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Indexação da dívida pública e reforma monetária

Public debt indexation and monetary reform

RESUMO

Trata-se de uma resposta à nota “Dívida e sobrevivente” de Carlos Longo, apresentando alguns possíveis equívocos na análise do custo de efeito da dívida pública.

PALAVRAS-CHAVE:
Dívida pública; reforma monetária

ABSTRACT

This is a response to the note “Dívida e inflação” by Carlos Longo, showcasing some possible mistakes in the analysis of the effect cost of the public debt.

KEYWORDS:
Public debt; monetary reform

Esta nota é um comentário ao artigo do prof. Carlos A. Longo, “Dívida e inflação”. A conclusão básica daquele artigo é que a indexação aumenta o custo efetivo da dívida pública, levando eventualmente a um processo de expansão insustentável dessa última.

Acredito que o prof. Longo tenha cometido alguns enganos ao derivar seus resultados. Quando as correções devidas são feitas, conclui-se que, adotadas as mesmas premissas daqueles artigos, a relação dívida/PIB cai cerca de 1% ao ano, ao invés de crescer 3% a.a. Por outro lado, a indexação da dívida não parece causar o aumento de seu custo efetivo real, que atingiu apenas cerca de 6% a.a., ao invés de 24%. Aliás, é bem possível que a indexação tenha na realidade reduzido o custo da dívida.

Comecemos com a equação do caso sem indexação:

d ^ = x d + r γ - π 1 - γ - g (1)

onde d^ é a taxa percentual de crescimento da relação dívida/PIB (d), x é o déficit “não financeiro” (exclui juros e correção monetária) do governo como proporção do PIB, r é a taxa real de juros, π é a taxa de inflação, e g é a taxa real de crescimento do PIB. Neste caso, a taxa real de juros é definida como r = 1 - π, onde i é a taxa nominal de juros.

Consideremos agora o caso com indexação, onde a taxa de juros é definida como

r = 1 + i 1 + π - 1

Neste caso, o prof. Longo sugere que a fórmula para d^ deveria ser:

d ^ = x d + r 1 + π γ - π 1 - γ - g 1 + π (2)

Dada a atual relação dívida/PIB de 0,5 e supondo: r = 12% a.a.; g = 7% a.a.; x = 0%, π = 2000% a.a.; e γ = 95% (percentagem da dívida sobre a qual incidem juros e correção monetária), essa fórmula dá uma taxa de crescimento da relação dívida/PIB de 3% a.a.

Em minha opinião, a fórmula alternativa (2) é a menos adequada, apresentando dois problemas. O primeiro é que, para manter a coerência lógica, todos os termos do lado direito da equação deveriam ser multiplicados por (1 + π.), e não apenas alguns deles. O segundo problema dessa fórmula é que ela passa a representar uma aproximação bastante distorcida, quando a taxa de inflação não é desprezível (ou seja, é acima de algo como 10% a.a., digamos). A explicação é simples. A taxa de crescimento de uma razão é aproximadamente igual à diferença entre as taxas de crescimento do numerador e do denominador. Essa aproximação vem das regras de derivação de logaritmos, sendo adequada apenas quando a taxa de crescimento do denominador é “pequena”.

Vejamos agora as correções necessárias para que a fórmula (1) passe a representar a aproximação mais adequada para ambos os casos. Primeiramente é preciso usar. a definição apropriada de taxa real de juros - ou seja

r = 1 + i 1 + π - 1

Em segundo lugar, o termo π(1 - γ) superestima a valor real do assim chamado “imposto inflacionário”, quando a taxa de inflação é elevada. Uma avaliação1 1 O cálculo do imposto inflacionário é aproximado. Supõe-se uma taxa constante de inflação, e a manutenção ao longo do tempo de um valor constante da base monetária, em termos reais. bem mais precisa desse “imposto” é dada por s (1 - γ) onde σ = 1 n (1 + π).

Para mostrar que a fórmula (1) assim modificada é adequada, podemos comparar seus resultados com aqueles da fórmula para d^, sem aproximação2 2 A fórmula (3), como as demais, supõe um comportamento “discreto” das variáveis. Ou seja, implicitamente assume-se que todos os fatos ocorrem ao mesmo tempo no fim do período analisado. .

d ^ d 1 - d 0 d 0 d 1 d 0 - 1 D 0 1 + π 1 + n Y 0 1 + π 1 + g · Y 0 D 0 - 1 (3)

onde

n D 1 D 0 1 + π - 1

é, por definição, a taxa real de crescimento da dívida; D0 é a divida inicial; e, Y0 é o PIB no primeiro ano. É óbvio que a equação (3) acima é simplificável, desaparecendo completamente os termos: (1 + π), Y0 e D0. Obtemos então a fórmula exata definitiva:

d ^ = 1 + n 1 + g - 1 (4)

