Acessibilidade / Reportar erro

Artigos na imprensa sobre o Plano Cruzado

Articles in the press on the Cruzado Plan

RESUMO

Uma compilação de artigos sobre o Plano Cruzado publicados na imprensa.

PALAVRAS-CHAVE:
Inflação; estabilização; congelamento de preços; Plano Cruzado

ABSTRACT

A compilation of press articles about the Cruzado Plan.

KEYWORDS:
Inflation; stabilization; price freezing; Cruzado Plan

Publicamos em seguida uma seleção dos principais artigos publicados na imprensa brasileira, pela ordem de publicação, logo após o choque:

A REFORMA MONETÁRIA NO BRASIL

Rudiger Dornbusch * 2 *Professor at the Chicago University, Chicago, ILL/USA

O governo deu um passo brilhante, oportuno e decisivo ao escolher a reforma monetária para interromper o processo inflacionário. O governo restaurou a economia para sua tarefa fundamental, que é a de criar empregos e progresso econômico, ao invés de servir de paraíso dos especuladores.

Há um ano, quando André Lara Resende e Pérsio Arida apresentaram pela primeira vez sua proposta de reforma monetária, que terminou por ser conhecida como “Proposta Arida”, eu fui cético e crítico. A inflação não era tão explosiva como agora, o orçamento do governo não era equilibrado como atualmente e a proposta era talvez inteligente demais para ser aceita imediatamente. Muita coisa mudou desde então e eles certamente merecem reconhecimento por promoverem esta mudança dramática para estabilizar a economia brasileira.

Desde o ano passado Deus, que é brasileiro, tem feito das suas ... Os preços mundiais do petróleo desabaram, o dólar entrou em colapso - e a taxa de câmbio brasileira acompanha o dólar - e caíram as taxas internacionais de juros. Com isto, o serviço da dívida externa também caiu. Os programas de investimentos dos anos 70, que antes tinham sido interpretados como gigantismo militar, mostraram-se instrumentos magníficos para a substituição das importações e aumento das exportações. A reforma fiscal, aprovada no fim do ano passado, por um Congresso aparentemente inconsciente dos grandes aumentos de impostos nela embutidos, gerou recursos suficientes para equilibrar o orçamento.

O fato é que no começo do ano de 86, por uma sorte incrível e também como um retorno a boas medidas de política econômica, o Brasil se colocou numa posição onde a inflação era o único problema existente. Mais do que isto, a única reação para que a inflação continuasse a existir não residia primariamente no déficit orçamentário, mas numa indexação que estava ligada à inflação passada e aumentava os custos salariais, forçando aumentos nas taxas de câmbio, nos preços do setor público, gerando um círculo vicioso.

O Brasil agora tornou medidas decisivas, seguindo o exemplo da Argentina e Israel ao adotar uma reforma monetária. O apoio público que se desenvolveu para suportar esta reforma, incluindo o apoio forte e imediato dos professores Bulhões e Simonsen, fez com que a reforma monetária fosse a única opção, dominando claramente as políticas depressivas à moda do FMI.

De uma forma geral, as medidas da reforma monetária são simples: uma nova moeda, que é fixa em termos do dólar, controles rigorosos dos preços, reforçados pelo apelo ao público, que se transformou em inspetor dos preços, fixação de uma taxa de juros nominal, fixação dos salários sujeitos a uma escala móvel e, naturalmente, uma infinidade de outros detalhes.

O ponto básico, entretanto, é que não se pode conceber um programa que pudesse fazer fixar de forma mais amarrada todos os preços na economia. O programa, desta forma, é exatamente o oposto da perspectiva do mercado livre. Normalmente, os bancos credores e o FMI estariam de pé, em armas. Mas a experiência de Israel e da Argentina lhes ensinou a prudência. O fato básico é que existe a necessidade de coordenar as expectativas por volta do novo objetivo de estabilidade dos preços e nada pode funcionar melhor do que o fato de que os preços estão na verdade estáveis. Naturalmente, existe o problema de mais longo prazo do que os controles terão que ser relaxados e de que as pessoas acreditarão na estabilidade dos preços sem o controle. É muito melhor usar os controles para treinar o público nesta grande experiência.

Mas por que haveria alguém capaz de acreditar que o programa brasileiro vai funcionar? Não é verdade que na história monetária mundial, dois em cada três programas de estabilização falharam? Além disso, a profusão de controles nesta circunstância não é uma indicação de que o programa pode ser declarado morto no seu nascimento? As principais razões são que, quando uma estabilização tem lugar, ela não é uma operação simples como amarrar sapatos: as dificuldades políticas fazem com que o governo tente estabilizar mesmo que ainda o orçamento não esteja sob controle. A taxa de câmbio é fixada, mas não ao nível sustentável, porque isto significaria cortes dos salários reais, além do que é politicamente possível. Em geral, muitas vezes, as precárias condições iniciais são reforçadas por notícias ruins, que podem levar um programa já sobrecarregado ao fracasso.

A celebrada estabilização na Alemanha cm 1923 foi precedida por dois fracassos, assim como a estabilização na Polônia em 1923 ou a famosa reforma de Poincaré na França, em 1926. No caso do Brasil, existe espaço para um grande otimismo. Em primeiro lugar, o orçamento, descontando-se o componente da inflação. no serviço da dívida, está praticamente equilibrado. Não está claro se o déficit é na realidade zero, ou 2% ou mesmo 3%, mas ele é com certeza muito pequeno, comparável ao da Alemanha e ao do Japão. Ele é baixo, mesmo se descontados os aumentos de impostos da reforma fiscal de dezembro e os recolhimentos de imposto real que inevitavelmente virão quando o fim da inflação também acarretar o fim da erosão dos recolhimentos de impostos devido à inflação.

Igualmente importante, é o fato de que o equilíbrio externo brasileiro tem mostrado melhorias impressionantes durante os últimos dois anos. O superávit, excluindo o pagamento de juros, foi quase suficiente para pagar o total do serviço da dívida externa e isto num ano em que o crescimento foi de 8%. Naturalmente, este ano vai ser melhor ainda. Por causa da grande queda do preço do petróleo, que aumenta o superávit da balança comercial em US$ 2 ou 3 bilhões, ou seja, 25% do total das despesas com importação. Um outro elemento positivo é o fato de que o Brasil seguiu a queda do dólar que se depreciou nos últimos doze meses e assim ganhou em competitividade externa, talvez algo em torno de 15%.

Finalmente, as taxas de juros mundiais estão caindo assim que a Alemanha tome juízo.

Isto significa ainda mais economia das receitas cambiais, para um país devedor como o Brasil. As reduções nos spreads - que estão ficando na moda - e certamente, com um programa bem-sucedido de estabilização o Brasil se coloca como o primeiro na fila para um tratamento especial.

Desta forma, existe uma margem confortável para fazer face a problemas inevitáveis. O desafio agora é tornar o congelamento salarial aceitável para os trabalhadores, é não ter piedade das firmas que estão numa posição oligopolista -- e que possam subverter a estabilidade dos preços. Se conseguir isto, o programa certamente vai sobreviver por meio ano, ou mais. A questão agora é se preparar para a transição de prazo médio, quando a economia terá que conviver com preços estáveis sem os controles onipresentes.

Confiança na taxa de câmbio e no orçamento são os elementos principais para a credibilidade do programa. Os controles agora permitem ao governo viver numa lua-de-mel, durante a qual estabelece os fundamentos para a transição. Para não parecer muito otimista, apontamos um programa amplo.

Durante o período de inflação alta, os bancos viveram um Carnaval. Os custos operacionais eram fantásticos porque eles podiam facilmente se proteger, num sistema onde eles pagavam pouco pelos depósitos e empréstimos e emprestavam a mais de 200%. A estabilidade dos preços significa uma crise para o sistema financeiro e um desafio para o governo evitar o colapso do sistema financeiro sem jogar dinheiro de graça para os banqueiros. Durante os próximos três meses, a atitude mais frequente vai ser de ceticismo: “os preços estão estáveis, mas ... “. A evidência na Argentina prova que um tempo de pelo menos três meses deverá passar antes que os· economistas defensores do mercado livre parem de se queixar e de argumentar que “os controles de preços devem ser abolidos”, que “a taxa de câmbio deve ser flexível”, que “é preciso maior controle monetário” e todas as coisas que eles gostam de falar e que os fazem tão chatos ...

Tudo isto coloca uma carga sobre as costas do governo, que se depara com um grande ceticismo do público profissional e de alguns grupos de interesses. Nós esperamos que o retorno da estabilidade de preços e uma política de crescimento prudente consiga o apoio da classe trabalhadora para um investimento do qual em última análise será a principal beneficiária.

(Folha de S. Paulo, 2.3.1986)

ANTECEDENTES TEÓRICOS DA REFORMA MONETÁRIA

Luiz Bresser-Pereira

O Presidente Sarney e sua equipe econômica tiveram a coragem de adotar a “solução heroica de combate à inflação”, congelando todos os preços, desindexando a economia e introduzindo o cruzado no lugar do cruzeiro. Há agora, a perspectiva concreta de que a inflação seja eliminada no Brasil, da mesma forma como foi eliminada na Hungria em 1946 (primeira experiência de congelamento de preços bem-sucedida), na Argentina e em Israel em 1985.

É importante, neste momento, traçar os antecedentes teóricos deste Projeto Cruzado. A primeira proposta escrita de que tenho conhecimento da escolha de um dia D em que se congelariam preços, salários e taxa de câmbio e se desindexaria a economia foi feita por Yoshiaki Nakano e por mim em artigo escrito no último trimestre de 1983 e publicado na Revista de Economia Política em julho de 1984, “Política Administrativa de Controle da Inflação”. Víamos, então, duas alternativas para o combate à inflação brasileira: ou a desindexação gradual e o controle de preços de acordo com a inflação futura declinante, ou caso a inflação continuasse a crescer, “a solução heroica de controle da inflação”, com a escolha de um dia D para o congelamento geral de preços.

Esta proposta era a consequência necessária da conceituação da inflação como “inercial” - ou “autônoma”, como então preferíamos chamá-la -, esboçada em um artigo de 1981 e plenamente desenvolvida em um artigo que escrevemos em 1982, “Fatores Aceleradores, Mantenedores e Sancionadores da Inflação”. Todos esses artigos foram depois republicados no livro Inflação e Recessão, ainda em 1984.

A ideia era simples: se as causas da manutenção do patamar de inflação - pela primeira vez claramente distinguidas dos fatores ou causa aceleradoras - não eram excesso de demanda, déficit público ou aumento de oferta de moeda, nem choques de oferta, mas, simplesmente, a necessidade de cada agente econômico de repassar os aumentos de custos automaticamente para os preços a fim de não perder sua participação na renda, então a solução lógica para acabar com esse tipo de inflação é congelar os preços, é interromper administrativamente a ciranda de aumentos defasados de preços.

Nossa proposta estabelecia, entretanto, duas alternativas: a gradual e a heroica. O primeiro economista a fazer uma proposta única de congelamento foi Francisco Lopes, da PUC do Rio de Janeiro, em um artigo publicado no boletim do Conselho Regional de Economia de São Paulo, em agosto de 1984, no qual usou a expressão “choque heterodoxo”. Lopes é provavelmente o mais competente economista brasileiro em matéria de inflação. Seu artigo teve grande repercussão. O mesmo ocorreu com a proposta feita por André Lara Resende e Pérsio Arida, também da PUC, publicada inicialmente na Gazeta Mercantil em setembro de 1984, de criação de uma moeda indexada. Essa proposta parecia o oposto da nossa ou da de Francisco Lopes, mas na verdade era apenas uma variante na qual vários avanços teóricos eram realizados. Em novembro desse ano aqueles dois economistas apresentaram em um seminário em Washington, com grande aceitação, e Francisco Lopes em dezembro apresentou à reunião da ANPEC novos artigos que completaram a definição de inflação inercial e consolidaram a proposta de choque heterodoxo.

Na época a grande maioria dos economistas brasileiros - monetaristas ou estruturalistas - opuseram-se a essas propostas, ou ficaram calados pelo simples fato de não conhecerem a teoria de inflação inercial. Uma exceção foi Mário Henrique Simonsen, que, com sua teoria de realimentação inflacionária, havia sido um precursor dessas ideias. Ele e o professor Octávio Gouvêa de Bulhões já vinham há algum tempo propondo a desindexação da economia. Apenas não falavam em congelamento.

No final de 1984, quando a inflação mudou de patamar, de 10 para 12% ao mês, fiquei convencido de que a política de controle gradual de preços já não tinha mais condições de ser efetiva, e passei a defender em artigos e entrevistas a adoção do choque heterodoxo ou política heroica de combate à inflação. Quando o Plano Austral foi introduzido na Argentina, baseando claramente nas ideias dos economistas brasileiros, escrevi dois artigos analisando-o e apostando em seu êxito.

Por outro lado, a partir do momento em que se instaurou a Nova República e meus amigos pessoais assumiram cargos-chaves na área econômica, passei a afirmar, primeiro a João Sayad e depois a Dílson Funaro e a Fernão Bracher, que só havia uma solução para combater a inflação brasileira: o congelamento geral nos moldes agora realizados, acompanhado de reforma monetária. Pérsio Arida e Edmar Sacha, que trabalham com João Sayad desde o início do Governo (e tinham orientação de João Sayad para estudar o assunto desde abril de 1985), e André Lara Resende, que é um dos diretores do Banco Central desde que Fernão Bresser assumiu sua presidência, não apenas disseram o mesmo a seus ministros mas também os assessoram na execução do plano, que, naturalmente, contou com a participação de vários economistas do governo e com as ideias de Francisco Lopes e Eduardo Modiano, que permaneceram na PUC. A coragem de adotar o Programa de Estabilização coube ao Presidente do Banco Central, aos Ministros do Planejamento e da Fazenda e principalmente ao Presidente Sarney, a quem cabe a responsabilidade final. É uma solução “heroica” porque implica em riscos, mas afinal governar é tomar decisões e assumir riscos calculados com coragem.

(Folha de S. Paulo, 4.3.1986)

OS SALÁRIOS NO DECRETO-LEI N. 2.283

Paul Singer

A longamente aguardada e temida reforma monetária foi efetivada através do Decreto-Lei n. 2.283 e ela será discutida em seus aspectos gerais - econômicos, sociais e políticos - nos próximos meses e anos. Mas, sendo agora um fato consumado, urge esclarecer as modalidades de sua aplicação prática, que em boa medida serão definidas nas próximas semanas pela regulamentação do referido decreto-lei.

Este artigo pretende ser um alerta aos assalariados. Do modo como o Decreto-Lei n. 2.283 foi redigido, os que vivem de salários serão sensivelmente prejudicados pelo cálculo do chamado “valor médio da remuneração real dos últimos seis meses” (artigo 21), que rege a conversão de todos os salários de cruzeiros em cruzados. Não se trata de uma “tecnicalidade” (perdão pelo anglicismo) mas de aplicação dos números índices que têm efeitos ponderáveis. Com alguma paciência, todos poderão se inteirar do assunto e se posicionar a respeito.

O “salário real médio” foi, até o dia 27.2.1986, categoria exclusiva de discussões entre um restrito número de economistas. Deste dia em diante ele se tornou um conceito monetário da maior importância prática. Entendê-lo requer muito mais atenção e paciência do que conhecimentos matemáticos. Vamos, pois, aos fatos.

