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Artigos sobre a reforma monetária na Argentina

Newspaper articles on the monetary reform in Argentina

RESUMO

Simpósio sobre a reforma monetária promulgada pela Argentina.

PALAVRAS-CHAVE:
Inflação; estabilização; reforma monetária

ABSTRACT

A symposium regarding the monetary reform enacted by Argentina.

KEYWORDS:
Inflation; stabilization; monetary reform

No primeiro mês após a reforma monetária argentina, diversos economistas brasileiros publicaram nos jornais artigos analisando aquela medida. Transcrevemos aqui alguns desses artigos e a entrevista de Francisco Lafaiete Lopes sobre o assunto.

A inflação autônoma e a desindexação da economia na Argentina

LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA

Depois de dezoito meses de desacertos, o presidente Alfonsín afinal encontrou o caminho correto do combate à inflação, determinando a desindexação total da economia e o congelamento dos preços, dos salários, dos juros, da taxa de câmbio e da oferta de moeda.

A inflação argentina, que Alfonsin encontrou em uma taxa anual acima de 300%, já supera atualmente 1000%. Não importa discutir aqui as causas dessa aceleração inflacionária, que estava levando a Argentina para a hiperinflação. O importante a assinalar é que no final de 1983 a inflação desse país, semelhantemente ao que acontece no Brasil, já era autônoma ou inercial.

Inflação autônoma ou inercial é aquela que se reproduz automaticamente, devido à capacidade de cada agente econômico de, defasadamente, e indexadamente, repassar os aumentos de custos para preços. Esse repasse ocorre em função do conflito distributivo, através do qual todos procuram (e até certo ponto logram) não perder - e se possível ganhar - com a inflação.

Uma inflação dessa natureza, que é sempre caracterizada por altas taxas, é insensível a medidas monetaristas ortodoxas de redução da demanda, conforme temos visto insistentemente aqui no Brasil. É também insensível a uma política estruturalista heterodoxa de expansão econômica que, através de aumento de produtividade e do aproveitamento de capacidade ociosa, permita baixar as margens de lucro das empresas e, assim, desacelerar a inflação.

Uma inflação autônoma como a argentina (ou brasileira) é extremamente sensível a qualquer choque setorial estrutural de demanda e, principalmente, é sensível a choques de oferta (aumentos) monopolistas de margens de lucro, desvalorização cambial real, aumentos de salários acima da produtividade, obtidos pelos sindicatos, medidas de “inflação corretiva” tomadas pelo governo para eliminar subsídios. Qualquer choque dessa natureza acelera a inflação, levando-a a mudar de patamar e, em seguida, a estabilizar-se rigidamente nesse novo patamar.

Diante desse tipo de inflação, a única solução é a desindexação geral da economia e o congelamento de preços, salários, juros, aluguéis e taxa de câmbio. Esta medida, entretanto, só pode ser tomada quando 1) os preços relativos estão ajustados, ou seja, não haja subsídios distorcendo os preços de mercado, e quando 2) as defasagens entre os aumentos de preços forem reduzidas ao mínimo. Além disso, é necessário que 3) a balança comercial do país esteja equilibrada e 4) o déficit público real (descontados a correção monetária e os juros) haja sido eliminado.

As duas primeiras condições são essenciais, porque, no dia em que a inflação é estancada, é necessário que não haja, de um lado, grandes prejudicados - aqueles que aumentaram há muito tempo seus preços - e grandes beneficiados - aqueles que acabaram de aumentar seus preços. As terceira e quarta condições são imprescindíveis para que não haja uma pressão de demanda, forçando os salários e as margens de lucro para cima.

É preciso ficar claro que a política de congelamento ou desindexação de economia que está sendo adotada na Argentina nada tem a ver com o choque monetarista ortodoxo, embora também se congele o aumento de oferta de moeda. É um tratamento de choque heterodoxo ou administrativo que busca, através do congelamento dos preços não indexados e da desindexação dos ativos e contratos indexados, eliminar a inflação autônoma, na qual a oferta de moeda é mero fator sancionador da inflação. A moeda só aumenta porque, como os preços estão aumentando, é necessário manter a liquidez do sistema econômico. Se os preços são congelados administrativamente em um ponto em que não haja grandes prejudicados nem grandes beneficiados, deixa de haver necessidade de aumento da oferta de moeda.

(Gazeta Mercantil, 18.6.1985)

Alfonsín substitui demagogia por coerência

ANTONIO DELFIM NETTO

O governo argentino, após longos meses de hesitação e equívocos na procura de soluções “sem lágrimas” para a crise, acaba de colocar em prática um programa de “economia de guerra”, destinado a enfrentar o problema inflacionário. É bom dizer, desde o início, que a hiperinflação (a Argentina talvez caminhasse para ela) é um fenômeno político e não econômico: ela acontece quando o governo perde a capacidade de financiar seus gastos pelo caminho fiscal e recorre livremente às emissões de papel-moeda. Na Argentina, quase dois terços dos gastos já eram assim financiados. Isso exige um comportamento defensivo dos demais setores da sociedade: 1) os empresários reajustam seus preços cada vez com maior rapidez; 2) os trabalhadores exigem correção cada vez mais rápida dos seus salários; 3) o funcionamento da economia exige uma depreciação cada vez mais acelerada da taxa cambial, o que produz um crescimento de preços acelerado. Essa descrição mostra que o Brasil tem situação bastante diferente, com uma inflação estabilizada em torno de 220% ao ano há quase 18 meses e com o grosso das despesas governamentais coberto por receitas fiscais. É claro, entretanto, que nesse nível a taxa de inflação tende a ser instável: ela pode subir e descer, devido a choques de oferta; os trabalhadores pressionam para encurtar os prazos de reajustes salariais; os empresários tendem a manter as suas margens, reajustando cada vez mais depressa os seus preços, o que na ausência de um controle do déficit público pode tornar a situação explosiva.

O programa argentino é amplo e profundo, rigorosamente dentro dos moldes clássicos dos projetos de estabilização postos em prática pelos países europeus depois da Primeira e da Segunda Guerras Mundiais. Ele deve merecer a simpatia de todos nós, porque se trata do derradeiro esforço do presidente Alfonsín, que, depois de ter trilhado todos os descaminhos a que levam as concessões, à irracionalidade e à demagogia, teve a coragem de limpar o quadro-negro e apresentar um programa duro mas coerente, difícil mas possível, em lugar de continuar a oferecer caminhos aparentemente floridos mas contraditórios, aparentemente fáceis mas impossíveis. Nossa simpatia deve ser ainda maior pelo povo argentino, que se solidarizou com o programa e intuiu, finalmente, que existe um mínimo de racionalidade e coerência que têm de ser respeitadas se quisermos que o sistema social funcione.

O programa argentino pode ser sumariamente descrito pelas seguintes medidas:

  1. congelamento geral de preços privados e públicos. No que se refere às tarifas e preços públicos, eles foram reajustados no período imediatamente anterior ao dia D, de forma a eliminar os déficits da administração direta e das empresas estatais. Isto significa que, se a inflação for reduzida significativamente num período curto (poucas semanas), os déficits não têm razão para reaparecer, eliminando a necessidade de que o governo reinicie a sua correção. No que se refere aos preços do setor privado, eles foram congelados onde se encontravam em 12 de junho;

  2. congelamento geral dos salários vigentes em 1º. de julho. O salário real médio vigente no dia D era superior àquele que vigorava quando a União Cívica Radical assumiu o governo, o que significa que, se a inflação for reduzida drasticamente em poucas semanas, essa vantagem do salário real médio persistirá e não haverá razão para que os trabalhadores (pelo menos os empregados) reiniciem urna disputa distributiva;

  3. Profunda modificação do sistema fiscal. Essa modificação deverá elevar a carga tributária (reduzida pela inflação) e inclui antecipação de receitas, imposto compulsório e modificação de alíquotas, de forma a elevar significativamente a receita do setor público. A parte mais importante desse aumento deverá ser financiada pelos lucros do setor privado, que não poderá defender-se do aumento do salário real e da tributação aumentando os seus preços;

  4. corte nas despesas públicas. A ênfase parece um pouco menor neste campo, mas prevê-se um reajuste dos salários e do emprego no setor público para ajudar a cobrir o déficit;

  5. criação de uma nova moeda, o austral, e fixação do câmbio. A nova unidade monetária foi fixada, no dia D, ao equivalente a 1.000 pesos. Fixou-se a sua paridade ao dólar na base de 0,8 austral por dólar, o que significa que, no dia D, a taxa cambial foi fixada à taxa de 800 pesos por dólar. A criação do austral deverá facilitar a eliminação das “expectativas inflacionárias”, mas é um fato menor neste quadro;

  6. tabelamento da taxa de juros referida ao austral. Além desse tabelamento, convertem-se todos os débitos das empresas ao austral com juros fixados (com a contrapartida obrigatória para os credores), o que possivelmente reduzirá o custo financeiro das empresas;

  7. proibição de emissões do austral. O governo compromete-se a não emitir nenhum austral suplementar, eliminando assim o crescimento da base monetária.

