RESUMO
O Sistema Único de Saúde (SUS), desde sua criação em 1988, tem um histórico de recursos insuficientes que permitam efetivamente garantir a universalidade e a integralidade do cuidado. Seu subfinanciamento, derivado da ausência de apoio de parte da sociedade e de políticas neoliberais assumidas por diversos governos nos anos 1990 e 2000, transformou--se em um efetivo desfinanciamento a partir da aprovação do “teto de gastos”, em 2016, agravando as dificuldades estruturais do sistema. A pandemia de Covid-19 gerou uma necessidade preeminente de ampliação da capacidade de atendimento do sistema público de saúde e, com isso, os recursos para o SUS foram ampliados. Essa maior disponibilidade financeira, porém, foi fruto de medidas extraordinárias e ficou restrita aos anos de 2020 e 2021. O orçamento ordinário destinado à saúde nesses anos e a LOA de 2022 explicitam que o desfinanciamento se mantém e que a pandemia não gerou priorização da saúde da população brasileira no interior do orçamento federal.
PALAVRAS-CHAVE:
Pandemia de Covid-19; subfinanciamento; desfinanciamento do SUS; Brasil
ABSTRACT
The Brazilian Unified Health System (SUS), since its creation in 1988, has a history of insufficient resources to effectively guarantee universality and comprehensive care. Its underfunding, derived from the lack of support from part of society and neoliberal policies undertaken by various governments in the 1990s and 2000s, turned into effective reduction in real terms of funding resources after the approval of the “expenditure ceiling” in 2016, aggravating the structural system difficulty. The Covid-19 pandemic generated a preeminent need to expand the service capacity of the public health system and, with that, the resources for the SUS were expanded. However, this greater financial availability was the result of extraordinary measures and was restricted to the years 2020 and 2021. The ordinary budget for health in those years and the 2022 LOA demonstrate that the underfunding continues and that the pandemic did not change the lack of priority given to healthcare within the federal budget.
KEYWORDS:
Covid-19 pandemic; underfunding; withdrawal of SUS resources; Brazil
INTRODUÇÃO
Em 17 de fevereiro de 2022, em plena onda da variante Ômicron, a pandemia da Covid-19 já havia provocado 641.902 óbitos no Brasil, registrando uma das mais altas taxas de mortalidade do mundo (305,5 óbitos por 100 mil habitantes). A despeito do posicionamento negacionista do presidente da República com relação ao novo coronavírus, que considerou não ter como efeito nada mais grave do que uma “gripezinha”, e da ausência de uma coordenação nacional de combate à pandemia por parte do Ministério da Saúde (MS), diversos governadores e prefeitos tentaram responder ao desafio sanitário mobilizando e fortalecendo a estrutura do Sistema Único de Saúde (SUS) e, muitas vezes, se valendo do sistema privado na criação de hospitais de campanha.
Vários foram os problemas enfrentados no decurso da pandemia. Além da falta de coordenação do MS, da postura contrária de Jair Bolsonaro com relação ao isolamento social que se fez necessário e de sua defesa de um kit anticovid sem nenhum fundamento científico, ficou evidente a extrema dependência do país à importação de Equipamentos de Proteção Individual (IPIs) e mesmo de respiradores, entre outras dificuldades que se apresentaram. No meio de tantos transtornos, é preciso destacar que, se não fosse a existência do SUS, o número de óbitos teria sido certamente maior, pois mais de 70% da população brasileira somente o tem como única opção de acesso aos cuidados com a saúde. Foi o SUS que permitiu que, dada sua capilaridade nacional e sua ação integrada, ações e serviços concentrados no atendimento da Covid-19 fossem rapidamente desenvolvidos e, quando vacinas se tornaram disponíveis e com um ritmo de entrega regular, a imunização avançasse rapidamente, embora de forma desigual entre os estados da federação. Como sabido, ao contrário do que acontece em outros países, é baixo o segmento populacional antivacina no Brasil. Disso decorre que, por exemplo, em novembro de 2021, o país tenha superado o percentual de imunizados dos Estados Unidos, considerando a população vacinada com as duas doses. Isso não deixa de ser irônico, pois o país foi um dos que se destacou por demorar a vacinar e, quando o fez, vacinou inicialmente de forma muita lenta, dado a pouca disponibilidade do imunizante.
O SUS que enfrentou (e ainda enfrenta) a pandemia da Covid-19 não o fez na mesma condição que os sistemas de saúde públicos e universais que lhe são semelhantes. Desde sua criação, na Constituição de 1988, os recursos alocados à saúde pública, de origem federal, estadual e municipal, foram insuficientes para dar conta do desafio de desenvolver um serviço de saúde adequado para o conjunto da população brasileira. Esse quadro de carência foi caracterizado como de subfinanciamento. Nos anos mais recentes, depois de aprovada a Emenda Constitucional 95 (EC 95), que congelou os gastos públicos por vinte anos, o subfinanciamento transformou-se em desfinanciamento, isto é, não se tratava mais de um volume de recursos insuficiente para um sistema público e universal, e sim de retração efetiva dos recursos alocados no sistema. O subfinanciamento e o desfinanciamento são tratados na primeira parte deste capítulo.
A segunda parte deste texto é dedicada especificamente ao financiamento das ações e serviços relacionados à Covid-19. A crise sanitária e a crise econômica dela decorrente exigiu que fosse aprovada emenda constitucional específica para dar suporte legal ao chamado Orçamento de Guerra, dado que o regime fiscal continuava sendo aquele definido pela EC 95. O aporte à saúde pública foi, então, significativo, mas sua gestão registrou problemas, como veremos adiante, além de não ter resultado numa priorização efetiva da saúde no interior do orçamento federal. Ao final do capítulo, a título de considerações finais, resgatamos as principais conclusões registradas ao longo do texto.