  • 1. De acordo com o art. 21 do decreto, os salários serão convertidos em cruzados por uma tabela que reflete a desvalorização média dos salários pelo IPCA entre 10/1985 e 02/1986. A tabela “rouba” um mês de desvalorização ao multiplicar o salário de fevereiro por 1 quando neste mês o IPCA foi de 14,36%. O exemplo mais simples é de uma categoria reajustada em 09/1985 sem qualquer antecipação até 02/86. Os últimos seis salários são multiplicados por fatores correspondentes ao IPCA de: 10/85 a 02/86=1,8351 (o de 09/85); 11/85 a 02/86=1,6743 (o de 10/85); 12/85 a 02/86=1,5064 (o de 11/85); 01/86 a 02/86=l,3292(o de 12/85); 02/86=l,1436(o de 01/86); e por 1 o de 02/86. Isso dá uma média de 1,4148 vezes o salário de 02/86. O certo seria multiplicar o salário de 02/86 pelo IPCA de 02/86=1,1436 e assim por diante, sendo o 1º. da série, de 09/85 multiplicado pelo IPCA de 09/85 a 02/86=2,0549. O cálculo correto daria uma média de 954,35:6=1,591 vezes o salário de 02/86. Este “roubo” reduz o salário médio de 11%. Mesmo com o abono de 8% o salário de março seria 1,5279 vezes o de 02/86, isto é, 4% menor do que a verdadeira média dos salários reais.

  • 2. O sistema de conversão pela média sanciona de forma permanente o efeito da inflação do último semestre. Se o salário fosse reconstituído pelo seu valor real por ocasião do último reajuste ele seria em média 35% maior, mesmo contando com o abono de 8%, mas sem o mês “roubado” pela tabela do Anexo 3 do Decreto-Lei n. 2.283. Em outras palavras, em relação ao salário real negociado pelos sindicatos por ocasião dos reajustes, o método de conversão decretado produz um salário “médio” abonado com 8% que é 24 a 27% inferior.

  • 3. Sendo a tabela aplicada ao total dos salários dos últimos seis meses, a conversão em cruzados reduz, portanto, subtrai parte dos aumentos reais de salário conquistados a título de reposição salarial, produtividade ou por outro motivo. Isso acontece porque o aumento referido é também “triturado” pela redução à média. Tomemos por exemplo o caso dos docentes das universidades estaduais de São Paulo, que tiveram seu último reajuste semestral igual ao IPCA mais 15%. Pelo método de conversão decretado, o seu salário médio de 03/86 será 8,6% inferior ao de 02/86 e 31,3% inferior ao salário de reajuste (em 01/86) corrigido pela inflação de janeiro e fevereiro. Se os professores não tivessem tido 15% acima do IPCA, sua perda em relação ao salário real de reajuste teria sido de “apenas” 28,3%. Em outras palavras, o aumento de 15% acima do IPCA representa um aumento real de 7,5% (216,4%:201,4%). Comparando o salário “médio” calculado conforme o Decreto-Lei n.2.283, o aumento real de 7,5% cai para 3%, pois sem os 15% o salário médio seria 4,7% menor que o de 01/86 e com os 15% ele passa a ser como vimos, 8,6% menor.

É altamente discutível a justiça de se converter os salários pela média e os preços pelo pico. Mas, deixando no momento de lado esta discussão, para que as promessa do governo se cumpram impõe-se:

  • a) Substituir a tabela do Anexo 3 pela seguinte:

Note-se que como houve sempre inflação nos últimos seis meses, nada justifica que haja um fator de atualização de 1, como consta na tabela do Anexo 3 do Decreto-Lei n. 2.283.

  • b) No cálculo da média deve ser considerado exclusivamente o salário reajustado sem aumentos reais. Estes devem ser posteriormente acrescentados ao salário “médio” calculado. Com este procedimento ao menos os aumentos reais conquistados pelas diferentes categorias profissionais, bem como aumentos por mérito, serão preservados.

  • 4. A tabela proposta no item anterior justifica-se pelo fato de que se, supostamente, houve reajustamento salarial em setembro de 1985, este nível nominal deve ser considerado o médio daquele mês, já que ele foi objeto de acordo coletivo. A inflação de setembro na realidade desvaloriza o salário de outubro, a inflação de setembro e outubro desvaloriza o de novembro e assim por diante. O que significa que se não houve adiantamento durante o semestre, o salário de março de 1986 a ser convertido pela média deve responder ao aumento do IPCA do período 09/85 a 02/86 de seis meses e não de 10/85 a 02/86 de cinco meses, como está no Decreto-Lei n. 2.283. Os dados abaixo assinalam o procedimento correto de cálculo da média salarial dos últimos seis meses pelo IPCA:

  • 5. Um salário reajustado em 100 em 09/85 foi em média 77,4 no período 09/85 e 02/86 e para ser reconstituído em 03/86 deve ser multiplicado pelo aumento do IPCA entre 09/85 e 02/86: 2,055. O resultado é 159,05, o qual acrescido do abono de 8% dá um total de 171,77 e não 152,79, como resulta da aplicação do Decreto-Lei n. 2.283. Note-se que a preservação do salário real ajustado de 09/85 em 03/86 exigiria um aumento de 105,5%. Assim, a média calculada corretamente mais o abono de 8% dá um prejuízo de 16,4%, mas que é bem menor que o de 25,6%, decorrente do decreto-lei.

  • 6. O procedimento correto de calcular o salário-mínimo médio do período 09/85 a 02/86 dá Cz$ 781,25, de modo que o arredondamento para Cz$ 800 só significa um aumento de 2,4% e não de 15,5% como o decreto-lei dá a entender. Se o governo realmente deseja elevar o salário-mínimo 15,5% acima da média do último semestre, deve fixá-lo em Cz$ 900.

(Folha de S. Paulo, 4.3.1986)

AINDA OS SALÁRIOS NO DECRETO-LEI N. 2.283

Gustavo Maia Gomes

Em artigo publicado na edição de ontem da Folha, o professor Paul Singer pretendeu dar “um alerta aos assalariados”, argumentando que “do modo como o Decreto-Lei n. 2.283 foi redigido, os que vivem de salários serão sensivelmente prejudicados pelo cálculo do chamado ‘valor médio da remuneração real dos últimos seis meses’ (artigo 21) que rege a conversão de todos os salários de cruzeiros em cruzados”. Argumentarei, neste artigo, que os cálculos feitos pelo professor Singer, na tentativa de demonstrar sua tese, incorrem em alguns falácias suficientemente sérias para invalidar sua argumentação.

O professor Paul Singer começa argumentando que a tabela de conversão “rouba” (sic) “um’ mês de desvalorização ao multiplicar o salário de fevereiro por 1, quando neste mês o IPCA (o correto seria dizer a variação do IPCA, GMC) foi de 14,36%”. Na verdade, a multiplicação por 1 do salário de fevereiro (recebido em, digamos, 28/02 ou 01/03) antecipa uma inflação esperada de zero por cento em março. A ideia, simples e inatacável, é que um salário recebido em 28/02 seria gasto em março, não em fevereiro. Ele deve, portanto, ser deflacionado pela inflação do mês de março estimada em zero. O salário reajustado pela variação de 14,36% do IPCA em fevereiro deverá ser o recebido em 30/01, ou seja, o salário de janeiro.

A tabela, por esta razão, não “rouba” um mês. O salário real recebido em 28/02 efetivamente se deteriorará se a in fiação de março for superior a zero por cento. Mas o mesmo salário poderá, inclusive, se elevar em termos reais, na hipótese, não totalmente improvável, de que tenhamos uma variação para menos do IPC em março.

Não houve, portanto, “roubo” de um mês de inflação, como o quer o professor Singer. Isso será visto com detalhes aritméticos mais adiante. Cumpre, entretanto, reconhecer que a expressão “valor médio de remuneração real dos últimos seis meses”, constante do decreto-lei, pode causar dúvidas. O cálculo feito pela fórmula indicada no anexo 2 do decreto-lei produz um resultado que, a rigor, corresponde, na hipótese de que a inflação de março venha a ser zero, ao valor médio da remuneração real nos seis meses anteriores a 31 de março de 1986, e não a 27 de fevereiro, data da assinatura do decreto-lei. A diferença não é retórica: dependendo do comportamento da inflação nos últimos seis meses, da concessão ou não de abonos neste período, do mês em que os abonos tenham sido concedidos e de outros fatores, o valor médio da remuneração real dos últimos seis meses pode ser maior, menor, ou igual ao valor médio da remuneração real nos seis meses anteriores a 31 de março, na hipótese de uma inflação zero no corrente mês.

A melhor forma de ilustrar isto é partir do mesmo exemplo simples utilizado pelo professor Singer: o de uma categoria salarial reajustada em setembro sem qualquer antecipação até fevereiro de 1986. Se a categoria foi reajustada em setembro de 1985 isso significa que em 31 de agosto ela recebeu seu último salário antes do reajuste. Suponhamos que este salário tenha sido de Cr$ 1 milhão. Ao longo do mês de setembro, esta terá sido a renda disponível do assalariado - e esta renda foi depreciada, de 31/08 a 30/09 em 11,98%, a variação do IPCA em setembro. Em 30/09, o trabalhador recebeu seu salário reajustado segundo a regra salarial então vigente; ou seja, a partir de 30/09, ele passou a receber Cr$ 1.683.300. A forma de calcular a remuneração média real deste trabalhador (usando o IPCA como deflator) é ilustrada na tabela abaixo.

O trabalhador que teve reajuste em setembro somente teve disponível o seu novo salário nominal no mês seguinte. Seu salário real médio dos últimos seis meses pode ser calculado, a preços de 28 de fevereiro de 1986, multiplicando o salário nominal gasto em setembro (Cr$ 1 milhão) por 2,0549 (variação acumulada do IPCA nos seis meses anteriores a fevereiro de 1986) e somando com os produtos dos salários gastos em outubro, novembro, até fevereiro pelos respectivos fatores da tabela acima. Dividindo o valor assim obtido por 6 chega-se ao valor médio de Cr$ 2.443.400 ou Cz$ 2.443,40.

Aplicando, por outro lado, a sistemática do decreto-lei o que resulta é o valor real médio nos seis meses até 31/03, na hipótese de que o IPCA (ou IPC, nova terminologia) tenha variação igual a zero em março. Nesse caso multiplicaríamos Cr$ 1.683.300 pela soma dos fatores de atualização de 1,000 até l,8351, inclusive. Dividindo a soma destas parcelas por 6, o valor obtido para o que o decreto define como valor médio de remuneração real nos últimos seis meses é de Cr$ 2.381.500 ou Cz$ 2.381,50.

O valor calculado pelo decreto é, no caso deste exemplo específico, um pouco menor (2,5% e não 11% menor, como o quer Paul Singer) do que o valor médio da remuneração real dos últimos seis meses calculado corretamente. Se ao valor Cz$ 2.381,50 for acrescentado o abono de 8%, o valor resultante será de Cz$ 2.572,00 ou seja, 5,3% a mais do que o valor médio da remuneração real dos últimos seis meses do trabalhador que teve reajuste em setembro.

(Folha de S. Paulo, S.3.1986)

DEZ PONTOS PARA REFLEXÃO

Walter Barelli

Estamos passando por uma transformação profunda na economia brasileira, fruto do programa de estabilização lançado pelo governo, no final de fevereiro. A complexidade das medidas não pode fazer com que percamos o espírito crítico, a ponte de afirmar que a partir de agora tudo melhorou, acabou a pobreza, e vivemos no melhor dos mundos.

Não é isso. O que o plano pretende como primeira mensagem é a redução ou eliminação da alta dos preços. Para isso, propõe várias medidas, algumas das quais têm a ver com a situação dos trabalhadores.

Os sindicatos, como organismos de defesa dos trabalhadores, não podem aderir às diretrizes do programa de estabilização sem discuti-las em profundidade. Este artigo parte da reflexão que estamos fazendo com os associados do DIEESE e aponta para problemas que precisam ser esclarecidos, rebatidos ou então modificados na execução do plano.

1. A questão dos picos e das médias

Ficou claro que o critério de correção de preços foi diferenciado. Os salários foram recompostos no seu valor médio do período setembro/85 a fevereiro/86, enquanto os preços foram congelados no nível de 27 de fevereiro. Nossa critica a essa diferença de tratamento está sendo rebatida com alguns fatos. Certos preços estavam defasados e não foram reajustados e outros, no âmbito do CIP, teriam sido reajustados pela média dos últimos 24 meses. Mesmo que isso fosse verdade, seria preciso demonstrar que os produtos de consumo operário foram corrigidos em seu valor médio. É certo que isso não ocorreu, portanto, houve diferença entre reajustamento de salários e reajustamento de preços, o que significa prejuízo para os trabalhadores.

2. A questão do fator de conversão

Há uma controvérsia salutar sobre o critério de correção dos salários. O fator de conversão traz todos os salários para seu poder aquisitivo em relação ao último dia de fevereiro. Com isso, o salário de fevereiro não é corrigido pela inflação do mês, o que invalidaria toda a série de deflatores (ou inflatores). A controvérsia está no próprio conceito do que deve ser corrigido: se o salário, no momento do seu pagamento, ou se o salário, no momento de sua contratação. O decreto-lei adota o critério de que o salário passa a ser disponível no dia do pagamento e assume como data de pagamento o último dia do mês. Não aceitamos esse critério, exclusivamente financeiro e que reflete o que o salário é para o patrão. Para nós, há outras formas de pagamento de salário, como os pagamentos diários, ou semanais, comumente adotados pela agricultura ou pela construção civil, e todas as formas particulares de adiantamento. Em reforço à nossa proposta de considerar o salário como sendo disponível para gastos já no início do mês, estão as formas de desembolso do salário. Muitos trabalhadores, urna vez empregados, passam a gastar o salário antes do seu recebimento. Isso ocorre, por exemplo, no ABC onde os empregados das grandes empresas compram em cooperativas, para posterior desconto em folha de pagamento. A “conta do empório” tradicionalmente é fiada pelo comerciante da periferia e a população de baixa renda é obrigada a antecipar consumo nas diversas formas de crediário. Também podemos aduzir que se generalizou a prática de algumas redes de supermercados de aceitarem cartões de crédito, com o que mudou o período em que são feitos os gastos, em relação ao dia do pagamento dos salários. Portanto, não há somente um critério de atualização monetária do valor dos salários. A prevalecer nosso entendimento, a tabela de conversão dos salários deverá ser modificada para incorporar em fevereiro a inflação de fevereiro.

3. As perdas do passado

O decreto é infeliz, ao estabelecer a livre negociação e não considerá-la totalmente livre, pois impede aumentos a títulos de recuperação das perdas. Prevalecendo essa mentalidade, os trabalhadores que estavam conquistando recuperações parciais dos seus salários verão sepultados para sempre os prejuízos devidos ao arrocho salarial de 1965 para cá, prejuízos esses aumentados pelas manipulações do índice de 1973, pelos decretos-leis de 1983, pelos expurgos, pelo reajuste salarial feito desde 1979 com defasagem de dois meses, etc. Quer-se que o movimento sindical perca a memória, mas é justamente esse arrocho que constitui parte da dívida social a ser resgatada.

4. As diferenças entre categorias

O semestre anterior encontrou o movimento sindical em estágios diferentes de poder aquisitivo. Desde as fábricas que davam reajustes mensais, cujos trabalhadores terão um poder aquisitivo médio próximo do pico, passando por categorias que tinham conquistado a trimestralidade e chegando a categorias que tiveram unicamente o reajustamento semestral. Essa diversidade de situações determina médias diferentes e pereniza diferenças entre assalariados. Dessa maneira as categorias que não tinham tido recuperação parcial das perdas ou o trimestral perdem em relação às demais, porque suas negociações salariais iriam acontecer entre março e agosto.

5. A inflação após 13 de fevereiro

O levantamento do IPCA pela Fundação IBGE aponta como inflação de fevereiro a variação média ponderada dos preços no período de 14 (ou 15) de janeiro a 13 de fevereiro. Ora, os preços continuaram aumentando entre 14 e 28 de fevereiro. O abono de 8% tem sido apresentado como resultado dessa inflação (6% de aumento) acrescida de 2% de compensação do choque agrícola do último trimestre. Somente após a Fundação IBGE terminar seus levantamentos teremos condições de verificar se a previsão de inflação, no período, refletiu a realidade. Caso contrário, deveremos discutir esse percentual.

