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Economia conservadora e economia progressista* * Aula inaugural pronunciada na Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo, em 8.3.1985

Conservative economy and progressive economy

RESUMO

Partindo do pressuposto de que a Economia ou Economia Política é uma ciência ideologicamente condicionada, o autor distingue uma abordagem conservadora de uma progressista ou liberal. Essa distinção é feita em três níveis: 1) teoria básica, mais especificamente teoria do valor; 2) teoria macroeconômica; 3) política econômica.

PALAVRA-CHAVE:
Metodologia da economia

ABSTRACT

From the assumption that Economics or Political Economy is a science ideologically conditioned, the author distinguishes a conservative from a progressist or liberal approach. This distinction is made in three levels: 1) basic theory, more specifically value theory; 2) macroeconomic theory; 3) economic policy.

KEYWORD:
Economic methodology

A economia é uma ciência social e, portanto, uma ciência ideologicamente condicionada. Os economistas clássicos, ao chamar esta ciência de “economia política”, intuíam esse fato. Marx deixou claro para sempre esse caráter ideológico da economia. A reação neoclássica tentou devolver a “pureza científica” à Economia, transformá-la em uma ciência “positiva”, matematicamente rigorosa e empiricamente comprovável. Chegaram até a mudar o nome da ciência, de “Political Economy” para “Economics”. Mas é óbvio que esta era uma mera tentativa de esconder a realidade, de mascarar o caráter ideologicamente legitimador das relações de produção capitalistas - da propriedade e do trabalho assalariado - embutido na Economia.

O caráter ideologicamente condicionado da Economia, entretanto, é tão óbvio - apesar de todo o esforço de transformá-la em uma ciência empiricamente comprovada - que tomarei este fato como um pressuposto. Uma ciência que descreve e analisa as próprias relações de produção capitalistas - a mais-valia, o lucro e o salário -, que explica (e justifica) as formas de distribuição da renda ou de apropriação do excedente pelas classes sociais, tem, necessariamente, que ser ideologicamente condicionada.

A partir desse pressuposto, minha preocupação é distinguir um economista conservador de um economista progressista (ou liberal, na linguagem anglo-saxã). É distinguir uma Economia conservadora de uma Economia progressista.

1.

Definamos os termos.

Conservador é aquele que pretende antes conservar do que reformar a ordem estabelecida. É aquele que aceita reformas apenas a muito longo prazo. É quem põe a ordem acima da justiça. É quem parte do pressuposto de que as classes dominantes - que representam a ordem estabelecida - possuem o monopólio do conhecimento, da cultura, da verdade, da racionalidade e da própria justiça. Diferentemente do reacionário, ele aceita e até favorece a mudança social, desde que esta não represente qualquer risco para a ordem.

Progressista é quem está mais preocupado com a justiça do que com a ordem.

É quem quer transformar o mundo, torná-lo mais igual, mais justo e mais livre. É quem reconhece que a racionalidade pode também estar com os trabalhadores e as classes médias, e que a justiça está geralmente - mas não necessariamente - com eles.

Diferentemente do revolucionário, ele não acredita que o critério de verdade seja o trabalhador - o proletariado -, nem imagina que a revolução seja a solução dos problemas econômicos e sociais. Sabe que a revolução leva muitas vezes à ditadura e ao retrocesso econômico.

Mas enquanto o conservador tem um compromisso com a ordem, o progressista tem um compromisso com a justiça. Enquanto o conservador prefere manter as velhas verdades estabelecidas, repeti-las e aperfeiçoá-las, o progressista está disposto a arriscar um pouco em nome de um desenvolvimento econômico maior, de uma melhor distribuição de renda, de uma estabilização de preços menos custosa socialmente.

2.

Para distinguir o economista conservador do economista progressista é preciso distinguir pelo menos três planos de abstração: 1) o plano da teoria econômica básica; 2) o plano da análise macroeconômica; 3) o plano da política econômica.

No plano da teoria econômica básica a distinção fundamental entre economistas conservadores e progressistas está na teoria do valor. Os economistas progressistas adotam a teoria do valor trabalho; os conservadores, a teoria do valor subjetivo, da utilidade marginal.

A teoria do valor é um divisor de águas na teoria econômica básica porque relaciona-se diretamente com a própria natureza do sistema capitalista. A partir da teoria do valor explicam-se os preços. Em consequência, são explicados (e eventualmente legitimados) os salários e os lucros.