Para entender e avaliar as condições de funcionamento do programa, é preciso perguntar: sobre quem se farão os ajustamentos necessários à eliminação do conflito distributivo que está na raiz de todo processo inflacionário? Para simplificar nosso problema, podemos supor a existência de três categorias disputando sua participação no produto nacional: 1) os trabalhadores não ligados ao setor público; 2) esse animal chamado governo e 3) as empresas (ou, se quiserem, os empresários).

O primeiro grupo deve estar protegido, porque no dia D o salário real médio era maior do que no início da administração da União Cívica Radical (e por isso mesmo a inflação era maior). Por definição, se o controle de preços funcionar (e não houver um dramático aumento do desemprego), essa situação não poderá alterar-se muito. De qualquer forma, deverá haver um pequeno decréscimo do salário real nas poucas semanas seguintes ao dia D, mas nada de dramático e que não possa ser suportado (como se suportam bem os reajustes salariais anuais à taxa de inflação de 10 ou 15%).

Quanto ao governo, a sua participação no produto deverá crescer, por definição, porque o ajuste do déficit se fará muito mais pelo aumento da carga tributária, pela antecipação dos impostos e pelo aumento real dos preços públicos do que pelo corte (prometido) das despesas.

Um ponto que deve ser notado é que a rápida redução da taxa de inflação aumenta consideravelmente o valor real da tributação, pois elimina a depreciação do valor do produto entre o momento em que ele é devido e o momento em que ele é recolhido, o que significa que produz, automaticamente, uma redução do déficit fiscal. Essa redução é ainda reforçada pela diminuição da taxa de juros da dúvida pública, produzida pela diminuição da incerteza inflacionária.

A parte mais importante do ajuste vai fazer-se, portanto, sobre o lucro das empresas e sobre o rendimento dos financiadores finais, que, por hipótese, tinham ganhos inflacionários excessivos. Se o governo cumprir a sua parte no programa, é claro que os empregados do setor público também pagarão, ou com uma redução do salário real, ou com o seu emprego. De qualquer forma, há todas as indicações de que esta contribuição será apenas marginal. Na medida que a hipótese anterior (lucros inflacionários excessivos) não for correta, as empresas e os poupadores finais iniciarão, em seguida, uma luta para restabelecer sua participação no produto, o que pode voltar a produzir tensões inflacionárias na nova moeda.

Para que isso não aconteça, é preciso dar às empresas um caminho para restabelecerem suas margens através de um aumento da produtividade da mão-de-obra, o que mostra que o sucesso do programa depende de um aumento relativamente rápido e importante da atividade econômica do setor industrial privado, sem o que:

  1. as condições de equilíbrio do setor público ficarão prejudicadas pela estagnação da receita e

  2. será muito difícil reabsorver a mão-de-obra liberada pelo setor público.

Como o crescimento inicial deverá ser através do aproveitamento da capacidade ociosa do setor industrial não-governamental, a redução dramática dos lucros deverá ser superada por um rápido aumento da produtividade da mão-de-obra desse setor, o que implica um rápido aumento do nível de produção (com o mesmo volume e composição da mão-de-obra). Esse aumento de produção, por sua vez, tem de ser uma resposta ao crescimento da demanda interna ou externa.

Com relação ao mercado interno, é pouco provável que inicialmente haja estímulos importantes, porque o nível de salário real e o nível de emprego não devem alterar-se significativamente no curto prazo. Isso mostra que o estímulo deverá vir de uma ampliação rápida e importante das exportações de produtos manufaturados, o que por sua vez depende do nível da taxa de câmbio, ou melhor, da relação que se estabeleceu entre a taxa de câmbio e os salários.

Chegamos ao que parece o ponto crítico do programa: se o nível da taxa de câmbio foi fixado adequadamente, o que significa que a paridade do austral poderá ser defendida (com auxílio dos empréstimos externos de curto prazo) sem criar problemas para a aceleração das exportações de manufaturados, a probabilidade de sucesso do programa é enorme. Se, porém, houver problemas com a paridade (mesmo quando ela possa ser defendida a curto prazo), as dificuldades do setor industrial poderão colocar em risco o sucesso da estabilização a prazo mais longo.

Uma questão interessante é a de saber se a taxa de câmbio deveria mesmo ser explicitada no dia D, ou se não teria sido melhor anunciar plena liberdade cambial e defender a taxa em torno do ponto estabelecido, com recursos provenientes do empréstimo externo. Lembremo-nos da velha regra dos anos 20, de que “não há estabilidade sem conversibilidade”. A experiência mostra que a conversibilidade refaz rapidamente a confiança no valor interno da moeda e o retorno dos capitais e o aumento da poupança interna acontecem quase “por milagre”.

A estabilidade do câmbio é fator fundamental para a eliminação do processo inflacionário, talvez mais importante do que geralmente se supõe. Estou inclinado a supor que ela é certamente mais importante do que manter nulo o crescimento da base monetária, uma vez que a confiança no valor da moeda aumenta de maneira dramática a demanda da moeda, o que significa que resta nas mãos da autoridade monetária um certo grau de liberdade para estimular o necessário aumento da produção na direção correta (no caso das exportações). Talvez seja interessante apontar que não é apenas a eliminação do crescimento da base monetária que elimina o crescimento dos preços, mas sim o fato de que, diminuindo as “expectativas inflacionárias”, aumenta a disposição do público de reter moeda, o que possibilita, depois de realizada a estabilização, um aumento da liquidez real.

É importante reconhecer que, como um grande número de salários e preços foram congelados “no pico” e outros no momento em que iriam ser reajustados (com uma inflação de 30% ao mês, mesmo 15 dias fazem uma grande diferença), o congelamento de fato congela uma distribuição de rendimento incompatível com o equilíbrio. Para alguns desses setores, a inflação que se seguir ao dia D agravará ainda mais a situação, o que fatalmente dará lugar a reivindicações distributivas. Esse fato deverá ter consequências também sob o ponto de vista de alocação de recursos, pois, não sendo a constelação de preços relativos e salários de equilíbrio, o seu funcionamento por muito tempo deverá produzir distorções na oferta e na demanda de produtos, que, se graves, manifestar-se-ão na forma de um “mercado negro” para certas mercadorias. O congelamento dos preços poderá revelar-se mais um empecilho do que uma ajuda para o sucesso do programa no longo prazo.

O sucesso do programa depende de se conseguir um rápido e substancial decréscimo da inflação em umas poucas semanas, pois, neste caso, a sociedade tenderá a apoiar o governo a resistir às pressões dos grupos que desejam restabelecer sua participação no produto. Isso não acontecerá se o governo simplesmente aumentar a sua receita e não cortar fundo os seus gastos, porque neste caso haverá uma coalizão trabalhadores-empresas e as condições politicas de implementação do programa terminarão. O corte dramático das despesas públicas de custeio e a redução do salário real e do emprego do setor governo são fundamentais para o sucesso a prazo um pouco mais longo.

O programa de estabilização apresentado pelo governo argentino é coerente e apoiado em hipóteses aceitáveis e se efetivamente executado reduzirá de maneira significativa - a curtíssimo prazo - a inflação. Uma coisa é certa: 1) com a eliminação do déficit fiscal, 2) com crescimento nulo da base monetária, 3) com estabilidade da taxa cambial e 4) com congelamento de preços e salários, os preços tenderão a estabilizar-se. Se a estabilidade vai durar ou não, depende da execução do programa na sua integridade.