6. O salário móvel e o novo pico

Se houver inflação, a partir de 28 de fevereiro, a média salarial encontrada transformar-se-á em novo pico e os salários cairão até sua reconstituição nos meses de negociação ou nos casos de aplicação da cláusula de salário móvel. Portanto, se a inflação não for zero, a média salarial do período setembro/85 a fevereiro/86 somente será paga nos meses de reconstituição salarial (novos picos) e nesse caso, os trabalhadores terão prejuízos, em relação ao que o decreto-lei estabeleceu como poder aquisitivo a ser mantido. Isso só não ocorrerá se houver um adicional salarial a ser pago já em março sobre a média obtida que seja compatível com o percentual que aciona o salário móvel. O abono de 8% não pode desempenhar dois papéis. Ou ele compensa a inflação não medida no final de fevereiro ou ele permite que os trabalhadores enfrentem aumentos de preços, até que a inflação chegue a 20%. Portanto, se o objetivo é manter a média salarial, está faltando um adicional a ser acrescentado aos salários, como garantia contra a inflação futura. Esse adicional só não existirá se a inflação for definitivamente anulada, o que parece proposta impossível.

7. Um mês a mais para a rotatividade

O programa apresenta uma proposta de seguro-desemprego, compatível com um mercado de trabalho que pratica a rotatividade. Assim, o seguro-desemprego só poderá ser recebido novamente depois do período de dezoito meses, da última aquisição. Ou seja, em um ano o trabalhador que rodar mais de uma vez em seu emprego, só poderá se candidatar ao seguro, durante quatro meses, embora ele fique desempregado intermitentemente pelo processo de rotatividade. Essa precaução mostra que o plano pensou nas consequências da rotatividade, ao menos como forma de não aumentar os custos da assistência ao desempregado. Esta é uma falha do plano. Até fevereiro, a legislação vigente dificultava a rotatividade em dois meses por ano - os meses que antecediam o reajuste semestral. Com o restabelecimento do reajuste anual foi eliminado um mês de proteção relativa dos trabalhadores contra a rotatividade. Portanto, outra perda para o trabalhador é o aumento de dez para onze meses, no período em que as empresas podem praticar impunemente a rotatividade. É por isso que a diretoria do DIEESE propôs que houvesse estabilidade de emprego, enquanto durasse o congelamento dos preços. Sem estabilidade, uma forma de reconstituir a estrutura de custos das empresas será substituir o trabalhador, de salário mais alto por outro de salário mais baixo.

8. A questão do mínimo

O mínimo, embora tenha sido reajustado por um percentual maior que os demais salários, ainda continua muito baixo. A nosso ver, perdeu-se a oportunidade histórica de estabelecer um mínimo que atendesse ao disposto em nossa Constituição.

9. A questão dos aumentos reais

Todos os aumentos reais que foram conquistados, entre outubro e fevereiro, foram reduzidos devido ao cálculo pela média. Assim, quem em fevereiro tinha conquistado um aumento de 12%, por efeito da média, ficou com um aumento equivalente a 2%.

10. A irredutibilidade dos vencimentos

Um conjunto de trabalhadores deverá ter redução de salário nominal, pois estavam ganhando no pico ou próximo dele e vão “cair” para a média. O decreto-lei, usando prerrogativas constitucionais, exclui dessa redução os magistrados e os militares. Assim descobrimos que a Constituição atual estabelece um regime de castas entre brasileiros: alguns são mais brasileiros que os demais. Toda exceção é odiosa. Nesse sentido, ou os mesmos direitos são estendidos a todos os cidadãos brasileiros, ou o decreto-lei se aplica uniformemente para todos. Se o programa de estabilização prevê mudanças radicais, essa deverá ser uma delas: o tratamento uniforme para todos os brasileiros, não só nesta questão, mas também no caso da tributação que favorece parlamentares e as mesmas categorias de funcionários públicos.

(Folha de S. Paulo, 8.3.1986)

O PROGRAMA DE ESTABILIZAÇÃO E OS SALÁRIOS

Francisco Vidal Luna

Um entendimento imperfeito das disposições sobre salários contidas no Decreto-Lei n. 2.283, e consequentemente, uma avaliação incorreta dos efeitos da nova política sobre os rendimentos da classe trabalhadora, têm alimentado controvérsias cuja resolução constitui urgente necessidade. No momento em que ficar claro para todos os trabalhadores que a reforma monetária de 28 de fevereiro os beneficiará, ter-se-á ampliado ainda mais o apoio que as medidas econômicas tomadas pelo governo já têm conseguido. Será ampliado, portanto, a probabilidade de êxito total do programa.

As críticas

Seis objeções principais contra as disposições sobre salários do Decreto-Lei n. 2.283 têm sido, até o momento, levantadas: a) “Os trabalhadores foram prejudicados porque os salários foram congelados pela média, enquanto os preços o foram pelo pico”; b) “A utilização do fator 1,0000 para multiplicar o salário de fevereiro, no cálculo do salário real médio feito no decreto, rouba um mês de inflação”; c) “Os ganhos conseguidos nos últimos meses pelos trabalhadores, na forma de reposições, produtividade, etc., são triturados pela redução do salário real à média”; d) “O sistema de conversão pela média sanciona de forma permanente o efeito de inflação do último semestre”, ou, noutra formulação: “Congelou-se a miséria”; e) “O antigo salário médio se tornou agora o salário de pico, de modo que, para qualquer inflação diferente de zero nos próximos meses, a média salarial cairá”; f) “Haverá perdas salariais em decorrência da aplicação das novas disposições legais”.

Vamos considerar, uma a uma, estas objeções, para evidenciar que elas se apoiam em bases insustentáveis e que, ao contrário do que têm alegado os críticos, os efeitos do Decreto-Lei n. 2.283 sobre os salários serão benefícios.

Picos e médias

Comecemos com o problema dos picos e médias. Todos nós, trabalhadores, gostaríamos de ter nossos salários congelados “pelo pico”. Seria, por conseguinte, ótimo que os governos tivessem o poder de assegurar, por decreto, que todos os salários reais fossem fixados e mantidos no seu “pico”. Infelizmente, aqui como alhures, a distância entre o desejo e a realidade é demasiadamente grande.

A razão é simples. É evidente que, para a economia como um todo, a folha salarial paga pelo conjunto das empresas equivale - para um período de, digamos, seis meses -, ao resultado da multiplicação do salário real médio dos trabalhadores neste mesmo período, pelo número de trabalhadores empregados. Com uma inflação semestral de, aproximadamente, 100% (12% ao mês), a diferença entre o salário médio e o pico do salário real é de 30%. Ou seja: se o decreto tivesse pretendido reajustar os salários “pelo pico”, isso significaria que as empresas teriam de arcar, em seu conjunto e do dia para a noite, com um aumento real de 30% nas suas folhas salariais.

Alguém acreditaria que estas empresas poderiam absorver esse choque sem repassá-lo aos preços? Alguém acreditaria que o congelamento de preços tivesse a mínima probabilidade de ser mantido, nestas circunstância? Ninguém. Portanto, a tentativa de o governo congelar os salários pelo pico estaria longe de beneficiar os trabalhadores. Seu resultado seria apenas desemprego, mais inflação e o insucesso total da reforma monetária.

Resta o problema relativo a terem ou não sido os preços congelados pelo pico. A resposta a esta objeção é dada pelos fatos, antes de tudo: a divulgação das tabelas de preços demonstra que vários destes preços foram reduzidos em relação aos valores que eles já haviam alcançados antes, ou até 27 de fevereiro. Não procede, desta forma, a alegação de que o congelamento de preços e salários tenha sido assimétrico.

É possível, contudo, dar uma resposta mais elaborada a esta objeção. Para tal, vamos analisar separadamente dois tipos de preços: os que, até 27/2 vinham sendo livremente determinados nos mercados e os que eram, de alguma forma, controlados pelo governo e impedidos de variar livremente. À medida que a inflação se acelerava, os preços “livres” eram remarcados a intervalos cada vez menores. Remarcações semanais e até diárias já vinham acontecendo no comércio - era desta forma que os industriais e comerciantes se protegiam contra a inflação. Esse era um fato da vida que ocorria tanto na “Nova República” como na velha. A implicação é óbvia: para estes preços praticamente não havia distinção entre “pico” e “média”. Como eles não se atrasavam em relação à inflação, seu pico e sua média se confundiam. Não havia, portanto, como congelar tais preços “pela média”.

O outro caso é o dos preços controlados seja pelo CIP, ou SUNAB, ou outros organismos fixadores de preços. Aqui, sim, como os reajustes eram dados a intervalos maiores, a distinção entre “pico” e “média” poderia ser muito significativa, em muitos casos. Só que não havia nenhuma razão especial para que, no dia 27/2, todos ou a maior parte destes preços estivessem no seu pico. Uns haviam sido reajustados recentemente, estando, portanto, próximos do seu pico. Mas outros estavam exatamente em vias de serem reajustados, encontrando-se, desta maneira, muito próximos de seu “vale”, ou ponto mínimo. O congelamento indiscriminado de preços no dia 27/2 faria com que os produtores dos bens cujos preços estivessem no pico passassem a viver muito bem dali para frente, o inverso acontecendo com os produtores dos outros bens. Mas nenhum efeito perverso isso acarretaria para a renda real da classe trabalhadora. Ou seja: na “média”, estes preços controlados tinham mesmo que estar “na média” de seus valores reais.

Um mês a menos?

O que dizer sobre a objeção (b)? Aqui, há, também, muito mal-entendido a ser dissipado. O ponto básico é esse: a multiplicação por 1 do salário de fevereiro, que é recebido, tipicamente, em março, antecipa uma inflação esperada de zero por cento em março. A ideia, simples e inatacável, é que um salário recebido no final de fevereiro ou início de março será gasto em março - não em fevereiro. Ele deve, portanto, ser deflacionado pela inflação do mês de março, estimada em zero. O salário a ser reajustado pela variação do IPCA em fevereiro deverá ser o recebido em 30/1 ou 01/2, ou seja, o salário de janeiro. Como é feito na fórmula do Anexo 2 do Decreto-Lei n. 2.283. É claro que a inflação de março pode vir a não ser zero. Se ele for maior do que zero, o cálculo do salário real médio feito pelo decreto terá sido subestimado. Mas, em compensação, se a inflação de março for negativa, o salário real médio calculado pelo decreto terá sido maior do que o efetivamente verificado. A fórmula não é tendenciosa, em qualquer caso.

Abono

A terceira objeção, indicada pela letra (c) toca, de fato, em um ponto importante se bem que o faço de maneira aparentemente inconsciente. Da maneira como a objeção tem sido formulada, seu argumento central incorre na mesma confusão entre realidade e desejo já apontada na discussão da objeção (a).

Para mostrar por que, vamos considerar o caso de uma categoria salarial que tenha conseguido um abono, ou reposição salarial ou prêmio por produtividade, exatamente no mês de seu dissídio. É evidente, neste caso, que essas vantagens se somaram ao aumento salarial normal da categoria fazendo com que o “pico” do seu salário real fosse mais elevado do que o seriam sem o abono, etc. As firmas deste setor específico ao calcularem o impacto destes benefícios sobre suas estruturas de custo levariam, naturalmente, em conta que - ao longo dos próximos seis meses - a inflação reduziria o impacto real de tais conquistas dos trabalhadores.

Em outras palavras, o que os próximos seis meses iriam demonstrar aos trabalhadores é que sua “conquista” não havia sido, de fato, o abono medido pelo seu pico. Mas sim pela média. A metodologia do decreto apenas reconhece este fato.

Congelamento

A objeção no item (d) afirma em versões diferentes, que o Decreto-Lei n. 2.283 consolida uma dada distribuição de renda reconhecidamente injusta. Essa é uma critica aparentemente poderosa, que, entretanto, apesar de tocar em um problema crucial da economia brasileira, dirige seu poder de fogo de para o alvo errado.

Em primeiro lugar, não é verdade que a metodologia de cálculo de salários reais contida Decreto-Lei n. 2.283 sanciona os efeitos da inflação do último semestre. Dizer isto é esquecer que por sobre o salário real médio calculado para o último semestre está se acumulando um abono de 8%. Com isto se obtém um ganho real de salário compensado, portanto, pelo menos no limite do que se poderia alcançar por decreto, as perdas que tenham havido por efeito da inflação do último semestre.

Não se deve esquecer, tampouco, que o salário-mínimo real foi reajustado em 15% em relação à sua média do último semestre. Na verdade, os últimos dados disponíveis de salários médio na indústria (IBGE), que vão de novembro de 1985, não indicam ter havido redução de salário médio nos últimos meses. Pelo contrário, a tendência dos salários médios era crescente, pelo menos até novembro, demonstrando que as conquistas da classe trabalhadora na forma de abonos, antecipações, e outras, haviam mais do que compensado, momentaneamente, os efeitos da inflação sobre os salários.

Feitas essas ressalvas, é de se admitir, realmente, que o fim da inflação terá o efeito, no primeiro momento, de consolidar o quadro distributivo vigente. Aqui é preciso lembrar que a reforma monetária não é, não poderia, e nem pretendeu ser uma panaceia universal capaz de curar todos os males da economia brasileira num piscar de olhos. O programa de estabilização é apenas uma parte da política econômica do governo e seu objetivo precípuo é o de eliminar a inflação. Poucos brasileiros, trabalhadores, empresários ou quem seja, duvidariam que a realização de um tal objetivo constituirá algo de valioso - um bem inestimável para uma população atormentada pelas subidas diárias de preços. Mas dizer que a eliminação da inflação constituirá uma realização do mais alto significado não e o mesmo que dizer que, finda a inflação, terão também cessado de existir todos os nossos seculares problemas econômicos e sociais.

O programa de estabilização considerar-se-á um sucesso se, modestamente, conseguir livrar a todos da inflação. E não é verdade, tampouco, que o Decreto-Lei n. 2.283 congelou a miséria. O país não irá parar, congelado, por causa de um decreto. A vida continua, as lutas continuam, a preocupação do governo e do povo com a luta contra a miséria não tem porque esmorecer - antes pelo contrário - apenas porque o cruzeiro virou cruzado.

Ainda a média

No rosário das objeções à política salarial contida no Decreto-Lei n. 2.283, surgiu, mais recentemente, a ideia de que para qualquer inflação diferente de zero nos próximos meses, a média de salário real deverá cair já que, agora, o que era média virou pico, ou seja, cada “reajuste” salarial irá apenas levar o salário de volta ao seu pico imediatamente anterior, que nada mais é do que a média dos seis meses passados.

Isso é falso. Em primeiro lugar, parte-se de um nível de 8% superior à média através do abono. Além disso os reajustes estão antecipadamente assegurados através da escala móvel de salários, mas isso não quer dizer que os reajustes futuros se limitem, obrigatoriamente, aos reajustes automáticos. Na verdade, o artigo 24 do decreto-lei estabelece, bem claramente, que a negociação coletiva será ampla, “podendo a revisão do valor dos salários ser objeto de livre convenção”, desde que a empresa não repasse essas vantagens adicionais aos preços, pois se isso ocorresse voltaríamos à situação anterior à reforma.

(Folha de S. Paulo, 8.3.1986)

O DIEESE E A FALÁCIA DO SALÁRIO IRREAL

Luís Nassif

Ainda se gastará muita tinta e papel até se chegar a um acordo sobre os efeitos do pacote sobre os salários.

Não se impressione com essa história de salário de pico, salário médio e salário nominal. Não são nenhum bicho de sete cabeças. No fundo, são conceitos simples que não podem atropelar a lógica e o bom senso. Traduzidos didaticamente, você mesmo terá condições de formar seu próprio juízo e perceber que, muitas vezes por detrás de toda uma terminologia técnica, escondem-se erros grosseiros de lógica.

