ajuste tem limites precisos. Se o aumento das necessidades financeiras do governo é muito grande, a combinação de taxas de juros, investimento e produto resultante se torna, por várias razões, insustentável. Em primeiro lugar, a subida abrupta da taxa de juros em um contexto recessivo implica forte aumento da fragilidade do sistema financeiro devido à impossibilidade por parte dos devedores de fazer frente aos serviços do capital emprestado. Em segundo lugar, a queda do investimento e do produto se dá a taxas insustentáveis do ponto de vista social. Isso ocorreu na Argentina durante o período 1980-1982 porque o governo decidiu intervir no mercado financeiro controlando a taxa de juros. Isto é, para minorar o peso do ajuste sobre o lado real da economia o governo elegeu, como alternativa, pôr em desequilíbrio o sistema financeiro. Entretanto, essa medida não foi suficiente. Além disso, provocou o desequilíbrio do setor externo visando minorar a queda do produto originada pela queda das importações. “Pôr em desequilíbrio o setor externo”, neste contexto, implica não respeitar o racionamento imposto pelo sistema financeiro internacional e tomar crédito, atrasando-se nos pagamentos de serviços da dívida. Com efeito, a partir de 1982, os atrasos da Argentina começaram a se acumular. Quando isso ocorreu, o FMI foi chamado a exercer seu papel de “árbitro” do racionamento existente no mercado internacional de capitais e, em 1983, firmou-se o primeiro de uma série de acordos stand-by. Supondo-se que o governo garantisse o nível de importações e que mantivesse o produto constante, como funcionaria o setor financeiro neste contexto?

Essa situação está ilustrada no Gráfico 2. Quando se verifica aumento nas necessidades de crédito do governo, o novo ponto de equilíbrio do setor financeiro seria, como se viu, o ponto B. Entretanto, a combinação (r1 q1) não é sustentável. Dadas a fragilidade financeira e queda do investimento resultantes, o governo se vê obrigado a controlar a taxa de juros ao nível r0, com a intenção de permanecer em A, com um nível de investimento maior. Isso implica que a demanda de “dinheiro” está em desequilíbrio. Em A existe um excedente de oferta de “dinheiro”. Isto é, os agentes possuem mais ativos financeiros que os que desejariam a esta taxa de juros r0. É o que se poderia denominar “hiato financeiro” (em alusão a um terceiro hiato no lado monetário, que não aparece nos modelos reais de dois hiatos)10 10 Para uma elaboração teórica do modelo de “dois hiatos”, ver Bacha (1983).

O núcleo da existência desse “hiato financeiro” é constituído pela dicotomia entre a dinâmica de funcionamento do sistema financeiro e a dinâmica da inflação que é determinada pela equação estrutural (1.3), de forma independente dos excessos de demanda no mercado monetário. Com efeito, se a dinâmica da inflação fosse tal que se determinasse pelo mercado de dinheiro, então o excesso de oferta de “dinheiro” se traduziria por um excesso de demanda global, que levaria o mercado de novo ao equilíbrio. Assim, se ao determinar-se exogenamente a taxa de juros a inflação passasse a ser uma variável endógena, então, no gráfico 2 a curva de “dinheiro” se deslocaria novamente de B para A em consequência do aumento da inflação que, ao corroer os ativos nominais em poder do público, levaria ao aumento da demanda de dinheiro com o objetivo de repor os saldos reais diluídos pela inflação. Como a inflação é determinada estruturalmente, esse tipo de ajuste fica descartado. A relação entre inflação, demanda por ativos financeiros de curto prazo e desequilíbrio no mercado monetário, pode ser vista mais claramente observando-se a relação entre “dinheiro” e inflação.

O valor real do incremento nominal da demanda de ativos financeiros por parte do setor privado ΔN¯ pode ser expresso como:

Δ N = Δ N t * P t = Δ n t + Δ n t - 1 π t 1 + π t * = n o m i n a l (2.7)

Isto significa que ∆N compõe-se de dois termos: o incremento da demanda de ativos financeiros líquidos em termos reais Δnt=ΔNtPt e a parte dos saldos líquidos do período anterior, que foram liquidados pela inflação. Isto é, o chamado “imposto inflacionário”. No modelo, supusemos que a relação entre ∆N e πt é positiva. Agora suporemos, ainda, que a relação entre ∆nt e π é negativa. Isto é, que os agentes reagem reduzindo a demanda, em termos reais, de ativos financeiros ante o incremento da inflação devido a que o imposto inflacionário aumenta junto com a taxa de inflação.11 11 Isto é, supomos que nt=0. Donde ntt=0 e nt=nt(t)-nt-1(t-1). Assim, se em cada período t, a forma funcional que relaciona n corri πw não varia, então, quando a inflação se acelera, n sobe e, quando a inflação é constante, o incremento de n é nulo. Graficamente, a relação entre ∆N e π - dados o ∆CG e a taxa de juros controlada - é, então, como a apresentada no Gráfico 3.

Quando há inflação, a demanda de “dinheiro” do setor privado sobe a fim de repor os saldos reais corroídos pela inflação, e declina quando a inflação se acelera para evitar o imposto inflacionário. No equilíbrio no ponto E, ∆CGt=∆Nt e a taxa de inflação que deixaria em equilíbrio o mercado de “dinheiro” é πtE. Tal taxa de inflação de equilíbrio se verificaria se os preços reagissem ao nível agregado em função dos excessos de demanda de dinheiro, que é a hipótese monetarista habitual. Mas, se a inflação não é um fenômeno monetário, isto é, se a inflação é estrutural, pode aparecer um desequilíbrio, um hiato financeiro.

De fato, no Gráfico 3, observa-se que, se a economia estava em equilíbrio em E e o crédito demandado pelo governo aumenta, então, o novo equilíbrio seria F com uma inflação πtF. Mas, se a inflação determinada estruturalmente prossegue sendo 7r~, então, surge o hiato financeiro, devido à sobredeterminação do modelo. A diferença entre ∆CGt·e ∆Nt é uma medida do tamanho do desequilíbrio financeiro, já que os agentes detêm ativos financeiros não desejados em um montante igual a CGt'-Nt.

Como se ajusta a economia ante esse desequilíbrio? Dado o deprimido nível do preço de demanda dos bens de capital, se os agentes tratam de livrar-se dos ativos financeiros ao máximo, isto repercutirá sobre a demanda de bens de consumo, minorando um pouco os efeitos multiplicadores da queda da renda. Um pouco disso ocorreu em 1983 e 1984. Entretanto, há um mecanismo de transmissão que é muito mais importante. Até agora, nós não levamos em conta o mercado paralelo de divisas. Se os agentes tratam de se livrar do excesso de oferta de dinheiro, substituindo artigos domésticos por ativos externos no mercado negro, o câmbio paralelo aumentará o incremento do câmbio. O aumento do câmbio paralelo debilita a efetividade do controle do câmbio, porque aumenta a rentabilidade de sobrefaturar importações e subfaturar exportações, dando origem à redução do superávit comercial “branco”. Se, para evitar essas operações, o governo vê-se obrigado a desvalorizar, o ritmo de incremento dos preços se acelerará e o excesso de oferta de dinheiro será eliminado via imposto inflacionário.

Para resumir a discussão anterior: a dinâmica de funcionamento do sistema financeiro na Argentina, antes do Austral, era tal que apresentava um dilema: se o mercado financeiro não se regulasse, o resultado era um forte aumento da taxa de juros que deprimia o investimento e aumentava a fragilidade do sistema. Se o mercado financeiro se regulasse, o coeficiente de liquidez tendia a cair, a inflação a se acelerar e a poupança privada a se desnacionalizar à medida que os agentes privados substituíssem ativos domésticos por ativos externos.

O PLANO AUSTRAL

A situação anterior

Ao assumir em dezembro de 1983, as autoridades constitucionais receberam a economia em um estado caótico. O déficit fiscal e a oferta monetária estavam fora de qualquer controle, a inflação mensal atingia 18% e as negociações dos compromissos externos se encontravam suspensas. Por outro lado, após dez anos de recessão econômica, havia fortes expectativas na população de que o governo democrático engendraria rapidamente um processo de crescimento e melhoria de renda e emprego dos setores mais marginalizados da sociedade.