Os economistas clássicos desenvolveram a teoria do valor trabalho, porque era a teoria mais lógica, mais objetiva, com maior poder explicativo. Fizeram-no inocentemente do ponto de vista ideológico, enquanto justificavam o capitalismo através da teoria da “mão invisível”.

Marx tomou a teoria do valor trabalho e daí derivou a teoria de mais-valia - a teoria da exploração como um fenômeno intrínseco ao capitalismo. Em seguida utilizou sua descoberta para criticar revolucionariamente o capitalismo.

Não restou aos economistas conservadores alternativa senão procurar outra teoria. Encontraram a teoria subjetiva da utilidade marginal, que reduz o processo da determinação dos preços à lei da oferta e da procura no curto prazo. Dessa forma fica-se sem uma explicação satisfatória de como se formam os preços relativos - ou seja, porque variam a longo prazo os preços de determinadas mercadorias em relação a outras - que é o próprio objetivo da teoria do valor.

Em compensação, os neoclássicos desenvolvem uma teoria matematicamente elegante do valor, que não tem as consequências ideologicamente indesejáveis da teoria do valor trabalho - que não apresenta o lucro como uma forma intrínseca de exploração na medida que é obtido através de uma “troca de mercadorias equivalentes”. Pelo contrário, a nova teoria, complementada pelo conceito de produtividade marginal dos fatores de produção, permite aos economistas conservadores afirmar que os salários podem ser explicados pela produtividade marginal do trabalho, e - ainda mais conveniente - que os lucros são o resultado da produtividade do “fator de produção” capital.

Com tanta carga ideológica é fácil perceber por que a teoria do valor ainda não encontrou uma solução científica consensual, apesar da grande sofisticação que o debate alcançou entre os especialistas.

3.

Enquanto no primeiro nível de abstração - o da teoria econômica básica - temos· a divisão entre, de um lado, neoclássicos conservadores, e, de outro, marxistas revolucionários ou ricardianos (ou mesmo neomarxistas) reformistas em torno da teoria do valor trabalho, no segundo nível de abstração - o da análise macroeconômica - o debate se estabelece entre neoclássicos monetaristas, de um lado, e keynesianos e estruturalistas, de outro.

A questão básica em discussão é a da capacidade do mercado de regular automaticamente a economia ou da sua incapacidade de realizar essa tarefa. Neste último caso, o economista progressista defende a necessidade de um certo grau de intervenção do Estado: 1) seja como Estado Produtor, realizando poupança forçada e investindo diretamente na produção; 2) seja como Estado Subsidiador, favorecendo via subsídios e incentivos os mais variados a acumulação privada; 3) seja como Estado do Bem-Estar, produzindo e distribuindo gratuitamente ou a preços subsidiados bens e serviços de consumo para as camadas mais pobres, que passam, assim, a receber salários indiretos; 4) seja, finalmente, como Estado Regulador, que busca corrigir o funcionamento imperfeito do mercado, adequar a demanda à oferta agregada, garantir o pleno emprego e a estabilidade dos preços, distribuir mais igualmente a renda.

Os economistas conservadores - neoclássicos modernos (adeptos da síntese neoclássica para uns, keynesianos bastardos para outros) e os monetaristas friedmanianos - entendem que a economia capitalista é autorregulável de forma eficiente. Os mais radicais chegam a reivindicar para o mercado a capacidade de garantir a justiça social. Os economistas progressistas - keynesianos e keynesianos-marxistas (excluímos os marxistas puros porque pouco têm a dizer nesse nível) - adotam posição contrária, apoiados na crítica da lei de Say e da teoria quantitativa da moeda.

Segundo a lei de Say ou lei dos mercados, formulada no início do século XIX, a oferta cria sua própria procura, não havendo, pois, lugar para crises de superprodução ou de subconsumo. Por outro lado, a teoria quantitativa da moeda, ao afirmar que há uma relação fixa entre a quantidade de moeda e a renda, chega ao mesmo resultado com um enfoque monetário e de preços. Se a velocidade-renda da moeda - ou seja, o número de vezes que a mesma moeda é utilizada para produzir determinada renda em um ano - é fixa, isso significa que não há entesouramento, que tudo que é ganho em termos de salários e lucros é imediatamente gasto na forma de consumo e investimento. Logo, segundo os economistas conservadores, o mercado autorregularia a economia, não possibilitando as crises econômicas. A teoria quantitativa da moeda confirmaria a lei de Say.