Nem determinado dia, você recebeu Cr$ 1 milhão, foi até uma concessionária e comprou um automóvel. Semanas depois, recebeu Cr$ 500 mil e decidiu comprar três geladeiras. Para calcular o valor nominal desses ganhos, basta somar Cr$ 1 milhão a Cr$ 500 mil. Para encontrar o valor real, o caminho é diferente. O primeiro passo é anotar os bens que foram adquiridos. Em seguida, levantar seus preços atuais. Finalmente, somar o valor desses preços atualizados. O resultado corresponderá ao valor real (ou seja, ao poder aquisitivo dos rendimentos no período) em cruzeiros de hoje (isto é, em preços de hoje).

Em síntese, valor real de um salário corresponde ao valor atualizado dos bens e serviços que esse salário permitiu adquirir ao longo de um determinado período. Toda essa enorme discussão sobre os efeitos do pacote sobre os salários, no fundo, não passa de variações em torno desse processo, descrito no parágrafo anterior.

Os Índices de preços

Mas como um assalariado irá saber o que adquiriu nos últimos meses, e qual o preço atual dessas mercadorias? Não é todo mês que você troca o carro, a geladeira. O caminho para calcular o valor do dinheiro é através dos índices de preços - no nosso caso, através do Índice de Preços ao Consumidor Ampliado (IPCA), medido pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (FIBGE).

Esse índice parte de um estudo inicial que define o chamado orçamento doméstico dos consumidores. Através desse estudo, estima-se quanto uma família gasta por mês de alimento, em quais tipos de alimentos, em condução, em habitação, em eletrodomésticos etc. Definida essa cesta de produtos, diariamente os pesquisadores do órgão percorrem o comércio atualizando todos esses preços. Em seguida, tira-se uma média dos aumentos encontrados, que se constituirá na inflação do mês. Se alguém lhe disser que a inflação dos últimos seis meses foi de 100% significa que todos os preços que compõem o orçamento doméstico aumentaram em média 100%.

Repare, então, que para medir o salário médio real dos últimos seis meses são necessários dois elementos: o valor do salário, mês a mês, e a inflação acumulada no período.

Mas é preciso mais que isto. Para a conta ser correta, você precisa considerar a partir de que dia o dinheiro ficou efetivamente disponível para o assalariado. Esse ponto é fundamental quando se sabe que 14% de inflação ao mês corresponde a cerca de 0,44% de inflação ao dia.

No mercado de trabalho brasileiro, o salário de um determinado mês é recebido apenas no mês seguinte e gasto no decorrer desse mês seguinte. Ou seja, um salário de janeiro será recebido apenas até o dia 10 de fevereiro e gasto do dia 10 de fevereiro em diante.

Entendido isto, chegou a sua vez de usar a lógica. Para saber quantos bens o salário de janeiro lhe permitiu adquirir, o que é mais correto: utilizar o nível de preços de 1º. de janeiro ou o nível de preços de fevereiro? Creio que não há dúvidas. Durante todo mês de janeiro, você não viu nem sombra do salário de janeiro. Algumas empresas antecipam a primeira parte do pagamento para o dia 25 (fim do mês), mas o restante só será pago no dia 10. Parte do dinheiro você gastou em 10 de fevereiro, parte pode ter sido gasto em 15 de fevereiro. Mas positivamente nenhum tostão foi gasto em 1º. de janeiro, simplesmente porque nenhum assalariado deste país colocou a mão no seu salário de janeiro nesse dia.

Vamos a um exemplo concreto. A inflação de fevereiro foi de 14,36%. O esquema apresentado no plano de reforma visa, inicialmente, atualizar o valor real dos salários dos últimos seis meses para os preços vigentes em 28 de fevereiro (quando ocorreu o congelamento). Ora, quando é que você recebeu (ou receberá) o salário de fevereiro? Eu até agora não recebi o meu (o pagamento sai em 10 de março). Logo, na hora de medir o seu valor real, não será necessário atualização nenhuma do nível de preços, já que os preços dos produtos que o meu salário de fevereiro pode comprar são os preços atualmente em vigor.

Daí vem o DIEESE e argumenta o seguinte: mas no dia 1º. de fevereiro os preços estavam 14,36% mais baixos; se o assalariado recebesse esse dinheiro em 1º. de fevereiro, ela compraria 14,36% a mais do que em março. E eu digo, é mesmo. Mas ele recebeu? É evidente que não. Todos os assalariados deste país (eu disse todos, inclusive os economistas e funcionários do DIEESE) recebem o seu salário referente a determinado mês apenas no mês seguinte. E se nós estamos falando em valor real do salário, vamos abolir o se da história, levar em conta o mundo real e, nele, o dia real em que o salário entrou efetivamente no bolso do assalariado, sob o risco de mistificarmos as conclusões.

A tabela

Entendido isto, reporte-se à tabela, e entenda definitivamente a confusão na qual o DIEESE se meteu.

Na coluna “Mês de pagamento”, está definido o mês em que você recebeu efetivamente o salário referente ao “Mês de salário”: Na coluna “Salário”, você encontra o valor nominal de um salário que recebeu 20% de abono em setembro, mais o INPC integral e 5% de produtividade em dezembro.

Na coluna DIEESE, você tem os resultados a que chegou o órgão, depois de utilizar equivocadamente o fator do mês do salário para o reajuste do salário nominal. Chegou-se a um salário médio real do semestre no valor de Cz$ 1.221,10. Como, pelas fórmulas do decreto, o novo salário corresponderá a Cz$ 1.168,21, aparentemente o assalariado perdeu 4,33% de seu poder aquisitivo.

Mas esta é uma conta errada já que, como se demonstrou, não levou em consideração a desvalorização de trinta a cinquenta dias ocorrida entre o início do mês e o efetivo recebimento do salário.

Utilizando-se o método correto, se chegará a um salário médio real de Cz$ 1.081,68. O que significa que a mudança para o cruzado aumentou em 8% o poder aquisitivo que este salário apresentou nos últimos seis meses.

Aliás, se se fosse levar efetivamente ao pé da letra e considerar uma defasagem de quarenta a cinquenta dias (e não de trinta como ocorre) o ganho real, proporcionado pelo plano seria ainda maior.

Você pode argumentar: a conta do DIEESE é mais generosa para com os salários à medida que aumenta seu valor médio. Não é nada disso. Ninguém está aumentando ou diminuindo os salários: está se medindo o salário, e a medição precisa ser correta. Se você chegar para uma pessoa de um metro e vinte e lhe disser que ela tem um metro e oitenta, garanto que não aumentará um centímetro sequer em seu tamanho. O mesmo sucede com o método do DIEESE. O poder aquisitivo do salário foi fixado pelo seu nível nominal e pela inflação. É uma medida concreta, substantiva e inalterável pelas contas. O que precisa é apenas definir a maneira mais correta de estimá-la.

Para tornar essa discussão mais racional e mais comprometida com o real, proponho que ela se encaminhe para os seguintes pontos:

  1. Cabe ao DIEESE explicar de maneira convincente porque considera o nível de preços de 1º. de fevereiro como parâmetro para medir o poder aquisitivo dos salários de fevereiro (que são recebidos apenas em março).

  2. Se a explicação não for convincente, como órgão sério que é, o DIEESE dá a mão à palmatória e volta a discutir o tema, com base na metodologia correta.

(Folha de S. Paulo, 9.3.1986)

OS SALÁRIOS NA REFORMA MONETÁRIA

Pérsio Arida

Em artigos recentes publicados nesta Folha, vários economistas têm argumentado que os salários foram arrochados pelo procedimento de cálculo da conversão de cruzeiros em cruzados estipulado pela reforma monetária. Os principais argumentos têm sido:

  1. que a inflação de fevereiro não foi contada porque o coeficiente de atualização de fevereiro foi 1, quando deveria ter sido a inflação de fevereiro;

  2. que não se contou quinze dias de inflação, posto que a dita inflação de fevereiro reflete preços coletados até dia 15 de fevereiro e não até 28 de fevereiro;

  3. que a avaliação dos benefícios salariais ou correlatos obtidos nos últimos seis meses deveria ter incluído o 13º. salário;

  4. que o salário real dos trabalhadores que ganham o salário do mês antes do final do mês será reduzido;

  5. que o salário real médio do passado foi transformado no novo salário de pico.

Analisemos a lógica destes argumentos.

O primeiro argumento confunde regime de caixa com regime de competência. Os coeficientes de atualização do Decreto-Lei n. 2.283 visam atualizar os salários percebidos no passado a preços de final de fevereiro. Atribuir ao mês de fevereiro o coeficiente de l,1436 (a inflação de fevereiro) seria um procedimento correto somente se o salário de fevereiro tivesse sido percebido no primeiro dia do mês de fevereiro; a realidade, contudo, é que no regime em que vivemos trabalha-se primeiro e ganha-se depois.

O segundo argumento é igualmente equivocado. Por causa do tempo necessário para processar os dados, os procedimentos de coleta de preços referentes a um dado mês são encerrados à metade do mês. A inflação de fevereiro, tal qual divulgada pelo IBGE, não inclui a segunda metade do mês de fevereiro. No entanto, se é verdade que a coleta de preços referente a um dado mês e interrompida à metade do mês, não é menos verdade que começa à metade do mês anterior. O coeficiente de atualização do salário de janeiro, recebido no final de fevereiro, por exemplo, deveria idealmente ser a inflação entre o primeiro e o último dia de fevereiro. Pela metodologia do IBGE, a dita inflação de fevereiro, para continuar o exemplo, corresponde à alta de preços entre 15 de janeiro e 15 de fevereiro. Só existe disparidade entre o procedimento ideal e o do Decreto-Lei n. 2.283 se a inflação entre o 15 e 31 de janeiro se afastar da inflação entre 15 e 27 de fevereiro. O mesmo raciocínio vale para os demais meses. O ponto a reter é que a eventual disparidade pode significar um viés tanto para cima quanto para baixo. Só com a divulgação dos dados referentes à segunda metade de fevereiro é que poderemos avaliá-la. Imaginar que o procedimento do Decreto-Lei n. 2.283 fez desaparecer quinze dias de inflação é um erro de lógica: o índice que termina quinze dias antes começa quinze dias mais cedo.

O terceiro argumento também não procede.

Das duas uma: ou se calcula o salário real médio mensal dos últimos seis meses excluindo o 13º. salário e o trabalhador, em dezembro, continua recebendo o 13º. salário, ou inclui-se o 13º. no salário real médio mensal, mas em dezembro o trabalhador não recebe o 13º. Caso contrário, não há como evitar dupla contagem.

O quarto argumento exige cálculo. O procedimento do Decreto-Lei n. 2.283 é estritamente correto para salários recebidos ao final do mês. Aumenta de pouco o salário real daqueles que recebem salários no dia 10 do mês seguinte; diminui de pouco o salário real daqueles que recebem no dia 20 do próprio mês. Aquele que se dispuser a fazer os cálculos verificará que o abono concedido cobre, com ampla margem, a diminuição causada por datas de recebimento anteriores ao final do mês - e beneficia ainda mais quem recebe no mês seguinte. Lembre-se, além disso, que nos extratos salariais mais baixos, como agricultura e construção civil, onde generalizou-se a prática de pagamentos frequentes, é grande a massa de trabalhadores que recebem o salário-mínimo com abono de 15%.

O quinto argumento é falacioso. Tem como princípios, primeiro, de que na ausência de reforma monetária o salário real médio anterior estava garantido e, segundo, de que qualquer inflação residual em cruzados, por mínima que seja, provocará a erosão do salário real médio herdado do regime inflacionário. Ora, na ausência de reforma monetária não há garantia alguma do salário real médio. Sem reforma monetária, um por cento a mais de inflação sobre o nível dos três últimos meses já seria suficiente para reduzir o salário real das categorias com trimestralidade em aproximadamente um por cento - e o efeito é mais forte ainda para as demais categorias. Além disso, qualquer inflação residual em cruzados afetaria não o salário real médio anterior, mas um salário real maior em 8% ou 15% e ainda protegido pela escala móvel.

A reforma monetária não conseguiu o apoio da população por acaso. Os salários reais serão maiores sem inflação do que com inflação pois esta, com bem sabem os assalariados, nunca joga a seu favor.

(Folha de S. Paulo, 9.3.1986)

O CHOQUE INICIOU-SE NO ANO PASSADO

Marcos Cintra Cavalcanti de Albuquerque

Uma das mais frequentes observações proferidas desde o início das medidas de choque é a de que quase só existem diferenças entre o Plano Austral e o Programa Brasileiro de Estabilização. Enfatizam-se as distinções, passando-se· ao largo das semelhanças.

Afirma-se, em rápidas palavras, que o plano argentino é recessionista por incluir componentes bastante ortodoxos: um forte arrocho salarial com estimativas de 20% de perdas; política fiscal apertada, com sensíveis reduções nos gastos do governo, elevação de preços e tarifas de serviços públicos, e aumento de impostos sobre importações e exportações; política monetária restritiva, com a proibição de financiamentos de despesas governamentais pela emissão de moeda, e consequente manutenção de altas taxas de juros. A estes elementos clássicos de combate à inflação adicionaram-se a desvalorização da moeda e alguns elementos heterodoxos: o congelamento de preços e salários e a reforma do padrão monetário.

Aplicado numa economia em estado crônico de estagnação, este receituário resolveu em grande parte a questão inflacionária, embora tenha criado condições para a continuidade da recessão.

Em contrapartida, afirma-se que o plano brasileiro não contém elementos ortodoxos de política econômica, mas tão-somente aqueles necessários para extirpar a memória inflacionária. Estar-se-ia, portanto, aplicando um choque neutro que em nada comprometeria a continuidade da expansão econômica iniciada em meados de 1984, nem alteraria o perfil da distribuição da renda nacional.

Se as semelhanças não são facilmente identificáveis, isto deve-se mais ao fato de o plano brasileiro ter sido implementado em etapas, do que a diferenças substantivas entre eles. Deve-se dizer, contudo, que há contrastes perceptíveis nas dosagens, sendo o componente ortodoxo no plano brasileiro bem mais suave do que no argentino.

Em realidade, o plano de inflação zero não foi deflagrado no Decreto-Lei n. 2.283, mas sim no último trimestre do ano passado, quando rígidos controles de preços começaram a ser aplicados. Ao mesmo tempo, o governo foi bastante tolerante em relação às recomposições salariais (e isto antecedeu ao ministro Funaro) tornando-se claro que havia predisposição para alguma redistribuição de renda a favor do trabalho. Por sinal, as eventuais perdas salariais que vêm sendo identificadas devem ser debitadas muito mais a erros técnicos na conversão dos salários pelas médias do que a cortes propositados. Aqui, portanto, reside, quem sabe, a maior diferença entre os planos brasileiro e argentino; e isto encontra plena justificação no fato de que uma economia mostrava particular dinamismo e crescimento, ao passo que a outra achava-se em duradoura recessão.

O pacote tributário de dezembro do ano passado foi um importante passo na direção de uma política fiscal mais austera, já tendo apresentado resultados positivos nos primeiros meses de 1985. Contudo, ao ser lançado com o título de “Programa de Mudanças” motivou críticas, neste mesmo espaço (em 5.1.1986), por não ser um projeto integrado que contemplasse soluções para os três maiores problemas da economia brasileira - a inflação, o desequilíbrio do setor público e as restrições externas. O que não sabíamos então, era que aquele pacote era parte de um programa mais amplo que seria. implantado por etapas, e que a efetiva solução para o déficit público viria no Decreto-Lei n. 2.283 pela desindexação e pelo congelamento da dívida pública.

Nos meses seguintes outras medidas, de impacto direto no controle monetário, foram tomadas: restrições de créditos aos estados e municípios, a neutralização da conta-movimento do Banco do Brasil, a criação da Secretaria do Tesouro, e a transferência às autoridades monetárias de 40% dos depósitos líquidos nas cadernetas de poupança.