Neste contexto, a primeira equipe econômica do governo democrático decidiu dar prioridade ao aumento dos salários reais e à reativação da economia, de modo que se tentou a implementação de uma política “gradualista”, orientada para induzir uma queda paulatina da taxa de inflação. A renegociação dos compromissos externos só seria encarada de forma subordinada ao alcance dos objetivos anteriores. Os credores externos, ao contrário, atuavam em função de uma ordem de prioridades exatamente inversa.

No primeiro semestre de 1984, o consumo e os salários reais se elevavam ao mesmo tempo que as tarifas públicas e o câmbio decresciam e a inflação se acelerava. Por outro lado, as pressões externas no sentido de dar uma definição ao problema da renegociação dos compromissos da dívida faziam-se cada vez mais fortes. Nessas condições, após um longo processo de marchas e contramarchas, durante o qual a tentativa de refinanciar a dívida diretamente com os bancos privados e os governos chegou a um ponto morto, foi firmado um acordo de intenções com o FMI, na segunda metade de 1984. Essa tentativa de estabilização, entretanto, teria uma duração efêmera devido a que, em primeiro lugar, tal como ocorrera com o stand-by anterior em 1983, o “erro” na avaliação acerca da evolução futura da inflação introduziu graves equívocos na fixação das pautas nominais estabelecidas para os ativos domésticos e o déficit fiscal, deixando ao governo e ao Fundo, praticamente como única alternativa, suspender o acordo e voltar a negociar. De fato, foi isto o que ocorreu, deixando a economia no estado de extrema incerteza que se verifica a cada nova negociação de um stand-by.

Essa tentativa falida de estabilização teve custos significativos para a economia em termos de recessão e aceleração inflacionária. O produto bruto - desestacionalizado - sofreu uma queda no último trimestre de 1984, que se prolongou durante os primeiros nove meses de 1985, de modo que a inflação chegou, rapidamente, perto de 30% ao mês. Por outro lado, a tentativa de restringir a criação de moeda em um contexto de quase hiperinflação levou a uma forte queda no coeficiente de liquidez. A relação M1/PIB ficou abaixo de 5% e com tendência a cair. Desse modo, a aceleração da inflação devido ao hiato temporal entre o endividamento e a cobrança efetiva dos impostos produziu sérios problemas fiscais. O déficit ficou em torno de 10 pontos do produto interno bruto e a única forma de financiá-lo era recorrer à emissão inflacionária. O imposto inflacionário, medido pela perda de valor de M1, se situou acima de 5% do PIB no primeiro semestre. O poder aquisitivo dos salários, no entanto, caía de modo pronunciado devido à aceleração da inflação. Sendo essas as circunstâncias, o governo democrático decidiu trocar o “gradualismo” por uma política de shock.

Em tal contexto, o Plano Austral pode ser interpretado como uma estratégia de avanço em várias frentes simultâneas, na tentativa de evitar as inconsistências a que haviam induzido os planos anteriores ao serem implementados ajustes parciais. Daí porque todas as medidas que compõem o programa estão intimamente relacionadas e não é aconselhável analisá-las em separado, sem levar em conta permanentemente as interações previstas entre elas. Os pilares básicos que dão sustento ao programa podem ser resumidos em: a) congelamento de preços, salários, câmbio e tarifas públicas; b) ajuste das contas fiscais e renegociação dos compromissos da dívida externa; e c) reforma monetária.

AS MEDIDAS DO PLANO

Preços, salários e câmbio

As referências feitas com relação a este ponto constituem a parte mais “heterodoxa” do programa que foi objeto de dura negociação com o FMI. Basicamente porque implicava o desenho de uma política de estabilização que utilizava como marco de referência analítico a concepção estruturalista da inflação - comentada na seção anterior-, totalmente oposta à tradicional visão analítica de staff do Fundo. Para os técnicos deste órgão, dado que o programa se propunha a zerar a emissão monetária e também reduzir, de forma drástica, o déficit fiscal, o controle de preços e salários se tornava redundante. Um caso típico de sobredeterminação do modelo.

Cabe salientar aqui que, em especial, duas hipóteses teóricas das comentadas anteriormente apresentavam-se como cruciais na fundamentação dos controles de preços implementados. A primeira diz que, em um contexto de inflação alta e incerteza, torna-se difícil e custoso para os agentes formadores de preço e assalariados proverem-se da informação necessária para o cálculo dos preços “corretos”. Por isso, uma decisão racional, eficiente e barata, neste contexto, é a de indexar-se à inflação passada. Por sua vez, como a política do governo - exceto a dos períodos de shocks - havia sido, em geral, a de indexar o câmbio e as tarifas de acordo com o ritmo de crescimento dos preços internos, o resultado era que os índices de inflação desenvolviam uma dinâmica própria. Uma dinâmica que se tornava inercial e que tendia a perpetuar-se se não fosse perturbada por shocks de oferta oriundos do setor de preços flexíveis ou da política do governo. Dada a estrutura de ajuste dos contratos nominais e os custos implícitos em todo processo de renegociação, resultava improvável que os excessos de demanda produzissem ajustes rápidos na inércia inflacionária.

Uma segunda hipótese importante nos fundamentos das políticas adotadas é a de que o período de ajuste dos contratos é uma função inversa da magnitude da inflação observada. À medida que o benefício de renegociar aumenta quando a inflação se acelera (porque o custo de oportunidade de não fazê-lo aumenta), o período de duração do contrato acordado em termos nominais diminui.

Com base nestes fundamentos implementou-se um congelamento de preços destinado a cortar a inércia inflacionária, obrigando os agentes a modificar a lógica de seu comportamento diante de inflação alta ao provê-los com novas regras para a coordenação de suas decisões ao nível microeconômico. Foram fixados os preços privados (com algumas exceções no setor de preços flexíveis), os salários, as tarifas públicas e o câmbio. Como se tinha por base a ideia de que a inflação era suficientemente alta para que a duração dos contratos fosse exígua, esperava-se que os preços relativos não ficassem muito distorcidos ao serem congelados.

Com o objetivo de cumprir-se as metas do setor público e externo, as tarifas públicas e o câmbio foram ajustados de forma significativa antes do congelamento. Esperava-se que o efeito negativo disto sobre os salários fosse compensado pelo aumento do salário médio ex post, induzido pela queda da inflação. Apesar disso, para evitar que os salários ficassem “atrasados” a partir do congelamento, foram ajustados no mês anterior com base na inflação passada.

Ajuste fiscal e renegociação da dívida

No momento da implementação do Plano, o déficit fiscal era cerca de 8% do PIB. Um déficit de tal magnitude, dada a estrutura e a dinâmica de funcionamento do sistema financeiro que detalhamos na seção anterior, implicava uma taxa de crescimento do crédito ao governo que se traduzia por um nível de taxa de juros que levava a economia real à recessão e o sistema financeiro a um estado de fragilidade extrema e progressiva desnacionalização. As únicas alternativas plausíveis para modificar esta dinâmica de comportamento do sistema no curto prazo eram as de, por um lado, reduzir o déficit fiscal e, por outro, conseguir uma maior disponibilidade de crédito externo. Assim, no plano fiscal, o objetivo proposto pelo programa foi o de levar o déficit do orçamento a algo próximo a 2,5 pontos do PIB, devido a que se considerava factível conseguir financiamento externo em igual montante. Dessa forma, não seria necessário recorrer à poupança privada através do sistema financeiro, nem ao imposto inflacionário. O incremento das tarifas públicas, os impostos sobre o comércio exterior e combustíveis e a colocação em prática de um “sistema de poupança obrigatória” para os setores de maiores rendas foram as medidas mais importantes. O objetivo básico era o de trocar uma forma de imposição desordenada e de efeitos traumáticos (imposto inflacionário) por outra mais ordenada e eficiente (ainda que subótima). Por uma parte, com o êxito do congelamento de preços, esperava-se que a queda abrupta da taxa de inflação levasse, por si só, a um incremento da arrecadação tributária ao reduzir-se o efeito corrosivo sobre o resíduo fiscal. Por outra parte, a renegociação dos compromissos externos fez-se no marco de um acordo stand-by com o FMI como condição prévia ao acesso aos fundos de crédito externo necessários para financiar o déficit fiscal. No acordo, estipularam-se as pautas para o déficit fiscal e o setor monetário que já comentamos e, além disso, previram-se metas para o setor externo que implicavam o compromisso de manter um superávit na conta comercial, similar ao de anos anteriores.

