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A abertura financeira dos países periféricos e os determinantes dos fluxos de capitais

Financial openness in developing countries and capital flows determination

RESUMO

Este artigo discute duas linhas de análise sobre a abertura financeira nos países em desenvolvimento. Economistas convencionais argumentam que a abertura traz várias vantagens para esses países se as reformas liberalizantes tiverem sido feitas na sequência adequada, com a liberalização dos fluxos de capital como a última reforma adotada. A hipótese central assumida é que os fluxos são guiados por fundamentos econômicos. Uma abordagem alternativa, com base teórica pós-keynesiana, enfatiza que, no atual contexto de globalização financeira e predominância de fluxos de carteira, os fluxos de capital não são guiados por fundamentos, mas por perspectivas de curto prazo e por fatores exógenos ao país específico e, portanto, pode ser revertida a qualquer momento, com impactos negativos no país em desenvolvimento.

PALAVRAS-CHAVE:
Liberalização; fluxos de capital; globalização

ABSTRACT

This paper discusses two strains of analysis regarding financial openness in developing countries. Mainstream economists argue that openness brings several advantages to these countries if liberalizing reforms have been made in the proper sequence, with liberalization of capital flows as the last reform adopted. The central hypothesis assumed is that the flows are guided by economic fundamentals. An alternative approach, with a post-Keynesian theoretical basis, emphasizes that in the present context of financial globalization and predominance of portfolio flows, capital flows are not guided by fundamentals but by short term perspectives and by factors that are exogenous to the specific country and, thus, can be reverted at any time, with negative impacts on the developing country.

KEYWORDS:
Liberalization; capital flows; globalization

Com o retorno dos fluxos de capitais externos voluntários para a América Latina a partir do final da década de 80, surgiu um importante debate sobre os fatores determinantes desses fluxos. Duas correntes se contrapõem: a primeira defende que os fatores internos - os programas de ajuste e as reformas neoliberais - foram os principais condicionantes desses fluxos; a segunda sustenta que os fatores externos - a queda do juros e a recessão nos países centrais - foram os determinantes da reinserção dos países latino-americanos no mercado financeiro internacional. O objetivo desse artigo é explicitar as hipóteses teóricas subjacentes às duas visões apontadas acima. Procuraremos enfatizar a relação existente entre as diferentes visões sobre a abertura financeira dos países periféricos e as distintas interpretações sobre os determinantes dos fluxos de capitais para esses países.

A VISÃO DO MAINSTREAM ECONOMICS

Na visão do mainstream economics, a abertura financeira dos países periféricos constitui uma das reformas liberalizantes necessárias para eliminar as distorções introduzidas no funcionamento dos mercados pela estratégia de desenvolvimento adotada no pós-guerra - a industrialização via substituição de importações. A crítica do mainstream a essa estratégia tem como base teórica o modelo de desenvolvimento neoclássico, elaborado por McKinnon, Shaw, Krueger e pelo Staff do Banco Mundial e FMI, dentre outros, a partir do final da década de 60 (Fanelli et al., 1990FANELLI, J. M., FRENKEL, R. & ROZENWURCEL, G. (1990). “Growth and structural reform in Latin America: where we stand”, paper prepared for the conference on “The market and the state in economic development” organizada pela Universidade de São Paulo. e Cepal, 1994CEPAL (1994). Ameríca Latina y el Caribe: políticas para mejorar la insercion em la economia mundial, Naciones Unidas, Comision para América Latina e el Caribe, Santiago.).

Segundo os autores do mainstream, a industrialização via substituição de importações resultou num “modelo de crescimento voltado para dentro” e introduziu uma série de distorções na alocação dos recursos produtivos e financeiros devido ao intervencionismo estatal e ao protecionismo comercial. Esse tipo de estratégia de industrialização foi contraposta à adotada pelos países asiáticos, como Coréia e Taiwan, que resultou em elevadas taxas de crescimento e um alto grau de estabilidade macroeconômica. De acordo com o diagnóstico do mainstream, a melhor performance econômica dos países asiáticos seria explicada, principalmente, pelo tipo de industrialização adotada - orientada para fora (outward oriented) e com reduzida intervenção estatal. Outros, como McKinnon (1973), enfatizaram o papel da liberalização dos mercados financeiros domésticos.1 1 Para uma análise detalhada da teoria da repressão financeira, ver Cintra (1993). Em suma, segundo esse diagnóstico, a instabilidade e a estagnação das economias em desenvolvimento decorriam do “mau funcionamento” dos mercados (Fanelli & Frenkel, 1994FANELLI, J. M. & FRENKEL, R. (1994). “Gradualisme, traitement de choc et periodisation”, Revue Tiers Monde t. XXXV, nº 139, Paris.).

As propostas de política econômica derivavam diretamente desse diagnóstico. Os países latino-americanos deveriam implementar um conjunto de reformas com o objetivo de eliminar as distorções introduzidas pela estratégia de desenvolvimento anterior. Dentre as reformas destacavam-se a eliminação das regulamentações estatais sobre os mercados domésticos, a privatização, a liberalização financeira interna e a abertura externa das economias. As aberturas comercial e financeira das economias constituíam peças centrais para a mudança na estratégia de desenvolvimento - de inward oriented para outward oriented. Nesse sentido, Edwards (1984EDWARDS, S. (1984). “The order of liberalization of the balance of payments - Should the current account be opened up first?”, World Bank Staff Working Papers, nº 710, Washington.: 9) afirma que “a abertura da economia para o resto do mundo é parte integral de qualquer reforma econômica que tem como objetivo aumentar o papel dos mercados nos países em desenvolvimento”.

Segundo esse referencial teórico, a abertura financeira traria vários beneficios para os países em desenvolvimento, dentre os quais destacam-se: o aperfeiçoamento da intermediação global de recursos entre poupadores e investidores2 2 Esse argumento inclui os fluxos relacionados com investimentos produtivos e os fluxos financeiros. Esses se direcionariam para os países em desenvolvimento atraídos pela maior rentabilidade do capital devido à sua escassez. Tanto a taxa de lucro quanto a taxa de juros nesses países seriam mais elevadas como decorrência dessa escassez, já que na visão convencional o juro é um fenômeno real, determinado pela interação entre poupança e investimento. ; a mobilização da poupança externa; a possibilidade de diversificação dos riscos por parte dos investidores domésticos e externos; o aumento da eficiência do sistema financeiro devido ao acirramento da concorrência entre instituições residentes e não-residentes; e a perda de autonomia da política econômica, que limitaria os graus de liberdade para a execução de políticas inadequadas (Mathieson & Rojas-Suarez, 1992MATHIENSON, D.J. & L. ROJAS-SUARES (1992). “Liberalization of the capital account: experiences and issues”, IMF Working Paper nº 46, Washington., Hanson, 1992HANSON, J.A. (1992). “Opening the capital account: a survey of isues and results”, The World Bank Working Paper nº 901, Washington. e Cepal, 1994CEPAL (1994). Ameríca Latina y el Caribe: políticas para mejorar la insercion em la economia mundial, Naciones Unidas, Comision para América Latina e el Caribe, Santiago.).

Apesar do consenso dentro do mainstream em relação aos beneficios da abertura financeira, existiam divergências quanto à sua implementação prática nos anos 70.

Alguns autores, como Mckinnon, eram favoráveis a uma ordem sequencial, na qual a abertura financeira seria a última reforma a ser adotada (Cintra, 1993CINTRA, M.A.M. (1993). Uma visão crítica da teoria da repressão financeira. Dissertação de Mestrado apresentada no Instituto de Economia da UNICAMP, Campinas.). Outros, como Shaw, defendiam a implementação simultânea das reformas, um “tratamento de choque” (Devlin et al., 1995). No entanto, como enfatizam Fanelli & Frenkel (1994FANELLI, J. M. & FRENKEL, R. (1994). “Gradualisme, traitement de choc et periodisation”, Revue Tiers Monde t. XXXV, nº 139, Paris.), os aspectos dinâmicos do processo de liberalização das economias latino-americanas, isto é, a consideração da etapa de transição entre uma economia “reprimida” e “liberalizada” eram em grande parte negligenciados antes da década de 80. Esta negligência foi reconhecida pelos próprios defensores da liberalização econômica. Segundo Edwards (1984EDWARDS, S. (1984). “The order of liberalization of the balance of payments - Should the current account be opened up first?”, World Bank Staff Working Papers, nº 710, Washington.:11), “a ordem da liberalização econômica (...) tornou-se um tópico de análise importante apenas nos últimos anos. Foram basicamente as experiências recentes de liberalização e estabilização dos países do Cone Sul (Argentina, Chile e Uruguai) que estimularam uma maior discussão sobre essa questão “.