1. UMA HISTÓRIA DE INSUFICIÊNCIA DE RECURSOS
A inscrição do SUS na Constituição de 1988 foi resultado das lutas pelo reconhecimento dos direitos sociais no país e está estreitamente vinculada ao processo de redemocratização vivenciado em parte dos anos 1970 e 1980. Na discussão e na elaboração do texto constitucional, a questão social assumiu importância ímpar, pois havia o entendimento de que se fazia necessário resgatar a enorme dívida social herdada do regime militar.
Tendo em vista esse objetivo, os constituintes escreveram na Constituição de 1988 a garantia de direitos básicos e universais de cidadania, estabelecendo o direito à saúde pública, definindo o campo da assistência social, regulamentando o seguro-desemprego e avançando na cobertura da Previdência Social. Essas garantias foram objeto de capítulo específico, o da Seguridade Social, simbolizando o rompimento com o passado. Os princípios que os animaram foram: ampliação da cobertura para segmentos até então desprotegidos; eliminação das diferenças de tratamento entre trabalhadores rurais e urbanos; introdução da gestão descentralizada nas políticas de saúde e assistência; participação dos setores da chamada sociedade civil no processo decisório e no controle da execução das políticas; definição de mecanismos de financiamento mais seguros e estáveis; e garantia de um volume suficiente de recursos para a realização das políticas contempladas pela proteção social1 1 Para ver de que forma foi pensado o financiamento da Seguridade Social pelos constituintes, ver Marques, 2007. , entre outros objetivos. No campo da Previdência Social, esses princípios resultaram na criação de um piso de valor correspondente ao do salário mínimo (que foi adotado pela Assistência Social) e na eliminação das diferenças entre trabalhadores rurais e urbanos quanto aos tipos e valores de benefícios concedidos.
No caso específico da saúde, durante muito tempo, até a reforma sanitária realizada por Portugal em 2005, a criação do SUS foi considerada como a mais bem-sucedida reforma da área conduzida em um país capitalista democrático, se não forem considerados os avanços do período imediato do pós-Segunda Guerra Mundial. Segundo Lima et al. (2005LIMA, N. T. et al (Org.). (2005) Saúde e democracia: história e perspectiva do SUS. Rio de Janeiro: Fiocruz ., p. 15):
Em sua gênese, pode-se identificar a organização do expressivo movimento sanitarista em meados da década de 1970, em contexto profundamente marcado pela resistência social e política ao regime autoritário. A questão da saúde, assim como outras demandas da sociedade brasileira por liberdades civis e bens coletivos que fossem capazes de diminuir as profundas desigualdades de renda e de acesso de serviços públicos, foi um dos eixos da luta social política durante as décadas de 1970 e 1980.
Não faltam documentos e análises que tratam do surgimento e do papel desempenhado pelo movimento sanitarista na luta pela universalização das ações e serviços de saúde. Entre os pesquisadores da área, destaca-se a síntese realizada por Escorel et al. (2005ESCOREL, S.; NASCIMENTO, D. R.; EDLER, F. C. (2005) “As origens da reforma sanitária do SUS”. In: LIMA, N. T. et al (Org.). Saúde e democracia: história e perspectiva do SUS. Rio de Janeiro: Fiocruz, p. 59-81.). Esses autores, concordando com a ideia presente na citação acima, chamam a atenção para o fato de o movimento sanitarista ter se estruturado no mesmo momento em que outros movimentos sociais começaram a se rearticular, ainda durante o período da ditadura militar. Essa simultaneidade na estruturação dos movimentos é reveladora da “hora histórica” em que a sociedade brasileira, depois de anos de recuo, passou a se reorganizar e se fazer ouvir. Como sabido, foi durante o governo do general Ernesto Geisel que sindicatos de diferentes categorias de trabalhadores se fizeram presentes no cenário nacional, promovendo greves e manifestações expressivas.
No campo da saúde, com destaque para iniciativas de médicos, acadêmicos e pesquisadores, se começa a debater vários aspectos da saúde do povo brasileiro e do serviço de saúde público e/ou previdenciário, sendo inúmeros os seminários realizados e os grupos de trabalho criados2 2 É preciso lembrar, ainda, que no plano organizativo foi criada a Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco) em 1979, com o apoio dos Departamentos de Medicina Preventiva dos cursos de medicina. Essa instituição se mantém como referência até hoje na luta pela manutenção e fortalecimento do SUS. . Muitas das ideias e concepções assim desenvolvidas foram propostas nas secretarias de saúde em que integrantes do movimento sanitários estavam presentes. No início dos anos 1980, a questão da descentralização do sistema de saúde já se constituía um tema da agenda (Programa Nacional de Serviços Básicos de Saúde, o PREV-SAÚDE) e, um pouco mais tarde, foi definida a estratégia das Ações Integradas de Saúde, avançando na ideia da gestão compartilhada. Isso é complementado com a criação do Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS), de modo que a descentralização e a universalização do acesso começaram a ganhar progressiva adesão junto a importantes setores políticos, a começar por governadores e depois por alguns prefeitos. Durante o governo de José Sarney, em especial, já com a democratização do país, lideranças do movimento sanitarista assumiram postos-chave nas instituições responsáveis pela definição e condução da política de saúde. É sob essa influência que foi convocada a 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, que definiu as estratégias e a plataforma da Reforma Sanitária que fundamentaram o SUS.