Se adicionarmos outras providências como os controles de crédito ao consumidor em janeiro, e, finalmente, o Decreto-Lei n. 2.283 em fins de fevereiro fica claro que, no todo, o teor deste conjunto de medidas é bastante semelhante ao plano argentino; a diferença é que as medidas mais ortodoxas foram tomadas antes, e as de maior impacto popular depois, e isoladamente. Criaram-se assim, e muito sagazmente, melhores condições para a imediata aceitação do plano pela população.

Cabe lembrar, contudo, uma diferença fundamental: o plano argentino penalizou fortemente os trabalhadores, que enfraquecidos e desgastados pela recessão anterior não ofereceram resistências à recomposição das margens de lucros das empresas. Num primeiro momento sancionou-se a estagnação, mas realiza-se agora as expectativas dos primeiros indícios de retomada do crescimento pelo lado da expansão da oferta. Tal estratégia seria insensata no Brasil, uma vez que a sistemática compressão nos salários é totalmente inviável. A saída foi a conversão dos salários e do conjunto dos preços próximos às médias.

A eliminação da correção monetária serviria como um colchão para a preservação das margens de lucro nas empresas, pois praticamente decretou-se uma moratória para as suas dívidas. Por outro lado, abriu-se importante espaço para o equacionamento do déficit público, também sufocado pelos encargos financeiros.

O plano brasileiro é diferente do argentino em seus efeitos na redistribuição de renda, mas semelhante nos reflexos das políticas fiscal e monetária. Nos próximos artigos iremos expandir estes pontos.

(Folha de S. Paulo, 9.3.1986)

PARA MELHORAR O NOVO PROGRAMA

Dércio Garcia Munhoz

As preocupações que vinham se avolumando nos últimos meses, com a reaceleração inflacionária, foram substituídas pelo estado de choque inicial provocado pelo anúncio do Plano de Estabilização Econômica. Repentinamente fomos, todos, introduzidos num mundo novo. Um mundo onde, é verdade, muitas dúvidas se colocam nesta fase de transição. Mas um mundo que faz renascer as esperanças de superação das dificuldades maiores.

Pode-se discutir muito os fundamentos da nova política econômica. Pode-se contestar diferentes aspectos, vis-à-vis a proposta política da Nova República. Mas é forçoso reconhecer que a evolução da economia exigia redefinição da orientação, sob o risco do vir o país a enfrentar uma fase de desorganização econômica, com inevitáveis reflexos sócio-políticos. Embora sempre se possa colocar que a redução das taxas de juros, e um maior cuidado na ampliação da carga tributária, poderiam ter fornecido, à Nova República, as respostas para o encontro da estabilização, que a velha República nunca encontrou.

O importante, agora, porém, seria a simples contestação da oportunidade ou validade da reforma. Pois, como ensinava o saudoso senador Petrônio Portela, não se pode contrastar os fatos. O importante é examinar-se, sob um ponto de vista crítico, o conjunto de medidas introduzidas pelo governo, visando a contribuições que possam conciliar conflitos mais acentuados, e aperfeiçoamentos que venham a facilitar o alcance dos objetivos procurados.

No exame da nova política três aspectos, segundo entendemos, merecem atenção maior:

  1. a possível anulação do abono de 8% (e parte dos 15% no caso do salário-mínimo), na hipótese de não incorporação, nos índices do IBGE, dos aumentos de preços até 27 de fevereiro;

  2. as dificuldades das pequenas e médias empresas em absorver os aumentos salariais de março, sem repasse para os preços;

  3. os vultosos encargos da dívida pública do Tesouro Nacional/Banco Central, sob administração deste último.

Essas questões são a seguir analisadas, discutindo-se as implicações delas decorrentes.

A atualização dos salários e o congelamento dos preços

No bojo do novo esquema, todos o salários deverão ser reajustados imediatamente, pela média real dos últimos seis meses - mais um abono de 15% na faixa do salário-mínimo, ou de 8% para os demais assalariados. E com uma cláusula de salvaguarda dos trabalhadores, que seria um reajuste automático sempre que os aumentos de preços futuros venham a alcançar 20%. Ou seja, sempre que a inflação futura, em ocorrendo, chegasse a um nível em que o abono fosse engolido pelos aumentos de preços. Com isso o novo “pico” salarial seria 8% acima do poder de compra médio dos últimos meses, e, ao longo do tempo, aí se manteria, se, apenas se, a inflação futura fosse zero. Com isso uma pequena taxa de inflação antes do dissídio coletivo não confiscaria totalmente o ganho real de 8%.

Ocorre, entretanto, que no levantamento dos índices de preços mensais do IBGE para fevereiro, tomou-se por base preços nas duas últimas semanas de janeiro e nas duas primeiras semanas de fevereiro. Trabalhando-se com preços médios do período, inevitável que, ainda que congelados os preços em março, o índice ainda revelará uma inflação diferente de zero em março e abril; e, consequentemente, o salário médio real calculado seria logo rebaixado diante do congelamento salarial, e em dois meses o trabalhador teria perdido mais que os 8% de abono - ou, no caso do salário-mínimo, os ganhos teriam praticamente desaparecido.

Não interessa ao governo registrar inflação em seus índices após o congelamento de preços que pretende alcançar. Não interessa ainda ao governo, e muito menos aos trabalhadores, rapidamente perder o abono que jogaria sua renda real média acima dos níveis dos meses anteriores. E para isso existe apenas uma solução: alterar as bases dos índices, passando a calcular os preços, a partir de março, com base nas cotações do final de fevereiro; mas para que isso não represente um brutal confisco salarial, a medida se completaria com a reabertura do índice de fevereiro, que passaria a ser fechado não pela média anterior, mas sim pelos preços vigentes no final de fevereiro. Para maior rigor matemático a variação a ser incorporada, em torno de 14%, teria de ser reduzida de aproximadamente três pontos de percentagem relativos aos quinze dias que “sobram”, relativos ao início da coleta de preços, em 1979, quinze dias antes do primeiro mês de referência. É essencial atentar que não se está discutindo se os preços foram reajustados pela média ou pelo “pico”. Trata-se, apenas, de definir onde deverão ser registrados todos os aumentos de fevereiro; se no processo anterior, em que parcialmente aparecem nos meses seguintes, ou com redefinição da base, incorporando os aumentos até a data do congelamento, dentro do próprio mês.

Essa é uma questão fundamental, já que o arrocho salarial e a elevação da inflação - fenômenos agudos em anos recentes como fruto do programa recessivo e redistributivo de rendas imposto pelo FMI em 1983 - tiveram o efeito fulminante de jogar o salário real médio, no Brasil no fundo do preço. E a recuperação da economia, retomada mais firmemente em 1983, ainda não foi capaz de proporcionar a recomposição salarial, mesmo porque as perdas ligadas à inflação derivam de anteriores apropriações de rendas por outros agentes do sistema, face: aumento dos tributos, aumento dos encargos financeiros internos, aumento em preços de importações, aumento dos juros internacionais, maxidesvalorização cambial de 1983 e desvalorizações cambiais aceleradas em 1984 e 1985, dentre os fatores permanentes mais importantes. Se o poder de compra se encontra no mais baixo patamar dos últimos 15 anos, não há por que congelá-lo a um nível ainda inferior à média agora existente. Mesmo porque nova queda da renda, a qualquer aumento de preços futuros, pode levar o país novamente a um processo recessivo.

A atualização dos salários e o desemprego

Na elaboração do plano de estabilização decidiram os formuladores por uma estratégia de mão dupla - atualização dos salários e congelamento de preços. Recebida no geral com quase total euforia, mas evidentemente envolve objetivos conflitantes. A questão é que, como a atualização salarial abrange a quase totalidade dos empregados - embora com percentuais diferentes - aparenta ser difícil às pequenas e médias empresas absorver o aumento de custos sem revisão dos preços.

Recomenda-se, pois, uma avaliação mais ampla dos possíveis reflexos da ação conjunta de aumento de salário/congelamento de preços, sobre o setor produtivo, a fim de prevenir-se contra eventual redução dos quadros de empregados, como mecanismo de defesa de empresas situadas fora dos ramos de ponta da indústria, ou das grandes empresas comerciais e de outras atividades. A ponderação que se faz tem em vista as empresas com até 49 empregados, na área do comércio, que respondem por aproximadamente 75% do emprego declarado, enquanto perto de 65% dos empregados no comércio trabalham para empresas com até nove empregados.

Seria um retrocesso, por outro lado, se eventuais dificuldades das pequenas e médias empresas viesse a traduzir, além do agravamento do desemprego, também no aumento no número de empregados não registrados, com ganhos efetivos abaixo do mínimo legal, e fora do quadro de contribuintes da Previdência Social.

Dever-se-ia atentar, por outro lado, que as empresas com redução das folhas de salário no mês de março, o que ocorrerá dentro da reforma, deveriam reduzir os seus preços finais, como contrapartida aos aumentos de preços das empresas com elevação nos salários. E compensação, necessária para efetivar-se um aumento real de 8% dos assalariados, teria de ser procurado via redução dos custos financeiros, em alívio das atividades produtivas e dos consumidores finais.

Dificuldades na dívida pública

Depois de vários anos de aumento incontrolável da divida pública, por força apenas do custos para o seu giro, o pais se vê à frente de uma divida acumulada, nos registros do Banco Central, que, segundo dados mais recentes, teriam ficado entre Cr$ 850 e Cr$ 900 trilhões ao final de fevereiro.

Essa dívida, cujo aumento, explosivo desde princípios da década, praticamente não decorreu de cobertura de encargos da União - ou seja, de excesso de despesas não financeiras - teve um crescimento nominal próximo de Cr$ 500 trilhões em 1985, e o custo real (após excluídas as correções e ainda Cr$ 30 trilhões destinados à política de crédito ou de aquisição de produtos agrícolas) de Cr$ 130 trilhões - equivalente a todas as receitas e a todas as despesas do governo e representando um custo efetivo real próximo de 30%.

Agora, sem correção, a dívida se congela na estratosfera. Mas fica o problema de como cobrir os encargos financeiros, se já se sabia que a unificação orçamentária (englobando os custos da dívida ao orçamento fiscal), não teria como resolver a questão. E nem mesmo recorrer-se a aumento da carga tributária - na linha do pacote fiscal de dezembro - seria possível, dado que a solução exigiria a simples duplicação dos impostos.

Vê-se, portanto, que a busca de alternativas para o giro da dívida, sem os custos absurdos e injustificáveis do passado, se coloca como prioritária, já que se fechou o caminho que temos defendido desde 1982 - início do descontrole maior sobre a dívida - no sentido de colocação de papéis no mercado cativo do curtíssimo prazo, com remuneração inferior às taxas de inflação.

Resta, no primeiro momento, a transparência das informações da real situação da dívida pública, para que a confusão reinante possa ser esclarecida. Para o que dever-se-ia simplesmente tornar público os seguintes dados, guardados a sete chaves, e que mesmo muitos ministros do governo até hoje supreendentemente desconhecem:

  1. dívida mobiliária fora do Banco Central;

  2. dívida mobiliária na carteira do Banco Central - coberta com recursos externos sob responsabilidade do Banco Central;

  3. encargos sobre compromissos em moeda estrangeira, não levados a balanço pelo Banco Central, como despesas, e também não coberto pela União com recursos de origem orçamentária;

  4. prejuízo operacional líquido do Banco Central (encargos cambiais sobre depósitos em moedas estrangeiras, não contabilizados como despesas, compensados pelos lucros acumulados no patrimônio e reservas do Banco Central).

Só após definida uma estratégia para administração da dívida pública, num momento em que o orçamento fiscal original deverá ser revisto para baixo, será possível estabelecer uma política de redução dos juros no sistema bancário em geral, o que é fundamental para redução de custos e para estímulo às atividades produtivas. Parecendo inevitável, e urgente, a tão falada reforma financeira, que envolva remoção dos custos decorrentes da irracionalidade do sistema bancário brasileiro, com triplicação de atividade (banco comercial, banco de investimento, financeiras) que poderiam estar sob uma mesma direção, com proliferação de agências nos centros urbanos, e no luxo de ligar via satélite agência dispersas por um país continental.

Parece-nos, portanto, que a busca dos objetivos do plano de estabilização, sem distorções mais graves, requer discussão sobre alguns aspectos essenciais. Dentro do espírito da Nova República de trabalhar com informações transparentes; de debater com respeito aos interlocutores; de abominar posturas pessoais arrogantes; de tratar as estatísticas sem sofismas enganosos; e de admitir que eventualmente a verdade possa estar com os outros - ou de que nem toda a verdade é a nossa. O que tornará cristalinas as diferenças entre um governo que veio com uma proposta definida de mudanças, e que revela pretender reduzir as iniquidades sociais, frente ao comportamento autossuficiente e autoritário que marcou a velha República, da qual saudades não há.

(Folha de S. Paulo, 9.3.1986)

O CHOQUE AGRÍCOLA AINDA NÃO SE ESGOTOU, APESAR DO CRUZADO

Fernando Maida Dall’Acqua

O Plano Cruzado anunciado pelo governo na última semana de fevereiro interrompe um processo de aceleração inflacionária que se deveria acomodar em torno dos 350% ao ano. Esta aceleração inflacionária estava associada a um realinhamento de preços relativos, desencadeada, em boa parte, pelo recente choque agrícola. Aparentemente, o congelamento de preços ocorre antes que esse processo de realinhamento se tenha completado, ou seja, antes que o impacto inflacionário do choque agrícola se tenha esgotado.

As pressões inflacionárias dos mercados agrícolas antecedem a quebra da produção na região Centro-Sul. Apesar de o governo ter-se apresentado como o grande comprador da safra passada, as divergências na condução da política de estoques reguladores e o aquecimento da demanda fizeram com que os preços agrícolas apresentassem um crescimento acima da inflação. Entre março e novembro de 1985, para um crescimento do IPA­OG da ordem a de 116%, os preços agrícolas cresceram 160%, em comparação com os 100% dos preços industriais.

Esse aquecimento dos preços agrícolas só não desencadeou fortes pressões inflacionárias a nível de setor industrial por ter sido parcialmente compensado pelo aumento da produtividade, redução dos juros (a partir de setembro) e congelamento de preços de alguns insumos básicos e tarifas públicas. Portanto, no ano passado, uma inflação agrícola ascendente (combinada com aumentos dos salários reais) só pôde ser compatibilizada com uma inflação industrial estável pela maior utilização da capacidade instalada, pela redução dos custos financeiros e também pelo controle de preços de insumos e tarifas.

O prolongamento da estiagem na região Centro-Sul criou expectativas de escassez futura, aquecendo ainda mais os mercados agrícolas no final do ano. Nos últimos três meses, para um crescimento no atacado dos preços industriais da ordem de 48%, os preços agrícolas aumentaram 75%.

Deve-se notar que este choque agrícola ocorreu ao mesmo tempo que se esgotava a capacidade ociosa no setor industrial. Na ausência desse fator, é provável que os preços agrícolas, através dos reajustes salariais e dos custos das matérias-primas, começaram a exercer fortes pressões sobre os custos e, consequentemente, sobre os preços industriais. O reajuste semestral dos salários, que até outubro estavam no patamar de 68,3% (setembro), com o choque agrícola saltaram para cerca de 101,4% (janeiro). Este aumento no índice de reajuste salarial, que apenas recompunha o pico do salário real do ponto de vista dos trabalhadores (salário nominal/IPCA), significava um aumento substancial no custo real dos salários para o setor industrial (salário nominal/preços industriais). Repassadas para os preços, essas pressões de custos seriam suficientes para jogar a inflação industrial para cerca de 350% ao ano.