(O Estado de S. Paulo, 25.6.1985)

A última cartada do presidente

ROBERTO CAMPOS

“A função da política é tornar possível aquilo que é desejável mas considerado impossível. “

Friedrich von Hayek

Coisa inescrutável é o grau de tolerância de uma sociedade à desordem inflacionária. Imaginava eu que no Brasil a barreira dos 100% ao ano de · inflação fora o “ponto crítico”. Esse nível de pânico foi atingido em 1964 e gerou uma revolução modernizante. A sociedade tornou-se plástica para aceitar o austero plano de estabilização do governo Castello Branco. Mas a moléstia é recorrente. Já no quinquênio 1974-1979 voltamos a níveis “juscelinistas” de inflação (40% ao ano). E a partir de 1980 a níveis “janguistas”. E hoje alcançamos a obscenidade dos 200%. Entretanto não parece havermos ainda atingido o “coeficiente de pânico”. Tanto assim que em Brasília se cogita de gastar dinheiro para construir um marmóreo monumento a Tancredo Neves. E Lula discute com os ministros de Estado a “escala móvel” de salários, coisa que os italianos acabam de derrubar através de um plebiscito, a fim de fazer com que a inflação baixe o atual nível de 9%. Duas coisas explicam em parte essa nossa acomodação psicossocial, que parece incrível a norte-americanos e europeus, assim como aos asiáticos das várias origens - sinica, índica e malásia (excetuadas as Filipinas, que conosco compartem componentes culturais ibéricos). Primeiro, a indexação generalizada que pelo menos preserva uma certa racionalidade no cálculo econômico, possibilita a poupança e permite contratos a prazo. Segundo, o bálsamo psicológico da liberalização politica. A crescente dis-satisfação econômica foi, até certo ponto, compensada por sucessivos degraus de exilaração política e difração de antagonismos através do processo eleitoral.

Na Argentina, parece que a barreira dos 1000% de inflação foi o ponto crítico que despertou na sociedade um sentido desesperado de “última cartada”. Também ali esse elevado grau de tolerância resultou da satisfação psicológica da redemocratização. O presidente Alfonsín adquiriu crédito suficiente para botar na cadeia três ex-presidentes, cometer incríveis asneiras econômicas (que quase triplicaram a inflação herdada dos militares) e agora, antimaquiavelicamente, renegar suas promessas demagógicas, enfrentando afinal o seu “momento de verdade”. O que Alfonsín propõe, ao que parece com aceitação resignada do corpo social, é uma nova e grande catharsis. Da mesma forma que a derrota nas Malvinas liquidou o militarismo, a hiperinflação derrotou o populismo.

A “última cartada” argentina compõe-se de quatro choques:

  • o choque “psicológico” do congelamento de preços e salários e do tabelamento de juros;

  • o choque “monetário” da substituição do peso pelo “austral”, e da proibição de emissões da nova moeda por quatro meses;

  • o choque “fiscal”, através de medidas drásticas de corte de despesas, aumento de impostos, combate à sonegação e proibição de financiamentos bancários ao setor público;

  • o choque “institucional”, através da liquidação de empresas públicas, dispensa do funcionalismo e retorno à economia de mercado.

O primeiro grupo de medidas e o de maior impacto imediato é também o de maior fragilidade, pois ataca sintomas e não causas. De qualquer maneira, é algo mais consistente do que a atual política brasileira de aumentar salários e represar preços, o que em breve gerará uma safra de impasses. A reforma monetária repete experiências de outros países, dos quais a mais bem-sucedida foi a criação do rentenmark, que subitamente estancou a hiperinflação alemã em 1923. Cumpre não esquecer, entretanto, que o fator decisivo não foi a instituição da nova moeda e sim o absoluto teto imposto à expansão monetária e às despesas públicas, com total eliminação de subsídios e corte de 1/4 do funcionalismo. O rentenmark apenas simbolizou um retorno ao estrito equilíbrio fiscal.

Se na aritmética a ordem dos fatores não altera o produto, em economia não é bem assim. Se o congelamento de preços não for rapidamente sancionado por um choque fiscal, a nova moeda cedo se desmoralizará. Por isso talvez tivesse sido melhor aguardar, antes da criação do novo símbolo, que as medidas de contenção fiscal surtissem efeito, testando-se outrossim a capacidade do governo de se privar de financiamentos bancários e de conter a emissão da moeda antiga. Consta, aliás, que a ideia encontrou inspiração em propostas de economistas brasileiros, visando à criação de uma nova moeda indexada. Estes partiram, entretanto, de um equívoco. Imaginavam que, tendo sido zerado o déficit operacional do setor público, restaria apenas o déficit financeiro da dívida antiga, cuja indexação seria absorvida na nova moeda. Donde o conceito da inflação inercial ... doce e ledo engano - o déficit operacional ainda representa 7% do PIB e é tão inerte quanto uma locomotiva sem breque ...

O teste crucial do novo programa argentino - sem dúvida corajoso - virá nas próximas semanas. A reviravolta é penosa para Alfonsín, como o foi para Mitterrand na França. Ambos prometeram aumento de salários reais e menos desemprego, desconsiderando os constrangimentos econômicos resultantes, no caso da França, do descompasso em relação à política austera dos parceiros do mercado comum e, no caso argentino, do endividamento externo. Ambos acabaram propondo redução dos salários reais, afligido aquele pelo desemprego e este pela insolvência.

Podem-se visualizar na Argentina dois principais tipos de resistência. No setor privado, os sindicatos descontentes com o congelamento inicial de salários (a ser seguido por reajustamentos 10% inferiores ao custo de vida), buscarão a aliança dos empresários, particularmente os pequenos e médios, dis-satisfeitos com o congelamento de preços. No setor público, há pílulas duras de engolir: o congelamento dos aumentos do funcionalismo, o corte de pessoal, a liquidação de empresas deficitárias, a venda de empresas públicas e a substituição da economia de comando pela economia de mercado.

Resta-nos torcer para que o programa argentino dê certo, para aprendermos dos erros e desacertos. No Brasil, quando o presidente Figueiredo falou em economia de guerra, em 1982, não foi para valer...

No Brasil as urgências são um choque fiscal e um choque institucional. O fiscal está na eliminação do déficit público. O institucional está na desestatização, na desintervenção e na desregulamentação. Só se submeteriam ao suplício burocrático da CDI, SEI, et nefanda caterva, os agentes econômicos que demandassem favores do governo. Aos demais se asseguraria liberdade de produzir com a tecnologia e os capitais que lhes aprouvessem, e na localização que preferissem. O choque da liberdade geraria um choque de oferta. E desta vez, favorável, como aconteceu na Alemanha de Erhart, ao desmontar com um sopro de liberdade o velho kameralismo alemão.

O Estado de S. Paulo, 25.6.1985

Anti-inflação na Argentina e no Brasil

OCTÁVIO GOUVÊA DE BULHÕES

As primeiras informações provenientes da Argentina são demasiadamente sucintas. Impedem a formulação de um julgamento, favorável ou desfavorável, embora, de qualquer modo, seja bem recebida a notícia de pretender-se pôr termo à inflação, inclusive mediante a adoção de nova moeda, em substituição à atual.

Diz um comunicado que “os responsáveis pelo plano atribuem o déficit fiscal e a indexação como sendo os responsáveis pelas causas da inflação”. Na ausência de especificações ignora-se como será combatido o déficit. A despeito da dúvida quanto à supressão do déficit, condição essencial para preservar o valor da nova moeda, podemos admitir que a eliminação da correção monetária (a supressão da indexação) realizada pela substituição de moeda venha a ser um instrumento coadjuvante da redução das despesas orçamentárias. O dispêndio a ser efetivado em futuro próximo vem sendo agravado por meio da projeção da inflação passada, transmitida pela indexação. Suprimida a indexação, a despesa deixa de aumentar, facilitando, desse modo, o equilíbrio orçamentário. A substituição de moeda elimina a transferência da inflação passada para o futuro, a ideia lançada entre nós, há meses, por André Lara Resende, com a vantagem de fazer a substituição sem mudar o nome da moeda.

A meu ver, a contribuição de Lara Resende poderia ter sido melhor examinada. O motivo do desinteresse partiu de sua própria premissa de que a causa da inflação fora extinta e, contudo, prosseguia por força da atitude psicológica de prever-se a continuação da elevação dos preços passados e presentes, ou seja, uma atitude de “inércia”. Mas ao verificar-se a existência de enorme déficit público a ideia da substituição da moeda foi posta de lado, uma vez que a nova moeda estaria ameaçada de desvalorizar-se na mesma proporção da desvalorização da moeda corrente. Seria substituir o roto pelo esfarrapado. É precisamente esse o perigo da reforma adotada na Argentina, pela dificuldade de reduzir-se a despesa. Alega-se haver grande dispêndio na manutenção de “dezenas de milhares de funcionários ociosos”. Ora, a dispensa de tal quantidade de pessoas provocaria mais instabilidade social que estabilidade monetária. Suponho haver despesas de outra natureza passíveis de redução. Além dessas, há outras dúvidas. Uns falam em queda da inflação a 8% por mês, outros na prevalência de taxas de juros de 4% e 6% ao mês. São percentagens que não se coadunam com a remoção do congelamento dentro de um trimestre, vislumbrando um mercado livre, apoiado em estabilidade monetária.