Na realidade, a teoria convencional tem pouco a dizer sobre uma sequência ótima de eliminação das distorções nos diversos mercados, como reconhecem seus próprios adeptos. Segundo Michalopoulos (1987, apudFanelli & Frenkel, 1994FANELLI, J. M. & FRENKEL, R. (1994). “Gradualisme, traitement de choc et periodisation”, Revue Tiers Monde t. XXXV, nº 139, Paris.) o período de implementação das reformas envolve a dinâmica do processo de transição, de difícil análise pela teoria neo clássica, já que seu instrumental teórico é basicamente estático-comparativo. Ademais, não seria possível demonstrar teoricamente uma sequência ideal de reformas que garantisse às economias a maximização do bem-estar, uma vez que as proposições da teoria do equilíbrio geral sobre o bem-estar são válidas apenas quando não existem distorções em todos os mercados.

Como é impossível provar teoricamente que uma política de não-intervenção é sustentável se certos mercados não funcionam bem, a questão dos efeitos da liberalização e das recomendações quanto à sequência ótima das reformas apenas poderia ser respondida a partir de uma verificação empírica. Foi preciso que os países do Cone Sul enfrentassem uma profunda crise financeira interna e externa para que o mainstream economics se preocupasse com essas questões, uma vez que era necessário encontrar uma explicação “exógena” à teoria para as consequências perversas dos programas de liberalização daqueles países, sem o questionamento dos princípios teóricos e dos diagnósticos subjacentes. Noutras palavras, era preciso explicar a posteriori os fatos econômicos que a teoria havia sido incapaz de prever (Fanelli & Frenkel, 1994FANELLI, J. M. & FRENKEL, R. (1994). “Gradualisme, traitement de choc et periodisation”, Revue Tiers Monde t. XXXV, nº 139, Paris.).

Concluiu-se que os efeitos deletérios da “primeira onda” de abertura financeira dos países latino-americanos decorreram da existência de distorções ou desequilíbrios nas economias, como déficits fiscais, instabilidade monetária, mercados de trabalho e de bens regulamentados e permanência de mecanismos de indexação salarial. Diante da impossibilidade de corrigir todas as distorções simultaneamente, uma ordem ideal de promoção das reformas foi então recomendada (Akyuz, 1993AKYÜZ, Y. (1993). “Financial liberalization: the key issues, UNCTAD Discussion Papers nº 56, Genebra.:28).

A adaptação dessa doutrina liberalizante ao novo contexto dos anos 80 deu origem ao Consenso de Washington. Além do estabelecimento de uma sequência ideal de implementação das reformas, foi incorporada a política de ajustamento do FMI, já que a literatura sobre a liberalização dos mercados não tratava do processo de estabilização econômica no curto prazo (Fanelli et al., 1990FANELLI, J. M., FRENKEL, R. & ROZENWURCEL, G. (1990). “Growth and structural reform in Latin America: where we stand”, paper prepared for the conference on “The market and the state in economic development” organizada pela Universidade de São Paulo.: 4). Segundo o Consenso, numa primeira etapa, a gestão da política econômica deveria se voltar para a eliminação do processo inflacionário interno, a partir de um programa de estabilização, ancorado no ajuste fiscal e na contenção da demanda agregada. Numa segunda etapa, o pacote de reformas liberalizantes, essencial para a construção de um novo modelo de desenvolvimento e financiamento para as economias, baseado na livre atuação das forças de mercado, deveria ser implementado.

A estabilidade monetária e o equilíbrio fiscal seriam precondições para que a abertura financeira fosse virtuosa e sustentável3 3 Na teoria convencional, o principal determinante da inflação é o financiamento monetário dos déficits públicos. Sendo assim, o equilíbrio fiscal é essencial para a eliminação da inflação e para a sustentabilidade do ambiente de estabilidade de preços. . O principal argumento por detrás dessa sequência, associado à visão monetarista implícita nas políticas do FMI, sustenta que a liberalização dos fluxos de capitais num contexto de inflação alta contribuiria para o agravamento da instabilidade, uma vez que a capacidade do governo de coletar o imposto inflacionário seria reduzida, dada a alternativa de posse de ativos externos como reserva de valor. Isso diminuiria a demanda por moeda e, assim, a “base” de incidência do imposto. Para coletar o mesmo montante de imposto, seria necessário uma taxa de inflação mais elevada (Hanson, 1992HANSON, J.A. (1992). “Opening the capital account: a survey of isues and results”, The World Bank Working Paper nº 901, Washington.).

A manutenção dos controles sobre os fluxos de capitais durante o processo de estabilização também seria necessária para evitar pressões sobre as taxas de câmbio e de juros e, assim, impedir que o influxo tornasse insustentável as prefixações anunciadas (Pellegrini, 1995). Por último, a estabilidade monetária também seria importante no sentido de desestimular operações de arbitragem, na medida em que fornece um horizonte quanto à evolução do custo do capital (Mckinnon, 1988MCKINNON, R.I. (1991). The order of economic liberalization. Baltimore: The Johns Hopkins University Press.).

Em relação às reformas liberalizantes, tanto a liberalização financeira interna quanto a abertura comercial deveriam preceder a abertura financeira. A existência de um sistema financeiro não-reprimido, com taxas de juros e alocação do crédito liberalizados, reduzidas reservas compulsórias e ausência de barreiras à entrada seriam essenciais para garantir a intermediação eficiente dos fluxos de recursos externos (Cintra, 1993CINTRA, M.A.M. (1993). Uma visão crítica da teoria da repressão financeira. Dissertação de Mestrado apresentada no Instituto de Economia da UNICAMP, Campinas.). Ainda no âmbito da liberalização financeira interna, dois aspectos seriam essenciais: o aperfeiçoamento dos mecanismos de supervisão prudencial e regulamentação do sistema financeiro e a definição de forma clara da proteção governamental ao sistema financeiro, para evitar a assunção de riscos excessivos por parte dos bancos (moral hazard).

A sequência entre a abertura comercial e financeira foi uma das questões mais debatidas e analisadas pela “literatura da sequência das reformas”. A visão que se tornou hegemônica ao longo da década de 80 sustenta que a conta corrente deveria ser liberalizada antes da conta de capital (Edwards, 1984EDWARDS, S. (1984). “The order of liberalization of the balance of payments - Should the current account be opened up first?”, World Bank Staff Working Papers, nº 710, Washington.). Caso contrário, os efeitos desejados da liberalização comercial - a reconversão do setor produtivo em direção ao setor de bens comercializáveis - seriam anulados pela valorização real da taxa de câmbio exercida pela entrada de capitais, a qual acabaria estimulando a produção e o investimento nos setores não-comercializáveis. Dessa forma, a abertura financeira deveria ocorrer após a liberalização comercial para evitar os efeitos negativos sobre o nível da taxa de câmbio real e, portanto, sobre a estabilidade macroeconômica e a alocação dos recursos (Edwards, 1994EDWARDS, S. (1984). “The order of liberalization of the balance of payments - Should the current account be opened up first?”, World Bank Staff Working Papers, nº 710, Washington.: 36).

Essa corrente também defende o gradualismo na abertura financeira (Cepal, 1994CEPAL (1994). Ameríca Latina y el Caribe: políticas para mejorar la insercion em la economia mundial, Naciones Unidas, Comision para América Latina e el Caribe, Santiago.). Seria aconselhável liberalizar inicialmente os fluxos associados ao investimento estrangeiro direto, menos voláteis pois seriam guiados por expectativas quanto à evolução da economia no médio e longo prazo. Os investimentos de portfólio e os fluxos de capitais de curto prazo deveriam ser liberalizados apenas na etapa final da abertura financeira (McKinnon, 1988MCKINNON, R.I. (1991). The order of economic liberalization. Baltimore: The Johns Hopkins University Press.).