Dessa forma, a criação do SUS foi fruto de um longo processo, indissociável daquele que levou à redemocratização do país. Apesar disso, não se pode afirmar que o direito universal à saúde e seu correspondente, ser dever do Estado garantir esse direito, traduziu um anseio da maioria da população brasileira. De fato, na época da Constituinte nem sequer os principais sindicatos tinham a saúde pública universal como bandeira, incluindo em suas pautas de reivindicação, no momento da campanha salarial, o acesso a planos de saúde. Além disso, embora a Constituição de 1988 defina a saúde privada como complementar à pública, o sistema tributário do país manteve os gastos em saúde junto ao setor privado no cálculo da renda tributável na declaração do imposto sobre a renda tanto da pessoa física como da jurídica, de modo que o Estado continuou a financiar e a incentivar a adesão a planos e seguros de saúde. Isso terá consequências de todos os tipos, enfraquecendo o SUS financeiramente e, principalmente, não permitindo que fosse reconhecido e legitimado pela chamada classe média do país. No campo político, é relevante mencionar que a proposta de retirada das despesas privadas em saúde da base de cálculo do imposto de renda somente foi considerada duas vezes, no programa do Partido dos Trabalhadores na campanha presidencial de 1989 e no do Partido Socialismo e Liberdade, em 2018.
O não entendimento pelo conjunto da população de que o SUS é seu “patrimônio”, levou (leva) a que as lutas por sua manutenção e fortalecimento sejam realizadas praticamente apenas pelos profissionais da saúde, a que se somam pesquisadores e acadêmicos, entre outros segmentos da sociedade mais conscientes de sua importância. Esse fato se soma ao rápido avanço das ideias neoliberais, entre as quais se destaca a busca pelo equilíbrio fiscal, ainda na fase de implantação dos avanços da Constituição de 1988 no campo social. Desde a eleição de Fernando Collor de Mello até os dias atuais, o controle do gasto público foi alçado à prioridade na condição da política macroeconômica, refletindo-se na condução das políticas sociais. A exceção ocorreu no segundo governo de Luiz Inácio Lula da Silva e no primeiro de Dilma Rousseff, o que não significa que os recursos destinados à saúde pública tenham sido adequados aos propósitos de um sistema universal, especialmente quanto aos aportes da esfera federal. Para se ter uma ideia dessa dificuldade, que levou a situação financeira do SUS a ser considerada como de subfinanciamento em 2016, considerando as três esferas de governo, o gasto público com saúde correspondeu a 3,9% do PIB, enquanto a média dos países da OCDE foi de 6,5% do PIB. Ainda mais elucidativo, cabe considerar que, nesse mesmo ano, o setor público foi responsável por 43% dos gastos em saúde no Brasil, perante à 73,6% na média dos países da OCDE (OCDE, 2020OCDE. (2020) Health Statistics. Disponível em: Disponível em: http://stats.oecd.org/Index.aspx?DataSetCode=SHA Acesso em: maio/2021.
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).
Ao longo dos anos de sua existência, vários foram os momentos em que ficou evidente que o SUS não constituía uma prioridade na agenda governamental e também não o era no interior da Seguridade Social. Isso se manifestou já em 1993, quando os 15% da arrecadação da contribuição de empregados e empregadores que deveriam ser destinados ao Ministério da Saúde (MS), posto que previstos no orçamento da União, não foram repassados, obrigando o MS a realizar empréstimo junto ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT).
A situação criada em 1993, ao mostrar quão frágil era a posição do SUS no tocante à questão financeira, levou a que se iniciasse um movimento no sentido de garantir mínimos recursos para ele. Esse movimento envolveu parlamentares de diferentes espectros ideológicos e partidos, organizados no que veio a ser chamado de Frente Parlamentar de Saúde, bem como acadêmicos e pesquisadores da área, servidores do MS e das demais esferas de governo, servidores dos tribunais de contas, entre outros participantes. Como resultado da luta encaminhada por esse amplo movimento, foram definidos: o percentual mínimo que os municípios e os estados e o distrito federal deveriam alocar em saúde do total de sua receita disponível, de 15% e 12%, respectivamente; o aporte mínimo a ser destinado pela União, de valor não inferior ao empenhado do ano anterior, acrescido da variação do PIB. Embora essas definições constem da Emenda Constitucional 29, de 2007, seu conteúdo só foi de fato regulamentado em 2012, com a Lei Complementar 141. Nessa Lei, também foram definidos quais ações e serviços de saúde seriam considerados gasto SUS, o que era objeto de discussão em algumas cidades e estados.
Apesar do avanço que significou essas definições, introduzindo pelo menos um referencial mínimo de recursos, a situação de subfinanciamento do SUS não foi resolvida. Por isso, esse movimento encaminhou em 2013 que, com relação aos recursos oriundos do governo federal, ele fosse definido como o equivalente a 10% da receita corrente bruta, cuja campanha ficou conhecida como Saúde + 10. Ao final, foi aprovada a Emenda Constitucional 66, em 2015, que definiu percentuais escalonados no tempo sobre a receita corrente líquida. Esses percentuais começavam com 13,2% em 2016 e terminavam com 15%, a ser aplicado em 2020.