É importante notar que embora nas últimas semanas os preços agrícolas já mostrassem um comportamento mais estável os seus efeitos continuavam alimentando a dinâmica inflacionária. Isto porque o ajuste dos diversos preços na economia não é instantâneo. Cada setor deve ajustar seus preços com uma certa defasagem, que depende do peso das matérias-primas agrícolas e dos salários sobre os custos de produção e do controle de preços praticado pelo governo. Em geral, quando o ajustamento se completa, as taxas anuais de crescimento dos diversos preços da economia convergem para um mesmo patamar, indicando o restabelecimento da estrutura de preços relativos anterior ao choque.

Nesse sentido, comparando-se mês a mês as taxas anuais de crescimento dos diversos preços da economia no período outubro 1984-janeiro 1986, percebe-se que os efeitos inflacionários do choque agrícola não haviam ainda sido esgotados. Por exemplo, em dezembro 1984, quando a inflação se apresentava estabilizada, a variação anual dos principais índices de preços coletados pela FGV (bens de consumo, duráveis e não duráveis; bens de produção, matérias-primas não alimentares, máquinas, veículos e equipamentos; materiais de construção; preços agrícolas e custo de vida) estava dentro da faixa 210-240%. Em fevereiro último, portanto, logo após o choque agrícola, esta faixa de variação havia sido ampliada para 205-350%.

Isto significa que o Plano Cruzado pega a economia no meio de um processo de realinhamento de preços relativos. Dessa forma, se a inflação cair para zero nos próximos meses, é bem provável que a estrutura de preços relativos pós-congelamento seja incompatível com o funcionamento normal de vários setores produtivos (presumindo-se que para isto seja necessário restabelecer a estrutura de preços relativos observada quando a inflação estava estabilizada ao redor de 200% ao ano).

Se esse for o caso, é possível que esses setores venham a reduzir o fluxo de produção ou reter os estoques, provocando dificuldades no abastecimento de alguns produtos. Em adição, naqueles setores em que a demanda se mantiver aquecida, podem surgir movimentos especulativos na esteira das pressões para o realinhamento dos preços relativos nesta fase pós-congelamento. Essas distorções são particularmente relevantes no abastecimento dos alimentos básicos, em que mecanismos extramercado, como filas, racionamento, mercado negro, possam causar descontentamento popular, comprometendo o apoio social ao plano de estabilização.

É, portanto, essencial que o governo, através da política de abastecimento, assegure a estabilidade dos fluxos de oferta dos produtos agrícolas básicos. Para isso, será necessário não apenas uma maior agilidade nas importações, mas também uma agressiva política de AGF/EGF que assegure ao governo os estoques necessários para intervir decisivamente nos mercados agrícolas, especialmente no segundo semestre, quando os efeitos da atual quebra de safra serão sentidos com maior intensidade.

(Gazeta Mercantil, 10.3.1986)

O PROGRAMA DA ESTABILIZAÇÃO ECONÔMICA

Yoshiaki Nakano

A Nova República após doze meses, inicialmente, de desacertos e, posteriormente, de “preparação” hesitante, detonou afinal o “choque heterodoxo”, único caminho correto para controlar a inflação brasileira.

Com o congelamento dos preços de todos os bens e serviços, dos salários e da taxa de câmbio e com a reforma monetária pretende-se num golpe eliminar o componente inercial da inflação. O programa de estabilização e da reforma monetária instituídos pelo Decreto-Lei n. 2.283 fundamenta-se, sem dúvida, nas experiências de alguns países europeus na década de 20, da Hungria em 1946 e mais recentemente nas experiências da Argentina e de Israel, que conseguiram eliminar a hiperinflação através de um tratamento de choque. Do estudo dessas experiências pudemos extrair um quadro referencial das condições que permitiram a interrupção abrupta do processo inflacionário. As condições comuns presentes em todos os casos no momento da estabilização podem ser resumidas nos seguintes pontos:

  1. a inflação adquire autonomia e movimento próprio, inercial, independente de componente de demanda ou de choques de custos;

  2. a sincronização nos reajustes de preços, de salários, câmbio etc. é quase perfeita, e as defasagens entre os aumentos nos preços praticamente desaparecem;

  3. preços relativos bem equilibrados;

  4. existência de condições institucionais para efetivo equilíbrio dos orçamentos público;

  5. renegociação da dívida externa e recomposição de reservas cambiais para garantir estabilidade da taxa de câmbio;

  6. credibilidade política do governo e aceitação geral do programa de estabilização.

Os programas de estabilização bem-sucedidos não encontraram todas estas condições presentes previamente à sua aplicação. Muitas dessas condições são criadas pela própria implantação do programa de reformas econômicas. Nas experiências de hiperinflação, normalmente, as condições 1, 2, 3 resultam da própria corrida alucinante dos preços. Nestes casos a inflação, após redistribuir a renda e a riqueza, numa dimensão comparável às provocadas pelas grandes revoluções, na sua fase final gera mecanismos de defesa por parte do organismo econômico no sentido de neutralizá-la, eliminando as defasagens sincronizadas, reajustes de preços, liquidando a moeda corrente expressando os preços em alguma unidade de poder real de compra estável. Nessas mesmas experiências, as condições 4 e 5 são resultados em grande parte de aplicação do programa de estabilização.

No caso brasileiro a situação é exatamente oposta a essas experiências de hiperinflação. O equilíbrio do setor externo e o controle do déficit público foram alcançados previamente à aplicação do choque. Reforma econômica e monetária visa exatamente criar a sincronização nos reajustes de preços e a eliminação das defasagens entre aumento nos preços características da hiperinflação, para viabilizar simultaneamente o congelamento de todos os preços, salários e câmbio sem provocar uma redistribuição de renda. Com este objetivo os salários e outros pagamentos foram congelados pelos seus valores médios entre os períodos de reajustes. Para evitar a transferência de renda dos devedores para os credores, os contratos em cruzeiros, que embutiram uma expectativa de inflação, serão convertidos em nova unidade monetária, cruzado, segundo uma tabela de desconto.

No que se refere aos preços relativos, existem alguns desequilíbrios em função do controle de preços exercido a partir do início de 1985, mas poderão ser administrados sem comprometer o programa no curto prazo.

A decisão de não fazer a correção antecipada da estrutura de preços relativos, como ocorreu nas experiências argentina e húngara, transfere o problema para o futuro. A médio e longo prazo um ajuste na estrutura de preços relativos será inevitável, particularmente dos preços agrícolas, sob pena não só de comprometer a alocação de recursos como o próprio programa de estabilização econômica. No caso de produtos agrícolas, as importações poderão garantir, neste ano, o abastecimento, mas a atual estrutura de preços não garantirá uma expansão adequada da oferta na próxima safra.

Na sua primeira semana de implantação, o programa de estabilização alcançou um sucesso absoluto e conquistou o essencial para a sua execução: o apoio da totalidade da população, inclusive da classe trabalhadora, o que trouxe forte legitimidade e credibilidade ao governo. A mobilização e a fiscalização feitas pela população garantia, neste primeiro momento, o congelamento dos preços ao nível do varejo, o que colocou o país e os demais setores frente a uma nova realidade de estabilidade de preços.

Será agora decisiva uma rápida e enérgica ação do governo ao nível do atacado e do produtor para converter os preços em cruzeiros para cruzados de forma justa a garantir o congelamento.

Outro aspecto que pode gerar instabilidade e comprometer o programa se refere à taxa de juros. Apesar da pressão para tabelar também a taxa de juros, para reduzi-la, a prudência receitaria, no curto prazo, o inverso, para evitar a fuga dos recursos dos ativos financeiros para os estoques, para o dólar, commodities etc. Nas experiências similares anteriores, a elevação da taxa real de juros, que alcançou níveis de 10% ao dia na Alemanha, teve um papel fundamental na estabilização da taxa de câmbio e dos preços. No programa brasileiro as taxas de juros foram mantidas livres como variável de ajuste, num momento em que a demanda da moeda deverá aumentar a taxas bastante elevadas. A correta administração destas duas variáveis será um dos pontos críticos nos próximos meses. A decisão que se coloca para as autoridades monetárias é a necessidade no curto prazo de elevar os juros para evitar a desestabilização do sistema financeiro e a especulação com os estoques e a necessidade de reduzi-lo a longo prazo para estimular os investimentos.

(Economia em Perspectiva - Carta de Conjuntura, n. 22, março de 1986)

A INFLAÇÃO É UM FENÔMENO REAL

Luiz Bresser-Pereira

A inflação não é nem um fenômeno essencialmente monetário, nem um simples problema de expectativas psicológicas, como afirmam os monetaristas e as aparências indicam, mas um fenômeno real, relacionado diretamente com a participação de cada agente econômico na renda. A inflação é um fenômeno real que tem sempre consequências (e eventualmente causas) monetárias. Só é problema psicológico na medida em que todos os problemas econômicos têm como base o comportamento dos seres humanos que buscam defender seus interesses.

De acordo com a teoria de inflação inercial, que é a última versão da teoria estruturalista da inflação, os preços sobem automaticamente, reproduzindo a inflação passada, não devido ao aumento da quantidade de moeda ou às expectativas dos agentes econômicos, mas porque, no processo de luta pela participação na renda (conflito distributivo), eles são obrigados a repassar seus aumentos de custos para os preços, e, assim, obrigados a aumentar defasadamente seus preços. A expectativa de inflação está baseada na inflação passada; a ação de reajustar preços deriva da necessidade de não perder e se possível ganhar no conflito distributivo.

O congelamento geral dos preços determinado pelo governo no último dia 28 de fevereiro visou interromper uma ciranda infernal. O choque heterodoxo era a única alternativa para eliminar a altíssima inflação inercial brasileira. Foi tecnicamente bem formulado. E seu êxito inicial, apoiado no decidido apoio popular, é indiscutível.

Se em sua execução, entretanto, não se levar cuidadosamente em conta o caráter real da inflação, a relação direta existente entre preços (inclusive as taxas de salários, de juros e de câmbio, que são também preços) e a participação na renda, será insuficiente o apoio popular, e o plano enfrentará graves dificuldades.

O preço mais polêmico inicialmente foi o do salário. A necessidade de uma fórmula de conversão para transformar os salários nominais em salários médios reais em cruzados criou muitos mal-entendidos. Não há dúvida, entretanto, de que a fórmula é correta. Somada ao abono de 8% e à escala móvel seria difícil imaginar um choque anti-inflacionário mais favorável aos trabalhadores.

Quanto ao sistema financeiro, que muitos acreditavam que entraria em colapso devido a um choque heterodoxo, não é isso que está ocorrendo. Os bancos foram sem dúvida prejudicados pela perda de remuneração implícita nos depósitos a vista. Mas o Banco Central está tomando medidas competentes de defesa dos bancos, como a remuneração dos depósitos compulsórios.

O problema real mais grave é o conflito distributivo entre as empresas. Esse conflito tem dois aspectos distintos: 1) o da necessária redução dos preços a prazo, já que o congelamento foi dos pr­ços a vista; 2) o dos desequilíbrios nos preços relativos no dia D (28 de fevereiro).

O Plano previu expressamente a redução dos preços das mercadorias já faturadas a prazo, quando definiu uma tabela de conversão de cruzeiros em cruzados para as operações de crédito anteriores ao dia D. Deixou, entretanto, de definir com clareza que a mesma redução deve ser feita para os futuros fornecimentos. Se uma empresa vendia a crédito com uma expectativa mensal de inflação de 14%, a redução de seu preço deve ser de 12,3% a partir da previsão de uma inflação zero (14 dividido por 114). Essa redução é essencial e deve ser feita em cadeia para trás até os fornecedores de matérias-primas.

O segundo problema, que deve ser claramente distinguido do anterior, é o dos desequilíbrios nos preços relativos causados principalmente pelo fato de que -- como ainda não nos encontrávamos em uma situação de hiperinflação - alguns produtores reajustaram seus preços muito antes do dia D, especialmente os sujeitos a controle pelo CIP, ficando assim defasados. Para esse problema não há outra alternativa senão autorizar o aumento de preços atrasado cuidadosa e paulatinamente, como vem sendo feito na Argentina. Esses aumentos são inevitáveis e determinarão uma pequena taxa de inflação. Inflação zero pode ser uma meta, mas não é uma perspectiva realista.

Essa taxa de inflação, entretanto, será pequena, não apenas porque os reajustes autorizados deverão ser limitados, mas também porque, não sendo o plano recessivo, o aumento da produtividade e a decorrente baixa de custos e preços poderá compensar as elevações pontuais de preços autorizadas.

(Folha de S. Paulo, 11.3.1986)

O DEBATE DA INFLAÇÃO E O PARADOXO DO CHOQUE

Leda Maria Paulani

A inesperada aplicação no Brasil do que se convencionou denominar nos meios acadêmicos do “choque heterodoxo” como uma última e arriscada cartada no combate à inflação deslocou a questão, nesse primeiro momento, para o terreno eminentemente prático. E não poderia ser de outra forma: trata-se de uma reforma abrangente (talvez a mais abrangente que o país já tenha conhecido) que atinge a economia com um todo e o dia a dia de cada cidadão. É mais do que natural, pois, que nesse primeiro momento de perplexidade a discussão centre-se nas consequências da mudança, nas intermináveis controvérsias sobre quem ganhou e quem perdeu, sobre o “vai dar certo”, “não vai dar certo”. Para nós, economistas, todavia, a questão teórica relativa ao fenômeno inflacionário no Brasil ainda está por ser respondida.

Quem acompanhou o debate sobre o combate à inflação que se acirrou neste país desde meados de 1984, sabe que a discussão compunha-se de pelo menos três grupos de interlocutores teóricos com suas respectivas receitas anti-inflacionárias: os monetaristas com seus choques ortodoxos (gradualistas ou não), os inercialistas com seus choques heterodoxos de nuanças variadas mas de conteúdo único, e um terceiro grupo, cético em relação às duas posturas anteriores, e cuja visão acerca do fenômeno inflacionário brasileiro centrava-se na questão dos desequilíbrios estruturais, significativamente agravados pela ruptura do padrão monetário internacional e pela imposição à nossa economia de restritivas políticas de ajuste.

Superada, na Nova República, uma breve etapa de estada no poder dos economistas do primeiro grupo, a ascensão do ministro Dílson Funaro em agosto de 1985, reuniu, no comando da política econômica, economistas dos dois últimos grupos, vale dizer, os professores da PUC-RJ e os professores da UNICAMP. Os economistas da USP ficavam no meio, com o professor Sayad à frente, mas é sabido que, por formação e convicção, estavam muito mais próximos da PUC do que da UNICAMP. A julgar pelos fatos, nas discussões internas que seguramente se travaram, venceram os economistas inercialistas e, ao que parece, venceram convencendo os céticos da UNICAMP: o choque heterodoxo está ai apoiado e defendido por membros dos dois grupos em repetidas declarações à imprensa.

Para quem acompanhou de perto o debate, a adesão incondicional dos professores da UNICAMP à tese da inflação inercial - que sustenta teoricamente a aplicação da reforma - é no mínimo surpreendente. Antes que mal-entendidos ocorram, é preciso deixar claro que a intenção deste artigo não é a de realizar um policiamento da coerência teórica dos professores que aprendemos a respeitar, mas simplesmente retratar a angústia de quem tenta, no mínimo por uma questão de obrigação profissional, compreender com um pouco mais de clareza a realidade econômica deste nosso triste país.

Ao longo do tiroteio teórico em que se transformou o debate, os professores da Unicamp disparam sucessivos petardos contra as teses inercialistas. Assim por exemplo, em artigo no boletim do CRE-SP de dezembro de 1984, a professora Maria da Conceição Tavares afirmava: “Não é a memória do passado, mas o medo do futuro que move a inflação brasileira”. A intenção deliberada era golpear as teses inercialistas: a “memória do passado” como componente explicativo fundamental da inflação era a suposição básica dos teóricos inercialistas para quem, na ausência de choques, a inflação corrente é determinada pela inflação passada independentemente do estado das expectativas com relação ao futuro.