É possível a remoção dos obstáculos e a conquista da estabilidade almejada. O fulcro está na confiança.

Há que assinalar-se, pois, o problema de credibilidade. Se o presidente Raúl Alfonsín tivesse imposto esse programa ao assumir o governo, sem perder-se em atos inócuos e demagógicos, concorrendo para a violenta alta de preços, a respeitabilidade seria outra. Vale a esse respeito repetir as palavras de Juan Carlos de Pablo, em um seminário, no Rio, no início de junho: “a instituição governo (e o atual não é exceção) deixou enfraquecer tanto sua credibilidade, particularmente na luta contra a inflação, que, ao decidirem pôr em prática uma política anti-inflacionária tecnicamente bem arquitetada, serão acentuados os custos, em termos de atividade e de salários. Não quero dizer que afastemos a ideia de levar avante a política anti-inflacionária, Note-se, porém, que contrariamente ao que ocorreu na Europa, no início do decênio de 1920, na Argentina o êxito não é fácil”.

No Brasil, a situação é bastante mais favorável, se quisermos, de fato, eliminar a inflação. Em primeiro lugar, o presidente Sarney prudentemente absteve-se de definir um programa anti-inflacionário antes de bem examinar as sugestões recebidas e ponderar sobre a escolha de orientações. Até agora, o presidente realçou a concordância geral de atribuir-se a inflação ao déficit público e mencionou-as queixas recebidas sobre a elevada taxa de juros.

Se me for permitido dizer algo, peço que reflitam sobre o aumento dos débitos em consequência da própria depreciação da moeda. A depreciação da taxa de câmbio, refletindo a desvalorização da moeda, aumenta o débito dos empréstimos externos e a correção monetária, refletindo a desvalorização monetária, aumenta o débito dos empréstimos internos. Uma taxa de juros de 30% ao ano, embora exorbitante, é insignificante em face do aumento do débito em 100%, em menos de seis meses. O que se pleiteia, pois, é a redução do dispêndio financeiro e, consequentemente, a eliminação da desvalorização monetária, ou melhor, a eliminação do déficit público. Tentaremos demonstrar que se trata de supressão menos complexa que a da Argentina.

Dois elementos primordiais forçam o déficit público: os subsídios ainda restantes e o crescente dispêndio financeiro. Ambos são elimináveis, sem provocarem desemprego ou recessão. Ao contrário, despertam um clima de recuperação. Exigem temporário sacrifício dos consumidores e compreensão dos credores. Embora sejam aspectos negativos, são altamente compensados por conquistas positivas.

A supressão do subsídio ao trigo e a outros produtos acarreta o aumento de seus preços. É inconveniente sério, mas, na verdade, tende a manter estáveis os preços dos demais produtos e serviços.

Suprimido o subsídio, o orçamento público ficaria liberado do dispêndio aplicado ao trigo, à comercialização do açúcar e, principalmente, poderia auferir a enorme receita correspondente à soma utilizada na uniformização do preço da energia que tem sido nociva às substituições e responsável pela impropriedade de localização de vários empreendimentos. Caberia, também, um aumento da arrecadação do Imposto Único sobre Combustíveis. Adicionada a soma à receita do Tesouro e diminuída a sua despesa, adviria um reequilíbrio capaz de provocar a reversão de expectativa inflacionária. Seria o momento de reformular-se a correção monetária, maneira de impedir-se o aumento das despesas por influência da inflação passada, notadamente no que concerne ao montante dos débitos, quer dos empréstimos externos, quer dos empréstimos internos. O déficit, nesse caso, tenderia a desaparecer por completo.

A eliminação da transferência da inflação passada seria praticável ao utilizar-se a sugestão de Lara Resende, adotada na Argentina. Mais simples, porém, seria abolir a correção monetária, abrupta ou gradualmente, desde que se tratasse de gradualismo a prazo curto.

O importante é seguir-se o conselho de Mario Henrique Simonsen: “Há duas maneiras erradas de enfrentar a inflação brasileira. A primeira é tratá-la como um simples problema monetário fiscal, ignorando o sistema sui generis de indexação existente no País. A segunda é classificá-la como puramente inercial. Monetaristas e fiscalistas, de um lado, e inercialistas de outro estão cheios de razão em seus argumentos. É preciso, apenas, que cada parte reconheça a razão da outra”.

Folha de S. Paulo, 23.6.1985

Programa anti-inflacionário argentino

ANTONIO DIAS LEITE

As recentes decisões do governo argentino resultaram de cuidadosa, demorada e sigilosa preparação, conforme pude constatar na visita a Buenos Aires que realizei nos dias 27, 28 e 29 com o professor Antônio Barros de Castro. O anúncio das medidas foi desencadeado, em momento próprio, pelo senso de oportunidade do presidente Alfonsín, reforçado por competente montagem de comunicação social.

Trata-se de acontecimento notável pela coragem face ao imenso risco, e notável pela conciliação, sempre tão difícil, entre a racionalidade econômica e a busca do sucesso político imediato.

As inevitáveis noites de insônia, que os responsáveis certamente passaram, foram surpreendentemente compensadas pela aprovação generalizada que a decisão recebeu da opinião pública argentina.

O acontecimento é importante para nós, brasileiros. Não se trata de pensar em repetir o que lá foi feito, uma vez que cada economia nacional, em cada momento histórico, é um caso diferente, que só o FMI e seus seguidores confundem, procurando tratar a todos com a mesma receita. É, ainda, importante, porque representa tentativa de um país da América Latina de sair do impasse em que nos encontramos.

Diferença entre Brasil e Argentina

Vale registrar diferenças essenciais entre os casos argentino e brasileiro.

  • A inflação argentina havia superado 1000% ao ano, enquanto a do Brasil é pouco superior a 200%, e a economia se comporta de forma diversa, à medida que se eleva o patamar alcançado pelo processo inflacionário. Em particular, porque os preços se ajustam a intervalos de tempo cada vez mais curtos e porque a moeda nacional é repelida com intensidade crescente.

  • A “dolarização” da economia argentina foi mais intensa do que a do Brasil. Diz-se mesmo que existiriam US$ 4 bilhões de moeda americana em circulação na Argentina quando a própria moeda argentina em circulação equivale a apenas US$ 2 bilhões.

  • O endividamento externo brasileiro deu origem a muitos investimentos produtivos que reforçaram a nossa infraestrutura industrial o que, na Argentina; só ocorreu em menor proporção.

  • A Argentina tem uma estrutura política partidária sólida, sedimentada historicamente, o mesmo ocorrendo com os sindicatos operários; o que não se verifica no Brasil.

Medidas iniciais adotadas

As medidas iniciais, do governo argentino, que vieram a público, a partir do dia 13 de junho, compreenderam, além da instituição de uma nova moeda, o austral, equivalente a mil vezes o peso argentino:

  • a fixação da taxa de câmbio a 0,8 austral por US$ 1,00, o que equivale, aproximadamente, à taxa anterior do câmbio livre, que andava perto dos 8.000 pesos, quando o oficial era de 6.800 pesos por dólar. A desvalorização face ao dólar foi, portanto, de l7%. A tributação estabelecida sobre a exportação, da mesma ordem de grandeza, retirou qualquer benefício para os exportadores. Elevou-se, portanto, o custo das importações e aumentou-se a arrecadação fiscal;

  • a redução do déficit do setor público resultaria de corte de despesas, considerado vital para que o programa adquira credibilidade (-3% do PIB) e de aumento de receita, obtido pelo imposto sobre exportações e tarifas de serviços públicos, além de uma expectativa de ganho real com a queda esperada da inflação;

  • o congelamento dos salários e dos preços dos produtos representativos de uma “cesta básica” de alimentos, estes últimos em função dos preços efetivamente praticados no dia 12 de junho;

  • o estabelecimento de regras de adaptação de contratos e obrigações buscando, na medida do possível, não impor prejuízo ou conceder vantagem especial seja ao credor seja ao devedor. Foram consideradas as situações antes e depois de 15 de junho relativas a impostos e serviços, aluguéis e operações financeiras;

  • a fixação das taxas de juros em 4% ao mês para o depositante e 6% ao mês para o tomador dos empréstimos oficiais, autorizando-se todavia operações a taxas livres que se situavam, nos primeiros dias, em torno de 10% ao mês. Já no final de junho o governo sinalizava no sentido da baixa dos juros fixando, para as operações oficiais, respectivamente, 5% E 3½% ao mês. Naturalmente dessas taxas há que descontar a inflação residual;

  • a remessa ao Congresso de um projeto de lei que institui um empréstimo compulsório incidente, em dois exercícios, sobre rendas e patrimônio.