Em dezembro de 2016, no entanto, foi aprovada a Emenda Constitucional 95 (EC 95). Conhecida como “Teto do Gasto”, congelou as despesas federais por vinte anos, nelas incluindo os gastos sociais e dela excluindo o serviço da dívida pública. Essa medida de controle do gasto público não tem paralelo ao aplicado em outros países, seja pelo tempo de duração de sua aplicação, pelo fato de sujeitar os gastos sociais ao mesmo procedimento, por não incluir ou impor limites ao serviço da dívida e por inscrever o novo regime fiscal na Constituição e não em leis ordinárias. De fato, após o impeachment de Dilma Rousseff, o ambiente político e antipetista reinante no país permitiu que a orientação neoliberal no tocante ao gasto público e às políticas sociais se revelasse inteiramente, o que recebeu amplo apoio do Congresso Nacional e foi plenamente comemorado pela grande mídia escrita e televisiva. Essa, aliás, há muito fazia campanha contra o serviço público, em especial ao de saúde.
Desse modo, desde 2017 o financiamento da saúde pública, em sua parte federal, passou a ser limitado pelo novo regime fiscal introduzido pela EC 95. No caso da saúde, o piso definido para esse ano correspondeu a 15% da receita corrente líquida (RCL), aumentando, em tese, o valor em relação ao ano anterior. A antecipação do percentual que seria aplicado somente em 2020 foi resultado da negociação ocorrida quando da aprovação da EC 95. No entanto, de acordo com SantosSANTOS, Lenir e FUNCIA, Francisco. (2020) Histórico do financiamento do SUS: Evidências jurídico-orçamentárias do desinteresse governamental federal sobre a garantia do direito fundamental à saúde. Domingueira Nº 21 - Maio 2020. Disponível em: Disponível em: http://idisa.org.br/domingueira/domingueira-n-21-maio-2020?lang=pt Acesso: 23/07/2020.
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e Funcia (2020FUNCIA, Francisco, BENEVIDES, Rodrigo, OCKE, Carlos. (2020) Boletim Cofin 2020/12/31 (dados até 31/12/2020) Comissão de Orçamento e Financiamento - CNS. Disponível em: Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/images/comissoes/cofin/boletim/Boletim_2020_1231_Tab1-4_Graf1_ate_20_RB-FF-CO.pdf Acesso em: agosto/2021.
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, s.p.), a execução orçamentária de 2017 do Ministério da Saúde revelou expressiva ampliação de despesas empenhadas sem a efetiva liquidação e pagamento, ou seja, de despesas que não resultaram em ações e serviços, ainda que tenham integrado o seu piso.
A partir de 2018, o piso e o valor efetivamente aplicados nas ações e serviços públicos em saúde diminuíram, tanto em termos reais per capita, como em proporção da RCL. Desse momento em diante, o SUS deixou de ser subfinanciado e passou a sofrer um verdadeiro desfinanciamento, isto é, de uma situação de insuficiência de recursos para atender a seus objetivos começou a enfrentar redução de sua disponibilidade. Segundo SantosSANTOS, Lenir e FUNCIA, Francisco. (2020) Histórico do financiamento do SUS: Evidências jurídico-orçamentárias do desinteresse governamental federal sobre a garantia do direito fundamental à saúde. Domingueira Nº 21 - Maio 2020. Disponível em: Disponível em: http://idisa.org.br/domingueira/domingueira-n-21-maio-2020?lang=pt Acesso: 23/07/2020.
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e Funcia (2020FUNCIA, Francisco, BENEVIDES, Rodrigo, OCKE, Carlos. (2020) Boletim Cofin 2020/12/31 (dados até 31/12/2020) Comissão de Orçamento e Financiamento - CNS. Disponível em: Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/images/comissoes/cofin/boletim/Boletim_2020_1231_Tab1-4_Graf1_ate_20_RB-FF-CO.pdf Acesso em: agosto/2021.
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), a saúde pública perdeu 17,6 bilhões de recursos no acumulado de 2018 e 2019.
Essa era a situação financeira do SUS no momento em que a pandemia de Covid-19 chegou ao país. Rapidamente a priorização da austeridade com vista ao equilíbrio orçamentário estava deteriorando a capacidade do sistema público de saúde de atender, mesmo que de forma limitada, às necessidades em saúde da população brasileira.
2. OS GASTOS PÚBLICOS EM SAÚDE DURANTE A PANDEMIA
No Brasil, tal como ocorreu na maioria dos outros países, independentemente da ideologia de seus governantes e de sua adesão maior ou menor aos princípios neoliberais, houve expressivo aumento do gasto público durante a pandemia para fazer frente à crise sanitária e mitigar o impacto da paralisação das atividades econômicas no nível de emprego e da renda. De acordo com dados do FMI (2021FMI (Fundo Monetário Internacional). (2021) Fiscal Monitor April 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.imf.org/en/Publications/FM/Issues/2021/03/29/fiscal-monitor-april-2021 Acesso em: agosto/2021.
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), globalmente foram alocados mais de US$ 7,8 trilhões somente no ano de 2020, sendo US$ 1,0 trilhão para enfrentamento dos impactos na saúde e US$ 6,8 trilhões para enfrentar os demais impactos socioeconômicos da pandemia.
Esse fato levou a que alguns economistas e outros cientistas sociais começassem a discutir se isso não era um indicativo do fim do neoliberalismo, isto é, se o tempo de austeridade na política fiscal não havia terminado e se todos os governos não haviam se tornado “keynesianos”. Esse questionamento revelava, no entanto, que não haviam compreendido que a pandemia havia introduzido a necessidade imperativa de ser mantida a coesão social, e mesmo de preservar a soberania nacional, num quadro de extrema deterioração das condições sanitárias e da reprodução da vida social. Não por acaso, no Brasil, o orçamento que define recursos extraordinários para combater os impactos da pandemia tomou o nome de Orçamento de Guerra. Tal como em conflitos entre países, a despeito da defesa do equilíbrio orçamentário, foram votados créditos de guerra, aumentando a dívida das nações.