A reforma monetária

Ao anunciar-se o Plano, o sistema de relações monetárias desintegrava-se aceleradamente, forçado por uma instabilidade cuja gênese era devida, basicamente, a duas causas: por um lado, a crise de princípios dos 80, da qual o sistema bancário não havia conseguido recuperar-se e, por outro lado, as altíssimas taxas de inflação que se vinham registrando por um período prolongado.

O Plano propunha induzir uma mudança significativa nesta dinâmica de funcionamento. Esperava-se influir de forma significativa nas expectativas inflacionárias mediante a fixação do câmbio, o controle de preços e os anúncios de controle fiscal e monetário. Fez-se a reforma monetária em consonância com esses objetivos. Não obstante isto, a reforma foi parcial e insuficiente, já que no momento da implementação não foi factível realizar a necessária reforma estrutural do sistema financeiro.

Constituíam o núcleo central da reforma monetária os seguintes elementos. Primeiro, o governo comprometeu-se expressamente em não emitir moeda com o objetivo de financiar o déficit fiscal. Segundo, a taxa de juros nominal fixada para depósitos reduziu-se de forma drástica: de 30% para 4%. Terceiro, trocou-se o símbolo monetário, passando-se da denominação de “pesos argentinos” para “austrais”, segundo a relação 1A=1.000$a. Quarto, elaborou-se uma tábua de conversão para os contratos financeiros acordados em pesos argentinos com vencimento posterior à data de implementação da reforma, segundo a qual o austral valorizava-se diariamente em relação ao peso argentino, de acordo com uma pauta similar à inflação anterior à entrada em vigência do Plano.

Esta última medida era destinada a evitar o primeiro e imediato perigo que deveria ser superado pelo Plano no âmbito financeiro: a redistribuição de riqueza entre devedores e credores a que o congelamento induziria. O objetivo central deste último era o de romper a inércia inflacionária. Tal inércia se refletia no mercado financeiro, nas taxas nominais de juros e nos mecanismos de indexação que incluíam no rendimento dos ativos, sejam as expectativas inflacionárias, seja a inflação passada.

Se, de “um dia para o outro”, a inflação passa de 30% ao mês para um valor próximo de zero%, aqueles que se endividaram a uma taxa nominal de 30% ou mais sofreram uma forte perda de capital ao desacelerar-se a inflação. Os credores obtiveram um lucro simétrico. Este efeito é conhecido na literatura econômica como “efeito Fisher”. Ao verificar-se, induz situações de insolvência e iliquidez entre os devedores que levam o sistema financeiro a um nível de fragilidade insustentável. O efeito Fisher é o imposto deflacionário. A tábua de conversão de pesos em austrais propunha-se, justamente, a evitar este efeito.

Em termos do modelo desenvolvido na seção precedente, estas medidas implicavam, por uma parte, que posteriormente à implementação do Plano ∆CG apresentaria um valor positivo e aproximadamente igual a 2,5 pontos do PIB. Com isso, esperava-se que a pressão da “transferência interna” sobre o mercado financeiro ficasse aliviada. Desse modo, o congelamento de preços deveria induzir um forte aumento na demanda por ativos financeiros de curto prazo, de forma que o imposto inflacionário seria reduzido de forma drástica. Isto é, em (2. 7) ∆nt>0. De fato, deveria produzir-se, então, um excesso de demanda de ativos financeiros que levaria a uma redução da taxa de juros à medida que o objetivo de controle do déficit tivesse êxito. A taxa de juros fixada, entretanto, apresentava-se em um nível excessivamente baixo para efeito de evitar a possibilidade de que uma falta· de credibilidade no plano nos primeiros dias de sua implementação levasse os agentes a substituírem ativos domésticos por divisas.

O Plano Austral: da implementação ao descongelamento

Dinheiro e crédito

A reforma monetária foi bem assimilada pelos agentes sem que se produzissem desordens importantes na implementação das medidas. Por um lado, a população contava com certa experiência no que se refere a mudanças de símbolo monetário, já que duas delas haviam ocorrido no passado recente e, por outro lado, na aplicação da tábua de deságios nas obrigações financeiras com vencimentos posteriores a 14 de junho há evidências de que a legislação ou foi aplicada ao pé da letra ou, em alguns casos, os contratos foram respeitados a partir da negociação entre as partes sem que se produzissem conflitos sérios em tal processo. Na realidade, o maior problema verificou-se na aplicação do deságio por parte do governo aos seus credores. Entretanto, obteve-se um acordo em um tempo moderado.

O primeiro teste de importância no plano financeiro que o programa enfrentou com êxito foi o da reabertura dos bancos logo após o feriado obrigatório decretado no momento do anúncio das medidas. Dado que a taxa de juros nominal caíra mais de 20 pontos em algumas horas, temia-se que se produzissem retiradas maciças de depósitos. Entretanto, nada disso ocorreu e tal fato foi interpretado como um sinal de credibilidade. O programa ganhava, assim, sua primeira batalha contra as expectativas. Inclusive poder-se-ia dizer que a reação dos agentes em termos de suas decisões de portfolio foi ainda melhor que o esperado, já que se verificou uma queda significativa (de mais de 50%) na cotação do dólar no mercado paralelo e um sensível aumento no investimento financeiro em ativos domésticos (depósitos a prazo e ações em bolsa). A entrada de capitais exteriores fez, inclusive, com que por alguns dias a diferença entre a cotação do dólar oficial e do paralelo fosse negativa. A fim de evitar isso, o governo viu-se obrigado a aumentar o prazo mínimo de permanência dos capitais financeiros externos (de 180 para 360 dias) e a encurtar o prazo de pré-financiamento das exportações tradicionais (de 180 para 90 dias). O objetivo, em ambos os casos, era o de frear o fluxo de capitais externos.

De qualquer modo, o excesso de oferta de divisas era um sinal claro de credibilidade no programa à medida que quem decidia substituir seu portfolio em dólares por ativos domésticos estava assumindo, de forma plena, o risco cambial. De forma diversa da ocorrida com as entradas de capital de curto prazo anteriores, agora o governo não oferecia seguros de câmbio para a operação e, além disso, o mercado de câmbio estava estritamente sob controle. Portanto, quem trocava dólares por ativos domésticos tinha uma forte expectativa na estabilidade futura do câmbio, de modo que assumia o risco de vender divisas em um mercado com excesso de oferta com a possibilidade de ter que recomprá-las no futuro em um mercado com excesso de demanda.

Isto é, o preço futuro do dólar não era garantido no mercado paralelo e o controle do câmbio no oficial impedia a saída de capitais através do mesmo.

O governo deixava de subsidiar aos especuladores o custo do risco que assumiam. Esta é uma diferença crucial na dinâmica de funcionamento dos mercados financeiros em relação ao que ocorreria durante o período de “pautas cambiais” e na primeira parte do período de ajuste caótico.

Em consequência desta sensível mudança nas decisões de portfolio dos agentes, as reservas do Banco Central aumentaram em mais de US$ 1.200 milhões no terceiro semestre de 1985. Entretanto, dado o contexto de incerteza em que o programa de estabilização foi posto em prática, este deslocamento nas preferências de portfolio dos agentes só pode ser induzido no curto prazo ao custo de uma taxa de juros alta em termos reais, de modo que a mesma continha um elevado componente de risco. Apesar disso, conseguir um deslocamento significativo das preferências por ativos externos para ativos domésticos no curto prazo era de crucial importância para o êxito do Plano, pois, por um lado, a abertura cambial é vista pelos agentes relevantes como um indicador de estabilidade e, por outro lado, se os agentes domésticos possuem um maior componente de ativos em austrais em seus portfolios e a economia se remonetariza, o Banco Central recupera a capacidade de fazer política monetária à medida que a poupança de particulares se renacionaliza.