Providências preparatórias

Mas antes da data do anúncio da reforma haviam sido tomadas importantes providências preparatórias.

A 26 de abril, o presidente Alfonsín convocou reunião na Plaza de Mayo quando, para surpresa dos que Já compareceram esperando um discurso essencialmente politico, a matéria fundamental. era de natureza econômica e se anunciava que o país ingressaria em um período de “economia de guerra”. Era mais ou menos na época em que o subsecretário de Política Econômica, José Luís Machinea, e uma forte equipe econômica passavam um mês nos EUA tratando com Paul Volcker, presidente do Federal Reserve Board, dos entendimentos externos para o lançamento do programa que já estava então delineado.

Do lado interno cumpria-se, como providência prévia, forte reajuste de tarifas de serviços públicos, com vistas ao reequilíbrio parcial de preços relativos, e a reduzir, por essa via, a participação das empresas públicas na formação do déficit do setor público. Esse ajuste provocou uma aceleração temporária da inflação.

Negociação externa

A discussão prévia no exterior tem um desfecho surpreendente. O programa padrão de austeridade para solução de problemas econômicos de países em desenvolvimento, proposto pelo FMI, ou não os tem resolvido, ou tem resultado em sérias crises sociais e politicas. E, no final, o que os credores desejam é apenas o equilíbrio de contas externas para poderem receber, no todo ou em proporção aceitável, os juros e o principal dos financiamentos feitos. As normas de política interna que o FMI preconiza não são em si o objetivo requerido pelos credores. O Federal Reserve Board, dos EUA, por seu turno, está interessado é na segurança do sistema bancário americano e a sua concordância com um programa econômico diverso do padrão FMI talvez tenha sido, quem sabe, a opção pelo risco da novidade contra a quase certeza do insucesso do modelo FMI.

Preparação psicológica interna

No domínio interno, a preparação psicológica do pais somou-se à capacidade de comunicação popular do presidente Alfonsín. O prestígio do governo estava fortemente abalado pelo insucesso da administração nitidamente partidária do ministro Griunspun. Ao substituí-lo pelo ministro Sourrouille, sem filiação partidária, o presidente praticou um ato de coragem politica. Ao aprovar o plano formalizado pela equipe reunida pelo novo ministro, persistiu o presidente na linha inovadora e acabou por dar início a um novo capítulo da história econômica argentina. O presidente falou inclusive, nesse dia, que o governo não mais emitiria moeda nova, objetivo obviamente difícil de cumprir, mas que teve significativo efeito psicológico no momento crítico do lançamento do plano.

Ao dar esse primeiro passo, o presidente se dirigiu a uma população cansada com a inflação, preocupada com o seu ritmo crescente, descrente da moeda do país, e com sombrio horizonte de oportunidades de trabalho. E a população, pela sua grande maioria, aprovou, com tranqüilidade. Não especulou nem com retenção de moeda nem com exacerbação de compras de bens de primeira necessidade.

Percalços do programa

O programa tem os seus percalços.

A situação das empresas é, na maioria, de penúria, com dívidas e sem capital de giro e a evasão fiscal atingiu proporções alarmantes. Daí a contingência de só serem adotados impostos· de aplicação fácil e indiscutível, como o da exportação.

Não há estímulo novo à exportação. Não se pode esperar, portanto, que essa atividade venha a ser promotora de reativação econômica interna.

Na fixação dos preços de referência para o congelamento subsequente de produtos integrantes da “cesta básica”, foi admitida uma folga. Por esse e por outros motivos, inclusive da inflação já verificada até esse dia 13, é provável a ocorrência de um resíduo inflacionário em junho e nos próximos meses, que absorverá a margem admitida. Pairam, no entanto, dúvidas sobre qual será a atitude do governo face a novas reivindicações que venham a surgir. ·

Há também o aspecto indefinido representado pela questão da moeda estrangeira e dos ativos financeiros externos de propriedade de argentinos, face às perspectivas de inflação residual no país. Da diferença de rentabilidade real interna e externa poderá depender o fluxo de moeda estrangeira que, por sua vez, terá efeito sobre a necessidade de emissões.

A continuidade do apoio político dos empresários e dos sindicatos é indispensável. Qualquer dos dois pode levar o programa a um impasse: os empresários restringindo as quantidades produzidas, já que os preços estão controlados; os trabalhadores promovendo greves ou exigindo elevação de salários, cujo valor real cairá inevitavelmente devido à inflação residual. Neste sentido ambos são fiadores do programa.

Finalmente, resta a dúvida fundamental quanto às possibilidades de retomada de crescimento econômico. Sabe-se que a poupança atingiu a valores baixíssimos enquanto o investimento reduz-se, presentemente, a 12% do Produto Interno.

Expectativa

Nos próximos meses, assistiremos ansiosos à evolução dos acontecimentos na Argentina, seja pela nossa solidariedade e pelo desejo de sucesso do novo plano econômico, seja pelas lições que, dessa experiência, poderão advir para a condução da política econômica do nosso país. Mas, desde já, há que render tributo ao equilíbrio entre a habilidade política e a imaginação técnica que presidiu à elaboração e ao lançamento do plano.

Folha de S. Paulo, 4.7.1985

Os riscos da reforma monetária argentina

CELSO L. MARTONE

Após as ondas de reforma monetária posteriores à Primeira e Segunda Grandes Guerras, a iniciativa do governo argentino da semana passada é a primeira de uma provável nova série, que pode atingir países como a Bolívia, o Brasil e Israel. É interessante examinar, portanto, as semelhanças e diferenças entre as reformas monetárias clássicas e o plano argentino de estabilização.

As reformas monetárias que lograram sucesso em terminar abruptamente com as hiperinflações mais conhecidas apresentaram um conjunto comum de elementos, dos quais os mais importantes foram os seguintes:

  1. a introdução de uma nova unidade de conta, com um novo nome, em substituição à moeda velha;

  2. a criação ou implantação de uma autoridade monetária independente, responsável pela emissão da nova moeda dentro de estritos limites fixados na Constituição do pais e/ou em acordos internacionais;

  3. o reescalonamento a longo prazo da dívida externa (principal e juros), com carências superiores a cinco anos, complementado com um empréstimo internacional para dar sustentação à nova moeda enquanto o setor público não implementasse uma reforma fiscal que terminasse com o déficit;

  4. uma depreciação (confisco) das dívidas internas públicas e privadas, numa porcentagem fixa, a fim de recolocar em linha o valor do estoque de ativos financeiros com o valor do estoque de capital da economia, depreciado pela crise anterior;

  5. a liberação da taxa de câmbio e dos controles cambiais, assim como a eliminação das tarifas às importações e dos subsídios às exportações.

Esse pacote foi adotado em situação hiperinflacionária, quando duas condições prevaleciam. Primeiro, a sincronização dos aumentos de preços na economia era quase perfeita, de tal forma que grande parte dos efeitos redistributivos da inflação já haviam ocorrido. Isso garantia a coalizão política necessária à adoção da reforma. Segundo, o uso da moeda era cada vez mais restrito, de tal forma que os custos de transação de uma economia de troca tornavam-se proibitivos.

Existem duas dimensões fundamentais do problema da hiperinflação: a estabilização fiscal e a estabilização cambial. Nos casos conhecidos, ambas foram feitas quase que simultaneamente, como se percebe pelo conjunto de elementos descrito acima. A estabilização fiscal (eliminação do déficit intertemporal do setor público) não é possível ou não é suficiente, por si só, para garantir o sucesso da reforma, da mesma forma que a estabilização cambial (eliminação do déficit intertemporal do balanço de pagamentos) também não é viável sem o saneamento interno da economia.

O plano argentino, pelo que se conhece no momento, desvia-se do esquema clássico de reforma monetária em vários pontos importantes. Em primeiro lugar, não está claro que as medidas fiscais adotadas são suficientes para garantir o equilíbrio orçamentário nos próximos anos. Elas parecem bastante tímidas até aqui, limitando-se a um aumento de preços e tarifas públicas, a um empréstimo de emergência imposto ao setor privado e a uma prometida reforma fiscal.