Por outro lado, na medida que o aumento da quantidade de moeda se mantivesse rigorosamente proporcional ao aumento da renda, ou seja, ao aumento da procura de moeda, não haveria inflação. O mercado também garantiria a estabilidade dos preços.

O economista keynesiano ou keynesiano-marxista nega estas ideias a partir da verificação empírica de que, de um lado, existem crises e desemprego, inflação e desajuste cambial, e, de outro, a partir da afirmação teórica de que estes desequilíbrios decorrem do caráter intrinsecamente imperfeito do mercado capitalista, caracterizado por grandes oligopólios e monopólios empresariais e sindicais.

A esta argumentação somam-se os economistas estruturalistas nos países subdesenvolvidos, que assinalam a imperfeição do funcionamento do mercado não apenas devido a seu caráter oligopolizado, mas também dual - com amplos setores não subordinados à economia capitalista de mercado. Em consequência, argumentam, as respostas dos empresários aos estímulos de preços e de renda - ou seja, a elasticidade-preço e a elasticidade-renda da oferta - são lentas, provocando desequilíbrios adicionais na economia, que obrigam, de um lado, a uma certa convivência com a inflação, e, de outro, a uma maior intervenção do Estado. Nessa linha de raciocínio - e ao contrário dos economistas monetaristas - eles tendem a considerar a quantidade de moeda como uma variável cada vez mais endógena ao sistema, cada vez menos sob controle das autoridades, especialmente quando a inflação alcança patamares elevados e surgem mecanismos formais ou informais de indexação, tornando a inflação autônoma.

Os monetaristas conservadores contra-atacam afirmando que as imperfeições do mercado derivam precisamente do excesso de intervenção estatal. E que a oferta de moeda é perfeitamente controlável desde que se controle a despesa pública.

Esse tipo de discussão tornar-se-ia sem solução se não lembrarmos que os conservadores, quando assumem o poder, adotam medidas de política econômica intervencionistas tão violentas - segundo eles para restabelecer a verdade do mercado na economia, mas, na verdade, também para subsidiar a acumulação privada -, que o grau de intervenção estatal efetivo acaba muitas vezes aumentando ao invés de diminuir. Por outro lado, dificilmente conseguem, apesar de toda a intervenção, um controle efetivo sobre a oferta de moeda.

Esse intervencionismo conservador se explica porque os conservadores radicais - aliás, da mesma forma que os revolucionários - tendem a ser, no plano filosófico, idealistas, voluntaristas, imaginando que podem ajustar a realidade à sua vontade. Como a realidade do capitalismo oligopolista tecnoburocrático dos nossos dias não se ajusta a seus ideais, eles violentam o mercado, o sistema econômico, com suas medidas monetaristas de política econômica.

4.

No terceiro plano de abstração - o da política econômica - podemos encontrar outros critérios que distinguem os monetaristas (conservadores) dos keynesianos, keynesianos-marxistas e estruturalistas (progressistas).

O conservador dá sempre prioridade à estabilização sobre o aumento de produção e ao aumento da produção sobre a distribuição da renda. Além disso, vê sempre permutas (trade-offs) entre esses três objetivos. A estabilização de preços só pode ser alcançada às custas da diminuição da produção, nos termos da curva de Phillips; a produção só pode ser acelerada às custas da distribuição, de acordo com o princípio de que primeiro é preciso fazer crescer a renda para depois distribuí-la.

O economista progressista, de um lado, procura inverter essas prioridades, colocando a distribuição ou a produção em primeiro lugar e a estabilização em último. A inversão não é radical porque, na medida que ele pensa historicamente e percebe que a economia como um processo cíclico, dará maior ou menor prioridade a cada um desses objetivos de acordo com as circunstâncias, de acordo com a fase em que a economia se encontrar na evolução do ciclo econômico.

Por outro lado, o economista progressista procura compatibilizar, em vez de estabelecer um sistema de permutas, crescimento e distribuição. Partindo do pressuposto de que há desemprego e capacidade ociosa, não é o aumento da poupança via concentração da renda que vai determinar o aumento dos investimentos, mas é o aumento deste, estimulado pelo Estado, que vai aumentar a renda sem concentrá-la.

Por outro lado, no campo da inflação, o economista progressista percebe que em certos momentos temos estagflação - ou seja, inflação acompanhada de recessão, de desemprego e capacidade ociosa -, e neste caso a clássica permuta entre desemprego e inflação - quanto menor o desemprego maior a inflação - deixa de ser verdadeira. É o inverso que passa a valer.