Deve-se notar ainda que, além disto, como veremos adiante, dadas as características do sistema financeiro, só em parte a maior taxa de juros converteu-se em uma carga mais elevada para as empresas. Na realidade, a elevada taxa de juros em termos reais é mais um problema fiscal que empresarial.

Entretanto, desde o shock inicial, as taxas de juros tenderam a cair de forma paulatina à medida que o plano de estabilização se afirmava (ver Quadro 1) e porque, além disto, a política monetária não foi excessivamente dura. De fato, nos primeiros nove meses de aplicação do plano, o crédito no setor privado cresceu de forma contínua à medida que a remonetização da economia tinha lugar. Assim, entre junho e março, o crédito ao setor privado aumentou em mais de 50%, ou seja, aproximadamente 10% acima dos juros acumulados pela capitalização dos empréstimos. É possível, inclusive, que, se o governo não tivesse que seguir estritamente as metas negociadas com o FMI para os ativos domésticos, a queda da taxa de juros e o aumento do crédito pudessem ter tido uma performance melhor, sem gerar forte desequilíbrio ao nível macroeconômico. Neste sentido, cabe assinalar mais uma vez que o sistema de metas do fundo monetário torna-se ineficiente à medida que limita fortemente a flexibilidade das respostas das autoridades ante a evolução da economia.

Quadro 1:
Taxas de juros efetivas para 30 dias e diferença cambial (em porcentagem)

Dado que, como veremos, o Plano teve um retumbante êxito em provocar uma queda abrupta nos níveis de inflação, tal fato também teve consequências sensíveis sobre as decisões de portfolio dos agentes. A queda da inflação induziu um forte aumento na demanda de dinheiro por parte de particulares, que levou a um acelerado processo de remonetização da economia. O coeficiente de liquidez em termos de M1 (títulos e moedas mais contas correntes como proporção do PIB) passou de um mínimo histórico de 3,4%, no trimestre imediatamente anterior à implementação do programa, a 5,6%, no trimestre seguinte, e a 7,7%, no primeiro trimestre de 1986 (ver Quadro 2). Isto quer dizer que, em nove meses, esta variável cresceu 126%. Com o coeficiente de liquidez medido por M4 (M1 mais depósitos a prazo) ocorre algo similar. Em nove meses, cresce mais de 80% passando de 10,8% no segundo trimestre de 1985 a 19,6% no primeiro trimestre de 1986. É interessante observar que a causa determinante neste processo de remonetização da economia é, claramente, constituída pela desaceleração da inflação e, só em segundo lugar, pelas altas taxas de juros reais prevalecentes nos primeiros meses do Plano. De fato, por um lado, M1 cresce mais rapidamente que M4 e, por outro lado, não se observa uma “fuga” dos depósitos a prazo em consequência da queda na taxa de juros real ocorrida nos últimos meses.

Quadro 2:
Coeficientes de liquidez (em porcentagem)

Estes fatos implicam uma profunda mudança estrutural no aspecto financeiro do sistema econômico, muito difícil de manipular na hora de realizar a programação monetária, já que, à medida que representa uma mudança estrutural, torna difícil prognosticar até onde chegará o processo de remonetização.

Em tal contexto, falar de uma taxa de crescimento de “equilíbrio” dos agregados monetários resulta, na maioria das vezes, numa expressão carente de sentido preciso. Entretanto, observando-se os coeficientes de monetarização alcançados pela economia no passado, é plausível pensar-se que ainda resta um bom trecho por percorrer. Quem sabe até uns 10% acima do PIB, caso se leve em conta, por exemplo, a relação M4/PIB alcançada no início da década com uma taxa de inflação ao redor de 100% ao ano (ver Quadro 2).

A contrapartida deste aumento do coeficiente de liquidez devido à queda da inflação foi uma redução significativa do imposto inflacionário cobrado sobre M1. No Quadro 3 pode observar-se o comportamento desta variável no passado recente. Assim, o imposto inflacionário cobrado daqueles que mantinham M1 em carteira em 1984 era de aproximadamente 8% do PIB ao ano, isto é, ao redor de uns 2% por trimestre. Entretanto, observando-se o ocorrido nos dois primeiros trimestres de 1985, verifica-se que o valor desta variável tendia a aumentar no tempo. Apenas nos dois primeiros trimestres de tal ano posicionou-se em 5,2% do PIB, ainda que o volume de M1 estivesse caindo e se situasse, como já dissemos, abaixo de 4% do PIB. O aumento do imposto inflacionário cobrado e a queda do coeficiente de liquidez são expressões características dos processos anteriores à hiperinflação. Contudo, o Plano Austral cortou pela raiz tal possibilidade. Como se pode observar no quadro que estamos comentando, o imposto inflacionário cobrado nos nove primeiros meses do Plano situa-se abaixo do ponto médio do PIB.12 12 Para a metodologia de cálculo do imposto inflacionário, ver Daniel e Fanelli (1985). Esta difere da metodologia convencional que é seguida por Cagan (1956).

Quadro 3:
Imposto inflacionário

Cabe salientar aqui que utilizamos o conceito de “imposto inflacionário” devido ao fato de os economistas ortodoxos terem popularizado este nome para a descrição deste fenômeno, ainda que a custo de produzir algum mal-entendido. É claro que, na verdade, “imposto inflacionário” é um eufemismo que estamos utilizando para referirmo-nos a um processo de redistribuição de riqueza entre os diferentes setores da sociedade, sem que por isso nos comprometamos com a teoria monetarista no que diz respeito aos mecanismos de transmissão da política monetária, que une o dinheiro aos preços através dos excessos de demanda de bens. Só queremos salientar que é um fato que a inflação “corrói” a riqueza dos detentores de M1. O que não está nada claro - empiricamente - é se o Estado é beneficiado ou não com a inflação, já que os efeitos dos aumentos de preços sobre a arrecadação impositiva são muito fortes devido ao hiato temporal entre endividamento e cobrança. O que está claro é que o governo tem um aumento de seus passivos e que financia este incremento da sua dívida via emissão monetária. O que não é de todo claro é porque e como se gera o passivo do Estado a ser financiado, quem lhe transfere renda e quem o quita quando há um processo inflacionário em marcha.

A transferência de riqueza que a perda de valor de M1 implica, entretanto, não é a única que é produzida através do sistema financeiro. À medida que a taxa de juros sobre os depósitos a prazo é menor que a taxa de inflação, também os tomadores de crédito cobram o que poderíamos, metaforicamente, chamar de “imposto inflacionário privado” aos credores líquidos do sistema. Quando isto ocorre, os passivos privados corroem-se. É o que ocorreu, por exemplo, em 1982, quando a corrosão devida à aceleração inflacionária produziu uma queda nos níveis de depósitos a prazo de 24% para 16% do PIB (ver Quadro 2). Isto quer dizer que as firmas endividadas receberam um subsídio via transferências de riqueza da ordem de US$ 4,5 a US$ 5,5 milhões em um ano, com a perda simétrica para os depositantes no sistema financeiro. Transferências semelhantes de riqueza só podem realizar-se em um contexto de inflação elevada.

Com efeito, o Quadro 4 mostra que a depreciação anual do valor dos ativos do sistema financeiro no decorrer de 1981 até o primeiro semestre de 1985 (durante o período de ajuste anterior ao Austral) foi, em média, de 27% do PIB. A primeira consequência a extrair disto é que, para manter o valor real da oferta de ativos, a nova emissão dos mesmos devia ser em um montante similar em termos reais (isto é, 27% do PIB). Supondo que assim seja, a segunda conclusão é de que em tal contex-to, deixando de lado M1,13 13 Estamos supondo que as contas correntes têm um encaixe de 100%, o que está longe da realidade na Argentina. se a taxa de juros real fosse neutra (isto é, igual à taxa de inflação), a nova emissão nominal de depósitos a prazo pelos bancos comerciais seria, de fato, exatamente igual aos juros devidos por tais ativos. Dito de outra forma, ainda que sem pagar juros reais, as empresas deveriam conseguir, em termos nominais, dinheiro novo em um montante igual aos juros que deveriam pagar. Em princípio, se as empresas indexam perfeitamente seus preços não deveriam ter problemas - se não há recessão - em conseguir o dinheiro. Nessas condições, está claro que o montante abonado sob o conceito de juros nominais representa exatamente a perda do valor nominal do capital tomado sob empréstimo. Quanto maior a inflação, maior a parcela do capital que se deprecia em cada período e, portanto, maior a quantidade nominal do dinheiro que deve “aparecer” no sistema a cada período para que as coisas fiquem como estavam.