Além disso, a credibilidade das políticas tornou-se um aspecto essencial para o sucesso dos programas de liberalização. Como ressaltam Corbo & Mello (1987CORBO, V & J. MELO (1987). “Lessons from the Southern Cone policy reforms”, The World Bank Observer nº 2, Washington.: 127- 128), “a liberalização não é um fim em si mesma, mas um meio de atingir um uso mais eficiente dos recursos. Como a alocação dos recursos depende dos preços esperados, a credibilidade das reformas é muito importante. (...) Como mostra a teoria das expectativas racionais, a coerência e a credibilidade são fundamentais para a obtenção dos efeitos desejados das reformas e, assim, para o sucesso ou fracasso do programa”. Em outras palavras, além da adoção da sequência e velocidade recomendadas, a credibilidade dos agentes no programa de ajuste e reformas seria fundamental.

Os determinantes dos fluxos de capitais na década de 90

A concepção exposta acima sobre a abertura financeira nos países periféricos está vinculada a uma determinada hipótese quanto à lógica de funcionamento dos mercados financeiros internacionais (Akyuz, 1992AKYÜZ, Y. (1992). On financial openness in developing countries. Genebra: UNCTAD (mimeo).). Essa hipótese implica um determinado diagnóstico sobre o comportamento dos fluxos internacionais de capitais e, assim, sobre os determinantes dos fluxos direcionados para as economias periféricas. Existe uma associação direta entre essas duas questões - interpretações sobre os efeitos da abertura financeira e sobre os determinantes dos fluxos para essas economias - geralmente não explicitada na literatura que as aborda.

A análise convencional parte da hipótese de estabilidade e eficiência dos mercados financeiros. As finanças não apresentariam uma dinâmica própria, independente do comportamento do setor real - da evolução do investimento, do consumo e da produção. A sua versão mais recente, a teoria novo-clássica, admite que podem surgir movimentos relativamente autônomos nos mercados financeiros, mas associados a choques aleatórios exógenos, não antecipados pelos agentes econômicos. À medida que estes ajustam suas expectativas, que são racionais, ao novo contexto, a economia retoma automaticamente ao equilíbrio. A dinâmica financeira continua sendo subordinada à dinâmica econômica, ou, em outras palavras, constitui um mero reflexo dessa última (Laplane & Santos Filho, 1995LAPLANE, M. & SANTOS FILHO, O.C. (1995). “Especulação e instabilidade na globalização financeira”, Economia e Sociedade nº 5. Campinas: Instituto de Economia/Unicamp.).

De acordo com essa análise, os mercados financeiros internacionais seriam eficientes no sentido de avaliar de forma correta os preços dos ativos no médio e longo prazo - que correspondem ao valor atualizado dos rendimentos que esses ativos poderiam gerar no futuro - e a única função desses mercados seria intermediar a transferência de recursos entre investidores e poupadores em nível nacional e internacional (CEPAL, 1994CEPAL (1994). Ameríca Latina y el Caribe: políticas para mejorar la insercion em la economia mundial, Naciones Unidas, Comision para América Latina e el Caribe, Santiago.).

No mercado financeiro internacional, a questão essencial é que esses mercados avaliariam de forma apropriada os riscos e retornos subjacentes aos investimentos nos diversos países, os quais refletiriam os fundamentos, que são os determinantes econômicos básicos da situação do devedor no longo prazo (Pellegrini, 1995). As informações relevantes sobre a situação econômica dos países estariam sempre disponíveis para todos os investidores e as decisões quanto à alocação dos recursos seriam guiadas por esses fundamentos, ou seja, pelas oportunidades de ganhos no longo prazo. A abertura financeira dos países periféricos permitiria que essa transferência de recursos se efetivasse, aumentando a eficiência na alocação global dos recursos produtivos e financeiros e possibilitando a absorção de poupança externa por esses países, nos quais a rentabilidade do capital seria mais elevada devido à sua escassez.

Essa visão de que os fluxos seriam guiados pelos fundamentos foi resgatada pelos organismos multilaterais e pelo mainstream economics para explicar o retorno dos fluxos de capitais voluntários para a América Latina no início da década de 90. Segundo El Erian (1992EL-ERIAN. M.A. (1992). “Restoration of access to voluntary capital market financing“, IMF Staff Papers, mar., Washington.: 184), um dos principais defensores dessa visão, “a implementação das políticas de ajustamento foi o fator crucial para a restauração do acesso dos países latino-americanos ao mercado de capitais internacional voluntário. De fato, políticas macroeconômicas e reformas estruturais apropriadas reduziram as percepções de risco-país dos investidores internacionais”.

Esse autor ressalta, entretanto, que a adoção de políticas financeiras e econômicas apropriadas é uma condição necessária para o market re-entry, mas não suficiente. A existência de um elevado estoque de dívida externa poderia inviabilizar a implementação e/ou sustentabilidade das políticas de ajustamento e reformas devido à manutenção de uma elevada aversão ao risco pelo setor privado. Diante disso, tornar-se­ia necessário que os países realizassem uma redução do estoque e do serviço da dívida, através de operações de conversão e/ou pacotes de reestruturação nos moldes do Plano Brady.

Na mesma linha de argumentação de El Erian, Nunnenkamp (1993, apud Reisen, 1993) e Blejer (1992, apud Steiner, 1992STEINER, R. (1994). “Capital inflows in Latin America: cause, consequences and policy options”, Encontro de Mangaratiba, Rio de Janeiro, 16-19 de março de 1994.) afirmam que a possibilidade de reversão estaria associada principalmente às políticas do país receptor. Assim, não é provável que os fluxos para a América Latina se revertam, desde que as reformas econômicas sejam mantidas.

Segundo esses autores, os programas de ajuste e reformas estruturais nos moldes recomendados pelo Consenso de Washington e a renegociação da dívida externa no âmbito do Plano Brady teriam melhorado os fundamentos econômicos dos países latino-americanos e, assim, reduzido o respectivo risco-país. A revisão das expectativas dos investidores quanto às perspectivas de investimento na região impactou positivamente a demanda por títulos latino-americanos, promovendo uma regionalização do risco inversa àquela de 1982.

A relação de causalidade entre reformas liberalizantes e melhora dos fundamentos decorre diretamente do diagnóstico dos organismos multilaterais sobre a crise das economias latino-americanas na década de 80. Como vimos na seção anterior, de acordo com esse diagnóstico o modelo de desenvolvimento adotado no pós-guerra introduzia distorções nas taxas de juros e de câmbio, nos salários e nos preços dos bens em geral devido ao excesso de intervenção estatal e ao pequeno grau de abertura das economias. Ou seja, os preços não refletiam a disponibilidade relativa dos fatores e implicavam um direcionamento dos recursos para os setores com baixa produtividade e eficiência. As reformas liberalizantes, ao eliminarem as distorções sobre os diversos mercados e, com isso, sobre os preços, resultariam numa ampliação da eficiência dos investimentos, pois tornariam o mercado o sinalizador da alocação dos recursos produtivos e financeiros. O principal objetivo da liberalização seria exatamente ajustar os preços de acordo com os custos econômicos (Corbo e Mello, 1987CORBO, V & J. MELO (1987). “Lessons from the Southern Cone policy reforms”, The World Bank Observer nº 2, Washington.).

A liberalização comercial, através da redução das barreiras tarifárias e não-tarifárias às importações, seria um elemento central da nova estratégia de desenvolvimento, pois os investimentos passariam a se orientar para os setores nos quais os países teriam vantagens comparativas. O argumento é o mesmo utilizado pelas teorias clássicas do comércio internacional: as reservas de mercado causariam uma alocação inadequada dos recursos - capital e trabalho -, que se direcionariam para setores relativamente ineficientes, em vez de concentrarem-se naqueles em que atuam com relativa eficiência (Krugman, 1995KRUGMAN, P. (1995). “Tulipas holandesas e mercados emergentes”, Revista de Política Externa. São Paulo: Paz e Terra.).