A pergunta agora é, como calcular n (a taxa real de crescimento da dívida)? Para tanto, é conveniente considerar a identidade contábil para a evolução da dívida em termos reais:

D 1 = D 0 1 + π + γ r D 0 1 + π + D O P - I I

Esta expressão diz simplesmente que a dívida ao final de um período é igual à soma algébrica da dívida inicial corrigida monetariamente, dos juros reais sobre esse valor, do déficit operacional real e do imposto inflacionário. Obviamente, todas as parcelas estarão expressas em preços do final do período. Lembrando que

x D O P Y 0 1 + π , d D 0 Y 0

obtém-se

D O P = x d D 0 1 + π

Substituindo II = σ (1 - γ) D0 (1 + π) e a expressão acima para DOP na fórmula para D1, obtemos

n D 1 D 0 1 + π - 1 x d + r γ - σ 1 - γ

A fórmula final para d^, portanto, é simplesmente

d ^ = 1 + x d + r γ - σ 1 - γ 1 + g - 1 (5)

É importante enfatizar que, exceto pelo termo a, a fórmula (5) é independente da taxa de inflação. Portanto, não há razões para concluir-se que a indexação possa afetar d diretamente. Substituindo em (5) os valores assumidos pelo prof. Longo para as diversas variáveis, acha-se que d^ = - 1,02%; ou seja, a relação dívida/PIB cai a uma taxa aproximadamente igual aA 1% ao ano. Usando-se a fórmula (1), acha-se que d^ = - 1,09%, ou praticamente o mesmo valor; por outro lado, a fórmula (2) resulta em uma taxa positiva de crescimento da relação dívida/PIB de 3% a.a. sendo, portanto, a fórmula inadequada.

Passemos agora à questão do custo efetivo da dívida. Nossos resultados indicam uma taxa de aproximadamente 6% a.a. Como a taxa real de juros é de 12% a.a., verifica-se que metade dos custos reais com os juros da dívida é coberta pela arrecadação do “imposto inflacionário” (ou seja, pela emissão pura e simples). Se as hipóteses acima para as diversas variáveis forem aceitáveis, conclui-se que não será necessário nenhum superávit fiscal para pagar o custo da dívida pública, se quisermos manter estável a relação dívida/PIB. Neste caso, aliás, nem haveria efetivamente como se falar em custo direto da dívida (para o governo), pois nem o principal nem os juros seriam jamais pagos, havendo apenas a capitalização eterna dos encargos!

Deixemos agora de lado a questão de fórmulas. O ponto fundamental do prof. Longo é que a indexação aumenta o custo da dívida pública. Eu discordo dessa opinião. A indexação reduz sobremaneira a incerteza sobre o rendimento real dos títulos. Além disso, ela impõe custos políticos elevados ao governo, -se este quiser renegar total ou parcialmente a dívida pública. No caso sem indexação, ao contrário, é muito mais fácil “taxar” a dívida pública, reduzindo seu valor através de surtos inflacionários. A conclusão é que, em média, dever-se-ia normalmente verificar que as taxas reais de juros da dívida pública seriam ainda mais elevadas se não houvesse indexação, devido ao “prêmio” requerido pelos investidores para compensar os riscos mais elevados.

Outro ponto importante é a questão do imposto inflacionário. Suponha, por absurdo, que acabasse a inflação no Brasil. Assumindo-se que a base monetária dobrasse, em valores reais, a relação dívida/PIB cresceria então à taxa de 3,8% a.a. Conclui-se que, a exemplo de outros países, o imposto inflacionário é significativo no Brasil (como, aliás, sempre disse o FMI...). Esse imposto representa algo como 2,7% do PIB brasileiro, ou o equivalente a uns 6 bilhões de dólares.

A conclusão final a que chegamos, então, é que a indexação não deve ter efeitos perniciosos sobre o custo da dívida pública. Na verdade, a alternativa contrária é que é mais provável. As reformas cambiais e monetária pedidas pelo prof. Longo podem ser até válidas e oportunas; na minha opinião, porém, o argumento do “perigo” da indexação da dívida pública não pode ser usado a seu favor.

  • 1
    O cálculo do imposto inflacionário é aproximado. Supõe-se uma taxa constante de inflação, e a manutenção ao longo do tempo de um valor constante da base monetária, em termos reais.
  • 2
    A fórmula (3), como as demais, supõe um comportamento “discreto” das variáveis. Ou seja, implicitamente assume-se que todos os fatos ocorrem ao mesmo tempo no fim do período analisado.
  • JEL Classification: E31; H63
  • *
    Agradeço ao prof. Longo por ideias e sugestões.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 1986
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