QUADRO 4
Depreciação dos ativos nominais (em proporção do PIB)

Neste contexto, o que ocorre se alguém se equivoca? Vimos que a política de situar a taxa regulada abaixo da inflação permitiu uma transferência significativa aos devedores. Mas há outros “equívocos”. Por exemplo, se o FMI e o governo se equivocam ao prever a inflação e a emissão monetária nominal resulta muito inferior aos juros nominais, devidos pelos empréstimos, ainda que sob a hipótese - irreal, neste contexto - de uma taxa neutra, alguém não vai poder conseguir o dinheiro para fazer frente aos seus pagamentos. Assim, produzir-se-á uma crise de liquidez abrupta e súbita, como ocorreu em fins de 1984, na Argentina. Uma contração de liquidez tão tremenda quanto esta só pode ser induzida em um contexto de inflação elevada, onde a cada ano há que se voltar a emitir, em termos reais, em um valor, digamos, de 27% do PIB. O que queremos esclarecer com estes exemplos de “equívocos” é o fato importantíssimo de que as firmas não são indiferentes - em termos de risco assumido - ao montante dos juros nominais a que devem fazer frente (independentemente da taxa real a pagar, que é outro problema diferente). De modo semelhante, tampouco os ofertantes de crédito são indiferentes ao risco de que pactuar com uma taxa nominal equivocada pode significar-lhes uma perda considerável de capital em um curto período de tempo, como foi o caso em 1982.

Também neste aspecto, o Plano Austral produziu uma mudança estrutural que operou em favor de uma redução da incerteza no mercado monetário, já que as taxas nominais caíram de forma abrupta. Nos primeiros nove meses do Plano, a depreciação real dos ativos não superou 1% do PIB e as taxas nominais tenderam a baixar (ver Quadro 2).

No período que estamos analisando, o compromisso de não emitir dinheiro para financiar o déficit orçamentário foi estritamente cumprido (ver Quadro 5). Apesar disso, a base monetária dobrou nos nove meses, de junho de 1985 a março de 1986. Como pode ser observado no Quadro 5, a expansão da base monetária deveu-se basicamente ao setor externo e aos redescontos a entidades financeiras. Especialmente no primeiro trimestre de aplicação do programa, um determinante de importância do aumento da base foi o setor externo, devido ao movimento especulativo comentado mais acima; mas, posteriormente, ante o prolongamento dos prazos para a entrada de capitais e o encurtamento do prazo de pré-financiamento das exportações, a expansão via setor externo reduziu-se. Os redescontos outorgados às entidades financeiras, ao contrário, constituíram-se o principal fator explicativo da criação de dinheiro. Isto, em parte, obedeceu a objetivos de política e, em outra, foi determinado por circunstâncias - resultantes da aplicação do Plano. De fato, no primeiro semestre do Plano a sensível queda da taxa de inflação fez com que, além das mudanças já comentadas na composição da carteira dos particulares, se produzisse uma substituição contrária aos ativos indexados e a favor de outros ativos domésticos. Devido ao fato de que o crédito concedido pelos bancos com base nos depósitos indexados tinha um prazo de maturação maior que o dos depósitos, quando estes últimos não eram renovados os bancos ficavam “descalçados” e o Banco Central teve que cobrir o hiato existente nos bancos entre ativos e passivos dando-lhes redescontos. Nos primeiros meses do programa isso dificultou sensivelmente a programação monetária. Por outro lado, os redescontos foram utilizados para direcionar o crédito escasso disponível para os objetivos de política propostos. Tiveram suma importância, neste sentido, os redescontos dados com o objetivo de promover as exportações.

Quadro 5:
Determinantes da base monetária (em milhões de austrais)

Um ponto importante a ser levado em consideração é que o Plano Austral foi implementado sem que se desse a reforma do sistema financeiro, cujo funcionamento é sumamente ineficiente devido à crise estrutural pela qual passa já desde 1980. À medida que o sistema financeiro não funcionava, o Banco Central foi-se convertendo, com o tempo, no único real intermediário financeiro do sistema, isto é, a única instituição monetária capaz de transformar ativos mais ou menos líquidos em empréstimos de maior prazo de maturação. Tal função foi cumprida, basicamente, através da política de redescontos. Como em muitos casos, a taxa pela qual o Banco Central tomou crédito era maior que a que recebia pelos redescontos, dando origem a um déficit (quase fiscal) em suas contas. Nesse sentido, o Plano Austral melhorou sensivelmente a situação deficitária do Banco Central por duas razões: em primeiro lugar, pela queda da taxa de juros e, em segundo, porque induziu um aumento na demanda, por parte do público, de depósitos em conta corrente que são um ativo contra o qual o Banco Central pode emitir redescontos (já que o nível de encaixe é muito elevado) sem pagar juros. Esse fato refletiu-se em uma forte queda na emissão monetária via conta de regulação monetária (ver Quadro 5). No caso dos depósitos a prazo, ao contrário, o Banco Central coloca títulos nos bancos para diminuir a capacidade de empréstimo gerada por tais depósitos e volta a emprestar dinheiro via redescontos. Em geral, a taxa a que toma empréstimo, como dissemos acima, é superior a que empresta dinheiro. Essa mecânica, se bem que pressione o déficit, tem a vantagem de reduzir o custo financeiro das empresas, amenizando o efeito do risco implícito nas taxas de juros. Em certo sentido, pode-se dizer que, dessa forma, o Banco Central modifica o perfil dos subsídios que outorga em relação ao de anos anteriores. No período do ajuste caótico subsidiava o risco dos especuladores no mercado de divisas via seguros de câmbio e agora passa a subsidiar o custo do risco assumido pelas empresas produtivas que tomaram crédito.

Preços, salários e nível de atividade

O programa estabeleceu um congelamento de todos os preços (exceto daqueles bens de oferta com marcante estacionalidade, tais como frutas e verduras) ao nível que estavam em 12 de junho de 1985 - isto é, dois dias antes do lançamento do Plano - com o objetivo de não legitimar os aumentos preventivos que ocorreram em alguns produtos, em consequência do vazamento para a imprensa de algumas das medidas do programa (tais vazamentos foram, em sua maioria, inexatos). Os controles estabelecidos de preços foram, de fato, muito frouxos. Apesar disso, o congelamento foi respeitado de forma ampla devido à ação positiva do público que atuou de forma espontânea em apoio à medida. Para os produtos não compreendidos no congelamento estabeleceram-se margens máximas de comercialização.

O efeito destas medidas - e das demais que compunham o Plano - sobre a taxa de inflação foi rápido e contundente. A taxa de inflação em termos de índice de preços dos bens comercializados no atacado passou de 42,4% em junho para -0,9% em julho. Nos primeiros nove meses de aplicação do Plano, a inflação média mensal medida por este índice foi de l ,4%, enquanto nos nove meses anteriores tal média situara-se em 24,7% (ver Quadros 6 e 7). Quanto aos preços de varejo, o aumento dos mesmos em julho foi de 6,2% e nos primeiros nove meses a média mensal atingiu 3,1%. No mês imediatamente anterior ao Plano, a inflação ao nível de varejo fora de 30,5% e de 23,2%, em média, nos três trimestres que o precederam. O número para julho é muito mais elevado para o varejo que para o atacado devido a um simples efeito de medição estatística. De fato, dado que os preços de varejo medem a evolução das médias mensais de preços, e que o congelamento foi implementado em meados do mês, os 6,2% de julho “incorporam”, na medição, parte da inflação anterior ao Plano Austral. Com os preços de atacado isso não ocorre, à proporção que a inflação medida por tal índice compara níveis de preços em meados de um mês com níveis de preços de meados do mês seguinte. Isto é, o índice de julho refletiu de forma completa os efeitos do congelamento.