Em segundo lugar, o desequilíbrio cambial gerado pelo endividamento externo não foi incluído no programa, visto que ele exigiria uma renegociação muito mais radical da dívida junto aos credores do que parece possível no momento. Em terceiro lugar, finalmente, o congelamento geral de preços, salários, juros e taxa de câmbio na nova moeda causa preocupação, na medida em que os preços relativos podem estar “errados” e na medida em que se abre mão de dois mecanismos fundamentais de ajustamento, representados pelas taxas de juros e pela taxa de câmbio.

Esses desvios podem comprometer a credibilidade pública na reforma sob vários aspectos. De um lado, se o déficit fiscal persistir, eventualmente o Banco Central será acionado novamente para financiá-lo na nova moeda, o que está proibido no momento. O financiamento monetário do déficit fiscal é o sinal para reacender as expectativas inflacionárias. De outro lado, um ingrediente fundamental de sucesso da reforma é a reconversão dos ativos em moeda estrangeira dos residentes (no país ou no exterior) para a nova moeda. Isso depende da confiança das pessoas na estabilidade da nova moeda, da taxa de juros real interna e dos riscos de um confisco futuro pelo governo, seja pela via tributária ou por outro qualquer expediente. Finalmente, se os preços congelados são preços “errados”, eventualmente terão que ajustar-se, podendo reiniciar um processo de alta do nível de preços na moeda nova.

Evidentemente, ainda é prematura qualquer previsão sobre o futuro da reforma monetária argentina, seja por desconhecimento do plano em sua totalidade, seja pelo pouco tempo decorrido de seu início. Entretanto, a experiência histórica não autoriza uma visão muito otimista de seus resultados. A impossibilidade de um reescalonamento a longo prazo da dívida externa, simultâneo ao saneamento interno, parece ser o ponto mais frágil do plano. Além disso, alguns erros ou deficiências na implementação do programa podem comprometê-lo no que tem que ter de essencial: a credibilidade pública.

Os argentinos sempre foram mais ousados do que seus conterrâneos latinos em matéria econômica. A atual experiência de estabilização fornecerá um rico teste de laboratório para outras economias, inclusive o Brasil, bem como para a comunidade internacional (bancos e governos), que tem se mostrado míope a respeito das causas e remédios da crise de endividamento internacional. Talvez desse episódio argentino surja uma visão mais profunda da realidade e, com ela, as soluções duradouras.

A economia brasileira tem apresentado, indiscutivelmente, as características essenciais da hiperinflação. Nossa divergência em relação à Argentina é uma questão de grau, mas não de natureza. A experiência histórica deste século indica que, após transpor um certo limiar inflacionário, nenhum país retorna gradualmente à estabilidade de preços, mediante políticas convencionais de aperto fiscal e monetário operando “na margem”. Tais políticas, que estamos procurando adotar no Brasil nos últimos anos, sob a inspiração da crise cambial e do FMI, estão defasadas no tempo, isto é, o tempo adequado para que elas lograssem sucesso já passou, infelizmente. A insistência nelas apenas pode retardar· a hiperinflação aberta por algum tempo, mas não eliminá-la de nosso futuro.

Isto não significa, naturalmente, que devemos partir hoje para uma reforma monetária clássica, mesmo porque não existe uma coalizão política para tal. Devemos, contudo, aprender as lições da história, que mais uma vez irão manifestar-se na atual experiência argentina. Essas lições são particularmente relevantes para a classe política brasileira, que parece estar hoje mais empenhada na distribuição de benefícios a curto prazo do que na criação de condições econômicas para o crescimento autossustentado de longo prazo.

(Folha de S.Paulo, 23.6.1985).

O fim da inflação inercial na Argentina1 1 Pude escrever este artigo a partir das conversas com dois dos autores do programa de reforma monetária, os economistas Adolfo Canitrot e Roberto Lavagna, e com Lidia Goldenstein, pesquisadora do CEBRAP, durante o Fórum Cone Sul, patrocinado pelo ILDES, no Uruguai.

LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA

A reforma financeira realizada na Argentina em 16 de junho, embora ainda corra riscos, já pode ser considerada um êxito. O plano obteve o apoio da grande maioria da população, dos sindicatos de trabalhadores e dos empresários. A nova moeda - o austral - transformou-se no marco de referência de todos; ninguém mais fala em pesos na Argentina. E - o que é o mais importante - a inflação, de fato, estancou-se: sua taxa mensal, que chegou a alcançar 30% em junho, deverá ser ligeiramente negativa em julho; previsões atuais são de uma inflação de 1 a 4% neste mês.

Essa reforma monetária corresponde ao que denominei “política heroica” de controle da inflação (1984), ou ao que Francisco Lopes chamou de “choque heterodoxo” (1984). Em termos de experiência anterior, corresponde muito aproximadamente à política econômica que levou a Hungria a terminar, em agosto de 1946, a maior hiperinflação de que se tem conhecimento na história.

A reforma monetária argentina implicou o congelamento geral dos quatro preços básicos de qualquer economia: o preço das mercadorias e serviços, os salários, a taxa de juros e a taxa de câmbio.

O êxito de uma política heroica dessa natureza - heroica porque radical, exigindo decisão e coragem - depende da existência de alguns pressupostos: 1) a inflação deve ser basicamente inercial, ou seja, a taxa de inflação presente reproduz a taxa de inflação passada em função da capacidade de cada agente econômico de manter sua participação na renda através de aumentos defasados de preços, não se podendo atribuir a manutenção do patamar de inflação ao excesso de demanda, ao déficit público ou ao aumento descontrolado da oferta de moeda; 2) os preços relativos devem estar razoavelmente ajustados no dia D do congelamento, de forma a não exigir ajustes posteriores; 3) as defasagens entre os aumentos de preços devem ser as menores possíveis, de forma a ser possível encontrar um dia D o mais próximo e o mais intermediário possível entre as datas de reajuste de todos os preços; 4) o pais deve contar com reservas internacionais ou com a garantia de empréstimos em dólares que lhe permitam assegurar a estabilidade absoluta da taxa de câmbio; 5) a inflação deve ter-se transformado em um jogo de soma menor do que zero, que deixa todos indignados porque, impedindo o cálculo econômico e uma política econômica coerente, leva o país em direção ao caos ou à ingovernabilidade.

As condições (2) e (3) são essenciais, porque é importante que, no dia D, em que se decreta o congelamento e a desindexação geral de todos os preços, não haja nem grandes perdedores nem grandes ganhadores. As perdas e ganhos devido a pequenos desajustes nos preços relativos ou às defasagens nos aumentos de preços devem ser mínimas, de forma a não levar a nova retomada da inflação via conflito distributivo. Em outras palavras, o pressuposto da inflação inercial de que cada agente econômico é capaz de manter sua participação relativa na renda não deve ser desrespeitado pelo dia D.

Quanto maior for a taxa de inflação, mais essas condições tendem a se ver cumpridas em uma economia. Nas hiperinflações clássicas, que sempre terminaram em um dia ou em um mês, de golpe, essas condições existiam. Na Argentina, onde a taxa de inflação era sensivelmente inferior à das hiperinflações clássicas - embora já superasse 1000 por cento ao ano -, essas condições não estavam plenamente atendidas. Nessas circunstâncias não havia outra alternativa para os responsáveis pela reforma monetária senão tentar estabelecê-las através de medidas de política econômica adicionais. Foi o que fizeram ou tentaram fazer.

Em primeiro lugar, a inflação não era exclusivamente inercial, não obstante tivesse fundamentalmente essa característica. Não se podia falar em inflação de demanda, embora houvesse um déficit público a ser resolvido. A solução foi, durante os três meses de preparação da reforma, entre março e junho, elevar os preços dos serviços públicos e fazer um rigoroso corte, de 25% em termos reais, na despesa pública.

Em segundo lugar, os preços relativos não estavam todos ajustados. Nas altas inflações os preços relativos tendem a ajustar-se, porque todos os agentes econômicos têm liberdade de reajustar com rapidez e liberdade seus próprios preços. Na Argentina, entretanto, entre outras distorções, o peso estava valorizado e o preço da carne estava subavaliado. Por isso foi realizada uma desvalorização real de 18% durante a reforma e aumentou-se o preço da carne. O ideal teria sido fazer esses aumentos com alguma antecedência, de forma a permitir que os demais preços se acomodassem via mercado. Mas isto não foi possível, dada a premência de realizar a reforma.

Em relação à terceira condição, verificamos que as defasagem nos aumentos de preços já estavam bastante reduzidas. Os salários, ao contrário do que acontece no Brasil, já eram reajustados mensalmente e tendiam a passar para um regime quinzenal. As empresas aumentavam seus preços muitas vezes semanalmente. A escolha da metade do mês para o dia D foi essencial, porque, com reajustes mensais, nessa data os trabalhadores teriam assegurado seu salário médio real; no início do mês seriam beneficiados, no final, prejudicados.