Como é possível ver na Tabela 1, Alemanha, Brasil, Chile, Estados Unidos, França, Japão e Reino Unido fizeram alocações de recursos equivalentes a mais de 7% de seus respectivos PIB no enfrentamento da pandemia. O resultado disso, em termos de finanças públicas, foi a geração de déficits e a elevação do nível da dívida. Tanto em países de renda elevada, tais como Alemanha, França e Estados Unidos, como em países de renda média, como Brasil, Argentina e China, os esforços geraram um aumento de quase ou mais de dez pontos percentuais nas respectivas dívidas públicas brutas.
Marques et al. (2021MARQUES, Rosa Maria. LEITE, Marcel Guedes BERWIG, Solange Emilene. DEPIERE, Marcelo. (2021) Pandemias, Crises e Capitalismo. São Paulo, Expressão Popular.), além de chamarem atenção para esse esforço feito pelos países em termos de percentual do PIB, discutem a ligação indissociável entre neoliberalismo e dominância do capital a juros no capitalismo contemporâneo, isto é, que não é possível se pensar o “fim do neoliberalismo” mantendo a permanência desse capital no centro das relações econômicas e sociais. Um é o outro. O neoliberalismo pode ser identificado como o lado ideológico, no qual valores são defendidos e traduzidos em políticas. Valores como a supremacia do mercado e da atividade privada no tocante à eficiência, à plena utilização dos fatores de produção, entre outros indicadores. Na verdade, a defesa do “livre mercado” é uma necessidade antes de tudo do capital a juros que, por sua liquidez, precisa e anseia ir de porto em porto na busca de maior rentabilidade. Não haveria como defender sua liberdade de ação sem simultaneamente falar na liberdade de todos os tipos de capital e, no plano retórico, desdenhar do Estado.
É por isso que, a despeito dos recursos extraordinários direcionados para o SUS durante os anos de 2020 e 2021, a situação financeira da saúde pública continua problemática e, tal como caracterizamos anteriormente, é de desfinanciamento. Mesmo antes da crise sanitária ter sido minimamente superada, o governo voltou a exercer a austeridade prevista na Emenda Constitucional 95.
Os recursos alocados para o SUS no enfrentamento da pandemia
A prioridade dada à saúde pública em 2020 e 2021 foi absolutamente pontual, isto é, não implicou rompimento com relação à política desenvolvida anteriormente. Prova disso foi que a Emenda Constitucional 95 não foi abalada, sendo que os recursos federais aprovados para o enfrentamento da pandemia constituíram crédito extraordinário que constavam do chamado “Orçamento de Guerra” e, por isso, não foram contabilizados no teto de gastos. Para a aprovação desse orçamento foi necessário aprovar nova emenda constitucional (EC), que tomou o número 106 e tinha como justificativa o reconhecimento de que o país vivenciava uma calamidade pública. Dada a continuidade da pandemia em 2021, novamente foi incorporada outra emenda à Constituição, a EC 109, de 15 de março de 2021.
A opção por esse tipo de instrumento evidenciou que a equipe econômica (e os parlamentares que a aprovaram) tinha como objetivo manter incólume o teto de gastos. A escolha do instrumento legal, por sua vez, permitiu o uso de fontes as mais diversas para viabilizar o financiamento do gasto público em saúde dirigido a fazer frente à pandemia, como veremos adiante.
Ao longo do ano de 2020, R$ 655,85 bilhões foram liberados para o enfrentamento da crise sanitária e para dirimir os efeitos econômicos e sociais provocados pela pandemia de Covid-19. Isso foi feito na forma de crédito extraordinário, mediante 39 medidas provisórias. Somado a outros recursos alocados para este fim (créditos especiais e suplementares, além de previsões orçamentárias já existentes e realocadas), o esforço provisionou R$ 657,13 bilhões (Senado Federal, 2021SENADO FEDERAL. Consultoria de Orçamentos, Fiscalização e Controle do Senado (Conorf). SIGA BRASIL. Disponível em: Disponível em: http://www9.senado.gov.br/QvAJAXZfc/opendoc.htm?document=senado%2Fsigabrasilpainelcidadao.qvw&host=QVS%40www9&anonymous=true&Sheet=shOrcamentoVisaoGeral Acesso em: agosto/2021.
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). Deste total, R$ 524,02 bilhões foram efetivamente liquidados, em ações associadas aos efeitos diretos (sobre a saúde) e indiretos (sobre emprego, renda, condição financeira dos estados e municípios, entre outros) da pandemia, contribuindo para geração de elevado déficit nominal e aumento da dívida pública, o que é apresentado na Tabela 1. Nela podemos ver que a dívida bruta do governo geral, calculada pela metodologia do Fundo Monetário Internacional, aumentou de 87,7% para 98,9% entre 2019 e 2020 (FMI, 2021FMI (Fundo Monetário Internacional). (2021) Fiscal Monitor April 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.imf.org/en/Publications/FM/Issues/2021/03/29/fiscal-monitor-april-2021 Acesso em: agosto/2021.
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; Tesouro Nacional, 2021TESOURO NACIONAL. (2021) Resultado do Tesouro Nacional - maio / 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.gov.br/tesouronacional/pt-br/estatisticas-fiscais-e-planejamento/resultado-do-tesouro-nacional-rtn Acesso em: julho/2021.