Como o economista conservador, neoclássico ou monetarista parte sempre do pleno emprego e da estabilidade de preços, para ele jamais é possível aumentar a poupança sem reduzir os salários em favor dos lucros, como também é impossível reduzir a inflação sem baixar os salários. O economista progressista, partindo de pressupostos diversos, chega a propostas de política econômica mais favoráveis, menos recessivas, que exigem menos sacrifícios de todos e principalmente dos trabalhadores, que são sempre o alvo dos economistas conservadores. O risco do economista progressista, entretanto, é não perceber que, em certos momentos, não há alternativa senão trabalhar com a ideia da escassez e da permuta. É não perceber que só em condições especiais de elevado desemprego é possível aumentar ao mesmo tempo lucros e salários, é possível promover o crescimento e ao mesmo tempo combater a inflação. Se ele não tem essa percepção, arrisca a levar o sistema -econômico ao desequilíbrio, ao desajustamento.

É preciso não confundir os economistas progressistas com políticas econômicas irresponsáveis, que aumentam a despesa do Estado sem aumento correspondente da carga tributária, levando ao déficit público, à inflação e ao desequilíbrio externo. Por outro lado, é necessário salientar que a experiência histórica neste século deixa claro que os economistas conservadores são tão capazes de ser irresponsáveis e incompetentes quanto os progressistas.

5.

Na área da produção, do desenvolvimento econômico, o simples fato de que um economista favorece a intervenção moderada, mas efetiva do Estado não significa que ele seja progressista. Se ele for dogmaticamente contrário, será necessariamente conservador. A experiência histórica demonstra sobejamente que uma intervenção inteligente do Estado, além de acelerar o crescimento econômico, é condição essencial de uma melhor distribuição de renda.

O saldo entre erros e acertos tende a ser positivo para a intervenção estatal em certos setores da economia, principalmente nos serviços públicos e nos setores monopolistas ou oligopolistas que exigem volumes de capital extremamente elevados. Nos setores competitivos não há razão para a intervenção do Estado. Apenas em casos muito especiais se justifica a intervenção do Estado para salvar empresas falidas. Em qualquer hipótese, há certos momentos em que se torna necessário limitar a intervenção e preocupar-se em desestatizar a economia para corrigir as inevitáveis distorções derivadas da intervenção direta do Estado na produção.

Essa necessidade cíclica de desestatizar a economia deriva, de um lado, da tendência à estatização observada historicamente nas economias capitalistas, e, de outro, na ineficiência inerente à ação estatal empresarial. A tendência à estatização deriva menos da pressão dos próprios tecnoburocratas estatais interessados em aumentar suas oportunidades de ganho e poder e mais da pressão dos capitalistas no sentido de que o Estado, usando sua capacidade de reunir capitais via poupança forçada, ocupe áreas vazias essenciais, administre os setores menos rentáveis e garanta através de suas empresas encomendas para o setor privado.

Por esta última razão o economista progressista é ou deve ser capaz de distinguir estatização dos meios de produção de socialização, de melhoria da eficiência e de mais justa distribuição de renda. Dados esses objetivos, é essencial a ação do Estado Regulador e do Estado do Bem-Estar, é discutível a ação do Estado Produtor, e é definitivamente condenável a ação do Estado Subsidiador do setor privado.

Mas se o economista for favorável à intervenção do Estado, ele poderá ainda ser um economista conservador, se orientar toda a sua ação para favorecer exclusivamente a acumulação privada em detrimento dos trabalhadores. Foi o que ocorreu no Brasil após 1964. O governo foi fortemente intervencionista até 1980, mas sempre a favor do capital.

6.

Na área da distribuição o economista só será progressista se for legitimamente favorável a uma distribuição de renda mais justa.

Ora, lograr uma melhor distribuição de renda sem adotar medidas inflacionárias nem prejudicar o processo de investimento privado é uma tarefa extremamente difícil.

Os três instrumentos básicos de distribuição de renda em uma economia capitalista são: 1) a política salarial; 2) a política tributária; 3) a política de despesas sociais do Estado.

O economista conservador afirma sempre que a elevação de salários é inflacionária, enquanto o progressista tende a negar. Na verdade, a elevação de salários reais só não é inflacionária quando é igual ao aumento da produtividade.