Em suma, as condições internas dos países seriam fundamentais para explicar o retomo dos fluxos de capitais voluntários. Sua reversão só ocorreria devido a mudanças nessas condições, mais especificamente, à adoção de políticas imprudentes e/ou in­ corretas, ou seja, não recomendadas por “Washington”.4 4 ‘Esse mesmo argumento - de que as condições internas dos países da região são os principais determinantes dos fluxos - foi utilizado por autores do mainstream para explicar a redução dos empréstimos externos e dos investimentos estrangeiros diretos e de portfólio para a América Latina no início da década de 80 e, principalmente, após a crise da dívida; ver Ballassa et al. (1986). (Frenkel et al., 1990: 14-15).

UMA VISÃO CRÍTICA DE INSPIRAÇÃO KEYNESIANA

Como vimos acima, na visão ortodoxa os fluxos de capitais são guiados pelos fundamentos e pela busca de ganhos no médio e longo prazo. Dadas as hipóteses de eficiência dos mercados financeiros e da maior rentabilidade do capital nos países menos desenvolvidos, mudanças adversas na direção dos movimentos internacionais de capitais para os países periféricos - devido a alterações nas condições econômicas e financeiras nos países centrais - e, assim, a geração de instabilidade macroeconômica independentemente da sequência de implementação das reformas seriam descartadas a priori.

Como ressalta Akyüz (1992AKYÜZ, Y. (1992). On financial openness in developing countries. Genebra: UNCTAD (mimeo).), o debate sobre a sequência ideal das reformas liberalizantes forneceu insights sobre a macroeconomia da liberalização financeira externa. Ou seja, ocorreram avanços dentro do mainstream na discussão sobre a abertura financeira nos países periféricos, mas os fundamentos teóricos subjacentes continuam os mesmos. A hipótese central a ser questionada é exatamente a de eficiência do mercado financeiro internacional, uma vez que a visão de que os fluxos recentes de capitais são determinados pelos fundamentos parte de uma concepção equivocada sobre a lógica de funcionamento desse mercado. Como coloca Plihon (1996PLIHON, D. (1996). “Desequilibres mondiaux et instabilité financiere: les responsabilité des politiques libérales”. F. Chesnais (coord.), La mondialisalion financiere: Genese. coût et enjeux, op. cit.), “os esquemas habituais da análise econômica (...) são baseados em três postulados: a homogeneidade dos comportamentos, o equilíbrio geral e as expectativas racionais. O funcionamento efetivo dos mercados financeiros desmente amplamente essas hipóteses que fundamentam as abordagens teóricas mais usuais, em particular a escola novo-clássica e a teoria da eficiência dos mercados”.

Assim, é fundamental caracterizar, mesmo que de forma sintética, a dinâmica atual do sistema financeiro internacional para compreender e analisar as consequências do movimento recente de abertura financeira dos países latino-americanos. A visão de que a abertura financeira é virtuosa, desde que as pré-condições internas tenham sido cumpridas, se fragiliza se descartamos a hipótese de mercados financeiros eficientes.

Na década de 80, essa dinâmica sofreu transformações significativas, que podem ser sintetizadas nos termos genéricos de globalização financeira, desregulamentação e liberalização monetárias e financeiras, securitização e institucionalização das poupanças.5 5 Para uma análise detalhada das causas, características e implicações das transformações financeiras recentes, ver Baer (1990), Ferreira e Freitas (1990), Belluzzo (1995), Chesnais (1996), Cintra (1996), Laplane e Santos Filho (1995) e Plihon (1995). Essas transformações foram em parte um desdobramento das tendências já presentes na década de 70, a partir do colapso do sistema de Bretton Woods.

Chesnais (1996CHESNAIS, F. (1994). A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996.) distingue três etapas do processo de globalização financeira.6 6 É importante ressaltar que o processo de globalização financeira não é ignorado pelo mainstream economics. Contudo, ao contrário da visão exposta a seguir, as finanças são intrinsecamente estáveis para essa escola de pensamento. Dada a hipótese de eficiência dos mercados, os desequilíbrios e instabilidades no mercado financeiro internacional decorreriam de erros de política econômica e/ou corresponderiam a uma transição de aprendizado (Laplane & Santos Filho, 1995). O processo de globalização é visto como positivo pois resultaria num papel cada vez mais importante dos mercados na alocação dos recursos em âmbito internacional. A primeira etapa (1960-79) caracterizou-se por uma internacionalização financeira indireta e limitada. O surgimento e a expansão do euromercado e dos centros financeiros off-shore, como resposta às restrições aos fluxos de capitais americanos em meados da década de 60, possibilitaram a constituição de um mercado financeiro internacional à margem da regulação das autoridades monetárias nacionais.7 7 Sobre o surgimento e desenvolvimento do euromercado, ver Ferreira e Freitas (1990). Nesse período, esse mercado coexistiu com sistemas monetários e financeiros nacionais fechados e regulamentados.

O colapso do sistema de Bretton Woods e a adoção do regime de câmbio flexível em 1973 foi o ponto de partida de uma instabilidade cambial e monetária crônica. As dificuldades crescentes de valorização do capital investido na produção em consequência da crise do padrão de acumulação vigente no pós-guerra resultaram no surgimento de uma elevada massa de capital - essencialmente lucros não-distribuídos e não-reinvestidos pelas empresas americanas - procurando valorização na esfera financeira, que passou a alimentar o mercado de euromoedas. Esse contexto, somado à reciclagem dos petrodólares e à estagflação nos países centrais, implicou um crescimento espetacular do euromercado e dos fluxos financeiros internacionais, principalmente daqueles direcionados aos países periféricos na forma de empréstimos sindicalizados.

A segunda etapa (1980-85) iniciou-se no final de 1979, com a implementação pelos EUA das políticas de desregulamentação e liberalização financeiras, adotadas nos anos seguintes pelos demais países centrais.8 8 Os países anglo-saxões - Inglaterra, EUA e Canadá - foram os precursores dos processos de liberalização, desregulamentação e abertura financeira. Na França, esse processo iniciou-se em 1984; no Japão, em meados da década de 80; e na Alemanha, apenas na segunda metade dessa década. A persistência da estagflação e a inoperância das políticas keynesianas resultou numa mudança radical das políticas vigentes até então. O monetarismo e o liberalismo tornaram-se os novos pilares dessas políticas, cujo principal objetivo passou a ser a estabilidade dos preços. Pode-se afirmar que as políticas nacionais sancionaram e impulsionaram o processo de globalização (Chesnais, 1996CHESNAIS, F. (1996). “Introduction générale”, la mondialisation financiere: Genese, coút et enjeux, François Chesnais (coord.). Paris: Syros. e Plihon, 1996PLIHON, D. (1996). “Desequilibres mondiaux et instabilité financiere: les responsabilité des politiques libérales”. F. Chesnais (coord.), La mondialisalion financiere: Genese. coût et enjeux, op. cit.).

As políticas monetárias restritivas atingiram o objetivo de reduzir a inflação, mas causaram novos desequilíbrios. A queda dos índices de preços não foi acompanhada por uma redução pari passu das taxas de juros nominais, tendo como consequência um aumento das taxas reais, como indica a tabela abaixo (Guttmann, 1996GUTTMANN, R. (1996). “Les mutations du capital financier”. F. Chesnais (coord.), La mondialisation financiere: Genese. coût et enjeux, op. cit. e Plihon, 1996PLIHON, D. (1996). “Desequilibres mondiaux et instabilité financiere: les responsabilité des politiques libérales”. F. Chesnais (coord.), La mondialisalion financiere: Genese. coût et enjeux, op. cit.). Inicialmente, esse aumento decorreu das políticas monetárias restritivas e da liberalização das taxas de juros. Todavia, a manutenção dos juros reais num nível elevado ao longo da década de 80 é consequência do novo modo de regulação financeira internacional, imposto pela finança liberalizada (Plihon, 1996PLIHON, D. (1996). “Desequilibres mondiaux et instabilité financiere: les responsabilité des politiques libérales”. F. Chesnais (coord.), La mondialisalion financiere: Genese. coût et enjeux, op. cit.).