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). Essa elevação da dívida reforça o discurso da equipe econômica do governo de Jair Bolsonaro para a necessidade do retorno estrito da austeridade no país.
No que diz respeito especificamente ao SUS, à dotação inicial para o ano de 2020 de R$ 138,96 bilhões foram acrescidos R$ 67,46 bilhões, sendo destes R$ 63,74 bilhões (94,5% do total) dirigidos efetivamente para ações e serviços em saúde (de acordo com as definições da Lei 141/2012) em Ações de Enfrentamento da Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional Decorrente do Coronavírus (Ação 21CO). A análise detalhada desses valores evidencia elementos importantes para serem considerados.
Primeiro, a centralidade dos recursos do governo federal dentro de uma emergência de tal magnitude. Os estados e municípios, afetados pelo efeito cumulativo de anos de baixa arrecadação tributária (considerando a recessão de 2015 e 2016, e o baixo ritmo de crescimento econômico nos três anos subsequentes) e impedidos de emitir títulos de dívida próprios (vedado desde 1998), dependem de recursos do governo federal para financiar as despesas de enfrentamento à pandemia. Conforme podemos ver no Gráfico 1, 76% dos recursos Covid-19 empenhados em 2020 eram federais, 20,67% dos governos estaduais e somente 3,33% municipais. Para se ter uma ideia da importância dessa distribuição, lembremos que o gasto SUS “normal”, isto é, antes da pandemia de Covid-19, era financiado com 42% de recursos federais, 26% estaduais e 32% municipais (dados do Sistema Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde - SIOPS de 2019).
Segundo, a descentralização do SUS, princípio fundamental de sua organização e gestão, associada com a baixa ação do governo federal durante a pandemia, fez com que a maior parte do efetivo dispêndio fosse realizado por estados e municípios, responsáveis pela ampliação da capacidade de atendimento do sistema. Assim, em 2020, os governos estaduais gerenciaram 43,23% e os municípios 56,77% dos recursos disponibilizados pela União, conforme detalhado na Tabela 2.
Terceiro, os atrasos na negociação por vacinas fizeram com que os recursos para este fim demorassem muito para ser provisionados, com a liberação de R$ 20 bilhões apenas em dezembro de 2020, com somente 0,45% deste recurso liquidado ainda em 2020 - o que, somado com os recursos provisionados previamente no âmbito da Covax Facility, gerou um crédito para aquisição de vacinas para o ano de 2021 de R$ 21,59 bilhões. Com isso, o efetivo empenho de recursos para enfrentamento dos impactos da pandemia para o SUS foi de R$ 41,76 bilhões em 2020 (Ministério da Saúde, 2021aMINISTÉRIO DA SAÚDE. (2021a) MS Execução Orçamentária. Disponível em: Disponível em: https://localizasus.saude.gov.br/ Acesso em: 14/02/2022.
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).
Quarto, como o governo decidiu pela manutenção do teto de gastos, sem alteração mais profunda na estrutura de financiamento dos recursos necessários em frente à emergência de saúde, a fonte dos R$ 63,74 bilhões alocados para a saúde em 2020 é profundamente díspar: 39,5% foram derivados de emissão de títulos públicos; 14,7% de recursos livres já previstos para a Seguridade Social; 4,6% de recursos financeiros de livre aplicação, formado principalmente de recursos previstos para emendas parlamentares; 2,7% de recursos pagos pela Petrobras em âmbito da Operação Lava Jato (ADPF nº 58).
Para o ano de 2021, em frente ao elevado aumento da dívida pública apresentada na Tabela 1, o governo restringiu a emissão de títulos públicos enquanto instrumento de financiamento. Ainda que esse tenha sido a fonte central de recursos para diversos países (FMI, 2021FMI (Fundo Monetário Internacional). (2021) Fiscal Monitor April 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.imf.org/en/Publications/FM/Issues/2021/03/29/fiscal-monitor-april-2021 Acesso em: agosto/2021.
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), a manutenção do teto de gastos, associado com a elevada taxa de juros no país, fez com que apenas 5% dos recursos empenhados em frente à pandemia para 2021 fossem derivados de emissão de títulos públicos. Com isso, recursos de concessões e permissões (37,2%) e taxas relacionadas a multas e pagamentos de exploração (19%) se tornaram fontes predominantes de recursos (Ministério da Saúde, 2021aMINISTÉRIO DA SAÚDE. (2021a) MS Execução Orçamentária. Disponível em: Disponível em: https://localizasus.saude.gov.br/ Acesso em: 14/02/2022.
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).
Para no ano de 2021, à dotação inicial do Ministério de R$ 144,87 bilhões foram acrescidos R$ 32,47 bilhões, sendo desses R$ 22,01 bilhões para Ações de Enfrentamento da Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional Decorrente do Coronavírus (Ação 21CO). Por sua vez, 98% (R$ 21,59 bilhões) dos recursos da Ação 21CO foram alocados para a aquisição de vacinas.
O financiamento da compra de vacinas ilustra bem o procedimento adotado. As fontes dos recursos para aquisição de vacinas são muito diversas: taxa de fiscalização da Agência Nacional de Energia Elétrica, a Aneel (R$ 1,33 bi); receita de seguro por Danos Pessoais por Veículos Automotores Terrestres, o DPVAT (R$ 1,93 bi); pagamento por exploração e multas pagas à Agência Nacional de Petróleo, a ANP (R$ 1,94 bi); multas de trânsito do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes, DNIT (R$ 1,34 bi); contribuição para fomento de radiodifusão (R$ 1,99 bi); contribuições de exploração de recursos minerais (R$ 1,86 bi).