O economista conservador garante sempre que aumentar os impostos e/ou torná-los mais progressivos implica desestimular os investimentos e o próprio trabalho individual. Na verdade, os países capitalistas que melhor distribuem sua renda, geralmente aqueles governados por partidos social-democratas, o fizeram graças à montagem de um sistema tributário fortemente progressivo. E nem por isso esses países estagnaram economicamente. O essencial é que a carga tributária, da mesma forma que os salários, não aumentem ao ponto de reduzir indevidamente a competitividade externa do país.

A orientação das despesas do Estado para o favorecimento das populações menos favorecidas é sempre uma meta do economista progressista, que o economista conservador objeta, seja em nome da redução das despesas do Estado, seja em nome de seu direcionamento para atividades produtivas.

7.

Finalmente, no plano das relações do país com o exterior, o economista conservador tende a ser primeiro-mundista, enquanto o progressista, terceiro-mundista. O primeiro-mundismo caracteriza-se pela ideia de que o país - no caso do Brasil - já entrou ou está entrando para o clube dos ricos e, portanto, deve pautar sua política econômica pela dos países centrais. O terceiro-mundismo reconhece o caráter subdesenvolvido do Brasil e a solidariedade básica do país com os demais países subdesenvolvidos, principalmente os países da América latina. Verifica também que embora possa haver muitos pontos de interesse comum, o conflito de interesses entre os países do Terceiro Mundo e os centrais é o fator predominante, exigindo daqueles uma atitude mais ativa e mais concertada de defesa de seus interesses.

No passado era fundamental para os economistas progressistas defender e justificar uma política nacionalista de industrialização para os países subdesenvolvidos. Hoje, depois que esses países se industrializaram com a participação das empresas multinacionais mas se endividaram externamente e desestabilizaram seus preços, a prioridade fundamental do Terceiro Mundo está em adotar políticas de estabilização que: 1) deem menos ênfase ao ajustamento recessivo e mais ao financiamento, ou seja, a obtenção de empréstimos internacionais adicionais ainda que decrescentes; 2) que impliquem a adoção de estratégias de combate à inflação autônoma que deem ênfase a medidas administrativas, como o controle de preços e a adoção de fórmulas de desindexação; 3) que sejam combinadas com a negociação da divida externa de forma mais soberana ou menos subordinada à pressão dos credores internacionais.

Em consequência, o nacionalismo ou terceiro-mundismo continua a caracterizar os economistas progressistas nos países subdesenvolvidos, mas esse nacionalismo mudou de caráter. Nos anos quarenta ou cinquenta, nos quadros do “velho imperialismo”, a tese central era a de que as potências estrangeiras estavam aliadas ao capital agrário-mercantil dos países subdesenvolvidos para impedir sua industrialização e manter a antiga divisão internacional de trabalho. A partir dos anos sessenta essa visão foi sendo revisada, na medida que as empresas multinacionais deixaram de se· interessar apenas por comércio internacional, mineração e serviços públicos e passaram a ter um papel importante na industrialização de alguns países periféricos, como o Brasil. Em vista disto os economistas progressistas foram levados a mudar o foco de sua crítica. Ainda que continuassem a falar na tese de Prebisch da troca desigual, deixaram de falar no caráter anti-industrializante do imperialismo e passaram a dar ênfase a dois fatores: 1) ao caráter distorcido, no plano da distribuição, dos investimentos das multinacionais, contribuindo para o desequilíbrio estrutural do “subdesenvolvimento industrializado”; e, principalmente, 2) ao caráter imperialista do grande capital financeiro internacional, que durante os anos setenta faz empréstimos excessivos, a taxas de juros elevadas, aos países subdesenvolvidos, e em seguida, nos anos oitenta, passou a fazer pressões sobre os países devedores, apoiados no Fundo Monetário Internacional, para que esses países adotassem medidas recessivas de ajustamento, em parte necessárias, mas em grande parte equivocadas porque baseadas em concepções ortodoxas a respeito da inflação.

Nesses termos, ser nacionalista e progressista hoje, no Terceiro Mundo, significa muito menos ser contra as empresas multinacionais - que sob muitos aspectos podem ser bem-vindas -, e muito mais ser capaz de criticar as posições ortodoxas dos bancos credores e do FMI e, em consequência, de propor, de um lado, a recuperação da autonomia dos países em subdesenvolvimento em matéria de política econômica, através de uma negociação soberana da dívida externa - via provavelmente capitalização unilateral dos juros-, e, de outro lado, via o reconhecimento do caráter autônomo ou inercial da inflação e da proposta de medidas não recessivas adequadas para o combate desse tipo de inflação.