Tabela 1
Taxas de Crescimento. de Inflação e de Juros Reais dos Países do G7 (em %)

A terceira fase, iniciada em 1986, caracteriza-se pela generalização da arbitragem e da abertura e desregulamentação das bolsas de valores dos países centrais, pela ocorrência de vários choques financeiros e bolhas especulativas - nas bolsas de valores, nos mercados imobiliários e de securities - e, finalmente, pela incorporação dos mercados emergentes.

Assim, ao longo da década de 80 consolidou-se o sistema contemporâneo de finanças liberalizadas e securitizadas e a globalização financeira - que envolve tanto a eliminação das barreiras internas entre os diferentes segmentos dos mercados financeiros, quanto a interpenetração dos mercados monetários e financeiros nacionais e sua integração em mercados globalizados ou a subordinação a estes9 9 Vale lembrar que o avanço tecnológico na área da informática e telecomunicações contribuiu para o desenvolvimento dessa nova dinâmica, ao baratear o custo de transmissão, aumentar a velocidade do processamento dos dados e a facilidade de acesso a diferentes mercados. (Chesnais, 1996FARNETTI, R. (1996). “Les rôle des fonds de pension et d’ investissement collectifs anglo-saxons dans l’essor de la finance globalisée”. F. Chesnais (coord.), La mondialisation financiere: Genese. coût et enjeux, op. cit.) -, no qual a autonomia dos mercados frente aos Estados Nacionais é significativa. Existe uma ligação direta entre o surgimento das finanças securitizadas e globalizadas e o aumento da dívida pública mobiliária. Os mercados de títulos públicos tornaram-se o principal compartimento do mercado financeiro internacional, depois das transações com moedas. As autoridades econômicas liberalizaram e modernizaram os sistemas financeiros domésticos para satisfazer suas próprias necessidades de financiamento. O precursor desse processo foram os EUA. A política do dólar forte e a necessidade de financiamento dos déficits gêmeos - comercial e fiscal - causaram uma modificação radical da direção dos fluxos internacionais de capitais (lógica norte-norte) no início da década de 80. Como ressalta Belluzzo (l995BELLUZZO, L.G. de M. (1995). “O declínio de Bretton Woods e a emergência dos mercados globalizados”, Economia e Sociedade nº 4. Campinas: Instituto de Economia/Unicamp.:16),

“(...) a evolução da crise do sistema de crédito internacionalizado e as respostas dos EUA ao enfraquecimento do papel do dólar criaram as condições para o surgimento de novas formas de intermediação financeira e para o desenvolvimento de uma segunda etapa da internacionalização - a globalização. Esse processo de transformações na esfera financeira pode ser entendido como a generalização e supremacia dos mercados de capitais em substituição à dominância anterior do sistema de crédito comandado pelos bancos”.

O aumento da importância do mercado de capitais atendeu aos interesses e necessidades de três conjuntos de atores: governos, grandes empresas e investidores institucionais (Plihon, 1996PLIHON, D. (1996). “Desequilibres mondiaux et instabilité financiere: les responsabilité des politiques libérales”. F. Chesnais (coord.), La mondialisalion financiere: Genese. coût et enjeux, op. cit.). Do lado da demanda, o aumento das taxas de juros reais e a redução das taxas de inflação diminuíram o prêmio de risco associado às aplicações em títuos, que envolvem um elevado risco de mercado, ao mesmo tempo em que aumentaram as desconfianças em relação à qualidade dos ativos bancários. Do lado da oferta, o financiamento através da emissão de securities tornou-se uma alternativa mais barata e flexível vis-à-vis os empréstimos bancários. Além da redução do funding dos bancos devido à crescente concentração da liquidez nos portfólios dos investidores institucionais, a crise da dívida externa dos países em desenvolvimento os tornou mais cautelosos na concessão de empréstimos (Ferreira & Freitas, 1990FERREIRA, C.K.L. & FREITAS, M.C.P. (1990). O mercado internacional de crédito e as inovações financeiras nos anos 70 e 80, Estudos de Economia do Setor Público, 1. São Paulo: FUNDAP/IESP.).

Vale mencionar que os bancos comerciais tiveram um papel importante na expansão do mercado de capitais. O processo de securitização iniciou-se com a transformação dos empréstimos bancários (ativos não-negociáveis) em títulos negociáveis na primeira metade da década de 80 em função dos problemas de liquidez e solvência dos bancos americanos associados à crise da dívida externa e às próprias transformações financeiras em curso. Além disso, essas instituições aumentaram suas aplicações em títulos e passaram a securitizar uma parte significativa de seus empréstimos com o objetivo de dividir o risco com o devedor e aumentar o giro do ativo bancário (Boissieu, 1996BOISSIEU, C. (1994). “Le destin de la bulle financiére”, Futuribles, nov. Paris.). Os bancos também atuam de forma indireta através da concessão de empréstimos aos investidores e intermediários financeiros que atuam no mercado de capitais, ou seja, funcionam como market makers, garantindo a liquidez dos mercados de ativos, pois são os únicos que têm acesso ao meio de pagamento em última instância, a moeda emitida pelo Banco Central (Guttmann, 1996GUTTMANN, R. (1996). “Les mutations du capital financier”. F. Chesnais (coord.), La mondialisation financiere: Genese. coût et enjeux, op. cit. e Aglietta, 1995AGLIETTA, M. (1995). Macroéconomie financiére. Paris: Édition La Découverte.).10 10 Nas economias capitalistas, nas quais a moeda de crédito emitida pelos bancos é o principal meio de pagamento, existe uma hierarquia entre os diferentes meios de pagamento e a moeda emitida pelos bancos centrais é a forma superior de liquidez, pois apenas a autoridade monetária pode efetuar pagamentos com sua própria divida (Aglietta, 1995). Assim, ao longo da década de 80, ocorreu uma substituição progressiva do mercado de crédito bancário pelo mercado de capitais ou de “finanças diretas” a âmbito internacional.11 11 Vale lembrar que o avanço tecnológico na área da informática e telecomunicações contribuiu para o desenvolvimento dessa nova dinâmica, ao baratear o custo de transmissão, aumentar a velocidade do processamento dos dados e a facilidade de acesso a diferentes mercados. Esse mercado tem uma dinâmica específica e diferenciada do sistema de crédito que predominava até a década de 70. Enquanto nesse sistema o relevante era a manutenção dos fluxos financeiros pelos bancos comerciais e pelo Banco Central, nos mercados de capitais o fundamental é a avaliação permanente dos estoques pelos agentes. Sendo assim, a resolução das tensões de iliquidez do sistema e inadimplência dos devedores ocorre através da queda dos preços dos ativos, o que torna as novas formas de manutenção da riqueza intrinsecamente deflacionárias, ao contrário das tendências inflacionárias do sistema de crédito (Belluzzo, 1995BELLUZZO, L.G. de M. (1995). “O declínio de Bretton Woods e a emergência dos mercados globalizados”, Economia e Sociedade nº 4. Campinas: Instituto de Economia/Unicamp.). Ao mesmo tempo, as políticas econômicas também tornaram-se deflacionárias, uma vez que os credores exercem uma pressão constante sobre as autoridades monetárias para a manutenção do contexto de estabilidade de preços e taxas de juros reais positivas, necessário para compensar a crescente instabilidade dos mercados e garantir a remuneração da riqueza financeira (Guttmann, 1996GUTTMANN, R. (1996). “Les mutations du capital financier”. F. Chesnais (coord.), La mondialisation financiere: Genese. coût et enjeux, op. cit.).