Assim, ainda que o ineditismo da situação possa contribuir para explicar a necessidade imperativa de captar todas as fontes de recursos possíveis a fim de financiar os gastos emergenciais do SUS, ela é também elucidativa dos efeitos da manutenção das mesmas regras fiscais. Ou seja, isso fortalece nossa percepção de que os efeitos da pandemia sobre o gasto SUS são passageiros, e nem de longe significam uma efetiva mudança em frente aos preceitos neoliberais do governo brasileiro.
Tal percepção é ainda mais evidente quando se considera que, conforme análise do Conselho Nacional de Saúde, a alocação de recursos extraordinários, embora tenha sido essencial para fortalecer a capacidade de resposta do SUS nos estados e municípios, não modificou estruturalmente as limitações impostas pela Emenda Constitucional 95 e, excetuando os recursos específicos voltados à pandemia, os recursos empenhados foram de R$ 120,70 bilhões, R$ 600 milhões abaixo do piso federal para o ano de 2020 (Funcia, Benevides, Ocke, 2021).
Tal resultado pode estar diretamente associado à postergação de procedimentos eletivos, com interrupção na realização de cirurgias eletivas, assim com a menor procura das pessoas por atendimento médico não associado à Covid-19. O SUS registrou retração de quase 32% nas cirurgias eletivas entre 2019 e 2020 - de 8,8 para pouco mais de 6 milhões de procedimentos (Ministério da Saúde, 2021bMINISTÉRIO DA SAÚDE. (2021b) Recursos extras são disponibilizados para estados realizarem cirurgias eletivas. Abril. Disponível em: Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/recursos-extras-sao-disponibilizados-para-estados-realizarem-cirurgias-eletivas Acesso em: agosto/2021.
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). Evidentemente essa não foi uma realidade exclusiva do Brasil. No primeiro semestre de 2020, houve queda de mais de 40% nas cirurgias dentárias, ortopédicas e oftalmológicas na Inglaterra (Gardner, Fraser, Peytrignet, 2020GARDNER, Tim; FRASER, Caroline; PEYTRIGNET, Sebastien. (2020) Elective care in England Assessing the impact of COVID-19 and where next The Health Foundation, Novembro. Disponível em: Disponível em: https://www.health.org.uk/sites/default/files/202011/Elective%20care%20in%20England.pdf Acesso em: agosto/2021.
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) e, considerando todo o ano de 2020, os tratamentos eletivos tiveram uma queda de 25% (de 16 milhões para 12 milhões de tratamentos eletivos realizados de 2019 para 2020) no país (Gardner, Fraser, 2021GARDNER, Tim; FRASER, Caroline. (2021) Longer waits, missing patients and catching up. How is elective care in England coping with the continuing impact of COVID-19? The Health Foundation, Abril. Disponível em: Disponível em: https://www.health.org.uk/news-and-comment/charts-and-infographics/how-is-elective-care-coping-with-the-continuing-impact-of-covid-19 Acesso em: agosto/2021.
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). Ou seja, ainda precisamos compreender melhor os efeitos da pandemia sobre a atenção básica e os cuidados eletivos.
De qualquer forma, cabe apontar para a preocupação de que, em meio aos legítimos e essenciais esforços de enfrentamento à Covid-19, os elevados recursos dispendidos acabem por camuflar a continuidade do desfinanciamento estrutural do SUS, acrescido de desafios de acúmulo de demandas não atendidas durante a pandemia e que tendem a pressionar ainda mais o sistema público de saúde e eventualmente retomar os questionamentos sobre sua eficiência.
O ano de 2022 pode sacramentar tal situação. Isso já se explicita nos recursos aprovados na LOA para a saúde. O valor de R$ 147,46 bilhões aprovado pelo Congresso Nacional é 1% maior do que o aprovado em 2021 (Congresso Nacional, 2022CONGRESSO NACIONAL. (2022) Projeto de Lei Orçamentária Anual 2022. Disponível em: Disponível em: https://www.congressonacional.leg.br/materias/materias-orcamentarias/ploa-2022 Acesso em: 14/02/2022
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), porém a participação da saúde sobre o total do orçamento federal só vem se retraindo nos últimos dez anos (passando de 4,05% em 2012 para 3,19% do total). Além disso, diferente dos anos de 2020 e 2021, os recursos destinados ao enfrentamento da pandemia de Covid-19 já estão incluídos no orçamento aprovado (cerca de R$ 7,1 bilhões), e não devem ser disponibilizados novos recursos extraordinários (e nem nova aprovação de situação emergencial).
Na versão final da LOA 2022, sancionada em janeiro de 2022, o Ministério da Saúde apresentou um orçamento um pouco maior, de R$ 160,49 bilhões, o que equivale a 3,39% do total do orçamento federal (Brasil, 2022BRASIL. (2022) Lei nº 14.303, de 21 de janeiro de 2022. Disponível em: Disponível em: https://in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-14.303-de-21-de-janeiro-de-2022-*-375541502 Acesso em: 16/02/2022
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). No entanto, cabe apontar que esse recurso já prevê a alocação derivada de emendas parlamentares à saúde e todo recurso referente às políticas de enfrentamento à pandemia. Com isso, na prática, o orçamento do Ministério da Saúde é quase R$ 40 bilhões menor do que aquele existente em 2019 e 2020. Isso significa que o total de recursos efetivos para a saúde será significativamente menor do que o alocado nos últimos anos, agravando ainda mais os desafios para o SUS fazer frente às demandas de uma população adoecida.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O início da pandemia de Covid-19 no país encontrou o sistema público de saúde, única alternativa de acesso de mais de 70% da população brasileira, em franco processo de desfinanciamento. Já era o terceiro ano que os recursos definidos no orçamento da União estavam congelados no nível de 2017, prejudicando a realização das ações e serviços do SUS. Como mencionado anteriormente, a Emenda Constitucional 95 teve efeito sobre a saúde pública a partir de 2018, dado que, para 2017, foi acordada ampliação dos recursos, trazendo, para esse ano, o percentual de 15% sobre a receita corrente líquida prevista para ser aplicada apenas em 2020. De qualquer forma, a aplicação do novo regime fiscal nos anos posteriores fez com que o SUS passasse de subfinanciado a desfinanciado, comprometendo suas atividades.