Já o “medo do futuro” da professora Conceição estava muito longe de qualquer parentesco com a tendência expectacional da inflação tão cara aos monetaristas. Em outro artigo da professora Conceição, desta vez em coautoria com o professor Luiz G. Belluzzo (revista Senhor, n. 206, de fevereiro de 1985), e cuja intenção tácita não era outra senão a de enfrentar as teses inercialistas, este “medo do futuro” vai aparecer muito bem fundamentado: a partir da ruptura do padrão monetário internacional, as condições de formação dos preços de produção das mercadorias alteraram-se decisivamente, pois a estabilidade dos contratos de oferta e dos contratos de dívida no período de produção não mais se sustenta. Nessas condições, os mark-ups deixam de ser fixos, tornando-se flexíveis para cima, porque uma margem fixa não é mais garantia de rentabilidade bruta sobre o capital aplicado na produção.

Assim, para as economias latino-americanas submetidas às restritivas políticas do FMI dos últimos anos, essas alterações compuseram com tais políticas um mix decisivamente perverso. À adição de um componente aceleracionista à fixação das margens brutas de lucro acrescentou-se uma elevação das taxas internas de juros que se converteu, por sua vez, numa rigidez indesejada nos estoques de matérias-primas e alimentos. Com inflexibilidade de estoques e rigidez na oferta de divisas e com mark-ups flexíveis para cima, a velocidade imposta ao crescimento dos preços aumentou de forma inequívoca.

Como se percebe, a bateria de argumentos teóricos dos professores da UNICAMP contra as teses da inflação inercial era de elevada potência, de uma coerência técnica quase inatacável e, a meu ver, resgatava com um significativo grau de realismo pelo menos algumas das verdades com relação ao fenômeno inflacionário brasileiro. Daí a surpresa pela súbita adesão dos professores às teses que antes tanto combatiam.

Ao que consta, não houve nova mudança no padrão monetário internacional e, portanto, não se alteraram as condições de formação dos preços de produção. Temos, é verdade, o alento de não mais suportarmos sobre nossas cabeças o jugo inflexível do FMI, mas, de qualquer forma, a questão externa ainda não está resolvida. O dia D do choque passou (ou tentou passar) uma borracha no passado, mas não tem, nem poderia ter, a capacidade de apagar também o futuro.

No mesmo artigo da revista Senhor, afirmam os professores: “Se os agentes formadores de preços levassem em conta, na formação de preços, apenas o componente passado da inflação, esta se tornaria inercial ( ... ). Mas as empresas líderes formadoras de preços tendem a precaver-se de qualquer percalço na inflação futura, subindo o mark-up desejado”. Cabe então perguntar: Como se comportarão os mark-ups, numa economia tão oligopolizada quanto a nossa, quando o descongelamento dos preços tiver lugar?

Nesse sentido, cabe lembrar que uma das hipóteses fundamentais a sustentar a concepção inercial de inflação é a de que os mark-ups médios são estáveis e de que, portanto, o conflito distributivo não se potencializa em aceleração do patamar inflacionário. Assumir a concepção inercial de inflação é, por conseguinte, assumir também que a luta distributiva no Brasil se resolveu nos últimos anos e que o conflito se congelou. Um mínimo de realidade mostra que essa hipótese está muito longe da verdade.

Finalmente, só mais duas palavras para evitar outro mal-entendido: não se trata aqui de “torcer contra o choque”, posição que obviamente seria descabida. Trata-se apenas de alertar que questões aparentemente simples encobrem um tal grau de complexidade que a pobreza da teoria econômica de que dispomos está muito longe de alcançar. O breve painel aqui traçado do debate anti-inflacionário no Brasil é um belo exemplo de que cabeças das mais lúcidas e reconhecidamente competentes deste país também são assaltadas por frequentes dúvidas e também mudam de opinião abruptamente, provocando, em quem os acompanha, um choque, não tanto pelo heterodoxo mas, sim, pelo paradoxo.

(Folha de S. Paulo, 23.3.1986)

DESCONGELAMENTO

Luiz Bresser-Pereira

O êxito do Plano Cruzado, que de fato estabilizou os preços, não nos deve levar a subestimar as dificuldades que ainda existem pela frente. E entre os desafios que nos esperam, sem dúvida, o maior deles é o do descongelamento.

Uma economia qualquer - mesmo uma economia socialista - não pode ficar permanentemente com seus preços congelados. É essencial que os preços relativos variem em função das diferentes taxas de aumento de produtividade, que se refletem em reduções diferenciadas de custos. Em um país capitalista, entretanto, uma razoável liberdade de preços faz parte da própria definição do sistema econômico cuja base é a coordenação pelo mercado, pelo sistema de preços.

O congelamento deverá, portanto, ter duração relativamente curta. Não deverá ultrapassar alguns meses - seis, por exemplo -, porque o risco de que as distorções nos preços relativos aumentem ao invés de diminuírem, caso o congelamento se prolongue, são muito grandes. E caso isto ocorra o descongelamento poderá, afinal, ser uma imposição dos fatos, em vez de uma decisão de política econômica.

O congelamento durante um certo prazo - cerca de três meses - é necessário para quebrar a inflação inercial. Em função do conflito distributivo, ou seja, da necessidade de cada agente econômico de defender sua participação na renda, os preços aumentavam defasada e automaticamente, independentemente de excesso de demanda e da oferta monetária. Não havia outra alternativa senão o choque heterodoxo para quebrar essa ciranda de preços.

Em segundo lugar o congelamento se justifica por um prazo adicional caso o governo aproveite esse prazo para corrigir as distorções nos preços relativos existentes no dia D. Esses distorções são de três naturezas: 1) aquelas que já existiam há tempo na economia em função de tabelamentos ou de comportamentos excepcionais de oferta ou de procura de determinados bens; 2) aquelas provocadas pelo dia D, que surpreendem algumas empresas atrasadas outras adiantadas no reajustamento inercial de seus preços; 3) aquelas provocadas pela existência de uma inflação embutida nas vendas a prazo.

No prazo do congelamento o governo pode corrigir as principais distorções existentes nos preços relativos, de forma que, no momento do descongelamento, as empresas não sejam levadas a corrigir por conta própria - provavelmente de forma abrupta, exagerada e em conjunto - aquelas distorções. Porque, se isso ocorrer, é claro que teremos uma imediata aceleração inflacionária.

O prazo para a correção dessas distorções - durante o qual poderá ocorrer uma pequena inflação - deverá, entretanto, ser o mais curto possível. Através de um esforço concentrado, e utilizando as informações de que dispõe no CIP, o governo deverá procurar corrigir as distorções mais obvias, para, em seguida, iniciar o descongelamento. Caso demore para descongelar, ao invés de corrigir os preços relativos, o mais provável é que o governo acabe aumentando essas distorções. Em um país capitalista, em que as pressões das empresas controladas são enormes, são conhecidas as limitações a longo prazo de um congelamento geral de preços. Os erros e a corrupção tendem a se somar para aumentar as distorções.

O descongelamento, entretanto; não precisará ser abrupto e muito menos geral. Deverá ser feito gradualmente, e alguns setores altamente oligopolizados deverão continuar a ter seus preços permanentemente controlados embora não necessariamente congelados.

Um descongelamento nestes termos - 1) que ocorra depois que as principais distorções tenham sido eliminadas e antes que elas comecem a aumentar; 2) que seja fruto de decisão de política econômica ao invés de uma imposição do mercado; 3) que seja gradual; 4) que mantenha sob controle os setores oligopolizados - é necessário e não levará à retomada da inflação.

(Folha de S. Paulo, 15.4.1986)

A NOVA ETAPA DA POLÍTICA ECONÔMICA

Florestan Fernandes

A economia política diz respeito às relações sociais mais entre pessoas, instituições (especialmente empresas, sindicatos etc.), classes, governos e nações. Em sua intricada essência moderna, o plano mais importante é o mundial, o qual se refere à internacionalização das economias e do sistema de poder capitalistas (ou socialistas). Essa realidade parece esquecida no paroquialismo das reações ao chamado “pacotão” e à forma de sebastianismo salvacionista que a propaganda oficial e os principais meios de comunicação de massa forjaram em torno do assunto.

O fato principal tem sido esquecido: as duras realidades que tivemos de viver foram produzidas somente pela ditadura; esta encontrou, a quatro mãos, as premissas exigidas pela incorporação acelerada às economias capitalistas centrais e pela sede de “desenvolvimento” da burguesia brasileira. A ditadura não estimulou apenas obras faraônicas, propícias à corrupção gigantesca inerente ao capitalismo monopolista atual; ela desencadeou uma formidável mudança na infraestrutura de toda a economia, sem a qual nem as “multinacionais” nem o “capital financeiro mundial” teriam se interessado pela incorporação do Brasil ao núcleo da economia mundial. A crise, a recessão, os problemas do petróleo, a política da superpotência de descarregar sobre os ombros de seus aliados subimperiais e periféricos o peso de sua própria crise, o “endividamento” como roubo colonial, etc., converteram os milagres recentes da imperialização dos países estratégicos da periferia em um foco de gravíssimos riscos potenciais e de recriminações azedas contra a burguesia internacional.

Alguns países da periferia se viram na iminência de recorrer a resoluções pelo alto, dos estratos nacionais da burguesia, contra os centros imperiais secundários e a superpotência. E percebia-se claramente que essas explosões seriam o ponto de partida de eclosões populares, que não seriam controláveis facilmente e levariam a um ciclo de revoluções sociais de desfechos imprevisíveis. Na medida em que o sistema de produção e de poder do capitalismo mundial ganhou novos alentos, iniciando sua recuperação, e começou a superar sua prolongada crise, eles próprios abriram novas avenidas à passagem de exigências duras, ditadas pelo FMI, para arranjos mais flexíveis e inteligentes. É nesse contexto que foram gerados os doxos mais ou menos heteros, fortemente amparados por organizações supranacionais europeias, por adaptações seletivas do governo norte-americano, por economistas e tecnocratas dessas instituições - e principalmente pela elite de banqueiros, que não pretendia ver o sistema de poder capitalista ir pelos ares em uma era de paz (ou de pequenas guerras localizadas).

Uma perspectiva análoga abria-se a partir de dentro (muito clara quando se toma o Brasil como foco de referência). O arranque do capitalismo financeiro obedeceu, aqui, a parâmetros aventureiros e se fundou na força do fuzil (o único meio acessível, nos dias que correm, para desencadear a acumulação capitalista “avançada”, com base no famoso tripé). Essa solução compeliu vários setores da burguesia a compartilhar de modo desigual os frutos do “desenvolvimento econômico acelerado” e, em particular, convertia os grandes especuladores e os bancos na versão atual dos robber barons. A massa de lucros escapava pelos dedos desses setores da burguesia, indo em grosso para o exterior ou para os cofres-fortes dos especuladores e banqueiros. Por isso, a ditadura viu sua base social diluir-se e oscilar; e o movimento burguês procurou alternativas pelo tope, que garantissem a continuidade do “desenvolvimento com segurança”. Os economistas, alguns com a cabeça colonizada, já moldada pelas combinações entre doxos e heteros que entraram na moda entre os scholars, outros saídos de quadros democrático-nacionalistas da “esquerda”, constituíram os quadros intelectuais da “recuperação econômica”. De sacerdotes da burguesia, deram um salto notável que os revelou como coveiros das aspirações socialistas e comunistas dos grupos mais organizados do proletariado e o radicalismo larvar das massas populares destituídas.

A evolução que se estava preparando aguardava uma oportunidade histórica. Os fatos políticos, porém, precipitaram o deslanche. Premido por sua fraqueza congênita e pela fragmentação de sua base de sustentação política e parlamentar, o governo deu um golpe de mestre. Antecipou-se, seguindo as trilhas e a herança legadas pela ditadura e usando todas as facilidades ao alcance de um presidencialismo rudimentar, permanentemente livre de controles democráticos internos ou inexistentes em uma sociedade de classes desprovida de cultura cívica. Assistimos, pois, àquilo que o fatalismo popular batizou como chegar a fins certos por vias tortas.

Não havia outra saída. Cedo ou tarde o sistema de poder teria de dar esse passo, com ou sem o aparato de guerra psicológica manejada militarmente (como é o caso). Ou isso ou a precipitação de ciclos de inquietação popular, a derrocada do desenvolvimento capitalista montado e o advento de insurreições verdadeiramente revolucionárias. O governo avançou até onde ele devia ir, para tirar os interesses de classes da grande burguesia e das nações capitalistas centrais da beira do abismo. Só que, ao fazer isso, engendrou e colocou em prática uma política econômica dura (melhor seria dizer duríssima) para todos os que não sejam grandes proprietários (mesmo os que sejam tão-somente pequenos e médios proprietários). Essa política não corresponde ao inverso da política econômica da ditadura. Ela constitui uma nova etapa, a da consolidação do “arranque”, produzido pelo casamento do intervencionismo estatal e da iniciativa privada mais poderosa com o imperialismo. Porém, é a mesma política sob outra face, que se desvenda (e se impõe) pelo amadurecimento do salto econômico e pela defesa ativa dos interesses vitais do capital em nossa situação histórica.

O que espanta é o triunfalismo do ministro Funaro e a falta de consciência objetiva do presidente Sarney - um, apegando-se a um voluntarismo de opereta; outro, ousando afirmações estravagantes (como a “inflação acabou”, o “Brasil mudou para sempre”, etc.). Seus assessores de economia poderiam explicar-lhes facilmente que a economia política não é a durindana de D’Artagnan; e o que nela parece uma coisa, em sua substância, é outra, inteiramente oposta. Por enquanto, quase nada mudou. Possui razão Pérsio Arida quando confessa redonda e honestamente: “É claro que do ponto de vista ético seria até justo converter o salário pelo pico de seu poder aquisitivo. Mas isso significaria introduzir um custo muito alto para as empresas, precisamente no momento em que se congelam os preços” (Veja, n. 913, 5.3.1986, p. 29. Recomendo também que se leia atentamente o parágrafo seguinte ultra revelador).

A nova política econômica dispõe, de imediato, de sacrifícios a exigir e de esperanças a oferecer. Tem sido pródiga na proposição das esperanças, ocultando assim os sacrifícios dos assalariados, dos pobres e dos pequenos empresários. Elas não custam nada. Retórica é retórica e quando se descobrir o quanto de retórica está sendo servido à massa pobre e trabalhadora da população, outros problemas exigirão a atenção dos que foram iludidos em sua boa fé. Nem mesmo se poderá afirmar que a inflação está extinta (ou prestes a extinguir-se) e que a deflação e um fantasma superado. Desencadeada a nova política econômica, as intenções dos programadores e dos senhores do poder contarão cada vez menos e as possibilidades do país se farão sentir cada vez mais. Se não fosse assim os economistas seriam os profetas da utopia e a felicidade reinaria em toda a parte, já que as forças econômicas não contariam com sua férrea lógica histórica.

Quanto a nós, que temos de enfrentar os frutos das boas e da más políticas econômicas, devemos estar preparados para conviver com as nossas possibilidades. A massa de pobreza e de desigualdade é tão grande e as exigências constrangedoras da acumulação capitalistas tão imperiosas, que seria uma loucura esperar do capitalismo a solução dos nossos problemas e dilemas humanos. A reforma capitalista do capitalismo está fora do nosso alcance, digam o que disserem os donos da ordem e os seus mais fiéis servidores da intelligentsia e da tecnocracia.

(Folha de S. Paulo, 27.4.86)

O FANTASMA DE 1980

Celso L. Martone

O plano cruzado é uma construção artificial e, como tal, tem vida curta. O plano permitiu eliminar grande parte da “memória” inflacionária da economia e abriu caminho para uma política eficaz de estabilização a custos sociais substancialmente menores do que seria possível sem ele.