A crescente importância do financiamento através da venda de títulos negociáveis (securities) somada à volatilidade dos mercados, devido às mudanças frequentes nas expectativas quanto à evolução dos preços dos ativos denominados em moedas distintas, deram impulso às inovações financeiras, ou seja, ao surgimento de novos produtos financeiros, dentre os quais destacam-se os instrumentos derivativos (Belluzzo & Coutinho, 1996BELLUZZO, L.G. de M. & L. COUTINHO (1996). “Desenvolvimento e estabilização sob finanças globalizadas”, Economia e Sociedade nº 7. Campinas: Instituto de Economia/Unicamp.). Uma parcela importante das transformações financeiras desde a década de 80 está associada à flexibilização das transações financeiras em termos de prazo, taxas de remuneração e moedas de emissão para viabilizar as operações num ambiente macroeconômico de maior instabilidade (Cintra, 1996CINTRA, M.A.M. (1996). “A montagem de um novo regime monetário-financeiro nos Estados Unidos (1982-1994)”, Relatório de pesquisa. São Paulo: FUNDAP-IESP.).

Os derivativos permitem tanto o gerenciamento da instabilidade das taxas de juros e de câmbio - através de contratos futuros, a termo ou de opções -, quanto a passagem de um segmento do mercado doméstico para outro - através, por exemplo, dos warrants, que permitem ao investidor converter um título de renda variável em renda fixa - e também entre os diferentes mercados domésticos, ou seja, a passagem de uma moeda para outra - um investidor pode fazer um swap entre um fluxo futuro de receita em marcos por um fluxo de receitas em dólares. Além desses instrumentos, conhecidos como derivativos de primeira geração, têm surgido produtos cada vez mais complexos - os derivativos de segunda geração - dentre os quais destacam-se os produtos estruturados, elaborados sob medida a partir da combinação de um título - ações ou securities - com um conjunto de derivativos - futuros, opções, swaps (Bourguinat, 1995).

Nesse contexto de crescente internacionalização e integração das finanças e predominância das operações com títulos negociáveis, os choques são facilmente transmissíveis através das fronteiras e de um mercado a outro, resultando em fortes flutuações nos preços dos ativos e das taxas de câmbio (Griffith-Jones, 1996GRIFFITH-JONES, S. (1996). “La crisis del peso mexicano”, Revista de la Cepal 60, Santiago. e Aglietta, 1995AGLIETTA, M. (1995). Macroéconomie financiére. Paris: Édition La Découverte.). Além disso, os derivativos expandiram o espaço para a especulação nos mercados de câmbio e monetário, devido aos menores custos de transação e aos mecanismos de hedge. Esses instrumentos fornecem proteção contra variações das taxas de juros e de câmbio para o investidor individual, mas, ao mesmo tempo, facilitam o processo especulativo e introduzem novos riscos em termos agregados.

Assim, as transformações financeiras da década de 80 e a supremacia do mercado de capitais ampliaram a instabilidade financeira internacional e o risco sistêmico global (Aglietta, 1995AGLIETTA, M. (1995). Macroéconomie financiére. Paris: Édition La Découverte.). Esse crescimento surpreendente das finanças internacionais corresponde a uma mudança estrutural: a própria natureza do sistema passou a ser dominada pela especulação (Bourguinat, 1995). A lógica empresarial tornou-se subordinada e a especulativa dominante, sendo que especulação é a atividade”... que consiste em prever a psicologia do mercado, e o termo empreendimento, a que consiste em prever a renda provável dos bens durante toda a sua existência” (Keynes, 1936KEYNES, J.M. (1936). Teoria geral do emprego, do juro e da moeda. São Paulo: Nova Cultural, 1985, 2a. edição.:115). O crescimento surpreendente do volume diário das transações cambiais nos últimos anos constitui um indicador desse fenômeno. Esse volume se expandiu a uma taxa de 30% a.a. na década de 80, atingindo US$ l trilhão em 1992, sem que se pudesse associar tal expansão a fluxos comerciais e a investimentos produtivos. Estima-se que cerca de 15% das transações cambiais referem-se a comércio de bens e serviços e investimentos em ativos de longo prazo, e 85% correspondem a operações de especulação, cobertura de risco e investimento em carteira de curto prazo (Laplane & Santos Filho, 1995LAPLANE, M. & SANTOS FILHO, O.C. (1995). “Especulação e instabilidade na globalização financeira”, Economia e Sociedade nº 5. Campinas: Instituto de Economia/Unicamp., apud Guttmann, 1994).

A globalização financeira foi acompanhada por uma alteração na natureza dos fluxos de capitais. A maior parte dos fluxos recentes constitui investimentos de port­fólio - compras e vendas de ações e títulos de renda fixa, além das fronteiras - que são motivados por ganhos de curto prazo e não por oportunidades de investimento produtivo e considerações de longo prazo. O componente especulativo inerente a esses fluxos desestabiliza os mercados financeiros e de divisas e conduz a intensas oscilações dos preços dos ativos e do câmbio que, por sua vez, podem provocar reversões súbitas dos fluxos, não associadas à evolução dos fundamentais (Miranda, 1993MIRANDA, J.C. (1993). “Incerteza, antecipação e convenção”, Economia e Sociedade nº 2. Campinas: Instituto de Economia/Unicamp.).

A racionalidade subjacente à decisão dos agentes num contexto caracterizado por instabilidade financeira estrutural, incerteza, assimetria de informação e de poder e opiniões divergentes é bastante diferente daquela postulada pela teoria das expectativas racionais. Não existe nesse contexto o homo oeconomicus otimizador num universo estacionário definido por leis econômicas conhecidas por todos. Num ambiente de incerteza, quando o futuro não é probabilizável,”... o mimetismo é um comportamento racional, pois permite aproveitar a informação supostamente veiculada pelo mercado” (Orlean, 1989, apud Plihon, 1995). Nesse sentido, Plihon (1995: 63-64) ressalta que,

“os comportamentos dizem respeito à lógica especulativa, na medida em que resultam de expectativas de variações das cotações dos títulos ou das moedas. (...) Por outro lado, afirmar que os mercados tornaram-se fundamentalmente especulativos significa ressaltar dois outros aspectos. Em primeiro lugar, os agentes que raciocinam em prazo muito curto nos mercados são hoje predominantes.(...) Em segundo lugar, os operadores tendem a se abstrair da realidade dos fundamentos em beneficio da busca de uma opinião sobre a tendência do mercado. Esse desvio especulativo intervém porque os mercados tornaram-se mais voláteis e os investidores carecem de pontos de referência para ancorar suas expectativas”.

Em suma, ao contrário do suposto pela teoria dos mercados eficientes, as informações relevantes sobre os fundamentais da economia não estão disponíveis, de forma homogênea, para todos os participantes do mercado. O comportamento dos investidores num ambiente de incerteza e informações incompletas é condicionado, como mostrou Keynes (1936KEYNES, J.M. (1936). Teoria geral do emprego, do juro e da moeda. São Paulo: Nova Cultural, 1985, 2a. edição.), pela busca de ganhos de curto prazo e pela adoção de convenções, que resultam em ações uniformes e efeitos de “manada”12 12 No capítulo 12 da Teoria geral, Keynes faz uma análise detalhada da lógica das decisões dos agentes num contexto de incerteza, mostrando os diferentes condicionantes das decisões relacionadas com ativos produtivos e daquelas relacionadas com ativos financeiros. Essa análise permanece atual e útil para a compreensão da dinâmica recente do mercado financeiro internacional. .

Os protagonistas nesses mercados são os fundos mútuos e de pensão, os grandes bancos e a tesouraria das grandes empresas. Em condições de incerteza radical, esses agentes são obrigados a formular estratégias com base numa avaliação convencionada sobre o comportamento dos preços e são os formadores de convenções. Suas estratégias são mimetizadas pelos demais investidores com menor porte e informação, implicando a formação de bolhas especulativas e posteriores colapsos de preços. Assim, esses mercados não atendem aos requisitos de eficiência, pois podem existir estratégias ganhadoras, acima da média, derivadas de assimetrias de informação e poder (Aglietta, 1995AGLIETTA, M. (1995). Macroéconomie financiére. Paris: Édition La Découverte. e Belluzzo e Coutinho, 1996BELLUZZO, L.G. de M. & L. COUTINHO (1996). “Desenvolvimento e estabilização sob finanças globalizadas”, Economia e Sociedade nº 7. Campinas: Instituto de Economia/Unicamp.).