Em 2020, no entanto, a crise sanitária e econômica exigiu que, apesar da vigência do novo regime fiscal introduzido pela EC 95, fossem alocados recursos extraordinários para ampliar a capacidade hospitalar para dar conta das internações decorrentes da Covid-19 e para reduzir os efeitos econômicos e sociais da paralisação das atividades. Para isso, nova emenda constitucional foi aprovada, tendo como fundamento o reconhecimento da situação de calamidade pública vivenciada no país. Esse dispositivo permitiu a aprovação do chamado Orçamento de Guerra que, entre outros destinos, alocava aporte significativo de recursos extraordinários para a área da saúde. Como vimos na segunda parte do capítulo, nem todos esses recursos resultaram, de fato, em gasto com saúde, seja para custear a ampliação da capacidade do sistema público de saúde, com tudo o que isso envolve, seja para efetuar compra de vacinas.
Quanto à dotação ordinária de 2020 que havia sido aprovada para a saúde, parte não foi sequer empenhada. Entre as hipóteses desse ocorrido, encontra-se a redução das cirurgias eletivas como produto de medidas tomadas para aumentar a disponibilidade de leitos hospitalares para a Covid-19. Também deve ter contribuído para isso a redução da demanda por outros tipos de serviços por parte da população, especialmente no início da pandemia (quando a população tendeu a cumprir um maior isolamento social) e no auge da primeira onda.
Em 2021, novamente o dispositivo legal da emenda constitucional foi utilizado, mas os recursos destinados, tanto para a saúde como para outras áreas, foram bem mais modestos, como vimos. Além disso, chama a atenção a mudança no perfil das fontes de financiamento dos recursos extraordinários, quando se compara o Orçamento de Guerra de 2020 com o de 2021. A preocupação da equipe econômica em não aumentar a dívida pública, que havia se ampliado de 87,7% (2019) para 98,9% (2020) do PIB, certamente definiu que os títulos públicos, que haviam financiado 39,5% dos recursos definidos para 2020, caíssem para 5%. Afinal, sua continuidade como principal fonte do financiamento colocaria sob suspensão, por parte do chamado “mercado”, o cumprimento estrito do novo regime fiscal introduzido pela EC 95.
Se não houvesse outros indicativos da prioridade que o governo de Jair Bolsonaro concede à manutenção do teto de gastos, a natureza das fontes que financiaram os recursos extraordinários definidos para 2021 é suficiente para que não se tenha dúvida de que o regime de austeridade está mantido e não há perspectiva de melhora financeira para a saúde pública no horizonte. Isso, somado ao menor recurso efetivo para a saúde em 2022, explicita que a ampliação do financiamento à saúde em 2020 e 2021 foi fruto de um evento extraordinário, a pandemia, e não uma mudança relevante da prioridade dada à saúde pública.
A continuidade do processo de desfinanciamento do SUS compromete a realização adequada de suas ações e serviços, como é sabido, especialmente no que se refere ao acesso da população ao sistema. Embora o SUS e seus profissionais tenham obtido maior visibilidade e reconhecimento durante a pandemia de Covid-19, isso não foi suficiente para alterar a atitude da população, que considera que o serviço privado na forma de planos de saúde seja por definição superior ao daquele concedido pelo Estado. Passada a crise sanitária, os argumentos que denigrem o SUS voltarão rapidamente, seja nos meios televisivos, seja nos jornais impressos e digitais. A chamada classe média lhe fará coro.
A única alternativa a essa situação é alterar o regime fiscal vigente, garantindo que o SUS e as demais áreas sociais recebam recursos em montante adequado aos fins a que se propõem. Só assim o SUS contará com recursos suficientes para efetivamente fazer frente aos seus dispositivos constitucionais e adquirir apoio mais significativo junto à população brasileira, seja daquela que o utiliza de forma exclusiva, seja da classe média alta, que é fonte importante do respaldo existente à saúde pública em outros países que têm sistemas públicos universais de saúde.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Para ver de que forma foi pensado o financiamento da Seguridade Social pelos constituintes, ver Marques, 2007MARQUES, Rosa Maria. (2007) “Democracia, Saúde Pública e Universalidade: o difícil caminhar.” São Paulo, Saúde e Sociedade, v.16, n.3, p.35-51..
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É preciso lembrar, ainda, que no plano organizativo foi criada a Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco) em 1979, com o apoio dos Departamentos de Medicina Preventiva dos cursos de medicina. Essa instituição se mantém como referência até hoje na luta pela manutenção e fortalecimento do SUS.
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JEL Classification: I18.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
05 Maio 2023 -
Data do Fascículo
Apr-Jun 2023
Histórico
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Recebido
25 Fev 2022 -
Aceito
02 Maio 2022