8.

O problema da inflação merece uma atenção especial no esforço de distinguir os economistas conservadores dos progressistas. Nos países centrais o debate se trava entre os economistas monetaristas conservadores; que atribuem a inflação exclusivamente ao aumento da oferta de moeda, e os keynesianos (progressistas?) que dão ênfase ao excesso de demanda.

Na verdade, quando nos defrontamos com as altas inflações existentes nos países latino-americanos, a clivagem é outra. De um lado, temos os economistas ortodoxos (monetaristas ou keynesianos), que pretendem resolver o problema da inflação através de medidas monetárias e fiscais de contenção da demanda agregada; de outro lado, temos os economistas estruturalistas lato sensu, que dão ênfase ao caráter imperfeito do mercado e à natureza endógena ou passiva da moeda. Esses economistas foram em um primeiro momento estruturalistas stricto sensu (teoria dos pontos de estrangulamento na oferta), depois rangelistas (a partir de A inflação brasileira, de Ignácio Rangel), dando ênfase à inflação de custos, principalmente ao poder de monopólio das empresas para administrar as margens de lucro, e, recentemente, defensores da tese de que a inflação é, como eu próprio chamei, “autônoma”, mas que tem sido mais frequentemente chamada de “inercial”.

A inflação autônoma é aquela que independe do excesso de demanda. Independe também de “expectativas”, ou seja, de atitudes psicológicas inflacionistas dos agentes econômicos. É a inflação que reproduz a inflação passada na medida em que os agentes econômicos, através do conflito distributivo, e dado que os preços aumentam alternadamente, com defasagens variáveis, logram indexar formal ou informalmente seus preços, de forma a manter sua participação na renda.

Entendida a inflação nesses termos, os economistas progressistas têm, naturalmente, propostas muito diversas das apresentadas pelos conservadores para o seu controle. Suas propostas se baseiam em controles administrativos de preços, em reforma monetária, em desindexação, ao mesmo tempo que são mantidos sob controle (mas sem violenta restrição) os salários, as finanças públicas e a oferta de moeda.

9.

Estas são algumas das principais distinções entre uma teoria econômica progressista e uma teoria econômica conservadora; entre uma política econômica: progressista e uma política econômica conservadora.

O debate entre economistas conservadores e progressistas tende a ser permanente, por mais que cada uma das partes procure se municiar de teorias cada vez mais sofisticadas e de comprovações empíricas para suas teorias.

Como existem os economistas progressistas radicais, há também os conservadores radicais. Os resultados do radicalismo são geralmente catastróficos em matéria de economia, porque implicam violentar o mercado. Ora, o mercado continua a ser a instituição reguladora fundamental do sistema capitalista, não podendo ser ignorado nem substituído.

Os economistas conservadores tenderão sempre a considerar os progressistas como promotores da inflação e de desequilíbrio externo, enquanto os progressistas pensam sempre nos conservadores como responsáveis pelo desemprego e pela concentração da renda. Na verdade, esse tipo de distinção é equivocado. São os economistas incompetentes ou incapazes de enfrentar a vontade dos políticos ou os interesses dos empresários ou as reivindicações dos trabalhadores que levam a esses resultados negativos, sejam eles progressistas ou conservadores.

Em última análise, o que distingue efetivamente um economista conservador de um progressista é a sua atitude, são as suas teorias e as suas políticas em relação à distribuição da renda.

Nos países europeus, no pós-guerra, tivemos a alternância de governos conservadores e social-democratas. Se tentarmos estabelecer uma correlação entre o tipo de partido no poder e os resultados em termos de crescimento ou de inflação, verificaremos que essa correlação não existe. A dinâmica do ciclo econômico foi mais importante do que o caráter mais conservador ou mais progressista dos economistas no poder para determinar a taxa de crescimento econômico e a aceleração ou a desaceleração da inflação. Se procurarmos, entretanto, saber o que ocorreu com a distribuição da renda, provavelmente concluiremos que, quando os social-democratas ganharam as eleições e utilizaram economistas progressistas para dirigir a política econômica, a distribuição da renda tornou-se menos desigual.

  • *
    Aula inaugural pronunciada na Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo, em 8.3.1985
  • JEL Classification: B41.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 1985
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