Acessibilidade / Reportar erro

A relação capital/produto na economia política clássica

The capital/product relation in the classical political economy

RESUMO

A relação capital/produto na economia política clássica aparece como uma relação contraditória entre capital e trabalho. Em conformidade com a teoria do valor, à medida que a produtividade aumenta, as mercadorias são depreciadas em valor de trabalho, enquanto o capital é definido como valor em auto-expansão. Este artigo argumenta que o aumento da relação capital/produto (ou composição orgânica do capital) está teoricamente ligado à diminuição do nível de preços.

PALAVRAS-CHAVE:
Investimento; história do pensamento econômico

ABSTRACT

The capital/product relation in the classical political economy appears as a contradictory relation between capital and labor. In conformity with the theory of value, as productivity increases, the commodities are depreciated in labor value, while capital is defined as value in self-expansion. This paper argues that the increase of the capital/product relation (or organic composition of capital) is theoretically linked to the decrease of the price level.

KEYWORDS:
Investment; history of economic thought

A evolução da relação capital/produto e sua contrapartida produto/capital (e lucro/capital, a taxa de lucro ou retomo do capital) tem sido objeto de reflexões teóricas e pesquisas empíricas desde o nascimento da Economia Política. Este artigo procurar resgatar a questão sobre o aspecto teórico singular da medida do valor, utilizada tanto nas análises macroeconômicas quanto nas análises microeconômicas que norteiam os investimentos privados.

A relação capital/produto, na forma utilizada pela economia keynesiana, é análoga ao grau de intensidade do capital na análise microeconômica e à composição orgânica do capital na literatura marxista.

Para uniformizarmos a terminologia, devemos esclarecer que estamos utilizando a relação capital/produto em termos de estoque de capital frente ao fluxo de produção (anual). Uma elevada relação capital/produto corresponde a um elevado grau de intensidade do capital (em relação ao trabalho, ou seja, capital intensivo) e uma elevada composição orgânica (e vice-versa).

Mesmo em relação à economia marxista, este procedimento é teoricamente legítimo, dado que, ao desenvolver a lei de tendência à queda da taxa de lucro, Marx pressupõe constante a taxa de mais-valia (mais-valia/capital variável), que corresponde à distribuição funcional da renda (trabalho vivo) entre lucros e salários (MarxMARX, K. O capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975., Livro III, cap. XIII). Considere-se ainda que, em relação à teoria marxista, ao tratarmos a relação capital/produto em termos de estoques/fluxos, estamos libertando o modelo da hipótese de período de rotação unitário do capital constante e variável.

Trabalhamos, portanto, com apenas duas variáveis: o estoque de capital e o fluxo anual de produção (soma de salários e lucros). Dada a distribuição de renda, qualquer elevação da relação capital/produto se traduz numa queda da taxa de lucro. Em termos marxistas, esta assertiva mantém-se consistente, mesmo libertada a hipótese de distribuição de renda constante - a elevação da taxa de mais-valia encontra limite lógico no trabalho necessário reduzido a zero (quando os trabalhadores “vivessem do ar” - MarxMARX, K. O capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975., Livro III, p. 285). Para Marx, a tendência à queda da taxa de lucro é inexorável mesmo considerando-se os fatores contrários à lei. O decréscimo cíclico da composição orgânica acompanha as crises do processo de produção. Mas, após as crises, “os limites imanentes à produção capitalista são repostos em escala mais potente” (MarxMARX, K. O capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975., Livro III, p. 287).

Utilizaremos para a nossa análise a relação produto/capital como forma inversa à relação capital/produto e como forma simplificada da taxa de retorno do capital (estamos, pois, partindo da hipótese de distribuição funcional da renda constante). Na relação produto/capital passemos à análise conceitual de cada um dos termos envolvidos.

De acordo com a teoria do valor, a elevação da produtividade do trabalho se traduz em queda no tempo de trabalho requerido para se produzir uma mercadoria - quanto menor a quantidade de trabalho, menor o valor da mercadoria (MarxMARX, K. O capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975., Livro I, cap. I). O dinheiro, por sua vez, “é a medida universal do valor” (MarxMARX, K. O capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975., Livro I, p. 106). Estas proposições sobrepostas trazem implícitas, de forma inquestionável, um regime deflacionário em que a elevação na produtividade do trabalho traduz-se em queda nos preços das mercadorias.

A experiência histórica do século XIX confirma a tendência deflacionária teoricamente considerada. O índice geral de preços para a Inglaterra apresenta-se em queda a partir do final das guerras napoleônicas (1815); experimenta elevação relativa com a descoberta das minas de ouro na Califórnia e na Austrália, no início dos anos cinquenta; é estável nas duas décadas que se seguem e retoma seu curso descendente até o final do século (BowdenBOWDEN, W. et allii An Economic History of Europe since 1750. Nova York: AMS, 1970., p. 235).

Portanto, em dinheiro (libras esterlinas vinculadas ao padrão-ouro), o produto nacional crescia com a elevação da quantidade produzida e decrescia com a queda nos preços. Mesmo que o produto estivesse crescendo a nível real, o produto nominal poderia ser estável (com a deflação compensando o crescimento da produtividade do trabalho).