A quarta condição não estava atendida no que diz respeito a reservas internacionais. Mas a Argentina contou com o apoio do Federal Reserve Bank, dos Estados Unidos e; afinal, apesar das resistências de seus funcionários, com o apoio do Secretário Executivo do Fundo Monetário Internacional. Através de uma negociação política e técnica bem-sucedida, diretamente com o presidente do FED, Paul Volcker, cujo apoio foi decisivo, o governo argentino conseguiu a garantia de que receberia empréstimos adicionais caso fossem necessários para sustentar a taxa fixa de câmbio. Afinal este recurso não foi necessário, já que não houve fuga, mas entrada de dólares, atraídos pelos juros positivos. Todos os agentes econômicos, entretanto, sabiam que o acordo fora feito e que a garantia de divisas existia.

A quinta condição estava plenamente atendida... O povo argentino, todas as classes sociais, todos os setores econômicos não suportavam mais a inflação. Por isso, quando a reforma foi anunciada, o apoio da população foi imediato. As donas-de-casa transformaram-se nas fiscalizadoras dos preços, já que só havia 27 fiscais. O austral mereceu imediata confiança. Os sindicatos de trabalhadores, a CGT, e os sindicatos patronais demoraram um pouco mais para aderir. Queriam ter sido consultados anteriormente, o que era impossível; uma reforma dessas deve ser feita dentro do mais absoluto segredo. Mas afinal aderiram também ao plano, dado o apoio da população. Em todo esse processo político, no qual a criação do novo dinheiro tem função importante, o papel de Alfonsín foi fundamental. Economistas do governo somados a economistas do partido justicialista, que há muito trabalhavam juntos na oposição ao· governo militar, desenvolveram o plano sob o comando do ministro Juan Sourrouille, mas coube a Alfonsín a liderança política de todo o processo. Ele acreditou no plano desde que o primeiro esboço lhe foi apresentado, apressou a sua execução, insistiu na necessidade imperiosa de que surgisse uma nova moeda com nome completamente diferente do desacreditado peso, e procurou sob todas as formas transferir a confiança que o povo argentino nele deposita para o austral.

Um dos problemas da reforma foi ter estabelecido uma taxa de juros real muito alta: 4% ao mês para os depósitos a prazo. Essa taxa é incompatível a longo prazo com a retomada do crescimento e mesmo com a eliminação da inflação. Era, entretanto, necessário estabelecer uma taxa de juros alta para dar segurança ao sistema financeiro, garantindo os depósitos à vista e a prazo em austrais. Esta taxa de juros deverá agora ser paulatinamente baixada, à medida que a reforma se consolide.

Um mecanismo importante e inovativo foi a criação de uma tabela para conversão dos créditos (ou débitos) de pesos em austrais. Se alguém pagava com um prazo de um mês determinada conta, devia estar embutido no principal desse crédito (débito) um ágio de 30% aproximadamente, que correspondia à inflação de um mês em pesos. Como o austral é estável, não há razão para o devedor pagar esse ágio. A tabela de conversão de pesos em austrais, definida para os 45 dias a partir de 15 de junho, vai reduzindo o valor do peso em relação ao austral, de forma a garantir a quem pagava a prazo em pesos o desconto relativo à taxa de inflação embutida no contrato. Esse desconto permite que diversas contas sejam pagas por valor inferior ao valor nominal. Esse fato, somado à queda de certos preços onde estava embutido um imposto inflacionário, explica o provável caráter negativo da inflação argentina em julho.

É preciso ficar claro que não há nenhum milagre na reforma monetária argentina. Seu bom êxito ainda não está definitivamente assegurado, mas é muito provável. Ocorreu porque a inflação argentina era basicamente inercial e porque as demais condições necessárias para uma reforma dessa natureza já estavam ou foram atendidas com competência. No final deverá restar uma resíduo inflacionário, decorrente das eventuais distorções que o dia D terá provocado nos preços relativos. Entretanto, como essas distorções devem ser pequenas, o resíduo inflacionário também deverá ser pequeno. Para o segundo semestre de 1985 o Orçamento em vias de ser enviado ao Congresso prevê uma inflação de apenas 8%.

É necessário continuar a seguir com grande atenção esta extraordinária experiência argentina, que para o Brasil poderia ser rica em ensinamentos. Muitas ainda serão as dificuldades a serem enfrentadas pela Argentina, primeiro para consolidar a reforma, depois para estabelecer uma estratégia de crescimento, que, por enquanto, foi corretamente adiada. O fracasso do plano poderá ocorrer não apenas de eventualmente terem ficado alguns preços artificialmente rebaixados no dia D, mas também da possível incapacidade de o governo, nos próximos meses, definir uma política econômica no sentido da retomada do desenvolvimento. Se isso acontecer, as pressões por maiores salários, não encontrando escoadouro no aumento da produção e da produtividade, acabarão resultando em nova aceleração inflacionária.

No Brasil, como na Argentina, não há condições para combater a inflação através de um programa recessivo. O atual programa de administração parcial de preços é insustentável; provocará logo medidas de inflação corretiva. Medidas de desindexação gradual também não são efetivas. Qualquer choque de oferta ou de demanda anula todo o esforço de meses de restrição monetária ou de desindexação gradual. Por outro lado, as condições necessárias para um choque heterodoxo não estão presentes ainda. O principal obstáculo é a defasagem de seis meses nos reajustes salariais. Enquanto esse problema não for resolvido, enquanto não se reduzir para um mês as defasagens no aumentos de salários, através de uma lei salarial que obrigue o reajustamento dos salários não pelo pico (100% do INPC) mas pela média, não se poderá resolver o problema da inflação inercial brasileira.

As ideias que inspiraram a reforma econômica na Argentina

ENTREVISTA COM FRANCISCO LAFAIETE LOPES

Francisco Lafaiete Lopes é professor do curso de mestrado e foi um dos organizadores do Departamento de Economia da PUC do Rio de Janeiro. Aos 39 anos, filho do ex-ministro Lucas Lopes (governo de Juscelino Kubitschek), Chico Lopes - como é chamado pelos amigos - fez PhD em Harvard e era conhecido mais nos meios acadêmicos até que os economistas argentinos, ora no poder, admitiram que os fundamentos de seus planos e programas basearam-se em suas teorias e nas de outro professor da PUC, André Lara Resende.

Nesta entrevista ao repórter, José Roberto Arruda, da Sucursal do Rio, o professor Lafaiete Lopes explica suas teorias, inclusive aquelas relacionadas com os problemas da economia brasileira.

De que forma suas teses foram incorporadas por economistas argentinos na recente reforma econômica feita pelo presidente Raúl Alfonsín?

É bom deixar claro que os economistas argentinos fizeram seus próprios planos, obviamente usando algumas ideias nossas como eles próprios admitem. Nos últimos anos, a PUC tem recebido vários economistas argentinos em seus cursos de mestrado.

Suas ideias são ainda pouco conhecidas pelo menos para a imprensa brasileira e, repentinamente, o senhor surge como um dos que inspiraram a reforma econômica argentina. Como foi isso?

Em meados do ano passado, escrevi um artigo propondo um choque heterodoxo para derrubar a inflação que causou muita polêmica nos meios acadêmicos. O choque ortodoxo, pregado pelo FMI, propõe o corte abrupto do déficit público, a contração dos meios de pagamentos e a liberalização de preços e tarifas. O choque heterodoxo prega o contrário: uma certa flexibilidade para as políticas monetária e fiscal, combinada com o congelamento de preços e salários. Isso porque acredito que a inflação aqui é diferente da dos países desenvolvidos. Nos Estados Unidos, as pessoas acreditam que vai haver inflação pelas expectativas futuras, se houve uma expansão da moeda. Se o governo zera o déficit e não emite moeda, não haverá inflação. Pelo menos é isso que os economistas da escola de Chicago acreditam.

E o que é diferente aqui no Brasil ou no Hemisfério Sul, uma vez que suas teses influenciaram os economistas argentinos?