Nesse contexto, uma reversão das expectativas pode ser provocada por notícias sobre problemas marginais num determinado mercado, que não estão relacionados necessariamente com os fundamentos econômicos, podendo resultar num ataque especulativo, na medida em que existe um trade-off entre diversificação e informação. Segundo Griffth-Jones (1996GRIFFITH-JONES, S. (1996). “La crisis del peso mexicano”, Revista de la Cepal 60, Santiago.: 154), “quanto mais diversificado for o portfólio de um investidor, menores serão os incentivos para obter informações caras. À medida que aumenta o número de países nos quais investe, diminui o benefício marginal de obter informações. Como resultado dessas tendências, o efeito rebanho é exacerbado, ao aumentar a sensibilidade dos investidores aos rumores ou notícias do mercado...”.

Os comportamentos de manada também estão associados à estrutura de incentivos dos administradores de fundos. Se um gestor de um fundo particular é o único a tomar uma decisão equivocada, perdendo uma oportunidade de lucro que todos aproveitam, sua instituição receberá uma “punição” do mercado. De forma contrária, se a estratégia revela-se incorreta ex post, mas é adotada por todo o mercado, o erro é coletivo e as perdas gerais podem ser amenizadas por uma operação de resgate - como ocorreu de fato na crise do México de 1994 (Griffith-Jones, 1996GRIFFITH-JONES, S. (1996). “La crisis del peso mexicano”, Revista de la Cepal 60, Santiago.).

O retorno dos fluxos financeiros voluntários para a América Latina

De acordo com a visão crítica de inspiração keynesiana, apresentada anteriormente, a retração do crescimento nos países industrializados e a nova dinâmica do mercado financeiro internacional foram os principais condicionantes do retorno dos fluxos de capitais privados voluntários para os países da América Latina no final da década de 80, agora na forma de investimentos de portfólio estrangeiro.

Da mesma forma que nos anos 70, a queda da rentabilidade financeira nos países centrais devido à fase descendente do ciclo econômico e financeiro determinou um excesso de liquidez internacional. Mas, é fundamental ressaltar as especificidades do ciclo de endividamento recente. O fator conjuntural decisivo para a transformação dos países latino-americanos de transferidores de recursos reais ao exterior em receptores de recursos financeiros foi a deflação da riqueza mobiliária e imobiliária observada a partir do final de 1989 nos mercados globalizados (Belluzzo e Coutinho, 1996BELLUZZO, L.G. de M. & L. COUTINHO (1996). “Desenvolvimento e estabilização sob finanças globalizadas”, Economia e Sociedade nº 7. Campinas: Instituto de Economia/Unicamp.). A crise do início dos anos 90 é financed-led, ou seja, o ciclo econômico nas suas fases ascendentes e descendentes é comandado pela dinâmica dos mercados financeiros. A recessão financed-led exigiu grande frouxidão das políticas monetárias e taxas de juros baixas para tornar possível a redução dos desequilíbrios correntes e patrimoniais das empresas, bancos e famílias. Como ressalta Aglietta (1995AGLIETTA, M. (1995). Macroéconomie financiére. Paris: Édition La Découverte.), a fase de expansão real dos preços dos ativos impulsionada pela expansão do crédito culminou em 1989. A partir de então, observou-se um período de deflação prolongada, exceto nos EUA. A amplitude do ciclo financeiro foi maior nos países que passaram por mudanças estruturais mais violentas, ou seja, cujos sistemas financeiros eram mais regulados.13 13 Para uma análise detalhada do movimento de inflação e deflação dos preços dos ativos nos países centrais, ver Aglietta (1995).

Assim, o condicionante fundamental do retorno dos fluxos voluntários foi a nova dinâmica financeira internacional e a conjuntura econômica nos países centrais, ou, mais precisamente, a etapa do ciclo financeiro (contexto de sobreliquidez e queda da rentabilidade dos ativos). Ao lado desses determinantes mais gerais - os chamados fatores externos ou pull factors -, esse retorno foi estimulado pela elevação significativa da rentabilidade financeira da América Latina, associada aos planos de estabilização econômica, e viabilizado pela abertura financeira empreendida pelos países da região (Baer, 1995BAER, M. (1995). “Sistema financeiro internacional: oportunidades e restrições ao financiamento do desenvolvimento”, Novos Estudos, jul. São Paulo: CEBRAP.). Além das perspectivas de valorização das taxas de câmbio e manutenção de taxas de juros reais elevadas, devido à adoção de programas com âncora cambial, as perspectivas de valorização da riqueza nos mercados emergentes latino-americanos também decorriam da existência de estoques de ações depreciados, governos endividados e com empresas em processo de privatização. A procura por essas aplicações também foi impulsionada pelo colapso do mercado de Junk Bonds dos EUA (1989), que deixou insatisfeita a demanda dos investidores estrangeiros por aplicações de alta rentabilidade, abrindo, assim, um espaço para os títulos dos países latino-americanos em seus portfólios (Appy et al., 1995).

As reformas estruturais tiveram alguns efeitos positivos sobre o desempenho econômico das economias, no entanto,”... parece claro que muitas das reformas talvez não tivessem sido implementadas com sucesso e muitos ganhos de eficiência não se concretizado num ambiente semelhante ao dos anos 80 com racionamento financeiro e a necessidade de efetuar elevadas transferências ao resto do mundo” (Damill et al., 1996: 116-117). Na realidade, a influência das reformas liberalizantes sobre o retomo dos fluxos de capitais voluntários para a região está associada muito mais ao seu impacto sobre as expectativas dos formadores de opinião e dos investidores, do que aos seus efeitos reais sobre as economias da região.14 14 Pellegrini (1995) analisando os indicadores de solvência (dívida externa/PIB) e liquidez (dívida externa/exportações) das principais economias latino-americanas conclui que o desempenho dessas economias em termos de crescimento econômico e evolução da estrutura do comércio exterior não corrobora nenhuma hipótese sobre melhores condições econômicas e que, assim como em 1982, esses indicadores fundamentos continuavam desfavoráveis aos países da região no momento de retorno dos fluxos. Como ressaltam Goldstein e Turner (1996), grande parte dos fluxos de capitais da década de 90 foram determinados por uma onda de otimismo em relação aos efeitos das reformas. Krugman (1995KRUGMAN, P. (1995). “Tulipas holandesas e mercados emergentes”, Revista de Política Externa. São Paulo: Paz e Terra.: 86) esclarece muito bem essa questão:

“Parece bastante evidente que parte do entusiasmo pelo investimento nos países em desenvolvimento na primeira metade da década de 90 foi um exemplo clássico de bolha especulativa. Uma recuperação modesta das previsões econômicas da sombria década de 80 levou a maiores ganhos de capital para os poucos investidores que se demonstraram dispostos a aplicar dinheiro nas bolsas de valores do Terceiro Mundo. O sucesso obtido levou outros investidores a entrarem neste mercado, o que aumentou os preços ainda mais”.

A bolha especulativa não envolveu apenas esse processo econômico, no qual o otimismo excessivo do mercado torna-se uma profecia auto-realizável, mas também, “... um processo político mais sutil, em que as crenças comuns dos responsáveis pela elaboração de políticas e dos investidores provaram reforçar-se mutuamente” (Krugman, 1995KRUGMAN, P. (1995). “Tulipas holandesas e mercados emergentes”, Revista de Política Externa. São Paulo: Paz e Terra.: 82). Em outras palavras, consolidou-se progressivamente um saber convencional em defesa do “livre mercado e da moeda forte”.

Em suma, os fluxos financeiros direcionados para os países periféricos nos anos 70 e 90 tiveram como principais determinantes a dinâmica financeira internacional e a etapa do ciclo econômico dos países centrais, que implicaram a busca de oportunidades de lucro pelos agentes dominantes na esfera financeira - bancos e investidores institucionais, respectivamente.