Considerando-se a deflação do século XIX, decréscimos no produto nominal não correspondiam necessariamente a decréscimos no produto real. Seria o momento de ressaltar que, ao se mensurar o produto em libras esterlinas, está-se comparando a produtividade do trabalho das demais mercadorias com a oferta de dinheiro, não necessariamente ouro ou metais (dado que o século XIX, embora deflacionário, assistiu à radical substituição da moeda mercadoria por moeda fiduciária). Em 1815 a moeda mercadoria equivalia a 67% da oferta total de moeda nos Estados Unidos, Reino Unido e França. Em 1913 este nível cai para 13%, com a moeda fiduciária ocupando 87% da oferta total (TriffinTRIFFIN, R. O sistema monetário internacional. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1972., p. 49). Essa substituição de moeda mercadoria por moeda fiduciária, embora amenizasse a queda nos preços, não eliminou a tendência deflacionária do século em referência.

Passemos agora ao denominador da relação produto/capital. O dinheiro, para Marx, só é investido se há expectativas de ganhos nominais - é este o movimento que transforma o dinheiro em capital (MarxMARX, K. O capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975., Livro I, cap. IV). Porém este processo só é válido para uma economia em deflação. Em regime de preços deflacionários não se consideram ganhos reais, assim como num regime inflacionário não se consideram ganhos nominais. Para efeito de investimentos, em deflação a rentabilidade do capital deve ser apurada nominalmente e, num regime inflacionário, a rentabilidade do capital deve ser apurada em termos reais.

Ora, com o numerador da relação produto/capital ao sabor da deflação, e com o denominador forçosamente, por definição, em elevação nominal (considerando-se que parte dos lucros são investidos), a redução da relação produto/capital é logicamente inexorável.

É importante considerar que padrão-ouro não é sinônimo de deflação. Com as descobertas das minas nas Américas, o nível de preços em ouro e prata apresentaram tendência inflacionária do século XVI até o final das guerras napoleônicas. Padrão-ouro é sinônimo de estabilidade no nível de preços a curto prazo, mas de instabilidade no nível de preços a longo prazo (SmithSMITH, A. A riqueza das nações. São Paulo: Ed.Abril, 1983., Livro I, cap. V). No século XX, com a quebra do padrão-ouro e com as políticas monetárias keynesianas, deflação é coisa do passado.

Com a eliminação da deflação no horizonte micro e macroeconômico, os investimentos são projetados e calculados levando-se em consideração a relação produto/capital em nível real (através de preços deflacionados pelo índice do custo de vida, ou qualquer outro índice de preços, a exemplo do deflator implícito do produto).

Em termos keynesianos e com inflação, o produto nacional, com elevação na produtividade do trabalho, cresce em termos reais (com crescimento nominal superior ao real) e o capital pode crescer em termos reais sem redução da relação produto/capital. Aliás, as taxas de lucro dos anos cinquenta e sessenta do século em curso, medidas em termos reais, não encontram paralelo na história do capitalismo.

Da mesma forma, a rentabilidade do capital, em termos microeconômicos, não se pauta mais por ganhos nominais, mas sim por ganhos reais. Se tomássemos a relação keynesiana entre eficiência marginal do capital e taxas nominais de juros, poderíamos efetuar análise análoga. Com expectativas de inflação, a curva de eficiência marginal do capital em termos nominais se desloca para a direita, elevando o nível de emprego a uma dada taxa nominal de juros - o que significa dizer que a inflação reduz a taxa real de juros. Inversamente, no século XIX, as expectativas de deflação levariam a curva de eficiência marginal do capital para a esquerda, reduzindo o nível de emprego a uma dada taxa nominal de juros - o que significa dizer que a deflação eleva a taxa real de juros (KeynesKEYNES, J.M. Teoria Geral. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1970., cap. 17).

A título de conclusão pode-se dizer que a lei de tendência explicitada por Marx no século XIX foi contornada, em nível lógico, pela mudança do padrão monetário no século XX. Teoricamente, se a tendência deflacionária do século XIX tivesse continuidade, o sistema econômico poderia estar enfrentando elevação da relação capital/produto e queda na taxa de lucro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • BLAUG, M. “Progresso técnico e economia marxista”. In Horowitz, D. A economia moderna e o marxismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1972.
  • BOWDEN, W. et allii An Economic History of Europe since 1750. Nova York: AMS, 1970.
  • COOPER, R. “The gold standard: historical facts and future prospects”. In Brookings papers on economic Activity, nº 1, 1982.
  • KEYNES, J.M. Teoria Geral. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1970.
  • MARX, K. O capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.
  • SMITH, A. A riqueza das nações. São Paulo: Ed.Abril, 1983.
  • TRIFFIN, R. O sistema monetário internacional. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1972.
  • 1
    JEL Classification: B12; B14.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Out 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 1995
Centro de Economia Política Rua Araripina, 106, CEP 05603-030 São Paulo - SP, Tel. (55 11) 3816-6053 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: cecilia.heise@bjpe.org.br