O meu artigo sobre o choque heterodoxo introduziu o conceito de inflação inercial, pelo qual para acabar com uma inflação alta e crônica somente com um corte abrupto, somente com o congelamento de preços e salários. Essa proposta foi muito discutida aqui na PUC, e o professor André Lara Resende apresentou a ideia da criação de uma nova moeda, indexada ao dólar, dentro da linha da inflação inercial. Estas duas propostas foram muito discutidas num seminário da ANPEC (Associação Nacional de Centros de Pós-Graduação em Economia) em que estiveram presentes os economistas argentinos que agora estão conduzindo a reforma econômica de Alfonsín. Numa terceira etapa, elaborei um trabalho que foi encaminhado a Tancredo Neves, propondo a reforma econômica brasileira que difere da da Argentina, porque seria discutida pela sociedade numa espécie de “constituinte econômica”. Basicamente, esta reforma propõe a criação de uma nova moeda, o cruzado, também indexada ao dólar, como o austral, o congelamento de preços e salários, o fim da correção monetária para contratos com menos de um ano e outras medidas. Só que para a implantação dessa reforma haveria uma fase de transição em que toda a sociedade brasileira poderia discutir e aprimorar as ideias.

O senhor poderia explicar melhor essa tese da inflação inercial?

Minhas observações indicaram que nos últimos anos o governo vem cortando o déficit público e limitando a expansão da moeda, sem que a inflação caia. No quadriênio 1980-1984, a expansão da moeda foi 60% menor que a alta de preços. Apesar disso, a dinâmica inflacionária continuou imperturbável; os únicos efeitos foram a intensificação da recessão e a elevação dos juros. Surgiu então a ideia de que, nos processos inflacionários crônicos e elevados, existe um elemento dominante de inflação inercial em que a causa principal da inflação passa a ser a inflação passada. Os preços sobem hoje porque subiram ontem, numa atitude defensiva dos agentes econômicos, sem a menor relação com os custos, num processo dessincronizado em que todos correm para ficar no mesmo lugar. Então, a inflação inercial tem a tendência de permanecer constante. Se está no patamar de 200%, ela mostra uma rigidez para descer e sobe se houver novos choques, como aumentos de salários etc.

Minhas observações são de que combater uma inflação inercial com medidas de política monetária e fiscal resultam num combate muito ineficiente. Os Estados Unidos conseguiram derrubar uma inflação de 15% para 4% ou 5% com um ganho de 10%, usando medidas dessa natureza. Mas, num processo inflacionário de 200%, se você conseguir um ganho de 10% ninguém vai notar. A conclusão foi de que tínhamos de encontrar uma nova fórmula, uma outra alternativa.

E quais seriam as alternativas indicadas já que o processo ortodoxo do FMI (Fundo Monetário Internacional) não vem funcionando?

O senso comum indica que é melhor combater a inflação de forma gradativa. Mas quando olhamos a história dos países com hiperinflação vemos que nenhum deles se curou desse mal de forma gradativa. Na Alemanha de 1923, a inflação chegou a 30.000% no mês de outubro; em novembro, foi para zero, chegando mesmo a ser negativa logo depois. Na Áustria, em 1922, a inflação atingiu 80% no mês de setembro, caindo para zero e até menos nos meses seguintes, num período deflacionário. É como se fosse descer uma escada de costas; é melhor pular. Para desarmar a armadilha da inflação inercial, temos de combater o mecanismo de autossustentação. Que tal o governo usar sua legitimidade para proibir durante certo tempo os aumentos de preços? Congelando os salários durante certo período, a inflação cai a zero, e a tentativa de repassar para o futuro essa inflação será anulada.

Como manter uma taxa de câmbio fixa, indexada ao dólar? Não será uma medida muito artificial?

A mudança de padrão monetário reforça a psicologia das pessoas para a estabilização dos preços. Mas para iniciar esse processo de congelamento de preços temos de reajustá-los, deixá-los que alcancem seu próprio equilíbrio. Na Argentina, tiveram essa preocupação, mudando a taxa de câmbio, os preços do petróleo, das tarifas públicas. Os salários não podem estar defasados antes do congelamento. Isso foi mais fácil lá, porque os salários são mensais. Aqui haveria distorções, porque, sendo semestrais, certas categorias poderiam ter perdas de até 80%, caso o congelamento viesse alguns dias antes do reajuste. Por essa razão, a fase de transição poderia servir para arrumar a estrutura de preços antes do congelamento.

Como manter a paridade do dólar em países endividados como o Brasil e a Argentina que usam a política cambial para estimular exportações e desestimular importações?

No programa argentino é fundamental que o governo sustente a paridade. As pessoas têm de acreditar que o austral vai valer 0,80 de dólar no ano que vem. Para não mexer na taxa cambial, o governo argentino terá de ter uma situação de certeza de pelo menos um ano no balanço de pagamentos. O elemento fundamental dessa reforma é o apoio que a Argentina vem recebendo do FMI e dos Estados Unidos. Como as necessidades cambiais da Argentina são pequenas e sua situação de balanço de pagamento é boa, creio que não haverá maiores problemas desse lado. As ameaças a esse plano são de que a Argentina sofra um choque externo, ou que haja uma grande desvalorização do dólar, bem como a de não conseguir a coesão da sociedade em torno desse programa ou sofrer a confrontação dos sindicatos.

O que difere do plano argentino sua proposta encaminhada a Tancredo Neves?

As condições políticas da Argentina permitiram que esse plano fosse feito por decreto e de forma abrupta. No caso brasileiro, acho que não existem estas condições. O governo não tem base política para tal. Eu não proporia para o Brasil uma estratégia semelhante, mas sim uma solução que fosse tornada pública e discutida amplamente. Eu diria o seguinte: nós estamos em junho de 1985; em março de 1986 vai haver uma reforma monetária. A moeda passará a ser o cruzado e a partir de 1º. de março não haverá mais correção e os salários e preços serão congelados, mantendo o governo o compromisso de assumir a política nacional de estabilização de preços e para não mexer na taxa de câmbio. Essa reforma seria transformada em lei pelo Congresso, numa discussão aberta e democrática.

Essa reforma pode trazer uma movimentação de capitais para o exterior muito perigosa?

Não creio. Para que os dólares retornem do exterior, na Argentina, terá de passar um certo tempo, quando todos tiverem certeza do horizonte econômico do país. É bom mesmo que não retornem de imediato, pois isso iria gerar uma expansão monetária incrível. Imagine o governo ter de emitir austrais para absorver US$ 30 bilhões. Mas com a paridade fixa é possível esse retorno a médio prazo, desde que o governo mantenha o controle da inflação e garanta que a inflação acabou e que a taxa de câmbio não será alterada.

Como encontrar o ponto ideal para o câmbio, antes do congelamento?

No Brasil, um câmbio que permite exportar bem e gerar um saldo comercial de 12 bilhões acho que está no nível certo. Tanto o Brasil como a Argentina não têm problemas de balanço de pagamentos. Mas é muito difícil para um banqueiro no exterior acreditar que uma economia com inflação de 200% funcione bem. Assim, o combate à inflação no Brasil virou um pré-requisito para negociarmos nossa dívida externa.

Mas não foi o próprio FMI que impôs uma política econômica para resolver o problema de balanço de pagamentos do país e que gerou toda essa inflação?

Sem dúvida, O FMI nos obrigou a sucessivas desvalorizações da moeda que levaram a inflação de 80 para 140 e depois para 230%. Os economistas do FMI têm uma visão monetarista e partem do pressuposto de que a causa da inflação é o déficit público.

Caso continuemos com a atual política econômica quais seriam os resultados?

É o que chamo de estratégia do imobilismo. Ficaremos no patamar dos 200% até o próximo choque, como o dos salários (há várias leis em tramitação no Congresso) ou de alimentos. Podemos ficar mais dez anos oscilando entre uma inflação de 200 a 500%. Acho que existe nessa opção uma situação de risco social muito grande, pelas deformações que a inflação traz à economia. A outra saída será observamos o que a Argentina está fazendo. Vamos aprender muito e poderemos agir com mais segurança.

Jornal da Tarde, 24.6.1985.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • BRESSER-PEREIRA, Luiz C. e NAKANO, Yoshiaki Inflação e recessão, São Paulo, Brasiliense, 1984, pp. 99-101.
  • LOPES, Francisco L. “Só um choque heterodoxo pode derrubar a inflação”, em Economia em Perspectiva, Conselho Regional de Economistas de São Paulo, agosto de 1984.
  • LOPES, Francisco L. “Inflação inercial, hiperinflação e desinflação: notas de conjuntura”, em Revista de Economia Política, vol. 5, nº. 2, abril-junho de 1985.
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    Pude escrever este artigo a partir das conversas com dois dos autores do programa de reforma monetária, os economistas Adolfo Canitrot e Roberto Lavagna, e com Lidia Goldenstein, pesquisadora do CEBRAP, durante o Fórum Cone Sul, patrocinado pelo ILDES, no Uruguai.
  • JEL Classification: E3.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 1985
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