CONCLUSÃO

Na visão do maínstream economics, a abertura financeira geraria problemas sistêmicos para os países periféricos apenas se as precondições não fossem cumpridas. Ou seja, se os países abrissem suas economias aos fluxos financeiros externos previamente à obtenção da estabilidade monetária e da implementação das demais reformas liberais. Se a sequência correta de implementação das reformas fosse adotada, seriam eliminadas as distorções sobre o funcionamento dos mercados introduzidas pelo modelo de desenvolvimento anterior. Como nessa perspectiva, os mercados financeiros são eficientes, os capitais externos retornariam automaticamente para esses países, nos quais a taxa de retorno dos investimentos produtivos e financeiros é mais elevada devido à escassez de capital.

Para a visão crítica apresentada, a questão central não reside na existência de uma sequência adequada de reformas liberalizantes, que, se implementada, garantiria um padrão de inserção financeira internacional virtuoso para as economias emergentes, mas na própria lógica atual de funcionamento do mercado financeiro internacional e nas características dos fluxos recentes de capitais, que são orientados, essencialmente, pela busca de ganhos financeiros de curto prazo. Com isso, a abertura financeira pode gerar problemas sistêmicos nas economias, independentemente da ordem de implementação das reformas. Apesar de importante, a adoção de políticas macroeconômicas prudentes não garante a sustentabilidade dos fluxos de capitais.

Ademais, a natureza dos fluxos - investimentos estrangeiros diretos ou de portfólio - e o tipo de investidor, no caso desses últimos - fundos mútuos, fundo de pensão, seguradoras ou instituições bancárias - apenas afetam o grau de volatilidade e permanência dos capitais internacionais, que são determinados, em última instância, por uma dinâmica exógena aos países periféricos.

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    Para uma análise detalhada da teoria da repressão financeira, ver Cintra (1993CINTRA, M.A.M. (1993). Uma visão crítica da teoria da repressão financeira. Dissertação de Mestrado apresentada no Instituto de Economia da UNICAMP, Campinas.).
  • 2
    Esse argumento inclui os fluxos relacionados com investimentos produtivos e os fluxos financeiros. Esses se direcionariam para os países em desenvolvimento atraídos pela maior rentabilidade do capital devido à sua escassez. Tanto a taxa de lucro quanto a taxa de juros nesses países seriam mais elevadas como decorrência dessa escassez, já que na visão convencional o juro é um fenômeno real, determinado pela interação entre poupança e investimento.
  • 3
    Na teoria convencional, o principal determinante da inflação é o financiamento monetário dos déficits públicos. Sendo assim, o equilíbrio fiscal é essencial para a eliminação da inflação e para a sustentabilidade do ambiente de estabilidade de preços.
  • 4
    ‘Esse mesmo argumento - de que as condições internas dos países da região são os principais determinantes dos fluxos - foi utilizado por autores do mainstream para explicar a redução dos empréstimos externos e dos investimentos estrangeiros diretos e de portfólio para a América Latina no início da década de 80 e, principalmente, após a crise da dívida; ver Ballassa et al. (1986BALLASSA, B. et al. (1986). Uma nova fase de crescimento para a América Latina. Mexico: El Colegio de Mexico.).
  • 5
    Para uma análise detalhada das causas, características e implicações das transformações financeiras recentes, ver Baer (1990BAER, M. (1990). “Mudanças e tendências dos mercados financeiros internacionais na década de 80”, Pensamiento lberoamericano nº 18, Madrid.), Ferreira e Freitas (1990FERREIRA, C.K.L. & FREITAS, M.C.P. (1990). O mercado internacional de crédito e as inovações financeiras nos anos 70 e 80, Estudos de Economia do Setor Público, 1. São Paulo: FUNDAP/IESP.), Belluzzo (1995BELLUZZO, L.G. de M. (1995). “O declínio de Bretton Woods e a emergência dos mercados globalizados”, Economia e Sociedade nº 4. Campinas: Instituto de Economia/Unicamp.), Chesnais (1996SERFATI, C. (1996). “Le rôle ac ti f des groupes à dom i nance indu st rielle dans la financiarisation de l’ economie”. F. Chesnais (coord.), La mondialisation financiere: Genese. coût et enjeux, op. cit.), Cintra (1996CINTRA, M.A.M. (1996). “A montagem de um novo regime monetário-financeiro nos Estados Unidos (1982-1994)”, Relatório de pesquisa. São Paulo: FUNDAP-IESP.), Laplane e Santos Filho (1995LAPLANE, M. & SANTOS FILHO, O.C. (1995). “Especulação e instabilidade na globalização financeira”, Economia e Sociedade nº 5. Campinas: Instituto de Economia/Unicamp.) e Plihon (1995).
  • 6
    É importante ressaltar que o processo de globalização financeira não é ignorado pelo mainstream economics. Contudo, ao contrário da visão exposta a seguir, as finanças são intrinsecamente estáveis para essa escola de pensamento. Dada a hipótese de eficiência dos mercados, os desequilíbrios e instabilidades no mercado financeiro internacional decorreriam de erros de política econômica e/ou corresponderiam a uma transição de aprendizado (Laplane & Santos Filho, 1995LAPLANE, M. & SANTOS FILHO, O.C. (1995). “Especulação e instabilidade na globalização financeira”, Economia e Sociedade nº 5. Campinas: Instituto de Economia/Unicamp.). O processo de globalização é visto como positivo pois resultaria num papel cada vez mais importante dos mercados na alocação dos recursos em âmbito internacional.
  • 7
    Sobre o surgimento e desenvolvimento do euromercado, ver Ferreira e Freitas (1990FERREIRA, C.K.L. & FREITAS, M.C.P. (1990). O mercado internacional de crédito e as inovações financeiras nos anos 70 e 80, Estudos de Economia do Setor Público, 1. São Paulo: FUNDAP/IESP.).
  • 8
    Os países anglo-saxões - Inglaterra, EUA e Canadá - foram os precursores dos processos de liberalização, desregulamentação e abertura financeira. Na França, esse processo iniciou-se em 1984; no Japão, em meados da década de 80; e na Alemanha, apenas na segunda metade dessa década.
  • 9
    Vale lembrar que o avanço tecnológico na área da informática e telecomunicações contribuiu para o desenvolvimento dessa nova dinâmica, ao baratear o custo de transmissão, aumentar a velocidade do processamento dos dados e a facilidade de acesso a diferentes mercados.
  • 10
    Nas economias capitalistas, nas quais a moeda de crédito emitida pelos bancos é o principal meio de pagamento, existe uma hierarquia entre os diferentes meios de pagamento e a moeda emitida pelos bancos centrais é a forma superior de liquidez, pois apenas a autoridade monetária pode efetuar pagamentos com sua própria divida (Aglietta, 1995AGLIETTA, M. (1995). Macroéconomie financiére. Paris: Édition La Découverte.).
  • 11
    Vale lembrar que o avanço tecnológico na área da informática e telecomunicações contribuiu para o desenvolvimento dessa nova dinâmica, ao baratear o custo de transmissão, aumentar a velocidade do processamento dos dados e a facilidade de acesso a diferentes mercados.
  • 12
    No capítulo 12 da Teoria geral, Keynes faz uma análise detalhada da lógica das decisões dos agentes num contexto de incerteza, mostrando os diferentes condicionantes das decisões relacionadas com ativos produtivos e daquelas relacionadas com ativos financeiros. Essa análise permanece atual e útil para a compreensão da dinâmica recente do mercado financeiro internacional.
  • 13
    Para uma análise detalhada do movimento de inflação e deflação dos preços dos ativos nos países centrais, ver Aglietta (1995AGLIETTA, M. (1995). Macroéconomie financiére. Paris: Édition La Découverte.).
  • 14
    Pellegrini (1995) analisando os indicadores de solvência (dívida externa/PIB) e liquidez (dívida externa/exportações) das principais economias latino-americanas conclui que o desempenho dessas economias em termos de crescimento econômico e evolução da estrutura do comércio exterior não corrobora nenhuma hipótese sobre melhores condições econômicas e que, assim como em 1982, esses indicadores fundamentos continuavam desfavoráveis aos países da região no momento de retorno dos fluxos.
  • 15
    JEL Classification: F65; E12; F43.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 1999
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