Quadro 6:
Taxas trimestrais de inflação, taxa de desvalorização e evolução das tarifas públicas
Quadro 7:
Taxas de variação mensal dos preços-chaves (porcentagem)

Afora o efeito de incorporação ocorrido no primeiro mês, que exagera a diferença entre a evolução dos preços no atacado e no varejo, o que os algarismos anteriores mostram claramente é que a inflação foi maior de forma sistemática, considerando-se os preços de varejo relativamente aos de atacado nos primeiros nove meses de aplicação do programa. A explicação para esse comportamento diferenciado entre ambos os índices reside no fato de que, no lapso de tempo que estamos comentando, produziu-se uma mudança nos preços relativos que implicou aumento em termos reais do valor de alimentos (em especial frutas, legumes e verduras) e de alguns serviços pessoais em relação aos bens de origem industrial e às tarifas públicas. Dado que a ponderação no índice de varejo dos preços, cuja posição relativa melhorou, é maior que no caso do índice de atacado, a taxa de inflação medida pelo primeiro apresentou-se maior que a medida pelo segundo. No Quadro 2, pode-se observar o diferente comportamento dos preços relativos mencionados, de acordo com a evolução dos diferentes componentes do índice de preços ao consumidor. Ali observa-se uma redução contínua do valor relativo dos bens de origem industrial e das tarifas públicas e um incremento nos preços dos alimentos e dos serviços pessoais. No caso dos alimentos, entretanto, quando se observa a evolução dos diferentes itens que compõem este agregado, fica claro que o aumento do preço composto pelo mesmo explica-se, em primeiro lugar, pelo aumento no preço relativo das frutas, legumes e hortaliças e, em segundo lugar, pelo aumento no preço da carne. Mesmo assim, observando-se o nível dos preços relativos destes últimos produtos no momento do congelamento, verifica-se que o valor relativo dos mesmos era reduzido, tanto em relação aos de outros alimentos como em relação aos das tarifas públicas e bens industrializados (ver Quadros 8 e 9).

Quadro 8:
Evolução dos preços relativos
Quadro 9:
Evolução dos preços relativos dos alimentos

No Quadro 10, mostra-se quanto da inflação medida pelo índice é explicada pela evolução dos itens mais importantes que o compõem. Pode-se observar, novamente, que a evolução dos alimentos explica a maior parte da inflação de cada período, com exceção de meses como o de outubro em que a maior ponderação dos itens não-alimentícios é devida a fatores estacionais. Neste caso, se inclui a mudança nos preços ocorrida com o início da temporada no ramo têxtil. O mesmo tipo de comportamento aparece da evolução dos diferentes itens dos preços de atacado. Assim, a taxa de crescimento observada para os preços líquidos de atacado de alimentos é menor que a do índice global que os inclui (ver Quadro 6).

Quadro 10:
Principais determinantes da inflação no varejo (em porcentagem)

Uma primeira conclusão a ser extraída dos fatos comentados é que o plano de estabilização teve um retumbante sucesso na eliminação do componente inercial da inflação e na indução de uma súbita mudança nas expectativas, mas deixou a descoberto e intacta uma característica estrutural da economia argentina, a saber, que em um contexto de rigidez, com a queda da maior parte dos preços, as mudanças de preços relativos só se produzem por meio do mecanismo inflacionário. A conclusão de política é, então, que dadas as características estruturais de funcionamento da economia, o objetivo de “inflação zero” não é alcançável.

Em outra ordem das coisas, além do fato de que os preços de alguns alimentos estavam muito “atrasados” em relação a outros preços ao implementar-se o Plano, tais mudanças parecem relacionar-se estreitamente com o aumento do poder aquisitivo do salário, que é produzido devido à queda abrupta da inflação em um contexto de reativação incipiente e “deslizes” nos salários corrigidos acima das metas estabelecidas pelo congelamento de preços e salários (ver Quadro 7).

Para a análise da evolução das remunerações ao trabalho deve-se levar em conta que o conceito de poder aquisitivo do salário é uma noção ambígua em um contexto inflacionário, e que o é ainda mais se a inflação se acelera e desacelera de forma permanente. Na medida em que o período de fixação do salário não é coincidente com o período de gasto do mesmo - devido a que o salário do período t é recebido no início de t+1 e é gasto durante t+1, ainda que com indexação completa -, quando a inflação se acelera, o poder aquisitivo do salário no período de gasto efetivo cai (e aumenta, no caso da desaceleração da inflação). Dado que o Plano Austral induziu uma sensível queda no ritmo de crescimento dos preços era de se esperar que, ceteris paribus, apenas por este fato, o salário real tivesse aumentado. Uma estimativa aproximada do efeito que estamos comentando pode ser feita comparando-se o valor do salário devido no período t deflacionado com base nos preços do período t com o poder aquisitivo do mesmo salário nominal, porém defla­cionado com base no nível de preços em t+1, isto é, o correspondente ao período de gasto. A primeira medida do salário real é a que é a tradicionalmente usada, mas, como se pode deduzir do exposto acima, a mesma não leva em conta o efeito de “desintegração” do salário nominal com a defasagem no período de gasto. No Quadro 11, a coluna SA corresponde à medição tradicional e a SB à do salário, considerando-se o efeito de desintegração. Como se pode observar, ambas as colunas diferem de forma significativa em relação ao número correspondente a julho de 1985.

Quadro 11:
Estimativas do salário real (base 1983=100)

No momento de pôr-se em prática o plano de estabilização existia da parte do governo o compromisso de indexar os salários em 90% da inflação observada no mês anterior. Tal regra foi aplicada sobre os salários devidos em junho, o que implicou aumentos, em termos nominais, de 22,9% sobre os salários de maio. Isto quer dizer que o poder aquisitivo dos salários a serem gastos em julho, dado que a inflação baixou sensivelmente neste mês devido ao congelamento, sofreu um forte incremento. Tal incremento se reflete na coluna SB, mas não na SA. Assim, podemos ver que os salários reais medidos levando-se em conta o efeito desintegração aumentaram entre junho e julho ao redor de 21%, enquanto, segundo o cálculo tradicional, caíram em mais de 2%. Se SB é uma estimativa melhor do poder aquisitivo do salário que SA, o efeito impacto do Plano sobre os salários foi muito positivo.

Dada a alta propensão dos assalariados em gastar em alimentos é possível que se haja produzido um excesso de demanda por esse tipo de bens. Como boa parte dos alimentos têm seus preços formados em mercados “flexíveis”, isto é, que se ajustam segundo a lei da oferta e da procura, este fato contribuiria para explicar por que o preço dos alimentos e as quantidades produzidas tinham uma forte tendência à alta nos últimos meses. Em geral, este seria um efeito plausível se fosse correta a hipótese de que a maior parte do imposto inflacionário era paga pelos setores de baixa renda, à medida que, dada sua restrição de liquidez, não tinham acesso a instrumentos financeiros mais sofisticados que os cobrissem de tal perda de capital.

Se bem que o Plano implicava o congelamento dos salários, este não foi respeitado por vários setores na medida em que se produziram aumentos nominais nos mesmos, como se verifica no Quadro 7. Apesar disso, tais aumentos ficaram abaixo do ritmo de crescimento dos preços, o que implicou a existência de uma tendência à redução do salário real - medido por qualquer dos dois índices - nos meses subsequentes a julho. Tal tendência parece reverter-se desde o primeiro trimestre de 1986. Talvez pelo efeito combinado de um aumento no nível de investimento e de uma flexibilidade maior na pauta salarial por parte do governo, que concedeu um aumento geral de salários de 5% em janeiro. Por último, cabe salientar que o salário médio real durante os primeiros nove meses do Plano Austral, medido por SB, ficou l,7% superior, em termos reais, ao de nove meses anteriores ao mesmo período.

Até aqui utilizamo-nos, para a análise da evolução dos salários, daqueles pagos no setor industrial por serem o melhor indicador existente. Entretanto, há evidências de que desde julho vem se produzindo certa dispersão salarial. Assim, no setor público, os empregados na administração central (com algumas exceções, como professores, militares e pesquisadores científicos) sofreram seguramente uma queda em seus salários reais na medida em que o governo se ateve estritamente às pautas do Plano, enquanto que os empregados nas empresas públicas obtiveram - dada sua maior capacidade de negociação - aumentos salariais acima das metas.