Passados quase dois meses da implementação do programa, essa política não veio. Pelo contrário, o governo tende a ver o plano como uma estratégia completa e não como um passo inicial em direção à estabilização. A permanência dessa visão equivocada levará ao fracasso do programa nos próximos meses, através de uma rápida reinflação da economia. O quadro econômico atual desenha-se muito semelhante ao de 1980, embora por razões diferentes.

A economia estava operando praticamente a pleno emprego (da mão-de-obra e do estoque de capital) quando o plano foi aplicado em final de fevereiro. A conversão dos salários pela média (mais o abono de 8%), junto com o congelamento dos preços ao consumidor, aumentou a massa real de salários e estimulou ainda mais o consumo. Uma avaliação preliminar indica que o déficit projetado do setor público para este ano é equivalente ao do ano passado, que foi elevado. A ausência de uma política efetiva de estabilização posterior à reforma tem levado o setor privado a antecipar uma explosão inflacionária mais à frente, gerando uma demanda especulativa por ativos reais (ações, imóveis, matérias-primas, bens duráveis, dólar). Até agora, não houve qualquer sinal, por parte do Banco Central, de que as taxas de juros reais serão pelo menos mantidas nos próximos meses, quando reaparecer alguma inflação. Pelo contrário, há forte pressão política sobre o governo para reduzi-las ou mesmo tabelá-las, o que incendeia a demanda especulativa por bens.

Monta-se rapidamente assim o quadro para uma reprise macroeconômica de 1980, com o agravante de que agora temos o “gatilho” salarial, que introduz uma instabilidade potencial para taxas de inflação superiores a 20% ao ano.

O governo envolveu-se numa armadilha que só admite duas saídas: a reinflação desestabilizadora ou a recessão curativa. A reinflação reproduz o cenário de 1980 e implica em continuar com o congelamento de preços ao consumidor e com políticas fiscal e monetária frouxas ou amorfas. A recessão implica na consolidação do programa de estabilização ao longo deste ano a um patamar inflacionário aceitável (entre 20 e 30% ao ano) e requer uma agenda mínima e imediata da política econômica baseada em três pontos.

Primeiro, é preciso cortar gastos públicos no volume suficiente para reduzir o déficit projetado do ano ao nível do que possa ser financiado sem auxílio do Banco Central (pela emissão de cruzados). Uma providência simples para forçar esse corte consiste em proibir o Banco Central de financiar o Tesouro Nacional e as empresas estatais (item imperdoavelmente omitido no Decreto-Lei n. 2.284). Isso restauraria o elemento de credibilidade pública no governo que hoje está ausente.

Segundo, é preciso iniciar imediatamente o descongelamento dos preços no varejo, através de um gradualismo rápido, iniciando pelos setores cujos preços estão claramente reprimidos. O aumento de preços é um instrumento eficiente para conter a demanda de consumo e restabelecer o ajustamento automático entre demanda e oferta nos mercados individuais.

Terceiro, é preciso sinalizar claramente na direção de um aumento das taxas de juros reais a curto prazo, via política monetária. O Banco Central tem que dispor de liberdade total para elevar as taxas de juros a nível suficiente para inibir movimentos especulativos em bens dentro do setor privado.

É preciso compreender que uma recessão temporária, a partir de uma situação de pleno emprego, é um custo baixo a pagar por uma estabilização razoável e duradoura da economia brasileira. O governo tem hoje uma oportunidade histórica de lançar a economia numa trilha de crescimento sustentado nos próximos anos, baseado numa retomada dos investimentos privados a partir de 1987. Como todas as tentativas de estabilização têm mostrado, contudo, os primeiros seis meses são críticos: ou o programa se consolida ou é forçosamente abandonado. Já perdemos dois meses. Talvez ainda haja tempo de salvar o plano cruzado se providências imediatas forem tomadas no estilo proposto acima. Esse· é um exemplo clássico em que os ganhos políticos a curto prazo são insignificantes perto do desastre político de médio prazo que invariavelmente ocorre se uma visão míope da política econômica continuar prevalecendo.

(Folha de S. Paulo, 30.4.86)

SEGUNDA FASE DO CHOQUE E AS PRESSÕES INFLACIONÁRIAS

Eliana A. Cardoso

Qualquer economista há de conceder que um programa que reduz a inflação de 400 para 30% ao ano sem provocar um aumento do desemprego é um sucesso com poucos precedentes nas experiências de estabilização, em qualquer parte do mundo. E ao concordar com tal afirmativa, não poderá deixar de enfatizar as implicações sociais positivas de um pacote heterodoxo. A aceleração da inflação teria significado uma transferência continuada da renda dos que trabalham para os que especulam. Acabar com a inflação com um programa do tipo do FMI significaria um enorme atraso social. Daí porque a sociedade aplaudiu de forma unânime a adoção do Plano Cruzado.

Pretender, entretanto, que as pressões inflacionárias de ordem não inercial deixaram de existir no Brasil a partir de 28 de fevereiro de 1986 e que, daqui para frente, nossa inflação vai ser zero, pode se revelar um truque perigoso. Por mais que agrade ao presidente a popularidade proporcionada por preços estáveis, mesmo que conseguida através do congelamento dos preços e da taxa de câmbio, os economistas sabem que existe um número limitado de mágicas que se podem produzir num sistema capitalista de mercado.

Um mero exame das estatísticas mundiais mostra que a inflação não é zero nem na Europa, nem nos Estados Unidos, nem em parte alguma do mundo. E, uma vez removido o congelamento de preços também não vai ser zero no Brasil. Assim sendo não há por que comprometer o crescimento adotando políticas, como o congelamento da taxa de câmbio, que só se podem manter numa economia de inflação zero. A nota desafinada do aumento do prêmio no mercado paralelo de dólares, que se sabe devido, em grande parte, à fuga de capitais associada à insegurança de alguns grupos econômicos frente à Constituinte e a uma verdadeira democracia, chama a atenção para o fato de que as expectativas não são nem de inflação zero nem de desvalorização zero.

O congelamento de preços foi uma medida consistente e necessária da reforma introduzida com o cruzado e algumas das distorções que trouxe consigo representavam um preço inevitável a pagar num processo de estabilização. Também não representa uma grave crise de abastecimento o fato de que cem dos quinhentos artigos que se vendem na rede de supermercados de São Paulo tenham desaparecido das prateleiras e que alguns remédios, eletrodomésticos ou pneus não se encontram à venda. Afinal, é melhor a escassez de alguns produtos do que a escassez de empregos. Mas os problemas de escassez tendem a se agravar se as distorções se perpetuam. Como a inflação não havia chegado ao ponto de provocar remarcações diárias, em alguns setores os preços foram congelados acima do equilíbrio e abaixo noutros. É preciso não levar os congelamentos além do tempo que podem ser sustentados. Não há lei capaz de convencer os empresários a produzir e a investir com prejuízo. É preciso substituir o congelamento por tabelamentos móveis mesmo que a popularidade do plano venha a sofrer com o aumento do preço do leite. Não há por que adiar a solução de problemas setoriais. Mesmo que a criação de uma comissão que analise caso a caso as reivindicações setoriais implique abandonar a meta de inflação zero, esta é uma decisão que não pode ser postergada, e que é de primordial importância para a retomada dos investimentos.

Um dos problemas mais graves da atual situação é justamente a queda da formação de capital fixo. Durante a década de 70, os investimentos brutos representavam em média cerca de 26% do PIB. Em 1985, eles não chegaram a 16% do PIB. O crescimento verificado durante o último ano e meio se deveu à expansão do consumo e deixou nossa capacidade de produção inalterada. O investimento precisa ser recuperado urgentemente, sob pena de comprometer o crescimento potencial da economia. Sua recomposição impõe não apenas uma política de preços realistas, mas também de manutenção de baixas taxas de juros, e a redução de transferências de recursos para o exterior. Examinemos cada um desses aspectos em separado.

Alguns críticos do governo têm enfatizado que a economia se encontra excessivamente aquecida e que o governo deve optar por uma política monetária mais restritiva. Entretanto, o aquecimento da economia se deve ao aumento dos salários reais e ao boom dos gastos de consumo. Políticas econômicas apropriadas devem se dirigir diretamente ao controle do consumo e da poupança, e não à adoção de restrição monetária que viria elevar os juros, desestimulando os investimentos e comprometendo o crescimento e a criação de empregos. O crescimento do consumo pode ser controlado através de um imposto suplementar recolhido na fonte, que poderá ser ulteriormente devolvido, quando a atividade econômica esfriar. Este sistema de poupança forçada já foi usado na Argentina.

Na frente externa formou-se um conjunto de circunstâncias extremamente favoráveis, com a queda do preço do petróleo, o enfraquecimento do dólar e a redução das taxas de juros externas. A “Libor”, a taxa de juros do mercado de Londres, agora convertida em medida padrão para cobrança dos juros da dívida brasileira, e que em 1981 batia em 20%, hoje está em 7% ao ano e caindo. Só por conta da queda da “Libor “, o Brasil vai economizar mais de um bilhão de dólares em 1986. Um mesmo montante de economias se pode conseguir pelo não-pagamento dos “spreads” atuais que superam 1%. Um país capaz de gerar superávits comerciais de mais de 12 bilhões de dólares com crescimento superior a 8% não representa risco que justifique “spread “ de nenhuma espécie. Só falta agir.

O lado menos atraente do Plano Cruzado continua a ser seu aspecto autoritário-populista. Essa característica não nos deveria surpreender numa sociedade acostumada a relações de dependência, de tutela e de concessão. Numa sociedade onde as leis são armas de repressão não há por que se espantar que mais uma vez o arbítrio, mesmo quando disfarçado sob a medida populista de controle de preços, tenha se mostrado a marca do governo. Mas talvez essa seja a maneira inevitável de se conseguir uma reforma monetária bem-sucedida e só nos resta trabalhar para que a redução das taxas inflacionárias a níveis compatíveis com uma maior estabilidade econômica permita a volta de eleições livres e a construção de uma sociedade mais democrática.

(Folha de S. Paulo, 18.5.86)

PRESSÃO INFLACIONÁRIA É DESAFIO PARA O PLANO

Fernando Maida Dall’Acqua

O sucesso alcançado pelo Plano Cruzado na estabilização dos preços não nos permite subestimar as dificuldades que devem se apresentar nos próximos meses. Neste artigo, procura-se mostrar que um dos principais desafios a ser enfrentado refere-se às pressões inflacionárias residuais associadas ao desalinhamento de preços relativos que foi perpetuado pelo congelamento.

O diagnóstico que teoricamente sustenta o Plano Cruzado enfatiza a inflação como um fenômeno inercial desencadeado por choques de oferta ou demanda e sustentado pela permanência do conflito distributivo. Fatos como frustração de safra agrícola, maxidesvalorização cambial, pressões de demanda, etc. explicariam a aceleração ou deslocamento do patamar inflacionário. A manutenção do patamar inflacionário seria explicada pela capacidade dos diversos grupos sociais de preservarem sua participação na renda.

Essa decomposição conceitual da inflação em um componente de aceleração (choque) e outro de manutenção (inércia) do patamar inflacionário alerta para o fato de que nem sempre a inflação tem caráter predominantemente inercial. Isso efetivamente ocorre na ausência de choques inflacionários quando o crescimento dos preços e custos repete a inflação passada. Nesses períodos, os preços relativos ou preços reais tendem a estabilizar-se, ou seja, deixam de ser afetados pela inflação e a distribuição de renda permanece inalterada. Dessa forma, quando a inflação é predominantemente inercial, a estrutura de preços relativos é razoavelmente estável, o que deve refletir-se em uma certa uniformidade das taxas anuais de crescimento dos principais preços da economia.

A inflação perde seu caráter predominantemente inercial quando esta estabilidade de preços relativos ê perturbada por choques inflacionários. Uma frustração de safra, por exemplo, resulta inicialmente em um crescimento mais acelerado dos preços agrícolas em relação aos preços não agrícolas. Este impulso inflacionário através dos mecanismos de indexação propaga-se de forma dessincronizada pelos diferentes setores da economia. Ocorre então uma aceleração do patamar inflacionário associado a um desalinhamento dos preços relativos que pode ser observado através de uma crescente dispersão de taxas anuais de crescimento dos diferentes preços.

A análise do caráter do processo inflacionário através dessa dinâmica de alinhamento/desalinhamento dos preços relativos pode ser feita preliminarmente com as informações contidas no Gráfico 1, onde apresenta-se mês a mês as taxas anuais de crescimento dos principais indicadores de preços da Fundação Getúlio Vargas. Neste gráfico, a predominância do caráter (choque/inércia) do processo inflacionário recente fica sugerido pela maior ou menor dispersão das taxas anuais de crescimento dos preços.

Gráfico 1
Principais indicadores de preço - Dispersão das taxas anuais de crescimento dos principais indicadores de preços da economia (bens de consumo, duráveis, não duráveis; bens de capital, máquinas. veículos e equipamentos, matérias-primas não alimentares, materiais de construção, produtos agrícolas, produtos industriais, índice de custo de vida-RJ, índice nacional de construção civil, IGP-DI).

Dessa forma, nota-se que a rápida aceleração inflacionária de 1983 foi acompanhada por uma crescente dispersão dos principais indicadores de preços da economia. Esta dispersão revela o desalinhamento da estrutura de preços relativos e, consequentemente, a predominância ocasional do choque agrícola e da maxidesvalorização de 1983 na dinâmica inflacionária do período. Em contraste, a partir de meados de 1984, quando a inflação se estabiliza em torno de 220%, registra-se uma crescente convergência das taxas anuais de crescimento de preços. Esta convergência sugere que o realinhamento dos preços relativos se completou e que, consequentemente, volta a predominar o caráter inercial na dinâmica inflacionária.

É interessante notar que no ano passado, apesar dos choques de salários e juros, a inflação mantém-se estável, porém aumenta-se substancialmente a dispersão das taxas anuais de crescimento dos preços. Na realidade, o governo, através de um rígido controle de preços e do congelamento de tarifas, evita o deslocamento do patamar inflacionário, retardando o crescimento de alguns preços para contrabalançar a aceleração de outros. A estabilidade da inflação é, assim, alcançada mediante um crescente desalinhamento dos preços relativos que, a partir do final do ano, acentua-se ainda mais sob o impulso do choque agrícola. Isto sugere que o Plano Cruzado ocorre em um momento em que a inflação não era predominantemente inercial, já que o impacto inflacionário dos choques de oferta ocorridos ao longo de 1985 ainda não haviam sido absorvidos pelos vários setores da economia.

Esta conclusão encontra evidências adicionais na Tabela 1, onde apresenta-se mês a mês as taxas anuais de crescimento de preços de vários setores industriais. Com base nestes dados, calculou-se o desvio-padrão para se obter uma medida de dispersão da inflação industrial. A tendência crescente do desvio-padrão nos últimos doze meses sugere também a existência de um relevante desalinhamento de preços relativos em fevereiro de 1986.

Tabela 1
Inflação industrial taxas anuais de crescimento dos preços - médias quadrimetrais

E, assim, é provável que o congelamento, embora essencial para quebrar a inércia inflacionária, tenha represado importantes pressões inflacionárias residuais decorrentes de uma estrutura de preços relativos incompatível com o funcionamento normal de vários setores. No momento, pode-se esperar ou mesmo torcer para que este diagnóstico não seja confirmado pelos fatos. O desejo não deve, no entanto, obscurecer a constatação de que quanto maior o prazo para se iniciar a correção dessas distorções, maior será o impacto inflacionário que estará sendo represado para o momento do descongelamento.

(Folha de S. Paulo, 1.6.86)

  • 2
    *Professor at the Chicago University, Chicago, ILL/USA
  • 1
    JEL Classification: E31.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 1986
Centro de Economia Política Rua Araripina, 106, CEP 05603-030 São Paulo - SP, Tel. (55 11) 3816-6053 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: cecilia.heise@bjpe.org.br