No que diz respeito à evolução do nível de atividade econômica, os indicadores disponíveis mostram que o plano de estabilização obteve em larga medida o efeito desejado de reduzir sensivelmente a inflação sem induzir uma recessão. Com efeito, como dissemos mais acima, a intenção de pôr em prática, até fins de 1984, o acordo stand-by firmado com o FMI, produzira uma forte reversão da tendência expansiva do produto no quarto trimestre desse ano. Até 14 de junho, haviam-se acumulado já três meses consecutivos de queda do produto (ver Quadro 12). Durante o primeiro trimestre de vigência do Plano Austral esta tendência não pôde ser revertida, porquanto em junho ocorreu uma sensível queda do nível de atividade industrial e, durante os primeiros três meses do Plano - se bem que houve uma certa, muito leve, recuperação-, a atividade do trimestre, em média, ficou menor que a dos três meses anteriores. No quarto trimestre, pelo contrário, os sinais de reativação já eram evidentes. O produto global desestacionalizado aumentou em 4,4%. O processo esteve liderado pelo nível de atividade industrial que, em termos desestacionalizados, aumentou em 13%. Além disso, é importante destacar que o aumento na produção industrial foi generalizado, não se observando retrocessos em nenhum dos ramos que compõem o setor. A recuperação, entretanto, foi de magnitude maior em alguns setores que em outros. A liderança ficou com o setor de máquinas e equipamentos, cuja produção aumentou em mais de 20%, seguido pelos setores têxtil e químico com aumentos de produção maiores que 10%. No primeiro trimestre de 1986, a tendência de expansão se manteve. O PIB desestacionalizado aumentou em tal período em 2%, enquanto a atividade industrial (também segundo o índice desestacionalizado) cresceu em 4,2%.

Quadro 12:
Produto Interno Bruto desestacionalizado. Variações em relação ao trimestre anterior (em porcentagem)

Apesar do bom comportamento do nível de atividade e da inflação, deve-se destacar que ainda se observam sinais de que o horizonte de decisões econômicas tomadas pelo setor privado é bastante limitado em relação ao futuro, na medida em que parece haver certa tendência em alguns ramos à sobreutilização da mão-de-obra já existente (eliminando horas extras), abstendo-se de empregar novos trabalhadores. Isso indicaria que ainda subsistem certos laivos de incerteza e falta de credibilidade no programa. Na realidade, uma vez rompidas as expectativas inflacionárias do passado, o maior desafio que o Plano Austral enfrenta hoje é o de romper as expectativas pessimistas com relação às possibilidades de crescimento da economia.

Para alcançá-lo, uma condição necessária (ainda que não suficiente) parece ser a de estar em condições de manter a recuperação da atividade no decorrer do tempo, evitando que uma nova recessão no curto prazo confirme as expectativas pessimistas.

O setor externo

Em consequência do deprimido nível de atividade no decorrer de 1985, que recém-começa a recuperar-se desde o final do ano, o nível das importações sofreu uma significativa diminuição, situando-se ao redor de US$ 3.980 milhões, o que representou um queda de 15,2% em relação a 1984. Por outro lado, a restrição de demanda efetiva que as empresas industriais enfrentaram ao nível interno levou-as a procurar obter saldos no exterior, o que se traduziu em um forte aumento (de cerca de US$ 1.500 milhões) das exportações industriais. Tal incremento mais que compensou a queda no valor das exportações de origem primária, induzida pela forte queda nos preços internacionais dos produtos agrícolas. Como resultado, as exportações totais aumentaram em 3,7%. A queda das importações e o aumento das exportações levaram, por uma parte, a um superávit recorde de US$ 4.500 milhões na conta comercial e, por outra parte, a uma significativa redução do déficit em conta corrente que caiu em quase 60% em relação ao ano anterior. Além disso, devido à acumulação de reservas, a dívida externa líquida caiu pela primeira vez desde 1977.

Este comportamento do setor externo permitiu que as autoridades econômicas tivessem uma posição negociadora melhor ao nível internacional. Assim, o FMI aceitou negociar algumas pautas nominais que não foram cumpridas de acordo com o estipulado ao firmar-se o stand-by. Por outro lado, pela primeira vez desde o conflito das Malvinas, os atrasos que a Argentina tinha desde esta época regularizaram-se.

Entretanto, deve-se destacar que o alcance de um superávit comercial da magnitude do observado em 1985 não foi um objetivo explicitado no Plano Austral. Na verdade, tal superávit é muito mais um resultado da forte recessão iniciada em fins de 1984. Na medida em que o Plano procura reativar a atividade produtiva, torna-se muito difícil que as importações se mantenham em um nível tão deprimido como o de 1985.

Finanças públicas

No que se refere às finanças públicas, os resultados obtidos nos primeiros nove meses do programa foram satisfatórios na medida em que se conseguiu uma forte queda do déficit fiscal na linha do previsto pelo Plano. Com efeito, enquanto o déficit fiscal se situava em 8% do PIB no trimestre maio-junho de 1985, desde o Plano Austral localizou-se em torno de 2,5% do produto (ver Quadro 13). Em consequência, o governo pôde cumprir com o compromisso de não emitir dinheiro com o objetivo de satisfazer suas necessidades de financiamento.

Quadro 13:
Déficit fiscal

A queda do déficit que estamos comentando foi consequência, basicamente, da forte recuperação da arrecadação tributária em termos reais e não da redução do gasto público, já que neste sentido avançou-se muito pouco, ainda que se tenha iniciado a exercer um maior controle sobre os gastos com pessoal e transferências para as empresas públicas.

Por sua vez, o aumento sensível das receitas tributárias explica-se, em primeiro lugar, pelo aumento nas taxas de certos impostos como o de combustíveis e aqueles cobrados sobre o comércio exterior; em segundo lugar, pelo quase desaparecimento do déficit fiscal com a queda da inflação e, em terceiro lugar, pelo maior controle da evasão tributária. Em face do efeito combinado desses fatores, a estrutura de tributação mudou em um sentido positivo no que· diz respeito a uma melhoria da equidade e eficiência do sistema. Nesse sentido, cabe destacar que, se bem que a arrecadação de todos os impostos tenha crescido em termos reais por uma parte, a taxa de crescimento dos impostos diretos foi superior à do resto e, por outra parte, a dos impostos sobre o comércio exterior tendem a decrescer na medida em que os direitos de exportação forem se reduzindo de forma paulatina. Desse modo, contribuiu para este resultado o fato de que, em termos relativos, o efeito do diferimento fiscal14 14 Para um estudo detalhado sobre o efeito de diferimento fiscal durante o Plano Austral, ver Domper e Streb (1985). fazia-se sentir muito mais sobre os impostos diretos do que sobre os de comércio exterior, ainda que em todos os tipos de impostos tal efeito fosse importante. Em 1984, por exemplo, as perdas do Estado por este motivo eram em torno de 2,4 pontos do PIB. Nesse sentido, a queda da inflação favoreceu não só os assalariados, mas também o setor público. A recuperação das receitas do tesouro fez com que o Estado pudesse adaptar-se, sem maiores problemas, ao súbito desaparecimento do imposto inflacionário.

COMENTÁRIOS FINAIS

A partir da crise de endividamento externo, que começa em princípios de 1981, a economia argentina entra em um processo de ajuste que, visto em perspectiva, mostrou-se sumamente caótico e desintegrador. A dinâmica do funcionamento econômico nesse período teve uma forte tendência à instabilidade que procuramos ilustrar no modelo desenvolvido na primeira parte do trabalho. Ao implementar-se o Plano Austral, o maior risco de instabilidade era constituído pela ameaça de hiperinflação. Evitá-la foi um objetivo central do programa de estabilização e, desse ponto de vista, pode-se dizer que os resultados nos primeiros nove meses do Plano foram auspiciosos. De fato, durante esses meses obtiveram-se taxas de inflação que não se registravam de forma sustentada há mais de uma década. O déficit fiscal foi reduzido de forma drástica e conseguiu-se um controle sobre a política monetária ao que foi a norma durante o período de ajuste caótico. No processo que levou a esses resultados não se induziu uma desmonetização abrupta da economia como em experiências anteriores, quando se tentou controlar a oferta de dinheiro, nem estes objetivos foram cumpridos gerando uma recessão prolongada ou provocando uma diminuição abrupta nos salários reais.

Assim sendo, um instrumento de crucial importância para o alcance destes resultados foi o congelamento dos preços durante um período que não se determinou de antemão propositadamente, a fim de não gerar expectativas que desestabilizassem o funcionamento da economia ao aproximar-se o dia fixado para o descongelamento. Apesar disso, é claro que o congelamento não podia durar indefinidamente a fim de manter a taxa de inflação em nível reduzido de forma artificial a que, como vimos, a variação dos preços dos diferentes agregados de bens e serviços foi bastante desigual durante a sua vigência.

Em especial, no que se refere ao maior aumento dos preços flexíveis em relação aos industriais, às tarifas públicas e câmbio. Assim, até o começo do segundo trimestre do ano em curso, para a política econômica apresentava-se um dilema: por um lado, quanto mais longo fosse o período de congelamento, maior seria o desequilíbrio acumulado nos preços relativos e, portanto - dadas as características estruturais da economia-, maior seria, potencialmente, a inflação durante o ajuste posterior. Mas, por outro lado, quanto mais se estendesse o congelamento no tempo, maior seria a probabilidade de que os agentes econômicos perdessem a memória inflacionária do passado, evitando-se, assim, um retorno às condutas indexatórias defensivas no período de ajuste posterior ao descongelamento.

As autoridades econômicas deram por terminado o período de congelamento em princípios de abril desse ano ao estabelecer um sistema de aumentos pré-anunciados para as tarifas públicas, escalas para a variação dos salários e um sistema de crawling peg para o ajuste do câmbio. Essas medidas foram orientadas para recompor os desequilíbrios de preços relativos mais importantes acumulados no decorrer do congelamento.

Além dos condicionamentos já comentados, um dos desafios mais importantes enfrentados pelo programa para alcançar a estabilidade no futuro próximo é dado pela necessidade de encontrar mecanismos eficientes e efetivos para intermediar a luta setorial pela distribuição de renda. De fato, na Argentina, a renda per capita caiu em mais de 20% nos últimos cinco anos e, além disso, as relações trabalhistas entre sindicatos e empresas devem ser recompostas a partir de uma situação na qual a experiência tanto dos trabalhadores como dos empresários no assunto é quase nula devido à forma autoritária com que tais relações foram tratadas durante a ditadura militar. Neste contexto, ainda que a inflação inercial seja eliminada juntamente com as condutas indexatórias defensivas, restaria o problema de conduzir as fortes pressões inflacionárias que são geradas no conflito distributivo. Assim, ainda que o Plano Austral tenha sido uma condição necessária para a recuperação, por parte das autoridades econômicas do governo democrático, dos instrumentos mais importantes para levar adiante as políticas fiscal, monetária, cambial e de rendas, não é condição suficiente para resolver a difícil questão de combinar a necessidade de estabilidade com a satisfação das demandas sociais por uma distribuição mais equitativa da renda e por uma evolução melhor nos indicadores de crescimento econômico.

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  • Leijonhufvud, A. (1968), On Keynesian Economics and the Economics of Keynes, Oxford University Press.
  • 1
    Para uma revisão dos recentes desenvolvimentos na teoria estruturalista latino-americana da inflação, ver Figueiredo et alii (1985Figueiredo, J. et alii (1985), Empleo y Salarios en América Latina, ECIEL.) e Heymann (1986Heymann, Daniel (1986), Tres Ensayos sobre Inflación y Políticas de Estabilización, Buenos Aires, CEPAL.).
  • 2
    A argumentação que se segue baseia-se em Frenkel (1983bFrenkel, Roberto (1983b), La Dinámica de los Precios Industriales en la Argentina, 1966-1982. Un Estudio Econométrico, Buenos Aires, Estudios CEDES .) e (1984Frenkel, Roberto (1984), “Salarios Industriales e Inflación. El Período 1976-1982”, Desarrollo Económico, n. 95.).
  • 3
    As referências básicas para esta distinção entre preços flexíveis e administrativos são: Kalecki (1971Kalecki, Michal (1971), “Cost and Prices” e “Distribution of National Income”, Selected Essays on the Dynamics of the Capitalist Economy, Cambridge University Press.), Okun (1981) e, para inflação alta, Frenkel (1979Frenkel, Roberto (1979), Decisiones de Precio en Alta Inflación, Buenos Aires, Estudios CEDES.).
  • 4
    Em Frenkel (1979Frenkel, Roberto (1979), Decisiones de Precio en Alta Inflación, Buenos Aires, Estudios CEDES.) demonstra-se, na realidade, que a taxa de mark-up depende das expectativas de perdas de renda e de capital que, por sua vez, são função da demanda efetiva e da inflação esperada.
  • 5
    Para uma revisão das políticas de ajuste na Argentina nos últimos dez anos, ver, por exemplo: Canitrot (1981Canitrot, Adolfo (1981), “Teoría y Práctica dei Liberalismo. Política Antiinflacionária y Apertura Económica en lá Argentina”, Desarrollo Econômico, n. 82.), Fanelli e Frenkel (1985Fanelli, J. M. e Frenkel, R. (1985b), “La Argentina y el Fondo en la Última Década”, SELA, Forthcoming.), Feldman e Sommer (1983Feldman, E. e Sommer, J. (1983), Crisis Financiera y Endeudamiento Externo, CET/IPAL. ). Para o período anterior, podem-se ver Mallon e Sorrouille (1975) ou Williamson (1983).
  • 6
  • 7
    Para a análise da determinação dos rendimentos de equilíbrio em um sistema de equilíbrio geral de ativos financeiros, ver, por exemplo: Tobin (1979 e 1981), Taylor (1983) ou Taylor e Rosenweig (1984). A formalização seguinte acompanha a destes autores e difere da dos tradicionais, como as que se encontram em Mckinnon (1973) e Shaw (1973). Para a importância do problema de como agregar os ativos financeiros, ver Leijonhufvud (1967Leijonhufvud, A. (1968), On Keynesian Economics and the Economics of Keynes, Oxford University Press.).
  • 8
    Utilizamos a expressão “preço de demanda dos bens de capital” no sentido empregado por Minsberg (1975).
  • 9
    Ver Fanelli (1984Fanelli, José María (1984), “Ahorro, Inversión y Financiamiento. Una Visión Macroeconómica de la Experiencia Argentina”, Ensayos Económicos, n. 31.) para a análise deste processo e suas repercussões sobre a estrutura de poupança, investimento e financiamento e Fanelli e Frenkel (1985aFanelli, J. M. e Frenkel, R. (1985a), “La Deuda Externa Argentina: Un Caso de Endeudamiento Forzado”, PES. Política, Economía y Sociedad, n. 1.) para o estudo do processo de endividamento externo.
  • 10
    Para uma elaboração teórica do modelo de “dois hiatos”, ver Bacha (1983Bacha, Edward L. (1983), “Growth with Limited Supplies of Foreign Exchange: A Reappraisal of the Two Gap Model”, Pontifical Catholic University.).
  • 11
    Isto é, supomos que nt=0. Donde ntt=0 e nt=nt(t)-nt-1(t-1). Assim, se em cada período t, a forma funcional que relaciona n corri πw não varia, então, quando a inflação se acelera, n sobe e, quando a inflação é constante, o incremento de n é nulo.
  • 12
    Para a metodologia de cálculo do imposto inflacionário, ver Daniel e Fanelli (1985). Esta difere da metodologia convencional que é seguida por Cagan (1956Cagan, P. (1956), “The Monetary Dynamics of Hyperinflation”, in Friedman (ed.), Studies in the Quantity Teory of Money, Chicago University Press.).
  • 13
    Estamos supondo que as contas correntes têm um encaixe de 100%, o que está longe da realidade na Argentina.
  • 14
    Para um estudo detalhado sobre o efeito de diferimento fiscal durante o Plano Austral, ver Domper e Streb (1985Domper, J. e Streb, J. (1986), “La Recaudación Tributaria y el Plan Austral”, Banco Central de la República Argentina, mimeo.).
  • 15
    JEL Classification: E31; F34; E52.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 1987
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